Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Da eliminação da morte, poema de Jorge Lucio de Campos

$
0
0





[a Emil Cioran]




1

Deixei de subir montanhas.
Não nado em águas profundas.
Quase não cruzo as estradas.

Deixei de lado as drogas.
Não quero mais em excesso.
Quase não transo pessoas.

Deixei de ouvir o rap e o soul.
Não tento curtir o reggae.
Quase não falo “hip-hop”.

Deixei de ler Averróis.
Não quero ser hegeliano.
Quase não penso em Lacan.

Deixei de fazer amigos.
Não sei nada da moda.
Quase não ouço o que dizem.

Escondido no quarto,
as pernas pesadas,
a alma vazia,
a vida vazia,
as retinas coladas
na janela.

2

Abri mão das galochas,
dos sentidos, colibris,
do cheiro da relva,
da lepra, dos seixos,
das palavras gordas e
pontiagudas.

Sou vazio, mas vivo.
Sou pesado, mas vivo.
Sou calado, mas vivo.

Só não sei se valeu
a pena.

3

Tracei na pele um constelário.
Cruzei o Rubicão seguidamente.
Voltei ao inferno dos sonhos,
rindo e cantando, salpicado,
lagarto dentro de água fria.
Debaixo de chuva, fui em frente:
vira-latas, corrosivo,
hipnótico, zootécnico,
puro assombro de gengivas,
inundado, complicado, cheio
de erros gramaticais.

Só não sei se valeu
a pena.

4

Eu juro.



In: A grande noite perdida (Bookess, 2018).








____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548