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12 poemas de “Em Mar Alberto: 101 retrancas”, de Newton Messias

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ANTENAS DA DESG-RAÇA
                                                           Para Wladimir Saldanha

Aqui onde o sinal não chega
– este grande vale de lágrimas –
e as antenas moram distante,
no topo das grandes cidades,

não vinga o dito aristocrático:
poetas, antenas da raça;

a desgraça aqui se transmite
pele a pele: entra no sangue
e coça feito uma dermatite;

quem dispara o sinal de alerta
é o sal sobre a ferida aberta.


MR. ESCANÇÃO

O médium era o Conde Drácula
(vítimas contam-se às centenas);
o cardeal, a encarnação
de algum demônio em quarentena;

o im-pastor da televisão
tem mais grana que Salomão;

políticos em seus palácios
escondem as cartas na manga
e riem de nós, os palhaços;

(mientras) poetas sem tesão
recomendam: faça a escansão.


PÉROLAS E PORCOS 


Seja no Louvre ou ao ar livre,
ao mundo não falta beleza;
está de fato empanturrado
e arrota diamantes na mesa;

nem pirâmides, nem estrelas,
cachalotes ou best-sellers 

impedirão que nos matemos:
as raízes do baobá 
destilam o sangue inocente;

não será na verdade o belo
o que nos salvará do inferno.


SELVACIDADE

na selvacidade
subo me abraço cravo
as unhas no poema
mais alto

moro onde mora deus
sou amigo dos sete dias

cuspo (não
quero dizer cago)
sobre a mesa de reuniões

serei executado
pelos executivos mais baixos




INCENSO

Desculpa se escureço as ruas
e a paisagem desta cidade;
se divirjo em espaço público,
de certas afeições sagradas;

desculpa se emporcalho o templo
consagrado ao deus Dinheiro;

se aqui desse morro, tão alto,
surpreendo as piscinas sujas
onde se banham teus fantasmas;

desculpa existir ignorando
teu ódio, teu nojo e teu não.

3 RETRANCAS SOBRE UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA
 (01 a 03 /05/2018)

RUÍNAS

Nunca fora um problema seu:
as centenas de miseráveis
que ocuparam, na vizinhança,
o antigo prédio inabitável;

na sólida e imponente igreja,
erguiam louvores a Deus;

até que num maldito incêndio
no inferno ao lado, foi ao chão
o templo; coube ao reverendo

lamentar na TV, atônito,
o prejuízo arquitetônico.

(Em 01/05/2018, dia em que desabou, em São Paulo, um prédio ocupado por sem-tetos, derrubando também uma centenária igreja luterana.)


RICARDO “TATUAGEM

Homem-Aranha azul, sem teias:
Ricardo, vulgo Tatuagem,
abraçando o edifício em chamas,
fez a penúltima viagem;

foi sem dublês e maquiagem
que, ao vivo, vimos sua coragem

derretida pelo dragão
de aço e mau concreto; a cena,
toda em câmera lenta, não

custou caro, pois voo de pobre
é grátis, seguro não cobre.


PAES DE ALMEIDA

Certamente não era a paz
do Senhor, como a que reinava
na igreja ao lado, nem a paz
sonolenta da madrugada;

muito menos paz de mosteiro
ou paz de mansão de ex-prefeito;

a paz de Almeida era um mistério:
algo entre céu e inferno, corpo
e alma sem teto ou cemitério,

paz sem elevador, fugaz:
no Paes, só de Almeida era a paz.


(Wilton Paes de Almeida era o nome do prédio que desabou.)



LAMENTO PARA LUZIA


Luzia no canto da sala
o velho crânio de Luzia:
cabeça afogueada, em brasas,
da mais velha mulher; ardia

solidária e no mesmo drama
de bichos e índios nas chamas;

todos queimando no braseiro
do grande incêndio nacional:
o nosso inferno brasileiro;

do crepitar se ouve ainda:
— que país se erguerá das cinzas?


 Em 02/09/2018, um grande incêndio destruiu o bicentenário Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde estava, entre outras relíquias, o crânio da mais antiga mulher brasileira: Luzia.



A VOZ DO DIA

Cada vez mais rara, a poesia,
sorrindo, me acena de longe,
atrás de árvores e mulheres 
se diverte de esconde-esconde:

borboleta em chamas no ar
que não se deixa capturar;

o dia, porém, alto e claro,
como este sol, a todos grita
e de ninguém esconde nada:

— é um poema tudo o que vês
e escrever é uma insensatez.


AZUIS 


O azul de Carlos Pena Filho
não é o azul-anil do pássaro 
preso no peito de Bukowski:
animal triste e embriagado;

não é o azul-noite que escorre
lamentoso de Billie Holliday;

o azul-pena de Carlos Filho
é o de Recife: azul-celeste,
onde passeiam, em voo livre,

o pássaro azul e as canções 
que fugiram das detenções.



SALVAÇÃO (sábado)
                                    “Fica no teu silêncio amado e limpo” Daniel Lima
                                                            
De nosso, apenas o silêncio
infinito que nos habita
quando sós ou na multidão
abrimos o terceiro ouvido

para seu grito, seu sussurro,
para seu afago ou seu murro;

é o jeito de enganar a morte,
bicho se fazendo de morto:
deixar o concerto de vozes

mudas tocando o dia todo
na faixa mais alta do corpo.



*   *   *

LANÇAMENTO



O livro será lançado na dia 23/03, às 17:30,

no Bar do Mamulengo, Praça do Arsenal,

Recife Antigo. 


*   *   *




Newton Messias nasceu na Bahia, em 1973, mas vive em Recife, Pernambuco, desde criança. Tem formação em Música e leciona violão clássico no Conservatório Pernambucano e no Centro de Educação Musical de Olinda. Em 2018, participou da Antologia Brasileira da Retranca, pela Mondrongo. O livro "Em Mar Alberto:101 retrancas", que será lançado pela editora Mondrongo em março próximo, é uma homenagem ao poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, criador da forma fixa que apelidou de Retranca. No volume, o poeta navega por temas que vão da política brasileira às belezas naturais do Nordeste, levado pela embarcação de 11 versos em octossílabos rimados da forma (brasileiríssima) albertiana.




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