O INTOCÁVEL
Estava nevando quando cheguei. Pedi em sussurro que se afastassem. Alguns demonstraram insatisfação, mas, em conjunto, todos me atenderam e, antes que eu piscasse os olhos, estavam a uma distância segura da casa de Melissa, quero dizer de nossa casa, minha e de Melissa. Antes que tocasse o interfone, ela apareceu à porta. Embrenhei-me em seus braços quentes como se ainda não fosse homem feito de barba grossa e ficha criminal extensa. Afundei meu rosto em seus cabelos querendo brincar com seus cachos. Mas eles pareciam fugir de meu hálito.
O cheiro de sua pele fresca nunca tinha saído de minhas narinas. E um prazer ia se apossando de mim só por poder aspirá-lo, recolhê-lo em minha alma. Vi quando ela me lançou, pela primeira vez após tantos anos, seu olhar sabor bronca e beijo. Sorriu sem graça e mostrou-me o hall como se eu não conhecesse aquele espaço tão bem quanto conheço nossos corpos.
Dispus meu sobretudo e ouvi a lenha queimando na lareira. Sobre a mesma mesa de toalha de fundo vermelho, posta como se aquela fosse a última ceia, as taças de vinho tinto pela metade. Aquela era a nossa senha.
Só então abaixei meus olhos em sua direção e sorri. Aceitei sua mão estendida e caminhamos para a mesa. Seria nosso primeiro gole de vinho após muitos anos, dos quais eu contara cada um dos dias na esperança de poder retomá-la em minha vida e, então, como vingança, recolher todos os prazeres que poderia estar vivendo se a tivesse a meu lado, se não tivessem me encarcerado como bicho bravo.
Antes de nos sentarmos, parei em frente ao espelho oval. Olhei-me. Atrás de mim, enxerguei de novo aquela sombra. Cheguei a pensar que algum deles tivesse me desobedecido e entrado, mas não. Era a sombra de antes, de quando ainda namorávamos e éramos quase crianças e, por mais que tentasse, continuava sem conseguir identificá-la. Fingi ignorá-la e continuei reencontrando o espaço. O mesmo espelho enquadrando os mesmos móveis e quadros e vasos. A casa continuava bonita. Mas nada evidentemente era igual. Ao fundo, alheia à sombra, que ignorava, Melissa permanecia com aquele jeito de menina desorientada. Foi então que percebi aquela marca de expressão em sua fronte. Era sua primeira ruga. Examinei-a com discrição, quase com carinho.
Era a primeira de uma sucessão de rugas que se punham em fila para enfeitar suas faces. E todas se formariam de uma matéria que eu desconhecia, de experiências que ela havia vivido sem mim, de sensações sobre as quais ela jamais me falaria. Bateu em mim a certeza de que eu não mais poderia tocá-la. O tempo nos tornara inacessíveis um ao outro. O abismo que ele criara entre nós era tão concreto quanto a maior muralha do mundo. Não sei se ela ainda podia ler meus pensamentos, mas abraçou-me, agarrando-se a mim como se, antecipadamente, percebesse minha aproximação do abismo e o começo da intenção de deixar-me cair.
Podia sentir o calor de seu corpo e, quando ela, mais calma, soltou-se de mim, experimentei seu hálito limpo, necessitado de vinho. Pousou mãos leves em meu ombro, fez com que eu me virasse e, como se não tivéssemos envelhecido, colocou novamente, dessa vez com uma delicadeza assustadora, sua cabeça em meu peito.
Seguimos abraçados para a mesa e permanecemos assim durante boa parte da noite, alimentando, em um silêncio tenso e doce, a expectativa de consumir o vinho que nos esperava na garrafa, vermelho como o sangue e libertador como a esperança. Lá fora, a neve continuava caindo e eles permaneciam, sem frio, atentos aos barulhos do interior da casa, sedentos como feras, me esperando como se eu de fato lhes devesse algo. Queriam aumentar minha ficha, realizar-se através de meu corpo, beber um pouco mais minha vida.
Quase amanhecia quando ela outra vez retirou sua cabeça e então, como em uma despedida, ofereceu-me a boca e eu experimentei seus lábios como na primeira vez. Mas não eram os mesmos lábios. Seu gosto parecia querer dizer-me de outras viagens, de outros lábios melhores que os meus, de outras palavras, com sentidos que as minhas nunca tinham tido, com significados que as minhas nunca poderiam criar. As minhas estavam presas com minha ficha. Agora mais duras, agora mais flechas, agora mais loucas, com coragem para perfurar-lhe o corpo, despindo-a de medos que a impediam de levitar.
Para nada serviram os anos de cárcere senão para me calejar com perdas insuperáveis como as que eu impusera a minhas vítimas. Por mais que tentasse, seria incapaz de recuperar aquilo que ainda pretendíamos dividir. Melissa não sabia, e se soubesse não poderia entender, não poderia aceitar que não éramos mais os mesmos. O presídio era vento forte soprando cada um dos grãos de areia que formavam o que eu fui. Alguns grãos, eu recuperei em uma das tantas encruzilhadas que as emboscadas do dia a dia me fizeram cruzar. Nessa encruzilhada encontrei o que não esperava, a legião estava lá, o Tranca Rua à frente, prometendo-me chaves e um novo caminho, um corpo fechado contra facas e tudo mais que pudesse envergar minha espinha, encostar meus joelhos no chão. Aceitei. Tive de vender minha vida a eles, que me protegiam agora noite e dia. E queriam me proteger principalmente dela. Vocês não estão entendendo nada, Tranca: ela não é vento, é ímã. Não lhe importava isso. Todos – ele no comando - queriam minha fidelidade. Que honrasse minha palavra.
Mas não só eu não era mais o mesmo. Ela tinha mais que aquela primeira ruga e tinha menos, os anos lhe tiraram muito e ela sequer tinha conseguido fazer o inventário de suas perdas, que dirá eu... Palavras, brilhos, sonhos, o gosto de rir por nada, de brincar como criança abestalhada... Éramos nós.
Era assim que fingíamos ser nós e nos encontrávamos antes daquele primeiro assassinato. Com ele, aprendi o que de fato é o medo e o que de fato é o prazer. Não parei mais. Talvez a sombra tenha, então, me tornado um fantoche. Não sei, poderia encontrar algumas desculpas..., há várias possíveis, bailando à disposição de minha inteligência. Mas não. Não vou mentir. A sombra me assustava e me encantava. O que estava por detrás daquela aparência que não conseguia decifrar, daquela força que não conseguia conter, daquela sedução que me atraía sempre mais? Aceitei-a como um dado de minha vida. Um fato apenas. Pena que ela não se dispôs a me proteger, ela apenas me instigava a fazer sempre mais e pior, ou melhor? Por isso tive que compactuar com eles. Foi assim que fiz deles meus capangas, meus seguranças. E hoje estamos aqui, os oito, dependentes um do outro, com Melissa em nosso caminho.
Então, olhei-a com toda a dureza que os anos imprimiram à minha alma e disse-lhe.
Ela não pareceu temer. Olhou-me doce e até sorriu. Pensou que estivesse brincando. Era incapaz de contemplar a amplitude da dureza de minha alma e aquela sua incapacidade punha-nos, os nove, em risco.
Então, olhei-a com ternura, como se olha um pedaço de cristal sobre o qual se tem total responsabilidade e a consciência de que encerra o segredo do mundo. Pedi-lhe que me acompanhasse à biblioteca e ela, como se entendendo meu desejo, apanhou, por detrás da estante onde repousava Borges, aquela nossa arma. Se ainda estava ali, é porque seu amor por mim era maior do que eu supunha.
Pela segunda vez na noite, ofereceu-me sua mão, que eu acolhi como a concha aceita a pérola. Subimos a mesma escada de tantos anos atrás, que nos levava a um mundo de prazeres e gozos e, no caminho, vi outros quadros, mas no fundo os mesmos quadros. Éramos jovens rodeados por familiares em uma noite de natal. Éramos jovens adultos segurando, preocupados, um bebê. Eu a cabeça, ela os pés. Éramos jovens universitários vestidos para a formatura. Só nós dois no meio de tantos. Sorríamos para a câmera. Éramos crianças pousando para a foto na quadra da escola. Éramos tantos quadros que eu não poderia registrar aqui, éramos grãos de areia colados formando um chão.
No corredor, avistei outras imagens, agora paisagens: montanhas encobertas por neves; nômades caminhando por um deserto; savanas; planícies e grandes cânions; Paraisópolis e Mônaco. Em uma prateleira, em destaque, sua máquina profissional ao lado de meu retrato com um rosto sem essas cicatrizes. O rosto que me viu perder a liberdade e chorar pela última vez.
Ela, quando chegamos em frente à porta do quarto, entregou-me a arma. Entramos. Vi a cama desarrumada e dois travesseiros repousando um sobre o outro. Outra senha. O calor dos corpos alcançou minha alma, era como se o tempo não tivesse passado. Ele ainda aquecia meu corpo. Nada tinha tido o poder de esfriá-lo. Só então, supus a fidelidade em que minha dureza não ousara crer. Mas já era tarde. Podia, se quisesse, alcançar a sombra com minha mão esquerda e ouvir-lhe a respiração tensa bem próximo à janela semicerrada. Os sete estavam logo abaixo, no jardim gelado, e eu lhes intuía a agitação. Como eu, não temiam o frio da neve.
Sentamo-nos. Despimo-nos. O efeito do vinho mantinha nossos corpos aquecidos e nossa mente tão desperta a ponto de ouvirmos em uma mesma sintonia o som sossegado da neve caindo, pedindo pra entrar. Mas infelizmente eu ouvia muito mais que Melissa. E podia sentir a muralha, a maior muralha do mundo. E podia. Ver aquela ruga concebida por experiências que me eram estranhas. E formada por matéria que me era inacessível.
Pela segunda vez, beijamo-nos. Lábios que prometiam jamais revelar o segredo. Lábios que se queriam mais que à própria vida. Um querer sem fim, insaciável. Assim, Melissa via a cena. Mas havia uma muralha. E em breve eu teria de partir.
Beijei-lhe a testa e a primeira ruga de seu rosto, aquela que eu não vira nascer. Despedi-me do cheiro de seus cabelos. Seu sorriso foi o mais lindo. E ela fechou os olhos como fazia sempre e deixou-se suave cair sobre os travesseiros repousados, como recém-nascido sobre o peito da mãe, um sobre o outro
Sem hesitação, fui rápido e suave como imaginava jamais voltar a ser. Apanhei com leveza a arma escondida por Borges. Saboreando o gesto, e a força que viria dele, mirei bem no centro de sua testa e não titubeei. Fui certeiro. Antes que pudesse avistar seu sangue, mirei a minha. Mas errei o tiro.
Então, levantei-me mais sozinho do que nunca, fiz o caminho inverso, olhando cada um dos quadros e das fotos, atravessei a biblioteca, sorri para Borges, enxerguei-me satisfeito no espelho oval, atravessei o hall, apanhei meu sobretudo e recebi, completamente nu, as boas vindas da neve que nunca, nunca, para de cair.
Não havia mais por que querer apagar minha história. Eu sabia que a cidade me esperava e que, agora, de certo modo, eu dividia generosamente minha vida, continuaria cedendo meu corpo a uma legião.
O INTOCÁVEL integra o volume de contos Segredos e Prazeres, publicado pela Patuá em 2018.