O ENFORCADO
Hoje em dia já quase não venho mais ao Largo do Machado. Esses aparelhos de ginástica com que dou de cara ao sair do metrô, por exemplo, não conhecia, e acho que foram colocados aqui na praça já faz alguns anos. Lembro-me de ter lido qualquer coisa a respeito no jornal. Hoje, com a chuva fina e gelada que cai, ao que parece ninguém se animou a vir se exercitar. As mesas de cimento onde sempre via os velhos jogando damas e cartas também estão desocupadas. Os pombos procuram abrigo onde podem. A igreja espia, lá do fundo, altiva e triste.
O trânsito circunda a praça, um lento escorrer de ônibus e carros, mas a praça em si parece estranhamente desabitada para além da trilha irregular de gente indo para a estação de metrô ou saindo dela, os guarda-chuvas desviando uns dos outros.
Dou pela falta das ciganas. Na época em que morei aqui, costumavam ficar na praça se oferecendo para ler a sua mão ou adivinhar seu futuro nas cartas. Na época, elas me irritavam. Hoje acho que teriam até me dado certo reconforto, como uma prova de que o meu passado não se esfarrapou de todo.
É muito raro passar por aqui. Atualmente moramos no Recreio e nossa vida é toda por lá, meu trabalho e o da minha mulher, a escola das crianças. Antes disso teve a longa temporada em Belo Horizonte. Mas nos anos 1980 morei num apartamento de quarto e sala aqui perto, na rua Bento Lisboa. Não foram tempos muito fáceis, a vida era dura. Fiz bem em aceitar o emprego em Belo Horizonte.
Penso em ir até a portaria do meu antigo prédio ver o que mudou nas décadas que se passaram – nesta cidade, algumas coisas começaram a mudar com rapidez desleal, às vezes não acompanho. Mas a chuva me faz desistir. Enfio o pé, desatento, numa poça d’água, minha meia fica encharcada. Merda.
Lembrar-me das ciganas me remete à minha namorada daqueles tempos, Simone, que se interessava por tarô. Sempre achei esse tipo de coisa uma grande bobagem, mas mesmo assim havia um conforto doméstico em vê-la tirar o baralho da caixinha já gasta, remexer nas cartas, colocar algumas em cima da mesa, virá-las para lá, para cá, mudá-las de lugar. Havia umas imagens curiosas. De vez em quando, ela erguia os olhos das cartas e me fitava meio de banda. Mas o que quer que as cartas lhe informassem a meu respeito era sem a minha chancela.
Simone dizia que tinha antepassados ciganos. Não sei se era verdade. Ela era meio maluca, verdade seja dita. Vê se pede pras suas primas pararem de encher o saco de quem passa ali no Largo do Machado, eu disse uma vez à minha suposta cigana. Não são minhas primas, ela me respondeu.
Nossa história foi uma história triste. Não nos separamos em bons termos. Tenho minha parcela de responsabilidade, mas a Simone era dramática demais. Tudo era sério, tudo era sim ou não, branco ou preto, ela não conhecia meio-termo. Fiquei sabendo por alto, anos depois, da sua morte num acidente de carro. Parece que aconteceu não muito tempo depois que nos separamos. Ela era ainda tão jovem. Não costumo revisitar esse assunto, não me faz bem, mas voltar ao Largo do Machado (frequentávamos a Adega Portuguesa, íamos sempre comprar esfirras e tabule no árabe da Galeria Condor, ela gostava de comprar saias indianas na butique Meu Cantinho) retorce alguma coisa no meu coração.
A chuva aperta. A meia encharcada dentro do sapato me incomoda. Espero até chegar à portaria do prédio aonde fui levar os documentos. Podia ter resolvido isso dos documentos de outro jeito, mas espero que a promoção saia até o fim do ano e até lá tenho que bajular o chefe. Sento num banco ali na portaria, tiro o sapato e a meia, torço a meia, calço de volta. Meu pé continua molhado, mas agora pelo menos já não afunda numa poça d’água a cada passo. O porteiro do prédio me observa.
Demoro mais do que pretendia com o cliente. Sei que agora, no fim da tarde, e ainda por cima com a chuva, o metrô vai estar um inferno. Resolvo fazer hora por ali, talvez comer alguma coisa, tomar um chope. A ideia de chegar em casa mais tarde não é ruim. Nem sei dizer quando foi que me tornei tão cativo da rotina, mas juro que foi involuntário. Penso na estranheza disso. De a gente se solidificar na apatia dessa linha de produção. E ainda ter que bajular o chefe.
Telefono à minha mulher e aviso que vou para casa um pouco mais tarde, que resolvi esperar passar a hora do rush porque ainda estou no Largo do Machado e com a chuva, ela sabe como é. Eles não precisam me esperar para jantar.
Considero ver se está passando alguma coisa que preste no cinema São Luís (quando eu morava ali tinha também o cinema na Galeria Condor, que depois virou igreja evangélica e hoje não faço ideia do que seja). Vou caminhando sob a marquise dos edifícios, passo por um menino distribuindo papeizinhos. Compro ouro ou coisa que o valha, imagino, mas quando pego um dos papeizinhos a coincidência me surpreende: Consultas de tarô. Orientação no amor, estudo espiritual, respostas para suas dúvidas imediatas.
Chego a sorrir. Vai ver as ciganas que antes andavam pela praça também melhoraram de vida e têm agora consultório privado. Leio o endereço, fica no velho prédio da Galeria Condor, Largo do Machado número 29.
Paro ali na entrada, diante da galeria. Que diabo, não estou fazendo nada, mentira por mentira dá na mesma ir ao cinema ou tirar tarô, não? Quem sabe não é também um modo de fazer uma homenagem, ainda que tardia, à Simone. Que era meio maluca mas não era má pessoa, e não merecia ter a vida interrompida tão tragicamente, tão cedo. Resolvo ir procurar a sala. Tomo o elevador até o quarto andar.
Abre a porta uma garota bonita e bem-vestida que não lembra em nada as ciganas de duas décadas atrás, e automaticamente ajeito o cabelo, o colarinho da camisa. Explico que gostaria de uma consulta, será que ela estaria disponível?
Quando?, ela pergunta.
Agora mesmo, se possível, respondo. Moro longe, no Recreio, mas peguei na rua aqui perto um papelzinho com o seu anúncio e me interessei.
No momento estou com uma cliente, ela diz.
Posso esperar.
É verdade, posso esperar, mas mais do que isso, acontece que de repente se tornou estranhamente importante que aquela garota bonita leia o que quer que haja para ser lido a meu respeito no tarô.
Ainda vai demorar um pouco. Meia hora, quarenta minutos, ela diz.
Olho ao redor. A sala de espera é minúscula e sem janela, mas há uma pilha de revistas num canto, ao lado de uma vela e um vaso com flores de plástico. Uma coisa de ferro na parede representando um sol e uma lua. Um vago cheiro de incenso.
Fico aqui lendo um pouco, se você puder me atender em seguida.
Tudo parece perfeitamente profissional. As frases: gostaria de uma consulta, estou com uma cliente, se você puder me atender em seguida. Sento-me na poltrona preta de couro falso, pego uma revista, começo a folhear sem prestar atenção. Vejo pilhas organizadas de cartões de visitas: outras pessoas oferecendo terapias alternativas ali na salinha. Toda quarta à noite, meditação transcendental. Certo, eu não imaginava que consultas de tarô dessem conta de pagar o aluguel.
Minha consulta dura uma hora. Assino um cheque e saio dali transfigurado. Não me lembro de muita coisa do que foi dito, à exceção dos comentários sobre uma carta particularmente interessante, o enforcado (na verdade um sujeito pendurado de cabeça para baixo, amarrado por um dos pés). Segundo a taróloga – Renata –, a carta indica uma situação de sacrifício pessoal por algo valioso: palavras como destino, iniciação, indecisão e renúncia ainda flutuam na minha cabeça como cupins ao redor de um poste de luz quando deixo o prédio. Plano bem-concebido que fica na teoria, diz também a Renata. Perdas, impotência, esse seria o aspecto negativo da carta. Por outro lado, há todo um aspecto muito positivo, possibilidade de mudança de vida, paz interior.
Saio de lá sonhando com mudança de vida e paz interior. Mais do que isso, saio de lá sonhando com a Renata.
Eu e minha mulher tivemos as nossas crises, algumas delas bem sérias, mas já faz algum tempo que nos ajeitamos sem maiores ruídos, pelo bem das crianças. Estamos casados há doze anos, exatamente o número da carta do enforcado no tarô – penso, eu que sempre achei esse tipo de coisa uma grande bobagem. Mas de repente, de uma hora para outra, estou aqui fazendo planos para marcar nova consulta com a taróloga Renata, para voltar ao Largo do Machado na primeira oportunidade, enquanto chacoalho no metrô até a estação Cantagalo.
Deixei o carro na garagem da minha irmã, em Copacabana. Nem subo para me despedir dela. Ponho uma música para tocar e vou pensando na Renata no longo trajeto desde o Corte de Cantagalo até a avenida das Américas, ainda estou pensando nela quando entro na minha rua, estaciono o carro na minha vaga de garagem, chamo o elevador e desembarco no meu andar, ainda estou pensando nela quando abro a porta de casa.
Na minha segunda consulta, quinze dias depois, quero falar mais de mim. Quero que a Renata me conheça. Na primeira, fui reticente, fiz perguntas genéricas às quais ela deu respostas genéricas. Agora, quero arrancar a minha alma de trás da pele e desenrolar para a Renata, tome, explique isto, por favor – e não precisa devolver depois. Por mim, ela pode estender minha alma no chão e pisar em cima, se quiser.
Essa consulta leva quase duas horas, aparecem em posições significativas a carta do mundo (desafio de enxergar algo que precisa ser encerrado) e da torre (momento iminente em que será preciso derrubar velhas estruturas). Renata está com os cabelos soltos, desta vez, cabelos negros e compridos como os da cigana que ela não é. Usa grandes argolas de prata e uma camiseta que delineia os seios, parecem bonitos. Está mais sexy do que da outra vez, e quero acreditar que não é por acaso.
No fim da consulta, ela me pergunta se eu gostaria de mais uma xícara de chá e obviamente que aceito, enquanto ainda debato comigo mesmo se devo ou não convidá-la para comer qualquer coisa ali perto. Ela traz a chaleira com água quente e a caixinha com saquinhos variados de chá. Depois traz também um pratinho com passas. Concluo que é melhor deixar o convite para a próxima consulta, hoje seria precipitado. De todo modo, temos tempo para conversar um pouco.
Então, ela diz, voltando a se sentar e ajeitando o cabelo atrás da orelha. Por que foi que você se interessou pelo tarô?
Ah, é uma longa história, respondo. Tive uma namorada, faz muitos anos – mais de vinte anos. Quase trinta, na verdade. Ela gostava de tarô, não era profissional, mas gostava de tirar para si mesma, para os amigos. Eu confesso que achava uma bobagem, achava que a pessoa ouvia o que queria ouvir nas tais consultas. Por exemplo, se a carta dissesse “é preciso derrubar velhas estruturas,” a pessoa sempre conseguiria encaixar isso no contexto da própria vida, era o que eu pensava.
Mas não pensa mais?
Você mudou a minha opinião sobre o tarô, digo, cheio de ímpeto. Quando estive aqui pela primeira vez eu ainda vinha com todo esse ceticismo, mas agora estou vendo as coisas de modo diferente.
E por que veio, então, da primeira vez? Já que achava o tarô uma bobagem?
Essa minha ex-namorada, nós tivemos uma relação difícil, no fim. Brigas feias, coisas de que não tenho nenhuma saudade. Depois fiquei sabendo que ela morreu num acidente de carro. Ela era muito nova, ainda.
Ah – que tristeza, lamento.
Os olhos amendoados da taróloga aterrissam nos meus. Ela parece tão doce.
Pego uma das passas do pratinho, levo à boca, mastigo. Doce. A aliança de ouro em minha mão esquerda incomoda.
É muito raro eu vir ao Largo do Machado hoje em dia, continuo. Minha vida é toda lá pelo Recreio e pela Barra, mas naquela tarde, há duas semanas, calhou de ter que vir até aqui a trabalho e fiquei pensando muito na Simone. Era esse o nome da minha ex-namorada, Simone. Quando um garoto me entregou o folheto com a sua propaganda na rua, achei que devia vir, que era um modo de prestar uma homenagem a ela. Não sei. É como se alguma coisa tivesse tomado a decisão por mim.
Renata se levanta, vai até a janela que dá para a praça.
A gente nunca sabe o motivo de certas decisões, ela concorda comigo. É como se fossem mesmo tomadas não por nós, mas por alguma entidade, algo externo à gente.
Levanto-me e me aproximo dela.
Preciso te dizer uma coisa, Renata. Desculpe se vai parecer meio súbito. Mas não consigo tirar você da cabeça desde que estive aqui pela primeira vez.
Ela não se vira para mim. Vejo-a de perfil e é óbvia a tensão em seu rosto. A situação não é simples, ela sabe que sou casado, mas não quero parecer leviano, como se fosse só mais um cara a fim de levá-la para a cama (imagino que deve haver muitos, aliás nem sei se ela é comprometida com alguém, deve ser). Estou genuinamente interessado na Renata, embora para além disso nada mais esteja claro para mim.
Volto a pensar na carta do enforcado, a de número doze – volto a pensar em destino, indecisão, renúncia, sacrifício, possibilidade de mudança de vida.
Como ela é bonita. Passo a mão de leve pelos seus cabelos, ela não se afasta: promessa. Estou a ponto de beijá-la, mas então ela volta para junto da mesa, começa a guardar o baralho.
Também tenho pensado muito em você, diz, sem me fitar nos olhos. Mas é preciso respeitar o tempo das coisas, tudo está acontecendo depressa demais. Acho melhor você ir embora, agora, e combinamos de nos reencontrar um pouco mais adiante. Há tantas coisas na minha própria vida pessoal que preciso definir, tantas coisas.
Você me telefona? Adoraria que telefonasse, digo.
Deixo o número do meu celular e, ao descer, flutuo no elevador como se fosse um menino. Vou voltar, é claro, para mais uma consulta, o quanto antes. Voltaria amanhã, se pudesse. Voltaria dali a meia hora.
Renúncia, sacrifício, indecisão. Entro em casa e naquela noite faço amor com a minha mulher pensando furiosamente na Renata. Aliás, não faço amor nenhum, tento identificar o amor no gesto mas depois de doze anos nosso amor virou uma digressão. Empresa Casamento Ltda, pelo bem das crianças. Quando exatamente é que a gente assina embaixo disso? Ou será que não assina, necessariamente – será que o de acordo é dado à nossa revelia, mais uma decisão que alguma coisa toma por nós?
Minha situação é a mais comum do mundo e eu sei. Sou mais um cinquentão de saco cheio da vida e da família, louco de vontade de experimentar algo diferente. Mas será que a minha mulher também não está de saco cheio?, eu me pergunto. Deve estar. Impossível não estar.
Penso no tarô, mais uma vez, quando acordo – momento iminente em que será preciso derrubar velhas estruturas, disse a carta da torre. Tudo faz sentido. Preciso rever a Renata logo.
Três dias depois ela me telefona, à tarde, e me pergunta se tenho um minuto. Fecho a porta da minha sala.
Claro, podemos falar.
Estive pensando em nós dois. Acho que precisamos nos ver de novo, ela diz.
Sim, também acho.
Já vislumbro a Renata entre os meus braços. Quero conhecê-la, saber tudo a seu respeito, mas podemos começar assim, ela entre os meus braços. Lembro-me da camiseta colada no corpo. Penso nas minhas mãos correndo por ali. Aliás, correndo não, penso nas minhas mãos se demorando ali. Sobre a camiseta, sob a camiseta, livrando-a da camiseta e do resto, com calma. Imagino o tecido raspando nos bicos dos seus seios. Depois decidiremos o que virá em seguida.
Você pode vir me ver na próxima semana? ela me pergunta.
Mas é claro, respondo. Claro que sim.
Na terça tenho clientes até as sete. Venha em seguida, teremos tempo. É possível?
Invento uma desculpa em casa e chego ao Largo do Machado com quase uma hora de antecedência, na data marcada. Difícil calcular o tempo que vai levar quando você se desloca no Rio de Janeiro, ainda mais quando tem que cruzar a cidade de uma ponta a outra. E eu não podia me dar ao luxo de chegar atrasado.
Ao contrário das minhas últimas duas visitas, hoje faz tempo bom. O Largo do Machado está de volta ao normal. As mesas de jogos estão todas ocupadas, uma dúzia de pessoas se reveza nos aparelhos de ginástica, há gente sentada nas bordas do chafariz desativado. Hordas de pombos sobre as pedras portuguesas. Não sei quem me contou, uma vez, que o nome Largo do Machado veio de um açougue que havia ali, com um grande machado na fachada, ainda no começo do século XIX. Lembro-me de que um pivete uma vez assaltou a Simone com um caco de vidro quando ela saía do Banco 24 Horas, ali do lado do supermercado. Faço hora andando pela praça, confraternizando com as coisas, penso mais uma vez em ir ver o meu antigo prédio e mais uma vez desisto: o meu passado não tem graça. Sobretudo hoje. Prefiro parar e ficar assistindo a um jovem tocando saxofone, durante uns instantes. Isso não se via quando morei ali. O Largo do Machado está bem mais ajeitadinho do que na minha época, mesmo com o mendigo dormindo junto ao chafariz. Em certas partes do Rio de Janeiro você se acostuma com os mendigos dormindo na rua, vai fazer o quê. Compro flores para a Renata num dos quiosques.
Espero passar um pouco das sete horas e subo.
Que bom que você veio, ela diz, ao abrir a porta.
Foi ótimo você ter ligado, respondo.
Entrego-lhe as flores e a abraço demoradamente, sinto seu perfume, mas sei que preciso ir com calma. Intuo que com a Renata é assim.
Hoje não temos o baralho do tarô entre nós. A esta altura, porém, já até comecei a pensar nas cartas como cúmplices. Estou pronto para mudar de vida. Poderia ser um adolescente com uma mochila nas costas e uma passagem só de ida para algum lugar na mão.
Renata me oferece o chá habitual, traz a chaleira com água quente e a caixinha com os envelopes para que eu escolha. Sentamo-nos à mesa, o tarô silencioso em sua embalagem – o tarô fica embrulhado num pano de seda, dentro de uma caixa de madeira, como já observei antes.
Cubro a mão da Renata com a minha. Ela não recua. Começa a falar de sua vida, a voz doce rimando com os olhos doces. Fala durante um bom tempo. Conta do trabalho, depois finalmente do coração. Tem alguém, como eu imaginava: um namorado de alguns anos, mas as coisas não vão bem entre os dois. Desde que entrei ali para minha primeira consulta, diz, sentiu uma conexão especial entre mim e ela.
Mas já me envolvi com um homem casado antes e sofri muito, ela adverte.
Vamos para a cama primeiro, depois pensamos no resto, tenho vontade de lhe propor. Estamos no Rio de Janeiro, no século XXI, a gente precisa fazer o test drive das relações, antes de pensar em qualquer outra coisa, não? Em vez disso, digo que sou casado faz doze anos e não é um casamento feliz. Já quase não há sexo entre mim e a minha mulher. Tantas vezes as pessoas continuam juntas só por causa dos filhos, acrescento. Sinto-me um imbecil ao dizer isso, mas ela faz que sim.
Era assim com esse outro homem com quem me envolvi. Gostei muito dele. Só que no fim ele preferiu continuar casado. A maioria prefere.
Outra história clássica, penso. Decido que vou me livrar dos clássicos de uma vez por todas, e vai ser já.
Tenho que tomar muito cuidado com os homens, diz a Renata, com um tom ligeiramente mais desafiador.
Sorrio. Garota adorável.
Não precisa tomar cuidado comigo, digo.
Você é casado. A história é a mesma.
Casamentos não são para sempre. Quem sabe o que o dia de amanhã vai trazer?
Me fala da sua mulher.
Ah. Eu preferia continuar falando de você.
Não, não, me fala dela. O que ela faz da vida, por exemplo.
É esteticista. Tem uma pequena clínica de estética no Recreio.
Deve ser bonita. Esteticistas estão sempre se cuidando.
Ela não é feia, mas de todo modo isso não importa.
Eu acho que sou muito ingênua com os homens, ela diz. Me envolvo rapidamente, me decepciono com a mesma rapidez.
Mas pode confiar em mim. É diferente. Estou interessado em você de verdade, não sou como aquele outro sujeito.
Ela sorri também, cobre nossas mãos com a outra mão. Afago-a. Acaricio seu pulso. Sinto seus ossos, a textura de sua pele fina.
Minha mãe, ela me diz. Minha mãe também era ingênua com os homens. Com você, por exemplo, ela foi uma idiota.
Recuo diante da afirmação estranha. A mãe dela, uma idiota comigo?
Ela morreu por sua causa, Renata continua. Mas você não sabia disso, é claro. Ela estava grávida quando você a deixou e sumiu.
Sua mãe estava grávida?
Sim, minha mãe, Simone, que gostava de jogar tarô, não foi o que você me disse? Que morreu num desastre de carro há muitos anos.
Recolho minha mão depressa, como se ela fosse uma gafe. De repente, está tudo errado. Plano bem concebido que fica na teoria.
Não sei se estou entendendo.
Não está? Explico, ela diz. Minha mãe estava grávida quando você se mandou sem deixar um único número de telefone.
Nossa relação estava muito ruim mesmo, difícil, eu não estava...
Mas isso não se faz. Você sabia que ela talvez estivesse grávida.
Renata abre a caixa do tarô, desembrulha o baralho, dobra com cuidado o pano roxo de seda. Embaralha as cartas e tira uma. Coloca sobre a mesa.
O louco, diz ela. O arcano sem número.
Se ela estava grávida, como você me diz, estava grávida – de você?
Ela morreu num acidente de carro, é o que dizem. A verdade é que ela se esborrachou de propósito. Por sua causa. E morreu, mas eu não. Ela estava grávida quando sofreu o acidente. Quando causou o acidente para nos matar a nós duas. Há exatos 28 anos.
Não tenho para onde olhar, então fico olhando para a carta do louco invertida sobre a mesa.
Fui criada pela minha tia. Que tentou de todas as maneiras entrar em contato com você, sem sucesso. Você desapareceu.
A Simone era uma pessoa muito difícil. Eu já tinha tentado me separar dela antes, era sempre um drama, ela aparecia na portaria do meu prédio, me perseguia, e...
Você sabia que ela talvez estivesse grávida.
Fico em silêncio. As palavras se retiraram em debandada. É verdade o que a Renata me diz: a irmã da Simone me telefonou uma vez, de fato, assim que eu e ela nos separamos. Disse que era possível que a Simone estivesse grávida. Faltava fazer o teste, mas era possível. Naquele momento pensei, com desespero, na hipótese de criar um vínculo desses com a Simone, para sempre. Um filho com ela! Foi quando aceitei o emprego em Belo Horizonte. Anos mais tarde, me contaram que a Simone tinha morrido num acidente de carro, mas não estavam a par dos detalhes e eu também não queria saber. Primeiro foi o choque, depois, confesso, certo alívio. Não devia haver criança nenhuma, do contrário eu teria ficado sabendo. Não teria? A gente sempre acaba sabendo dessas coisas, cedo ou tarde, não? Cedo ou tarde.
O louco é o arcano sem número, diz a Renata, depois do meu longo silêncio. Às vezes lhe atribuem o número zero. O zero é o número que não altera nenhuma adição. Na multiplicação, ele transforma tudo em si mesmo. Absorve os outros números. Veja aqui, no baralho que eu uso, o louco caminha sem saber para um precipício. Mas é uma boa carta. Gosto muito do louco. Está vendo que leva uma flor na mão esquerda? Isso significa que sabe apreciar a beleza. E esse seu andar descuidado e alegre é como o de uma criança à vontade no mundo. Veja que leva também um cajado, que pode representar a renúncia e a sabedoria. O louco sempre esteve fora das normas sociais, sempre pôde dizer e fazer o que lhe passa pela cabeça.
Ela desliza o dedo pelas bordas da carta. As unhas bem-feitas.
Penso na carta de número doze, o enforcado, o homem pendurado naquela posição incômoda, de cabeça para baixo, amarrado por um dos pés. Há um estouro lá fora, na rua, e pela janela vejo os pombos em revoada.
Depois me vem uma ânsia de vômito fortíssima, e é somente então, olhando para a minha xícara vazia e para a xícara da Renata, ainda cheia até a borda, que compreendo toda a gravidade do meu erro. Corro para a porta, que está destrancada, e dali para o elevador, que demora a chegar. Quando abre as portas, está vazio.
Aperto o botão do térreo. Sinto dores lancinantes no estômago. Preciso que alguém me leve com urgência ao pronto-socorro mais próximo. Cambaleio pela galeria, e quando chego à calçada ainda consigo ver um menino distribuindo papeizinhos: Compro ouro, pago na hora. As pessoas estão olhando para mim. Depois disso o Largo do Machado fica escuro feito breu, e já não enxergo mais nada, nem os pombos, nem os velhos, nem os quiosques de flores, nem as ciganas – mas essas já foram embora dali faz tempo.
Conto extraído de “O Sucesso”, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas/Contos.
Foto de Adriana: Julie Harris
Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro. Romancista, poeta e contista, é autora, entre outros livros, dos poemas de Parte da paisagem e dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Um beijo de colombina, Rakushisha, Azul corvo (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent) e Hanói (um dos livros do ano do jornal O Globo). Publicou também algumas obras para crianças, como Língua de trapos (prêmio de autor revelação da FNLIJ). Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países. Seus poemas e contos saíram em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta. Morou na França, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos - onde vive atualmente, na cidade de Austin.