Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

7 poemas de Eduardo Peters

$
0
0


Bastidor


Cena número um — eu tentando achar 
a palavra certa enquanto a cinza errada é assoprada longe.
Tenho certas amarras com a ciência de não dizer nada
que me foge.
Uma afinidade com observar a olho nu o que nunca está nu
ainda que a nudez seja um conceito que se despe num gracejo.
Há certa glória imaterial dos labirintos.
E há certa excitação através das cartas
- eu vou inventar alguns jogos pra amanhã.
O meu coração é um armário organizado,
eu prometo.
Aqui tem a minha coleção de calças, camisas,
aqui algo com o tema Jimi Hendrix;
ali uma caixa ignota, sem chaves mas também aberta, fingindo.
Cheiro de naftalina, poesia ultrarromântica
e uma interminável preguiça de falar sobre o ultrarromantismo.
Talvez temor, um ceticismo à toa.
Acharia uma prosa no bolso daquela jaqueta.
Nada foge ao rigor do óbvio,
nem a fotografia que fatia em dois o cais,
onde a margem da tua boca deixa entrever
uma pergunta que não cala e nem fere às 3.

Cena número dois — a escuridão da pupila
espia através da persiana.
A mente, em certa sonolência, sonha com o fogo.
No fim das contas, cada corpo arderá sozinho.
Algo busca pela inconsciência do todo,
pura eletricidade,
um dedo na tomada,
a fantasia do eterno beijo
o instante.
Nada carece de câmera, mas tem ânimo.
Som, retalhos, a mesma playlist por mais meia-hora.
Uma mão escorre e o lençol vai embora.

Cena número três — a poltrona vê
o silêncio brutal da tevê.


Conjunção

Tenho as mãos elétricas como o laptop.
Vim com certa obsessão, certa sede,
acho que assustei o copo.
Quis descrever o que não se escreve
e perdi o foco.
Agora é a sua vez de rir.
Esperei os aplausos.
Há qualquer circo preparado atrás de cada palavra.
Primeiro o domador de leões, depois a pirotecnia.
Show de luzes que revelam as sombras no quarto.
Rio com a minha própria piada.
Auto-ironia deslocada.
Certa soda cáustica.
Mais distâncias entre os dedos.

 

Não Surge

Sirenes espantam a menor página,
uma fonte próximo de casa tem o som do córrego.
penso que estou no oceano, um contêiner cheio de surpresas
mais um naufrágio que não se reporta.
um fonema é uma interrupção.
a ambulância percorre o sangue,
armazena os segredos.
Um morto só acontece uma vez
e tudo que só acontece uma vez
pesa o seu latim grave de registro sobre a mudez.
Uma carta de óbito é uma simples curiosidade
de documento.
O corpo surge no meu poema
está ferido? finge-se de morto?
Ele tem braços e nasceu do mar.
É Netuno? Cardume de mãos?
A página da tua boca me aplaude
mas o teu espelho ainda te revela.
  

Dígito

3 da manhã ainda resiste no relógio da sala.
coleciono distrações,
esgrimas de silêncio,
tiro curto.
minhas pernas ainda são as mais fortes.
inocente literatura denuncia um poema de Rimbaud:
a eternidade é um espelho fiel
com uma bela moldura de cobre.
Decidi escrever depois de uma longa mirada nos porquês.
Inventei o espaço,
impus a sintaxe. Descobri que os porquês não importam e é tudo uma questão de pontuação.
mas estou sempre na praia, em meus sonhos.
Sou, decerto, a areia?
Sou, decerto, o limite?
corto-me acidentalmente com os cacos.
o horizonte é uma navalha afiada.
o tempo, em pedaços
sendo descoberto na poeira.
auto-sabotagem.
Os anos vão calcificando nos dentes.
A caneta não tem volta.
Imprimir certas dores não tem volta.
Porque me trouxeram à luz, pergunta minha lua cheia.
Há qualquer violência em escrever sobre ela.
Em paz está aquele que cultivou a velha mentira.
Mas o mundo se engana que eu não me defendo da rotina
com astúcia
escolho uma dúvida e ela enverga
como o arco-e-flecha.


V

Oito horas ou um facho sonolento de oito horas.
O silêncio tem a côr da vírgula,
- após ela é abismo e mais nada.
Há solidão maior que escovar os dentes ou bagunçar a pia?
O chuveiro diagonal só colide com uns ombros
de cada vez.
Desenha o teu retrato com o espaço, como na tevê.


Presumir o silêncio 

Pretensiosamente aproximo a palavra sanitário da palavra sanidade
em um texto qualquer, publicado às pressas.
Na verdade, reli-o ontem e me desdenhei no palco
para estar por cima, como um diplomata.
Ás vezes me dou conta de que sou mau
e que a diplomacia é suja.
Certa paz é às vezes uma arma química,
uma ruína esquálida.
Certa paz desarma, um tiro sai pela culatra.
Intuo que minha bondade seja tóxica, as vezes.
ingenuidade que mata
que sufoca com a perfeição,
ou pelo menos sua estupefata tese de perfeição
Só eu sei o segredo dos meus dentes,
mas eles pressentem que o sangue já secou na taça.
Só eu li Bram Stoker,
mas um romance já não imita mais ninguém.
Sigo uma ética rigorosa e sou de uma teórica sisuda
Sempre um sorriso em resposta.
Nada se diz até as nove
na rua.


Uma partida

Visão entre as árvores
Você espreita uma visão entre as árvores.
um pássaro te assusta e te diz um sonho de infância,
o diálogo entre os seus dois demônios.
o coração é um arremesso olímpico.
Tu respira a noite, sem nebulização,
independente afinal.
Entre as árvores um solitário olho incha e desincha,
um planeta impossível congelado entre as folhas
é também uma alegre ferida.
Cintilante e fatal é a aranha.
Os caminhos que o ônibus apaga depois do morro.
Tu toma o teu rumo entre as árvores negras
e deixa um rastro de palavras na bituca branca.
Há uma promessa que sempre retorna das cinzas.
O isqueiro acende um cigarro gritando
mas aquieta-se, pois tem vergonha.
É meia-noite. As rodas se misturam com a côr do chumbo.
A tua cabeça à janela, entre os semáforos.


 Ilustração: Nick Lisitsin


Eduardo Peters: Produz sua prosa e sua poesia sazonalmente, quando certos humores desabrocham. Dependente de certas musas e habitante da cidade de Porto Alegre. Tem trinta anos. Não publicou.



Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548