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DOIS CONTOS DE NARA VIDAL

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A NOTÍCIA

3:45 da tarde. Os olhos tentavam, no meio de buzinas, risos, xingamentos, bancas de jornal, achar uma ilha deserta. Precisava saber antes das quatro. Todo mundo passava por ela e ninguém sabia o medo que carregava na bolsa.
O couro marron já desbotado tinha nas alças fiapos de linhas se soltando. Precisava de uma bolsa nova. De uma bolsa nova seria bom precisar. Daria tudo para precisar mesmo de uma bolsa nova. Bolsa ordinária, barata. Lá dentro dela, outro caminho: algo extraordinário dobrado quatro vezes em papel A4, no envelope lacrado. Andava com a impressão de ter ali dentro um bicho vivo. E não deixava de ser. Titubeou por mais alguns passos. Os olhos já vidrados desesperavam-se por um canto quieto. Tentou a praia. Era janeiro. Não ia dar certo. No parque, talvez. O cheiro de xixi embrulhou-lhe o estômago. Mal sabia ela o que estava embrulhado no envelope.
Em volta dela, um homem sem as pernas. Uma criança suja chorando. Cheiro de sangue. Um parque sem passarinho algum. Sentou-se num banco, com nojo e desespero. Precisava abrir aquela bolsa. Faltavam dois minutos pras quatro. Traçou pra si mesma o plano de coragem: até antes das quatro saberia a notícia, qualquer que fosse.
Um homem passou pedindo dinheiro. Insistiu. Precisou sair dali. O relógio da Siqueira Campos ria dela. Perdera a vez. 4:02. Aquilo só poderia ser má notícia.
Tentou um café. Cheio. Garçon que não deixava ninguém em paz. Se fosse pra casa talvez nunca mais saísse de lá. Pensou no pai da amiga que recebeu no ponto de ônibus a notícia da morte ma mulher. O pobre rodopiou zonzo e ninguém viu o que era só dele, lá dentro da cabeça daquele homem sem sorte.
Ela queria o mesmo. O que quer que fosse no envelope, ela precisava se passar por nada, anônima. Tinha que saber que o mundo não ligava. O que estivesse escrito naquela folha era só dela.
Amou tanto durante a vida. Poderia até amar mais. Sabe-se lá!
Desistiu do café. Caminhou até o forte no fim de Copacabana. Pelo menos tinha vento lá. Em coração de tambor, a bolsa aberta. As mãos passam desinteressadas pelo resultado do exame que trouxe boas notícias. Abraça com os dedos apertados e trêmulos o evelope branco.
Gira os dedos pelo tamanho do papel e abre, rasgando as pontas. No canto do olho já salgado de ansiedade, confere: 4:48.
Suspira e abre os olhos. Não sabe se foi o sol ou o que estava escrito. Ficou cega.
  



VIDA DE ESCRITOR

Colocaria os pingos nos IS, não fosse a falta de palavras pelas quais tanto procurava.
Tinha obsessão por elas. Mas não as encontrava em abundância ou ao acaso. Garimpava cada uma com suor e sangue para que fosse estirada ao sol, secando, quarando, arejando.
Era a única pessoa no mundo que tinha um dicionário na mesa de cabeceira. Lia a Bíblia, menos por oração, mais pelo encontro de palavras inusitadas.
A vulgaridade atrapalhava o brilho do vocábulo, já tão penoso de encontrar.
Não tinha outra saída: seria escritor. Era velho e aquilo lhe caía bem. Já não tinha ambição de viver de escrita e recebia pontualmente, no dia dez, sua aposentadoria. Era pequena, era curta, exatamente feito as pernas da mentira que o patrão lhe pregara por todos aqueles anos na mesma firma. Possibilidades de crescer na empresa. Cresceu. Ganhou doze quilos no período de vinte anos. Ana Cristina, a mulher inconformada com a situação modesta, mesmo que honesta, do marido, pensou em divórcio. Desistiu vendo que sairia caro demais e o marido não poderia pagar-lhe nem uma mísera pensão. Viajavam para Caxambu ou Araxá todo ano, desde que se casaram e Ana Cristina bebeu da fonte da fertilidade. Nunca tiveram filhos. Ana Cristina nunca tinha saído do Brasil e se envergonhava entre as amigas que contavam vantagens e paisagens vistas lá fora do seu limite. O marido gostava da beleza sorridente das cidades mineiras.
E agora o caldo entornaria de vez: escritor. Que ideia mal arrumada era aquela de ser escritor? Por que não pensava o marido em trabalhar como gerente de alguma coisa que rendesse um salário suficiente pra parcelarem uma viagem estrangeira? Escritor vive de quê? Deve ser de brisa, de ideia, de palavra, porque não conhecia um que colocasse feijão com arroz na mesa, quanto mais uma brochura da Europa!
Mas José Antônio não desistiu. Sua paixão por palavras complicadas e escolhidas resultou num livro de crônicas. Já às vésperas de fazer setenta e nove anos, José Antônio que havia esperando dois anos e recebera todas as recusas de cada editora da sua lista, decidiu bancar o que tanto queria dizer. Aquelas palavras ao sol, mesmo que já desbotadas, estavam agora, transparentes, mesmo que só pra ele. Fez tudo escondido da Ana Cristina, já que as prestações da publicação do livro, poderiam ter levado os dois até a Argentina. (Se tivesse escolhido capa de quatro cores, poderiam ter ido ao Chile!)
No dia do lançamento, na livraria de maior movimento da cidade, Ana Cristina, com escova no cabelo e certa amargura no peito, fez a foto:
O marido com a caneta Bic suada. Em volta, dois vizinhos e uns primos. Três amigas da Ana Cristina e os dois camaradas do xadrez da pracinha.
José Antônio, com sorriso e página aberta, orgulhava-se da primeira crônica que abria sua obra assim:
“O ósculo do rapaz pacóvio, porém loquaz, fez rubicunda a mocinha fiel. O namorado, ínvido, resolveu prescrutar o fato.”
Não foi um sucesso não, aquela coleção rara. Mas vendeu: quatro exemplares. Dez ele deu pra amigos querido que não apareceram no lançamento. O resto continua no canto da sala, aguardando esperança e atrapalhando a faxina da Ana Cristina.


Foto: escultura "A FELIZ CEGUEIRA", Sergio Bustamante

*    *    *

Nara Vidal, mineira de Guarani, formou-se em Letras pela UFRJ e tem Mestrado em Artes pela London Met University. Há 13 anos mora na Europa, Nara escreve para jornais e revistas diversos. É autora dos infantis e juvenis "Arco-íris em preto e branco", "Pindorama de Sucupira", "A menina e os relógios" e "O doce plano das galinhas". Ganhou em 2014, pela segunda vez consecutiva, o prêmio Brazilian Press Awards em Londres, pelo seu destaque em Literatura. Foi também ganhadora do último Prêmio Maximiano Campos de Literatura. Neste ano Nara lança vários infantis e seu primeiro adulto, que será publicado pela Kazuá.







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