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Ilustração: Giorgio de Chirico |
Finalmente, o senhor Y. morreu.
Não o identifico porque tenho vergonha de escrever assim, de mostrar que aguardei sua morte. Durante muitos anos ele ocupou a mesa de plástico esquecida num canto do pátio interno do prédio. Após uma internação gravíssima no hospital, assumira como última missão de vida escrever um livro. Ou pelo menos assim deduzi, ao vê-lo dia após dia sentado ali, com um lápis e um caderno de capa preta, desses usados antigamente para se fazer contabilidade. Escrevia pouco, pois sempre parava para consultar um punhado de agendas amareladas, cheias de anotações. Por algum motivo, vê-lo no pátio, tão empenhado em sua escrita, era algo que me reconfortava — e, admito, invejava.
Com o tempo ele percebeu meus improvisos para espiar se estava trabalhando na mesa de plástico. Os dois elevadores ficam no corredor de acesso ao pátio, mas é necessário dar dois ou três passos — provavelmente cinco ou seis — para se ter uma visão do pequeno quadrado, cercado de paredes manchadas pela chuva. Para disfarçar, andava displicente, em direção ao pátio, de olho no celular. Se o senhor Y. estivesse lá, tentava agir como se eu fosse impaciente demais para esperar pelo elevador. Algumas vezes me entretinha de verdade com uma mensagem piscando na tela e encostava na parede, procurando o sol. Era nessas ocasiões que podia observá-lo mais de perto.
Nos raros encontros no elevador, ele me dirigia um olhar cada vez mais penetrante — cúmplice, eu suspeitava. Talvez fosse um jeito de se comunicar com estranhos sem precisar dizer nada. O senhor Y. era estrangeiro, e falava mal o português, apesar das muitas décadas vividas no Brasil.
Se perguntasse em qual língua ele estava escrevendo, imaginava que a resposta viria com um sorriso: “A língua que der”. Meu vizinho acrescentaria, intrigado: “Haveria como ser diferente?”.
Aguardei a sua morte porque nada do que fazia dava certo. Nada. Roubar a história de alguém nascido num outro mundo, em outra época, passou a ser meu delírio favorito. Uma loucura pequena, ínfima, incapaz de fazer mal. Brincava de ter um plano — talvez um truque. Ele mesmo não faria nada com aqueles escritos, mas quando eu os herdasse (como?) poderia transformá-los num romance bem-sucedido… Suponho que ao senhor Y. nunca ocorreu se proteger de mim, tão ridículas eram as minhas intenções ao espreitá-lo.
***
A cerimônia em sua memória foi celebrada num templo budista. Deixaram um convite na caixa de correio. Cheguei um pouco atrasado de propósito, para sentar no fundo e não ser notado. No altar, havia cartazes com inscrições em chinês, obviamente incompreensíveis, assim como as orações do monge. Algumas frases pareciam ser cantadas, mas a distinção era sutil e a entonação subia em momentos improváveis. Muitas palavras soavam repetidas, às vezes como um mantra.
As pessoas ao meu lado acompanhavam a cerimônia em caderninhos com ideogramas, cujas páginas viravam no sentido contrário ao que estamos acostumados. Lamentei não poder folhear em minhas mãos um livrinho daqueles, encapado com tecido estampado, reluzente.
Observei a velocidade com que o senhor à minha frente passava as folhas. Parecia tão difícil ler os desenhos em nanquim — quem sabe seria justo o contrário?
As pessoas com livrinhos não estavam coordenadas. Algumas faziam movimentos ligeiros, outras seguiam sem pressa, sonolentas. Os sons se multiplicavam pelo ambiente, criando ecos e encontros sonoros.
Comecei a me sentir exausto.
As palavras continuavam a vibrar no microfone do monge e à minha volta, mas era difícil manter a concentração. Quanto mais lutava para continuar atento àquele ambiente, mais uma força me empurrava em outra direção, sem esperar minha vontade.
Mal conhecia o senhor Y. e, mesmo assim, chegara àquele local tão distante — o que me moveu até ali? A morte de alguém praticamente desconhecido poderia me abalar… até que ponto? De repente, me senti desamparado diante da sua ausência. Havia em mim uma espécie de torpor, uma dor silenciada, inadequada à irrelevância daquela morte na minha rotina.
Em qual momento tinha acreditado que ele jamais deixaria seu posto frente à mesa de plástico abandonada?
Pouco depois, fui me acostumando ao som das orações. A obrigação de desvendá-las esmorecia, e elas batiam no corpo em ondas agitadas, gordos braços d’água. Como uma turbulência de avião. Para não cansar mais, não entristecer, era necessário acompanhar o ritmo daquelas palavras estranhas. Quando encontrasse sua cadência, elas me deixariam… dormir.
Fechei os olhos.
E fingi que rezava.
***
As páginas do caderno do sr. Y. exibiam anos de uso, cheias de marcas das muitas horas de trabalho de um escritor produtivo. Havia manchas, respingos, amassados, páginas viradas muitas vezes. Era um caderno ocupado pesadamente pelo corpo, braços, mãos, testa. Bochechas e orelhas.
Só não havia texto.
Apenas duas frases escritas a lápis sem ponta. Em português mesmo e com garranchos terríveis, que demorei a decifrar.
A primeira estava jogada numa página um pouco antes do meio: “Preciso desistir”.
E, no alto da última página: “Enfim: desisto”.
Mayumi Aibe é jornalista e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Atualmente, cursa o doutorado na mesma instituição com pesquisa sobre arte visual contemporânea japonesa. Orientes possíveis (Editora 7Letras, 2015) é seu livro de estreia.