Prelúdio
Aquela rústica cabana, situada no meio dos silentes silvos da floresta, é acolhedora com todas as intenções da liana dos espíritos. O cheiro da cocção das plantas paira no ar, dança no vento. O braseiro da fogueira crepita. Além desse aroma geral, águas também olorizam o ambiente com florais perfumes de calmaria.
Eu olho para cada pessoa ali presente, todas vindas de um lugar distinto, e me interrogo sobre o que elas buscam. Lembro-me das pessoas me dizerem que o poder da planta responde a cada um no tempo que quer, e na medida de sua imperscrutável sabedoria. Anseio saber sobre o que será. Um frêmito inquieto me invade. Mas para a planta sagrada valem as sendas que me trouxeram e os segredos que ela possui para me sussurrar.
A xamã dá início ao ritual cantando um ícaro e acendendo gravetos de palo santo. Enquanto entoa seu murmúrio em língua ancestral, pega do centro da roda as pequenas cumbucas e leva aos presentes. Antes de ordenar a cada um que beba, de acordo com a sede da planta, ela purifica a pessoa com a fumaça do tabaco e um cântico.
Quando chega a minha vez, reparo: aquela mulher existe no topo de uma hierarquia formada na névoa imprecisa de remotos tempos pretéritos. A expressão de seu rosto é a de quem paira no limiar de outro mundo. Ela inteira parece condensação da fumaça do tabaco. Bebo o líquido denso e amargo que ela me oferece.
A sacerdotisa repete, então, os procedimentos com cada pessoa ali dentro. Quando bebo da segunda cumbuca, sinto um sabor mais escurecido, de um amargor um pouco acre. Tudo escorre por dentro de mim, deixando um inesperado rastro adocicado na língua. A xamã, por fim, se senta. Sem jamais deixar de cantar.
A suave melodia dos ícaros me embala. Deito enfim. O lusco-fusco me aquieta um pouco. Olho para o alto e reparo num pequeno vão no teto da cabana. Por ele, adentra a luz alaranjada do entardecer. Sorrateiramente, a planta toma controle de mim. Arrebata-me para o seu domínio. Formas se liquefazem diante de meus olhos. As luzes se intensificam.
Luz é lembrança do universo. Quando olhamos para o céu, enxergamos o passado. Vemos espectros, pois tudo que nos chega de lonjuras estelares, na linguagem luzente do pulsar de fótons, não mais existe da mesma forma. A luminosidade intensa fere minhas retinas. Fecho os olhos. Mas a luminância de todas as coisas ainda me acompanha dentro, na forma de cor.
Cores me invadem na escuridão das pálpebras. Cores jazendo sem nome no ventre do tempo ou dos céus se fundem, numa contínua dança. Cores desenham minhas paisagens mais íntimas e inesperáveis. Cores. Cores. Cores.
Sinto meus pés desejarem a experiência de raiz. Aperto a terra, tentando me fincar ao âmago do chão. A Madre Ayahuasca sugere que eu adentre esse segredo. Tenho medo. Será por isso que ela também é chamada de Pequena Morte? Temo entrar nessa que parece ser minha cova, a me esperar com palmos medida.
Minha angústia não nasceu quando me defrontei com minha própria finitude. Não emergiu da possibilidade concreta do instante da minha morte. É contra o arbítrio da violência que eu me insurjo. Contra qualquer gênero de violação.
No limiar daquilo que não olho diretamente, minha cova está aberta. Percebo ali dentro o movimento sinuoso de uma serpente. Tremente, eu me viro e nada vejo. Diviso apenas um amálgama de cores sem forma contra o vazio.
Primeiro interlúdio
Meu peito bate o tambor surdo de terra, que era o chão de todo ali. A ideia sem palavras daquela serpente penetra meu corpo. Insinua-se nas fibras mais tênues de meus anseios e temores.
Ouço canções que evocam o sibilar da serpente sussurrando segredos em meus ouvidos. Ela me diz para que eu me rebele contra minha própria rebelião. Sinto em mim os músculos fortes e a forma enrodilhada da serpente. Parece incrustada no dentro de cada vértebra, espalhada pela longitude do meu corpo. Ela é lânguida. Quer me seduzir com seu bailar suave.
A serpente me espreita. Eu a vejo em derredor, de forma oblíqua. Com temor, abro os olhos. Toda maloca jaz na escuridão ancestral. Mas a luz da lua quase cheia invade o vão do teto. Fere meus olhos como finos dardos. Desvio o olhar e vejo novamente a dança ofídica que me ronda. Sonda-me os terrores inconfessos.
Sinto cheiros longínquos da floresta. Com o olfato, vislumbro os movimentos e inércias de fauna e flora dentro da noite. O espírito coletivo da planta está presente em cada ramificação nascida do chão. Tenho náuseas. Vomito milhares de diminutas cobras negras, que se movem com rapidez ao meu redor. Olho para frente e vejo a grande serpente devorando-as como um cão.
A xamã vem em meu socorro com seu bailado, seus aromas e suas canções. Confundo-a com a serpente. Ou com a divindade mãe. Sua mão sobre a minha cabeça é a pata de um jaguar, em cuja pele se inscrevem segredos milenares. Leio o incomunicável dos tempos.
Segundo interlúdio
Eu brinco com a substância das cores. Quase posso tocá-las. Elas reagem às minhas mãos criando padrões ondulados. Enquanto isso, meu pensamento flui como água. É um caudaloso rio no qual não posso me banhar duas vezes. Nele, se fia o tecido do inesperado.
O silêncio que me rodeia ecoa como mil gritos surgidos no escuro de mil noites, arrastados por mil correntes sonantes. Silêncio impossível, de indeterminadas durações, existe apenas fora da vida. No entorno, o que há é o ruído branco, repleto de sons que, habitualmente, escuto como o silêncio.
O grasnido alto de um condor me enleva. O grunhido de um longínquo javali me chafurda na lama densa e profunda de minhas cimentadas certezas. O vento desfoca meus ouvidos. Nele, a voz verde da planta me chama. No entanto, eu tremo. Temo aceitar o inaceitável. Sumo no sorvedouro do medo.
Novamente sibila a serpente. Sua linguagem é loucura para os que se perdem. Vagarosa, ela se aproxima de mim. Toca meus pés, infundindo neles o terror gélido de sua pele. Sua voz feminina, fundida à da xamã, me fala que no precipício era o verbo. Não é possível conceber uma divindade-mãe, feita à imagem e semelhança da mulher e do homem, sem linguagem. Palavra é lucilação. Deuses criam o mundo ao dizerem: “Faça-se!”
Três das quatro narrativas de interlúdio extraídas de “Trítonos – intervalos do delírio” (Editora Patuá)