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O Livro dos epílogos II - Assis de Mello

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Ilustração: Gilad Benari



XXXII.


bastava
dizer dos sinos
mencionar o mênstruo dos rios inacabados
que corroíam a dobra / a fratura
            do rochedo

expor algo sobre as noites esperançosas e frias
            que emolduravam o silêncio
            com ripas de bruma


& abordar o remoinho dos ralos
por onde os girinos / exaltados
suicidavam-se  junto aos outros estilhaços


& aludir / talvez
            ao totem & à furna
            ao atrito na luz lubrificada
            para explicar o mínimo

[deixando em aberto
o mistério do orgasmo das fêmeas
que mesmo concebem na sua ausência]


Mas tanto disse
            sem ilustrar a criança / a lua no berço / o terço no prego


***

Não / amiga
não releves as coisas mal ditas
que há tantas rasuras neste pano


Retira da garrafa o espírito do vinho
            o halo do sutil
            & o mistério das ninhadas


Entro em ti como agora
            Entro em ti com os outros estilhaços

Jamais ponderes enquanto me escoo neste sumidouro




XXXVI.

ó ave
dispersa esta réstia de sangue sobre o mar!

- Al Berto -


então
            restou
definir aquele instante:

            a hora descabelada / febril
feito uma escandinava ruiva
            a recompor-se do amor

- o corpo ainda rubro
o fiorde transbordando sêmen


            Mas
            sendo o amor um cão dos diabos
            de qual medula teria erguido
            a tal manhã?



XLI.

O mundo inteiro se edifica
com perfis de abismo

- Jaime Labastida -


sabe-se que passou os últimos anos
a deslizar entre os pequenos dragões do limo
no assoalho do abismo onde a luz não chega
- substrato sobre o qual apenas se intui que as criaturas sejam pálidas
& virtuosas

 levemente esverdeadas
& salinas


Morto o amigo
o remador de asas breves
jamais retornou à ilha com sua canoa repleta de cadáveres
            que voltariam a florescer. Tampouco
                        se aproximou da pedra da sereia índia
                        da toca da mulher moréia
                        ou do mastro de plagioclásio
                        sobre o qual a virgem que babava esperma
                        fecundava o mar 


De resto / tudo é incógnita
Mesmo a tal mariposa da lua
            a feiticeira malgaxe
            que pousou sobre o ombro
            de um


Ilustração: Gilad Benari


LIII.

O sol
açoita
os dedos da chuva

Úmido
de vísceras
cardume de cinzas

um náufrago
se suspende
no vácuo

- Chiu Yi Chi -


agora
 esta manhã embaçada
                        fortalecida de juízos à paisana

                        a mesma de quando olhos mal dormidos
concatenam-se com axilas e púbis limosos de quem
esperou
esperou
& se perdeu nas vias do rum


Piratas naufragados na linha de Barranquilla
arrulham o canto
das rolas de betume
& uma aderência governa os fluidos


                        Solífugos sonâmbulos
                        salpicados de salsugem
transitam no aroma de peixe


                        A flor é bela / depreciada
                        & baldia


Os cães se coçam


A gana de ganhar o mar
perdeu-se ao longo do cólon 

: o inquieto fantasma de Corbière
equilibra-se numa corda
esgarçada em nada




LIV.
elas se encontram
e a lua se despe
inteira para as duas
faces
desse desejo:
tê-las duas
desnudas telas
por inteiro

- Frederico Barbosa -


mas as mulheres

as nuas / sob o clarão
embaladas como véus ao vento

as de mãos dadas no círculo adjunto ao fogo
com os cabelos esvoaçados
            as coxas

os olhos / as bocas

o lacre de expressão tordilha

a ondulação das consistências
            que se alçam & se arriam

o hálito alazão
de seus galopes
            de éter


            [ Mulheres
- a mais luminosa que orbitou
em torno do astro-só-crateras
                        confirmou que os que dormem na gruta
            não veem estrelas nem céu
            & se perdem numa encruzilhada de lestes ]


Mulheres
: seus arreios & regatos
municiam o mar

            : suas águas
            o derradeiro dos epílogos





Assis de Mello é o nome literário de Francisco de Assis Ganeo de Mello, natural de Piracicaba, São Paulo. Biólogo, mestre em zoologia e doutor em biologia / genética. Foi pesquisador convidado na Academia de Ciências Naturais da Filadélfia e atualmente, desde 1992, é docente no Instituto de Biociências da UNESP- Campus de Botucatu,e onde desenvolve pesquisa em sistemática e evolução de insetos. Atreve-se também na fotografia e na pintura. Participou de diversas coletâneas de poesia e, em 2010, publicou seu primeiro livro, Na Borda da Ilha, Lumme Editor, 183 pp. Está lançando com a Editora Patuá, Livro dos epílogos. Tem poemas publicados em vários jornais e revistas em papel, como Suplemento Literário de Minas Gerais e Celuzlose, ou na internet, como Cronópios, Eutomia, Germina, Jornal de Poesia, Mallarmargens, Zunái.  
Mantém o blog “Coisas do Chico” (http://coisasdochico.blogspot.com)

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