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Quatro poemas de Ramon Carlos

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Cipreste brejo , 1917 por Helen Hyde (1868-1919, Estados Unidos)




Nec spe nec metu

Hálito imaculado num bocejo de ferrolho
Já é tarde pra mastigar o pigarro
Veneno som que imita e tranca
A trinca que acasala sozinha
Sobre o isopor das maçãs verdes
Puniram-no
Pelo velho hábito de fazer serenatas
Após goles de água gelada
Gracejo
Já é tarde para reinventar as pernas flácidas
Da mulher colhendo amoras
Amoras que fazem tilintar
O miserável sapo de dente quebrado
Pobre Ugo, o sapo que ejacula farinha
E emoldurou uma lápide grande demais para seu nome
A galega com perfume de trigo
Cambaleou ao entrar no banheiro
Sussurrando o famoso lema:
Sem esperança, sem medo”
Ugo antes de saltar pro brejo esbravejou:
Sem herança, só medo”
Com a coberta em relva cinzenta
O poema não é mais poema
O poema já é tarde
Amanhã a trinca me acordará
Como alguém gritando:
Sem esperança, só medo”
Meu hálito será de brejo
Meu ferrolho um bocejo
E meu gracejo uma mancha de amora
Lapidada nas pernas flácidas da mulher
Que nem sabe meu nome

...........................................

Granada

Da mancha no olho casto
Do prurido na pele branca
Dos calos relevantes no pé 33
Das paisagens que sobram na cama
Leio Azevedo por 3,99
O primeiro livro vendido no bazar
Segundo a caixa
Pedido de ordem nas cruzadas
Não sei a capital do Líbano
Sugiro Lindóia do Sul
Muita letra
Não sei”, por fim, nos une
Uníssonos
Tocamos cabelos e formigas
Nas paredes mofadas
Nos panos de pia
No pacote de lixo
Na folhagem que atrai abelhas
Nas folhagens que nos une
Que regamos com suco de limão
E adubamos com erva molhada
Assim sentamos à margem
Das tristes notícias do erro comum
Das traças viciadas em naftalina
Dos equívocos das tesouras com ponta
Do nome no lápis sem ponta
Da taça trincada por um erro comum
Dos beijos si-lá-bi-cos
Voltamos a caminhar
Torcemos nossos corpos
Na quina do sofá
Na porta do box
Achamos engraçado esse porte de arma
Quebramos, esparramamos
Os cacos da porcelana verde por dentro
Vamos embora, vamos embora
Nosso chão tem carvão em brasa
Nossos símbolos vestem chapéu
Nossa ternura usa bigode
Nossas extravagâncias estão no sótão
Deixo a toalha de banho marcada de cera
Uso dois pingos de gel
Repito a cueca
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)
Cheio de ilustrações geométricas
Mas saem voando, capazes de orbitar
Vamos embora, vamos embora
Ela deixa rastros de primavera pela casa
Ela queima como um verão bêbado
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego
Seus cigarros ardem como incenso
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca
Das patrulhas pelas travessas
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol
Da noite que embrulha a ópera
Dos centímetros que separam metros
Do último furo no cinto
O álibi como um simples não
À margem, à margem
De um confuso ato
Os espelhos podem marinar
A recompensa que nunca acaba
Ela já está dormindo
Minha lira de 29 anos

...........................................

Ritmo sincronizado

Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
È uma loção para hemorróidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram pra fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível

.............................................

O enredo da porta ao lado

A tampa da panela que cai
Dando voltas sobre a mancha
No azulejo frio e úmido do dia vinte
O forno do fogão inutilizado
Pela válvula protetora de gás para crianças
Mas nunca houve criança, nem costela assada
O prato quebra
Como inimigo público número um
John, João, o rato suplica um martelo na ratoeira
O vestido foi tingido pela empregada
Que misturou uma camiseta laranja nas roupas brancas
John, João, o rato ainda se debate com os dentes cravados no queijo
E eu ainda estou acordado
Porque minha toalha de banho 100% algodão
Esteve molhada desde ontem
Por que separar o garfo da faca?
Era sopa
O guardanapo terminou
Por limpar marcas de sangue nas frutas
Tem uma batata podre embaixo da pia
Eu ouvi, mas não falei
Os banhos são maravilhosos
Até gosto daquela música
Mas nunca cantaram até o final
Ou será que fui interrompido pelo carteiro sem botas?
John, João, Joana, Jô, Jó
Eu recolhi a batata
Terminei com o sofrimento do rato
E imaginei vocês
Em um transatlântico
Durante a manhã
Falando sobre o vizinho
Que nunca estava





Sobre o autor

Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Mallarmargens, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.




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