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Autobiografias poético-políticas 1, André Luiz Pinto: uma série produzida por Alberto Pucheu

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Projeto: Autobiografias poético-políticas
Alberto Pucheu

            Enquanto que, entre nós, em tempos passados, houve uma predominância de poetas diplomatas e funcionários públicos, enquanto que, mais recentemente, houve uma predominância de poetas que encontraram as aulas na universidade ou em colégio como alternativa de trabalho estabilizando-se pelo menos em uma classe média, enquanto, nos anos 1970, no Rio de Janeiro, mesmo a Geração Marginal ou Mimeógrafo fora composta basicamente por moradores da Zona Sul, é certo que, hoje, há uma alteração significativa nesse cenário.
            A geração mais nova, a com quem vai chegando aos 30 anos ou que passa um pouco deles, é repleta de moças e rapazes vindos de famílias pobres, do subúrbio, da periferia, de favelas, que foram e são os primeiros de suas famílias a terem tido condições de estudar em universidades públicas, que tiveram bolsas auxílios, bolsas de Iniciação Científica, bolsas de Mestrado, bolsas de Doutorado, que hoje fazem Mestrado ou Doutorado em Filosofia, História, Letras..., moças e rapazes que, no caso do Rio de Janeiro, deslocam a poesia da Zona Sul levando-a para outras paragens, outros posicionamentos, outras intervenções existenciais e políticas. Chamo essa geração, nascida em torno dos anos 1990 e que começa a publicar na segunda década dos anos 2000, de Geração Lula, por ter sido beneficiada pelas políticas de inclusão do ex-presidente; é uma geração beneficiada também pela democratização radical da internet.
            Querendo flagrar uma movimentação histórico-poética que, vinda de antes, se encaminha a essa geração chegando até ela, querendo flagrar poetas da geração que elegeu Lula até esta que fora beneficiada por suas políticas inclusivas, a série de vídeos documentais que tenho feito neste início de 2019, lidando com uma história recente do país, é composta por 4 poetas do Rio de Janeiro, foco do projeto: André Luiz Pinto (nascido em 1975 e com estreia em 1999), Tatiana Pequeno (nascida em 1979 e com estreia em 2009), Bruna Mitrano (nascida em 1985 e com estreia em 2016) e Danielle Magalhães (nascida em 1990 e com estreia em 2018).
            O local de proveniência de tais poetas (a Zona Norte, a Zona Oeste e a Baixada Fluminense), bem como um outro modo de vida, demarcam uma intrusão política diferenciada. Há uma violência social sofrida e uma resposta a ela que perpassa tais poetas em que comparece um dos traços para mim mais decisivos (mas não único, claro) da poesia atual: uma autobiografia poético-política. Ou seja, ultrapassando o meramente individual, os acontecimentos autobiográficos que comparecem poetizados já se colocam, de antemão, como políticos, como, dizendo respeito ao que é singular, concerne igualmente o público. Uma outra parte, até então, praticamente inaudita, requisita-se para a contagem poética e política. Escolhendo tanto poetas quanto seus poemas para serem lidos e tematizados nas conversas filmadas, meu trabalho é buscar uma intervenção crítica que possa colaborar em dar mais visibilidade ao que tais poetas vêm criando (muitos desses poemas são inéditos em livros) e na escuta de tais poetas, para que possam ser cada vez mais bem pensados e, com isso, que nosso tempo possa ser igualmente mais bem pensado.
            Não são de modo algum vídeos que se querem como de alguém que tenha qualquer pretensão a cineasta, mas, sim, de alguém que, lidando de vários modos com a poesia, quer se colocar na posição de escuta e de reflexão de uma possibilidade da cena poética atual.


______________


Aqui os poemas de André Luiz Pinto que são falados no vídeo:


Prazer, esse sou eu
filho de doméstica
numa época em que
patrões cismavam
em chamar de filhas
as mucamas. Eu
criado numa mansão
da Barra, obrigado a amar
patrões como avós
sem direito de herança.
Uma coisa aprendi:
a ler livros e a me irritar
com facilidade - lá, onde
o sinal está sempre vermelho
e sempre acabo errando
a baliza - onde ninguém
divide nada, quando
até quem te chamou de sobrinho
diz um dia: a casa é nossa
deves partir. Tá bom, disse.
Só me dá duas semanas.








EM FAMÍLIA

I

Caído de joelho
o interesse não era falar mal, mas como
que conservando
a imagem eclipsada do enterro, enterrei-me sozinho
tendo pelo menos sérias razões
que me levassem a isso
esse esgoto para começar, essa sobra de sombra
e carne quando visito tua casa em rua
tão sugestiva: Conde
de Sabugosa.


II

Lembro-te por último
detonada e sem saída
com o martelo da bigorna
e a mão em concha batendo
contra o estribo
seus estriados dentes - dor
de ouvido.
Apesar da brincadeira, dura é a prosa
do que deve ou não dizer.
Desta vez contarei os últimos dias
no velório que esperava não fosse o teu.


III

Te enterrar não foi pecado
nem caberia dizer, cabe entanto
marcar-te em prosa
a sequencia dos acontecimentos.
Lembro-me contigo
e meu avô - costumava roubar
de madrugada o sorvete
que deixavas para ele -; mostrando a meu avô
um poema, disse: você é jovem demais
para ser tão triste, ao que respondi
vocês bem que poderiam ter deixado um mundo melhor


IV

A adolescência não sabia
que apesar da confusão entre prosa
e poesia, isto não é revolução. O que pesa
é o salário que custeia a vida e a verdade é essa:
agora exigem licença
que te chame de vó
Aconteceu no velório
Vou contar
o que aconteceu.
Tenho certeza
que o poema
chega a ti.


V

Vou contar tudo, vó
Convoco tua imagem como se convoca
um espírito. No velório, Cláudia, tua sobrinha disse
que devo pedir licença
não somos mais neto & avó. Tenho certeza
que não há juiz que condene
tal metafísica, desejo mais atormentado
que essa fé. Esperávamos de Cláudia a oração.
Foi quando Cláudia disse: "estamos aqui
no velório de Leda Coelho
de Faria Rocha.
Infelizmente não puderam comparecer
(como os hipócritas lembram sempre deputados
de plantão) seus netos & filhos
restando apenas
Amigos & Sobrinhos (Pausa
Pra Cuspir).


VI

A vida pede esclarecimento
e esclarecerei. Primeiro, se eu estava lá
tinha sua razão e a razão era essa: o que dói neles
é o amor que Leda tinha por mim

e a explicação só poderia ser uma
Dona Leda não valia a pena
amava mais um estranho
que netos e sobrinhos.

Aos legítimos preferiu resmungar. Descendência
discreta cravada
de martírios.


VII

Dona Leda
não valia nada amava
mais um estranho que netos legítimos
e quem há de concordar com tal infâmia
dita em alto e bom tom para quem quisesse ouvir
senão o menino
privilegiado cheio de graça que a chamava
de vó. Sinto seu olhar como quem faz um apelo
'me tire daqui', a doença já assalta
os cabelos, ela sofre
envergada em
concha.


VIII

Dizem que não devemos
falar dos mortos - eles são presa
dos vivos - mas por que não dizer
se eles palpitam
enquanto o coração embriagado existir
enquanto for escandalosa
e ultrajante
a verdade

que fulminará
em claraboias, desterros
lançamentos
de dardos, dados de última hora:
agora devo explicar
a razão - inveja, já respondi; dor
de cotovelo, respondi; veneno - tomei.


IX

O problema está aí
ela exigia demais
.
como se fosse claro a um pescador
a razão da mortandade dos peixes. Tinha
dessas manias. Lembro certa feita
minha irmã e eu, mais preocupado em me proteger
do que a própria irmãzinha
naquele ônibus - búzios lagoinha - lembra?
E também me lembro
de você, boa
no sopé da piscina (porque tudo era bárbaro
naquela época, os sofás eram montanhas
ameaçadoras por onde passava
o ferrorama
como um
seriado
japonês)


X

Agora veio Cláudia
em púlpito
querendo convencer
que os netos não compareceram?
Que neto não compareceu?
Sequer tinham ideia sobre quem era.
Vou lhes contar:
Leda adorava pôr panos quentes
no batente da casa, no podre
da família, debatíamos
sobre isso
até porque
(deu pra notar)
dou
a mínima.


XI

Escrever
é minha língua
meu jeito
de estar
a poesia é minha língua
treinada
desde menino
Já não sei se vale a pena
a sofreguidão
da voz calada
diante
dos filhos
pois o que dizima os homens
são seus cotovelos
e aqui é claro
não há prêmio
premiado serei
quando disser o que querem
o que desejam - eu sou o que desejam
entro numa fábrica, abomino a fechadura.
Queria dizer também e agradecer
a Cláudia
que se lembrou
de minh'avó.


XII

Mas ela me visita
em seu vestido grená
titubeia
ao descer as escadas
no aniversário
de sessenta anos. Netos lembrados
ainda que por ela não vividos
eu vos direi.
Sentei a seu lado
e não vocês. Ela disse
que me amava mais que tudo
e vocês não.
Fiquem com Búzios
queimem seu lar que Leda não mora mais.
Nem ela nem meu avô
até porque
depois que o universo explodir
e o mar sobre Búzios retomar as conchas
quem se lembrará de seus donos
e quem se lembrará
em língua morta
os que nem foram?







SOBRENOME

Taí
o chicote
que você usava
ao menor
barulho

Só agora
entendo
que você agisse
assim

não dá para entender tudo

de qualquer forma
só vim devolver
o que você me emprestou

não tem por que eu ficar com ele
sinto muito pela sua dor.







André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007), "Terno novo" (2012), "Mas valia" e "Nós, os dinossauros" (2016).

Alberto Pucheu (Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1966) é um filósofo, poeta e ensaísta brasileiro. Professor-Doutor do curso de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, entre outros, de Na cidade aberta (1993), Escritos da frequentação (1995), A fronteira desguarnecida – poesia reunida 1993-2007 e Pra que poetas em tempos de terrorismos? (2017), entre outros.


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