ITINERÁRIO DO SOL
introdução e seleção por Jorge Elias Neto
O Espírito Santo sempre foi um Estado sui generis. Visto como Estado de “passagem” para o Nordeste e de parada para abastecimento para os turistas oriundos dos grandes Estados da região Sudeste, em viagem para o litoral baiano. Um Estado quase sem sotaque, um misto de mineiro desconfiado com a malemolência baiana.
Essa característica de relativo isolamento tem razões históricas, e fez com que todos os movimentos literários que correram o mundo, principalmente a partir do século XIX, tardassem por aqui chegar e, quando chegavam, tardassem em partir.
Para um autor capixaba, a divulgação de seus textos, de suas idéias, sempre passou pela necessidade de mudança do endereço de residência. E assim o fizeram, entre outros, os escritores capixabas Rubem Braga e José Carlos Oliveira.
Hoje, embora ainda de maneira muito incipiente, alguns autores conseguem ter acesso ao mercado editorial: um exemplo é o excelente romance de Reinaldo Santos Neves, “A longa história”, publicado pela Bertrand do Brasil.
Mas as oportunidades continuam muito poucas.
De modo que a ampla função que estabelece as hipermídias resulte em expoente para a divulgação da cultura capixaba.
Pensando em mostrar algo além da já famosa (e saborosa) moqueca capixaba e do tão comentado petróleo, é que trazemos um pouco da poesia atualmente produzidas no Espírito Santo.
Adendo: Sobre a identidade cultural capixaba recomendo o ensaio produzido por Adilson Vilaça. http://www.tertulia.art.br/arquivo/avilaca_identidade_capixaba.htm
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2 POEMAS DE
BERREDO DE MENEZES
Ferdinand Berredo de Menezes (1929) nasceu em Caxias, no Estado do Maranhão, em 30/04/1929 e vive em Vitória onde fez sua carreira como poeta, contista, advogado, professor universitário e político. Vencedor de vários prêmios Nacionais e Internacionais. Ocupa a cadeira n.01 da Academia Espírito-santense de Letras. Possui mais de 20 livros publicados.
POEMA XIII
Agora,
na tarde dos homens.
onde resisto
ao velho som das formas,
o espaço é cor
e tempo em meu vazio;
e as flores,
acesas,
o meu ludibrio;
e o suicídio das frutas,
neste chão que eu piso como uma fera,
a festa
de minha morte.
Sou, em suma,
um vôo cego
e feliz.
AUTO-RETRATO POÉTICO
Doido é quem sabe ver, além do arco-íris,
as cores do silêncio ouvindo o escuro.
Doido é não ter o luar como suporte
e acreditar-se sol no olhar dos anjos
Doido é negar silêncio ao pôr-do-sol,
tocando sinos de quem ouve a aurora.
Doido é inventar a luz do esquecimento
como asas de flanar a escuridão.
Doido é remanejar, na dor do escuro,
silêncios que as lembranças já não sofrem.
Doido é enfeitar de rosas uma praia,
pensando perfumar a dor da espuma.
Doido é guardar espinhos, de lembrança,
na esperança de ouvir a dor das rosas.
Doido é se perfumar em brisa surda,
esperando embriagar a solidão.
Doido é esconder-se ao luar, numa jangada,
perdendo o leme de amansar os ventos.
Doido é fingir que a dor do pôr-do-sol
é anestesiada à luz dos epitáfios.
Doido é esse canto que faz pouso em mim
como sobra semântica de um eco.
Doido é saber ouvir o luar nas pedras
e fiar com surdo brilho a luz do orvalho.
Doido é beber o orvalho de uma rosa,
tentando ouvir a dor que há nos espinhos.
Doido é sofrer o escuro como um grito,
sem ter onde chorar o seu silêncio.
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16 POEMAS DE
MIGUEL MARVILLA
Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira (29-09-1959 à 10-10-2009), nasceu no município de Marataízes, no Estado do Espírito Santo. Poeta e contista, teve breve e, segundo suas próprias palavras, irremissível experiência como ator e diretor de teatro. Graduado em Letras - Inglês pela UFES, foi editor da revista Você da Secretaria de Cultura daquela universidade e da Flor&Cultura Editores, da qual é um dos fundadores. Mestre em História Antiga pela UFES. Membro da Academia Espírito-santense de Letras, é detentor de vários prêmios literários estaduais e nacionais além de menção honrosa no III Concurso Literário Internacional, realizado na Áustria, em 1996; Bibliografia: "De amor à política", "A fuga e o vento", "Sonetos da despaixão", "Tanto amar", "Dédalo", "Lição de labirinto" (poemas), "Os mortos estão no living" (contos), "O império Romano e o Reino dos Céus" (história).
ORDEM NATURAL DAS COISAS
Murchas
as rosas já não surtem
seus efeitos de rosas
tudo tem seu tempo de florescer
as revoluções
os poemas
as palavras
e as crianças
tudo tem seu tempo de apodrecer
OFÍCIO
Não posso prescindir da janela
é meu ofício pretender a lua
POEMA DE(S)ESPERANÇA
deus e o germe
é fato que se multiplicam
criaturas plenas
(hermanas creaturas
Debajo del jardin
Crescen muertas)
e são minha mano izquierda
y mi mão direita
e resto del cuerpo
difusos e opacos
deus e o germe
na obscuridade se multiplicam
pero muertos
LÁPIDE
se há de chover, que chova.
a chuva
lava
a palavra
respaldo do germe.
se há de saber, que haja.
defronte mesmo à parede,
o caos não se repensa.
se há de consentir, que forje.
os mitos
não se permitem
ousar mais: são mitos.
se há de louvar, que duvide.
os pães
e os ladrões
não dormem na mesma mão.
se há de negar, que conheça.
(é preciso aço e membrana.)
se há de fluir, que aconchegue.
(é preciso sangue e nácar.)
se há de haver, que nasça.
excessos
e encéfalos
fazem
a
massa
da
vida.
(se há de morrer, que anoiteça.)
SILÊNCIO
os ratos roem meu corpo
por que ninguém chora (?)
os ratos roem meu corpo
ah meu deus se alguém chorasse
talvez eu soubesse de pronto
que estou vivo
talvez até gritasse
ELEGIA
pedaço de metafísica
a tua boca é uma emoção
acomodada sobre a geografia dos dentes
gramática e cor
compondo os sintomas do riso
paisagem edificada
sobre
suavitez
a primavera em cabelos
reforça o arco-íris
teus olhos
(policromia é uma falta de escuro
na noite que te comporta)
alva e repleta
tua pele se aperfeiçoa
bela e gentil
para o seio patente
em minhas muitas mãos
que jamais te tocaram
e a noite com seus etéreos
permanece estéril
enquanto teu olhar floresce manhãs
(guardarei meu beijo para o teu conhecimento
e meu corpo para o teu silêncio
que o futuro ainda não foi muito longe)
HORA MORTA
São teus seios que me cobram este instante
em que as horas já são mortas, sem estrelas,
logo a mim, que ainda não sou largo o bastante
para alcançá-las. Que direi quanto à sabe-las?
Que são frias? Toda hora em mim é gelo.
Todo espaço e toda dor não me comovem.
Não me movo a qualquer coisa. Não me atrevo
à loucura, nem sequer se o mundo dorme.
Mas, se queres, me violento e, consoante
ao teu beijo e teu desejo, me encarrego
de levar-te a uma outra hora mais distante.
Menos fria, menos densa, é bem verdade,
mas tão curta! Cada vez mais adiante,
todo tempo – imensamente – é sempre tarde.
FÉ
Deus! Ó, Deus! Sou eu... Este aqui, ó,
Que acaba de perder o prumo
E veio tateando no escuro
Cada palavra do caminho.
Sou este ser de pó, aquele amigo
Do efeito lateral das sombras.
Não tenho nome, mas retiro
Dos sons a minha substância homem.
Venho desdizer o que não disse:
Que você não existia e, se existisse,
Não se importava comigo, o errante.
Este soneto acaba já, mas antes:
Eu sei, você existe e, com certeza,
Também ama comida japonesa.
FACAS
Passávamos, eu e ela,
por futuros nunca iguais.
Meus passos, os passos dela,
paralelos, ai! paralelas
- nunca mais.
Andávamos, eu e ela,
por amanhãs sem jamais.
As facas de nossos beijos,
as facas, ai! que não cortam
- não cortam mais.
A PALAVRA POESIA, POR EXEMPLO
A palavra poesia, por exemplo,
roubada à sua forma dicionária,
não pode vigorar mais que um momento
se não se refletir no olhar de Mária.
E Mária, que se esquece, por completo
descuido ou prazer (quem tem certeza?)
De levar-se ao deixar as redondezas,
aos poucos, dando motes ao desejo,
recobre a superfície do planeta.
Por muito repetir-se em aquarelas,
vitrais, pessoas, gestos, sons e ruas,
sua forma sendo tantas, coisa alguma
a retém. Ela não cabe de uma vez
na memória e ainda há mais Mária out of space.
TODAS AS COISAS DIFÍCEIS
Ninguém pensa impunemente
numa escrita permanente
da vida que se levou.
Há sempre sob o lençol
um corpo irreconhecível
em seu próprio imaginário:
um aquário cheio de bile,
peixes nadando ao contrário.
ULISSÉIA
Tem tanto a ver, tem tanto a ver, patrícia,
o Atlântico e os teus olhos mareados;
tem tanto de naufrágio e descobertas,
futuros ampliados, "terra à vista";
tem tanto de sargaço no teu nome;
de riscos nos teus ritos, de romances
na aurora inospita e noturna
do teu púbis, que eu, o navegante,
já de retorno à Ítaca brasilis
(mas dentro de outra história), eu sou Ulisses:
meu porto são as ilhas dos teus olhos
-e o vero perigo é quando ancoro.
Quem é esta mulher, pulsando à espera
de um que lhe descubra seus mistérios
e em cuja pele clara seja breve
mas, sendo breve, ao fim lhe seja eterno?
E, ex-sucutâneos, seus desejos,
tão antes resguardados, ei-los. Ei-los,
à tona da manhã, enfim despidos
(a inumerável teia de delícias
do mundo protegida), os nunca vistos
enigmas de ouro, sem disfarce
(que ela nunca pensaria haver por te-los),
porque, à espera de alguém que a investigasse
e lhe fosse com calma até o sim,
achou foi de perder-se com si mesma.
PEIXAMENTOS
Para Gilberto Mendonça Teles
Amar os peixes
e todas as coisas que nadam
– algas,
medusas,
hipocampos,
mergulhadores da Marinha –
e as que só flutuam,
como pensamentos embaçados em tardes de chuva.
Amar os pensamentos e as palavras.
E os contornos delas. As palavras
e a ação latente sob o som enclausurado,
o som nunca dito,
que poderia ter provocado uma cantata
ou um conflito.
Amar os peixes, que vão como pensamentos
em direção às profundezas da alma,
rápidos e líquidos:
a própria natureza de que são feitos
peixes e pensamentos,
pensamentos e peixes.
Amar as palavras
todas as faíscas
de sua calma
improvável, imprecisa.
HECATOMBE
O som do sino se desfaz da igreja,
a tarde em si despeja um sol mortiço
por entre nebulosas de mosquitos.
A moça está sentada e, sem que veja,
a praça,o mundo, ao seu redor, desabam,
enquanto ela retoca a maquilagem.
Dos olhos dela, certo espanto escapa
e adere ao que ainda resta da cidade.
Mas ela nem aí para as desgraças:
em meio ao caos, no espaço de um átimo,
alheia à hecatombe, a qualquer som,
sua miséria se resume aos lábios,
sua tragédia é uma questão de tom:
comprou a cor errada do batom.
(poema inédito)
A AUSÊNCIA DELA
A ausência dela se abate sobre a cidade,
como as estações do ano ou uma chuva impiedosa e constante.
É um tempo, este, de funcionários e galochas.
No átrio da catedral gótica das lembranças,
o nome dela erige-se em espelhos
e se repete, ad infinitum,
pousado sobre um futuro de pó e nunca mais.
Algumas vezes o esquecimento se esquece de quem é
e pensa recolher em outra um gesto de folhear livro,
uma forma de olhar para o dia com embriaguez,
o ouro das palavras — que eram atributo e privilégio dela.
Mas não.
Tudo que há é uma hora abandonada
a um canto do silêncio.
Tudo que há é a impossibilidade,
uns ermos de chumbo,
encimando a constância irremovível do vazio.
Anda-se lentamente.
Voa-se lentamente.
Morre-se lentamente.
Até os acasos ocorrem lentamente.
Não é à toa:
a presença dela fazia a vida vertiginosa,
a presença dela não se atravessava a pé,
a presença dela estilhaçava o normal e o cotidiano,
a presença dela era teatro de uma guerra
feita com espadas de olhares
e armaduras de algodão.
Mas se estabeleceu um momento em que todas as coisas
são a ausência dela.
A ausência dela se alastra, incontida, pelo planeta.
Eu preciso aprender a ser outro
para suportar.
Foto: Vagner Simplicio, Lagoa Juparanã, ES
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Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. Blog. Email.
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