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05 poemas de Alan Costa

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POEMA OBSCURO

Visto a roupa que o frio me cede
na tenda de lona que o sol escurece
cão não me falta faminto

bem  me  quer  tequila  mal  as  moscas
bem  me  quer  a  fúria  mal  o  medo
bem  me  quer  preconceito  mal  o  ego
bem  queria  redimir  dos  erros.



OLHOS DE ANOITECER

Bati  asas  um  morcego  mudo  mirando  outra  estrela
hora  da  cigarra  não  era  mas  se   assusta
com  o  sopro  de  um  pássaro  grande  entre  as sombras  que faziam  um  par  de  pés  de  fruta  e folhas secas  no  caminho

Certo mesmo é que a dois  segundos  atrás  a  noite era  menos,  bem  menos  noite
e via  um  vaga-lume  assim  sem  graça  pousando  beirando  horta  e  bem  no  meio  dela  um  espantalho
não ouvia  fiapo  de  vento  mas  sorria, embora  de lábios  secos
mais secos  que  os  do  sapo,  também pudera,  estalava  besouro vermelho  na  língua  calejada das horas

Feito  réu  atônito  confesso  outro  cochilo  e  uma  pesada  nuvem vem  parir  um  grande vulto  pra  cima  da  lua,  quase  cheia,  essa  minha  prata  testemunha

Clareava  a  ponta  da  grafita  no  momento  em  que falava  de avião  pequeno  passando  brilhando  a  mil
resmungando ressaca  em  linha  reta.



VIDA  X  MORTE


Aflora e desfalece muda 
desdém compassado
ela que finta os desejos 
ela que finta a cura

Quero álbum de retrato
a ginga dos teus braços
desvirginando os desejos
que me trairão um dia.



JULHO

Participo irrequieto da marcha
a fim de aguçar o marasmo do ar
preencho com graça os espaços
driblando meu medo em gingados

roço o para-raios parabolicamente
sempre serei papagaio raro
pipa no crepúsculo do mar
participante por um fio.



CONTRAPONTO

Se a vida é mergulho em mar de riscos
corro e faço da prancha barco a vela
se o veleiro não revela teu caminho
não importa, agora gotas me comportam
de sol, de sal sem que em teu caminho veleje
volto no vômito da onda ainda fria

do barco que era prancha faço um marco
se trafego com um colar de esferas
traço algo para arremeter na terra
se tropeço entre aterros no caminho
volto ao marco que mostrou pra vida

que o caminho do abrigo é placentário.




ALAN LUIZ COSTA é de Belo Horizonte, MG. Cirurgião- Dentista pela Faculdade de Itaúna tendo iniciado o curso em Uberaba-MG onde teve alguns textos publicados no Jornal Laboratório do curso de Comunicação Social REVELAÇÃO e também no Jornal Correio Santarritense em Santa Rita de Minas. No campo virtual tem poemas publicados no Grupo Haikai.
É Apicultor nas horas "pagas".




Ilustração: Fotografia da Wikimedia Commons

JÔ DRUMOND RESENHA "GLACIAL", DE JORGE ELIAS NETO

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GLACIAL



Jorge Elias Neto, membro da Academia ES de Letras, despontou no cenário literário capixaba em 2007, com o livro Verdes versos. Posteriormente, publicou Rascunhos do absurdo, Os ossos da Baleia e Glacial. A maior parte de sua produção poética ainda não se encontra à disposição dos leitores. Tem 4 livros inéditos (Breviário dos olhos; Breve dicionário poético do boxe; O ornitorrinco do pau oco; Quadras capixabas) e 3 em andamento: Cabotagem; A Folha; Breve dicionário poético da loucura.

De um modo geral, ele aborda temas universais. Na esteira de Nietzsche, Heigegger e Camus, ele tece seus versos calcado em questionamentos ontológicos. Trabalha mais com ideias que com palavras; busca a emoção da reflexão e não a musicalidade do poema. Seu conceptismo é marcadamente filosófico-existencialista. A maioria dos poemas não é destinada à declamação, mas à leitura e à reflexão. A polaridade vida/morte, recorrente em seus livros anteriores, sobretudo em Rascunhos do absurdo, perpassa também por Glacial, como tema central, em torno do qual giram os subtemas a ele interligados: branco eterno, gelo, nada, silêncio, inércia, infinito, imensidão, vastidão branca, insignificância da vida, Impossibilidade, morte em vida, efemeridade, absurdo da existência, absurdo da morte, tempo, entre outros.

Como cardiologista, em sua faina diária de tentar estender ao máximo o ritmo e a vitalidade cardíaca dos pacientes, ele depara às vezes com a inexorabilidade da morte, na certeza de que, por mais que tente afastá-la, um dia ela sobrepujará seus esforços. Daí o caráter metafísico, oriundo talvez da ânsia de transcender a materialidade das coisas.

A morte é branca, o gelo é inóspito; ambiente propício para se pensar na morte. O eu lírico se despoja de toda e qualquer vaidade, e se desconstrói, para encontrar a insignificância relativa do ser. Glacialé o primeiro livro temático, inspirado numa viagem aos Andes. Seu hermetismo muitas vezes desnorteia o leitor, que se embrenha em sombras, com vislumbres de claro-escuro. Segundo o renascentista Pico della Mirandola, “as coisas divinas devem ser ocultas por enigmas e dissimulação poética”.

Em Glacial, tanto os poemas quanto as instigantes ilustrações de Felipe Stefani entram em sintonia com o hermetismo da obra. Palavra e imagem se prestam a uma infinidade de leituras. Cada leitor recria o que lê, ancorado em sua experiência colateral, ou seja, baseado em suas vivências e no conhecimento acumulado ao longo de sua vida.

O poema “Do que prende os pés nos sonhos” (pg.35) se encerra com uma inclusão sentenciosa, entre parênteses: “a maior morte / em vida / é a impossibilidade”. A morte em vida é estar preso às amarras da religião, do mercado, da sociedade... é a morte do intelecto, do ser consciente. Como as formigas, do poema “A logística das formigas” (pg.37), é a morte de milhares de seres, agarrados à impossibilidade; seguem para o fim como carneirinhos, uns atrás dos outros, sem questionamentos, sem se descarregarem de suas insignificâncias.

No poema “Sujeito”,  o eu lírico “reinventa um céu de possibilidades”, a fim de sair do ostracismo. Recria um mundo possível sem religião (como homem absurdo, questionador), retoma a vida social e sexual, pretende se tornar homem, mas se esfacela novamente (porém conscientemente), ao despejar “um eu calidoscópico no gelo”. Segundo depoimento do autor, inicialmente Glacial teria como subtítulo “dos eu(s) ao(s) sujeito”.

Logo depois do poema “Sujeito”, vem “Celebração”, para celebrar o retorno mencionado. A vida continua. O ser volta-se à natureza, para a qual sua existência é irrelevante. Nesse poema, no qual se afirma que “o disfarce da órbita é desviar-se do óbvio”, há uma imagem literária que só pode ser desvendada com a ajuda do autor. Segundo ele, sua infância foi muito solitária. Comprazia-se em fazer helicópteros de papel, que desciam rodopiando ao serem jogados pela janela do nono andar. 

A maioria de seus poemas brota de imagens mentais ou de reflexões. Ele vê o poeta como “atleta do abismo”, que se equilibra entre a vida e a morte, e como “alpinista do nada”, que se pendura na fenda do portal do tempo (falta de sentido da vida). Ao deparar com o branco (a morte) o atleta/alpinista não mais se move (inércia).
  
É mister sublinhar que essa obra temática mantém uma lógica estrutural: começa com o poema “Compondo o sítio arqueológico”, desenvolve-se  numa composição em mosaico, na qual se agrupam fragmentos e centelhas (experiências de vida e reflexões), e termina com “tetelestai”Jo 19.30 (está consumado).

Mais não digo. Deixo ao leitor o comprazimento da leitura.






LEIA POEMAS DO LIVRO



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Jô Drumond é escritora e membro da: AEL (Academia Espírito-santense de Letras), AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras), AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras) e IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).




















Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR





5 POEMAS DE GERMANO XAVIER EM FRANCÊS

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Bagagem (poema)

Bagage

viens
donne-moi tes lèvres
et ses moussons d’été
pour assouvir mes soifs

viens
ramène accoudés à ton visage
tes empires de salive
en jus nucléaire de pulsions

viens
emmène ta rose
ta carte sans cartographie
portière ouverte à mes attaques

de naufragé

  

Bagagem

vem
traz tua boca
e nela as monções de verão
para minhas sedes

vem
traz junto ao rosto
teus impérios salivares
em molho nuclear de pulsões

vem
traz tua rosa
mapa sem cartografia
portinhola para meus ataques

de náufrago



  
Aquelas febres (poema)

Ces fièvres-là

ces fièvres aux goûts âcres
et gorges opérées en semi-voyelles
qui n’osent pas quitter les bouches
ni pour l’extrême-onction

ces fièvres aux corps dormants
si chaudes dans la distance
et l’imaginaire qui raccourcit pour être et voir
ce qui se cache

ces fièvres de feu
qui nous transforment en bêtes
et nous impriment des empreintes
d’âmes sans silences

ces fièvres miennes et tiennes
l’aube des aliments combustibles
qui font éclore l’ébullition
des muscles qui pulsent encore
  


Aquelas febres

aquelas febres de travos
e gargantas operadas em glides
que não saíram das bocas
nem por extrema unção

aquelas febres de corpos dormentes
e quentes na distância que o imaginar
se encurta para ser e ver
o que se esconde

aquelas febres nada pálidas
que nos alteram em bichos
a nos imprimir lavagens
de almas sem silêncios

aquelas febres minhas e tuas
alvorecer dos alimentos combustíveis
que fazem eclodir o saldo ebulitivo
dos músculos ainda pulsos



  
Emboscada no coração do amanhã (poema)

Une embuscade en plein cœur du devenir

j’ai visité des labyrinthes
au moment où tu as accosté à ce fort

(au milieu du jardin bleuje ne voyais que les mâts
des navires dans tes yeux)

fatigué de m’étayer par les coins
je suis allé te joindre, mon refuge
dans mes rêves tu entres dans ma bulle
- et le vent se charge du reste

obéissant à un ordre inconnu
mes pieds m’on offert leurs pas
je ne pouvais pas imaginer
qu’ils seraient autant, à ce point-là

pour te sauver de la planche
je me prenais par Ahab en fureur contre le cachalot blanc
(l’amour est le plus grand des mammifères)

en transmutant les peurs d’autrefois
j’ai banni les axes des centres sans équateur

  

Emboscada no coração do amanhã

estive a visitar labirintos
na hora que você aportou no forte

(o jardim alto só me deixava ver o mastro
das embarcações de seus olhos)

cansado de me escorar pelos cantos
indo ao teu encontro busquei abrigo
na imaginação fiz você entrar na bolha
- o vento do resto se encarregaria

como que me pedissem uma ordem
meus pés me cobriram de passos
e eu nem suspeitava que fossem
extras e tantos

para livrar você da tábua
fiz-me de Ahab em fúria pelo cachalote branco
(o amor é o maior dos mamíferos)

invertendo os medos de outrora
bani dos eixos os centros sem equador




A piscina (poema)

La piscine

tu entres
délicatement
dans l’eau

(il y a en cela une redondance voulue)

le cœur aquatique
floral, humide
sous le maillot

ce n’est ni toi
ni le tissu
c’est le bleu qui se mouille


  
A piscina

você entra
delicadamente dentro
d'água

(há redundância proposital)

coração aquático
em floral úmido
sob o maiô

não é você
nem a malha
é o azul que se molha




O primeiro poema do ano (poema)


Le premier poème de l’année

dans le premier poème de l’année
se blottira, dans une fausse tourmente de paix
dans une âme ivre d’un danseur
une femme étourdie qui offrira
des fléaux d’absence sur d’étranges baisers
(étranges, car ornés de confettis)

le ciel explosera alors
et lancera aux ténèbres une lumière fabriquée
les sourires confus et confondus cinglés au passage
du temps feront périr les sinistres engins des heures
dans une voix d’évolution inventée
(et tout nous retournera à l’aube qui s’étale)

Mais tout sera recyclé
les prêtres, les artificiers
les marchants et vendeurs ambulants de racines dans les foires
- seront-ils libres ?
(tout pourra être guéri car les jours seront neufs)

dans ce premier poème de l’année
le cri sera obligé et officiel
glissé dans toutes nos brousses, nos secrets
 comme un artefact sauveur

l’armée criera
les vendeurs et les aveugles
les poètes et les choristes enlacés
ne feront plus qu’un unique corps
dans le cœur du centre qui se nourrit des files d’attente

tout se blottira dans le poème qui durera le temps qu’il faut

qui donnera lieu à la nouvelle prière
de rédemption pour les âmes égarées
en plein carnaval au milieu de senzalas modernes
(tout se blottira, y compris une bande sur les yeux
qui annulera tout ce qui est affreux ou répugnant)

tout aura lieu dans ce premier poème de l’année
la prière de la lavandière
la mort de l’indien
la rébellion des victimes d’injustice
l’odeur puant des fortunes illicites
l’impunité qui vit dans les vers sans douleur

dans le premier poème de l’année
la nature du verbe se servira de l’émotion
dont elle demeure le seul miroir

(des monuments d’eau seront érigés
en hommage aux vanités et à l’orgueil)

et rien (absolument rien)
ne sera épargné, rien ne sera oublié.



O primeiro poema do ano

no primeiro poema do ano
caberá uma tormenta falsa de paz
na alma bêbada do dançarino
uma mulher aturdida que descontará
flagelos de vazio aos beijos estranhos
(com o estranho pintado em confetes)

o céu estourará
lançará ao breu a luz fabricada
os sorrisos confusos singrados ao passar
do tempo farão perecer os engenhos sinistros
das horas num timbre de evolução inventada
(tudo regressará num nascer que se espalha)

mas tudo será costurado
sacerdotes e fogueteiros
marchantes e vendedores de raízes nas feiras
- livres?

(tudo poderá ser curado, pois serão dias novos)

no primeiro poema do ano
oficialmente estipular-se-á o berro
entreposto aos sertões de nós-todos
como artefato da salvação

tropeiros gritarão
caixeiros e ceguinhos
poetas e coristas enlaçados
sendo um só corpo
no coração do centro que consome filas de espera

tudo caberá no poema que durará um tempo inteiro

que inaugurará a nova oração
redentora para as almas já perdidas
em meios aos canaviais e senzalas modernos
(tudo caberá, inclusive a venda de nossos olhos
para não ver nada que seja feio ou asqueroso)

caberá no primeiro poema do ano
a reza da engomadeira
a morte do índio
o levante do injustiçado
o cheiro das fortunas ilícítas
a impunidade que há num verso sem dor

no primeiro poema do ano
a natureza do verbo desfrutará a comoção
do que é espelho

(monumentos de água serão erguidos
em prol de predileções e vaidades) 

 e nada (absolutamente nada)
irá sobrar ou ser esquecido




Foto: Nir Arieli.



*    *    *





Germano Viana Xavier, 30, é mestrando em Letras pela Universidade de Pernambuco - UPE e pós-graduando em Ensino da Língua Portuguesa pela FAFICA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru - PE. Possui graduação em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB e em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco - UPE.Blog do autor.












VOO CURTO - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Konstantin Karr


POMAR

aceito o acento
averbado entre deus (quase maiúsculo)
e seu refrão de pulso pulsante
   - avante –
vértice vertical (quase estrangulado)
abrindo e estendendo outro Sol

principia a viagem para um pomar
     - impávido – de pássaros.



VOO CURTO

por enquanto só a lua ruge seu silêncio
quase modo modificado o mutante esquadro
na lírica borda da avenida

não controlo vogais ou fonemas ácidos...

esqueço do altar e as rezas de penitência
já não me lembram mais

um longo caminho de recordações cerceia passos
e sussurra brevidade nessas arcadas movediças
em louros e despedidos campos desse novo dia
  
é quase insano o pranto seco e sem vento
do constante leme que – marginal – aponta
as frestas e submete as arestas
polindo os desmandos e suas entrópicas rotações

fagulhas dos minutos/segundos brilham na clara lua
sugerindo proximidade/extensão de pouco volume
comprimindo em latitudes/altitudes concêntricas
longas elipses auréolas de pouca massa

é aí que cantam os santos/ingênuos providos e amados
de seus pecadores escolhidos
todos fruídos em lento cardume na nave
catedral dos que, enfim, tremeram temeram
transpassando, no voo curto, o infinito da liberdade.



ANDARILHA

                                 estimo-me quase santa e sabedora embora que esqueci
                                         uns cem mil réis de vespertinas vitórias e alecrins

alegro-me com a vivenda enquanto é vasto/limitado
o decorrer do dia diamante nessa terra lisa de lisuras

quase esqueço, nos muitos tropeços,
a necessidade andarilha da vida – quando abre um
horizonte, novamente, a quadrilha e sua sina se levantam
e satisfazem com pares, mercadores e ímpares,
as  vésperas dos vestíbulos acionados nesse mercado
 – mortificado - vai ancorando-se de multiplicidade
e vagarosidade em cada dia encolhido e luminoso....

são tantos os céus e os infinitos e os cristais e os crédulos e
os crucificados e os mortificados
                                          terra aleatória em mares navegados

                                                                 crepúsculo dos lares e laços

na fronteira, arvoredo de aço e alhures,
abre suas flores.



JANDIRA ZANCHI



Por um olhar modificado

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Ensaio em homenagem aos formandos da IV turma de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão, turma Profa. Dra. Renata Wirthmann G. Ferreira.

Quando recebi e aceitei o convite para ser o nome da turma de Psicologia que se formaria neste ano, comecei a pensar qual função me estava sendo atribuída e me senti impelida e escrever sobre o que espero de quem se forma em Psicologia. Rapidamente, me chegou a mão um discurso, como paraninfo  no Kenyon College, do escritor americano David Foster Wallace chamado A liberdade de ver os outros. A partir deste texto comecei a me lembrar dos constantes debates em aula acerca do que é o ser humano e do olhar sobre este e pensei que isto é o mínimo que espero de um formando em psicologia: um olhar modificado.

Nas diferentes disciplinas que leciono, dos diferentes períodos do curso, há, sempre, algumas questões que permanecem constantes, provavelmente por que eu, como docente e psicanalista, as considero essenciais. Até hoje não houve nenhuma turma em que o tema do que é a Verdadeira liberdade, com V maiúsculo como nos sugere Wallace, não gerasse impasses e conflitos. Nestes meus 10 anos de docência na Universidade Federal de Goiás, costumo iniciar as disciplinas solicitando aos alunos que deixem, do lado de fora da sala, seus preconceitos, misoginias, racismos, homofobias, partidarismos e religiosidades. Embora saiba que este é um pedido impossível, aos moldes do impossível da associação livre proposta por Freud na clínica psicanalítica, exijo tal esforço para seguirmos adiante. 

O desafio proposto é o primeiro passo para se aprender o que há de mais essencial num curso como o de psicologia, aprender a pensar. Para se pensar é necessário abstrair, e tais moralismos e fascismos que nos foram impregnados desde o nascimento nos tornaram cegos aos moldes de Funes, o memorioso, de Borges, que era capaz de se lembrar de cada folha de cada árvore que havia visto em cada instante de toda a sua vida, mas era incapaz de as reconhecer como árvores ou mais, de reconhecê-las como semelhantes entre si, como conceito. 

Fomos educados a ver por entre moldes e a julgar ou excluir o que estiver minimamente fora de tais delineamentos, de tal modo que nos tornamos incapazes de olhar para os sujeitos ao nosso redor. Para de fato olhar, antes devemos nos esforçar para identificar essas bagagens pré-moldadas, pré-determinadas que, na verdade, nos impediram a vida toda de pensar e permanecerão impedindo a grande maioria das pessoas. Tais preceitos morais nos levam a nos sentir automaticamente convictos de que conhecemos toda a realidade e a excluir qualquer possibilidade que não seja uma repetição, o mais exata possível, do que tais concepções doutrinaram. 

Segundo Wallace, aprender a pensar “significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento”. E Wallace adverte daquilo que poderá acontecer com seus formandos, que é o que percebo acontecer com a grande maioria das pessoas: “Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente a deriva”. Este estar a deriva nada mais é do que um não pensar sobre suas escolhas e seus atos, simplesmente fazer conforme uma programação padrão que, normalmente, leva uma geração a repetir sua geração precedente de tal modo que, geração após geração, pouco, ou nada, efetivamente se modifica. 

Olhar é outra coisa. Trata-se de desembaçar os olhos, retirar essa lente julgadora e impiedosa que já sabe sobre o outro antes deste abrir a boca para falar de si. O que espero ter ensinado para meus alunos, ciente do impossível que é ensinar, é que a única posição possível para um psicólogo é a de não saber. Se nada sei, a priori, sobre o outro, como posso supor que sei o que é melhor para ele, para seu corpo, para sua sexualidade, para sua vida e, até, para sua morte? Eu não sei, você não sabe e ninguém deveria supor saber. Não posso dar instruções de como o outro deveria conduzir sua vida, qual a escolha sexual adequada, se ele deve ou não ter filhos, se deve ou não interromper uma gravidez... Essa, certamente, não deverá ser a função de nenhum formando em psicologia.

A função de tais profissionais não deverá ser a de fornecer respostas pré-moldadas, esta é a medíocre função dos livros de auto-ajuda. Posso pensar sobre tal função, frente a essa posição de não saber, a partir da proposta de uma análise. O que uma análise propõe? Descobrir que, embora nunca sejamos completamente senhores de nós mesmos, somos, no mínimo, responsáveis por todos nossos atos e escolhas. Essa descoberta inicial que possibilita o tratamento, Lacan nomeou como retificação subjetiva ou, ainda, a capacidade do sujeito fazer, de fato, parte da sua própria história, como causa e resultado. As pessoas que procuram um analista costumam chegar ao consultório numa posição de vítima em relação a sua própria vida, o que não é nenhuma vantagem, pelo contrário, a posição de vítima as institui numa posição de impotência perante a vida, de tal modo que fazem análise para poder seguir adiante. Se tornar responsável pela própria história e pelos destinos dessa história, coloca o indivíduo na posição de sujeito, pois antes, como vítima, ele era objeto. Claro que não temos controle sobre todos os acontecimentos da nossa vida como um acidente, uma doença ou a violência, entretanto somos responsáveis pelo que faremos a partir do que nos foi dado, inclusive dessas coisas que, com certeza, não planejamos, mas que estão ai. É o Real que se apresenta para todos nós, mais cedo ou mais tarde. A questão não é impedir que coisas ruins nos aconteçam, elas sempre vão acontecer, mas de não se paralisar, não mortificar frente a elas.


Dentro do curso de psicologia, eu leciono Psicanálise. Este é meu referencial para eleger o olhar modificado como essencial aos formandos. Portanto, para que um formando em psicologia possa oferecer a um indivíduo esse lugar de sujeito será necessário, primeiramente, que ele tenha adquirido, ao longo de sua formação, um olhar modificado, que implica em sair, ele próprio, o quanto possível, da suposta posição de vítima do outro, pois esta dá suporte à uma posição violenta com relação aos outros: misoginias, racismos, homofobias, partidarismos, xenofobias e religiosidades, o tornando incapaz de, realmente, vir a exercer sua nova profissão.

letícia

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imagem rafa antón


tira-olhos, libelinha! sossega!
que a sua larva de libélula (ninfa)
aquática e carnívora, 
mesmo
adulta com  seis pernas,
não consegue andar com elas...
e
 a ermo, observa
a libélula escondida entre as sépalas,
com o medo das  pétalas e das meninas: 
são letícias... 

palavras : adriana zapparoli 



ilustração: rafael antón 

nasceu em vigo (espanha). morou em  madri, em munique (alemanha) e, agora, reside em são paulo. além de ilustrar e escrever livros infantis, trabalha para produtoras de cinema e animação (outra entre as suas paixões) realizando storyboards. desenha personagens (character design) e cenários. 

SÉRGIO DE CASTRO PINTO - 8 POEMAS

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Tavares, Flávio: As Cigarras (2005).



as cigarras


são guitarras trágicas.

plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.

kipling recitam a plenos pulmões.

gargarejam
vidros
moídos.

o cristal dos verões.





lapidar


em cada verso
que escrevo,
eu me parto.

a folha é lousa.

poemas, epitáfios.





exílio

desarvorada,
a madeira
do móvel
desata
os seus nós e estala

a árvore que foi (no exílio da sala).





recado a pound


pound, eu não sou
nenhuma antena.

eu sou a pane
e a interferência
dos meus fantasmas

no tubo de imagens dos poemas.





antagonismo: máquina
de fotografia/revólver


a máquina
é o revólver ao inverso:
os objetos-bala não saem,
eles entram, se internam.

da máquina
(se acionado o gatilho),
os objetos-bala a engravidam
de um festival colorido.

do revólver
(se acionado o gatilho),
apenas existe uma cor:
a mesma cor de um grito.





o homem conduzindo a
máquina de fotografia


na máquina
a paisagem é intestina
(o fora está dentro),
não pode mostrar-se ainda.

a máquina
guarda o que havia fora
e o homem a conduzindo
conduz duas memórias:

uma a da máquina (mais dentro)
e a outra a do homem (mais fora).





a morte de lampião

a morte
sem ponto cardeal
(morte por grau)
via-se maior
na forma horizontal.

lentes invertidas
são matemáticas:
lampião dorme
maior que a vida,
sem altura, enorme.





rios, cidades, poetas


                                           À Moema Selma D’Andrea


o paraíba, o mamanguape,
o tigre, o eufrates
o tejo, o sena,

não desviam o curso do poema.

o poema, nenhum rio
ou cidade o fazem.
só os poetas, à margem do lápis:


caniço pensante na maré vazante da linguagem.





Sérgio de Castro Pinto nasceu em João Pessoa, Paraíba, no ano de 1947. É autor de sete livros de poemas, o mais recente deles
A Flor do Gol. Também tem livros de ensaios: Longe daqui, aqui mesmo - a poética de Mario Quintana e A Casa e seus arredores. Participa de antologias poéticas no Brasil e no exterior, a exemplo de Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século XX e Roteiro da Poesia Brasileira - Anos 60, organizadas por José Nêumanne Pinto e Pedro Lyra. Leciona Literatura Brasileira na Universidade Federal da Paraíba, onde defendeu Dissertação de Mestrado sobre Manuel Bandeira e Tese de Doutoramento sobre Mario Quintana.

A poesia para o agora em Norma de Souza Lopes

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sacode


mantenha escondidos
os círculos marrons
(dos bicos dos mamilos)
a fenda funda
(das nádegas)
não queremos ofender a honra da família mineira

pura que pariu
ser livre
é mais uma besteira
que inventaram para te fazer sofrer
seja aceita minha nêga
seja a seita
fundada por machos
que acham que mulher descoberta
foi feita para se abusar

ou não

ou abra com os dedos
os lábios da buceta
da buceta
como homem que sacode o saco
quando quer xingar




Norma de Souza Lopes,  autora do livro de poemas Borda (Patuá, 2014) , mineira, de Belo Horizonte/MG, 1971,  é Poeta e Professora. "Escrever é essa costura cotidiana quando posso tecer e juntar as pontas soltas da memória." Escreve no blogue Norma Din: 
http://normadaeducacao.blogspot.com.br/

Ilustração: pin up Hilda, de Duane Bryers

O amor em Maria Balé

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O AMOR É UMA CRIANÇA

(Maria Balé)



Na madrugada insone, os ácidos existenciais embotam os sentidos e intermitem os estados de consciência. Reconhece a voz ao telefone mas já não sabe se é real ou alucinação.
Experimentara a capacidade humana de sobreviver à experiência de ver o filho sendo levado por sequestradores, na porta de casa, diante dos seus olhos. Seu corpo, separado da alma, por um tempo sem métrica, permanecera anestesiado, submerso no paradoxo da dor troposférica que perfura e paralisa.

Como derrames vulcânicos, o desespero forjado na violência da ação e na avassaladora sequência de dúvidas: onde estará o filho? Estará vivo? Terá sido assassinado? Como estará sendo tratado? Estará com sede, com fome, com frio? Como estará reagindo? Estará sendo ferido? Torturado? Questionamentos atrozes que não se comparam à lacerante possibilidade de o filho desaparecer para sempre e tornar-se, como tantos, o binômio ausência-presença que destrói pessoas e famílias mundo afora, vida adentro. 

Da ligação, à chegada, os milênios de três horas. E faltaram braços, faltou corpo para tanto abraço. Faltaram olhos para ver que o filho estava ali, vivo, inteiro, sem marcas visíveis. Faltou pulmão para respirar tamanho alívio. Faltou boca para gritar o nome do menino. Faltaram mãos para enlevo ao Universo em agradecimento. E faltou peito, faltou caixa torácica para tanto ódio. Faltaria surrealismo ao pintor Dalí que lograsse escorrer suas tintas e seus matizes em formas que contenham densa mágoa. Faltarão vendas imaginárias que apaguem da mente a imagem dos homens encapuzados. 

O amor é uma criança, disse o poeta. E, como toda criança, o amor acredita. O amor é feito de sentimento e boa fé. O amor, em sua pureza, é também imprudência. O amor é criança, e criança acredita que uma mão que lhe é estendida seja acolhimento. E a criança, vai. O amor acredita que está indo para um lugar bom. A viagem é bonita. Da janela do trem, a paisagem parece sonho. E é. A criança sonha um sonho bom, enquanto está sendo sequestrada. 

Nos fragmentos do sono picotado, poeta e homens encapuzados esgrimam amor e ódio em espadas, a cada tanto trocadas. A luz das primeiras horas do dia, que entra pela fresta da janela mal fechada, dá a luta por encerrada. E, na irrelevância do resultado, vitória para os sequestradores do filho. Na arena dos afetos, vence a honestidade. 




Maria Balé é pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC-São Paulo. Produtora de textos, cronista, contista e fotógrafa. Tem curso de Extensão Universitária na disciplina Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades, PUC-São Paulo e de Roteiro de Curta Metragem pelo extinto Espaço Unibanco de Cinema, com curadoria do roteirista Di Moretti. Venceu, por 4 vezes, o primeiro prêmio Acesc de Literatura, categorias crônica e conto.

Ilustração: fotografia de Araquém Alcântara

4 poemas de Natalia Borges Polesso

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Ilustração: Christian Schloe



Coração a corda

i.
nasci assustada
e nunca passa
coração barulhento
pregando peça
na batida de troca-guarda
ventrículo átrio átrio ventrículo
queimou atrito
coração atalho
um cateter dentro
incendiando acessos
vias elétricas
em passagens erradas
queimaram quimeras
ficaram nas cordas
angústias
taquicardias
meu coração
desde cedo atrapalho
coração que atalha
de uma surpresa a outra
gosto de rotinas
meu coração
detesta
gosto de rotinas
meu coração
em festa



Ilustração: Christian Schloe



Quando eu era quando eu fui


corna

sempre achei o diabo um charme
ostento meus chifres
como quem ostenta um troféu
amar é ser ludibriado
passando do ponto do engano alheio
entrando na seara do próprio erro
levando a cabeça
meio de arrasto



menina

numa foto de família
meia-calça de renda
branca vestido azul
clarinho nos joelhos
duas rodelas de
barro nas orelhas
a mãe que dizia
menina como foi
ficar assim?



stalkeada

ela não tinha nome nem rosto nem riso nem nada sua sombra tocava meus calcanhares eu sempre ouvia o som de um realejo
ma
le
di
cen
te
toda vez que eu a sentia por perto




 

Natalia Borges Polessoé escritora, professora e doutoranda em Teoria da Literatura na PUCRS. É autora de Recortes para álbum de fotografia sem gente, obra vencedora do Prêmio Açorianos 2013 na categoria contos, e também da tirinha tosca A Escritora Incompreendida, publicada via facebook. Os poemas acima são do seu segundo livro Coração a corda, de 2015.

8 poemas de Bianca Velloso

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a dita

todos os dias
a morte me invade
num quase estupro
...
está vendo
(?)
esta cicatriz invisível
foi ela quem fez




o indizível

.
linda
feita de azuis
.
perto dela
.
.
.
o ar
.
é
.
r a r e f e i t o
.
.
.
deve ser mar
o que ela carrega dentro
.
quando me abraça
sinto o marulhar do mundo
:
o corpo inteiro vibra
.
e já não sei mais
o que é meu
e o que é dela
.



ponto

imprecisa precisão
escritor e leitor
cada qual
com uma verdade
a desnudar o verbo
o contexto
a metáfora
...
significar
é um ato
individual




alvoroço

quando há lua
nos meus olhos de rio
teu amor é céu
.
constelação
:
estrela, estrela, estrela


quando há sol
nos teus olhos de cio
meu amor é mar
.
oceano
:
onda, onda, onda
...
de calor e arrepio





estandarte

era um amor tão imenso
que fazia no peito um estrago
um estranho estrondo

e era um barulho tão sólido
que chegava a ser silêncio





resistência

novembro de mil novecentos e setenta e nove
primavera no hemisfério sul
e era medo o que florescia
no jardim lá de casa
...
diziam que o pior já havia passado
mas a gente engolia ideais
e vomitava escuridões
a gente calava o que sentia
...
quando aqueles homens cinzas
levaram meus pais
deixaram no meu peito
esta pústula acesa
que carrego até hoje
...
criança exilada da infância
:
existo, resisto, insisto






leis de mercado

não foi de uma vez só
foi pouco a pouco
...
ela era tão viva
tão bonita
tão autêntica
...
espalhava por aí
abraços, carícias
sonhos, cores,
beijos, fantasias
e possibilidades
...
não suportavam
vê-la tão leve, tão solta
tão cheia de amor
...
no primeiro dia
cortaram-lhe as asas
...
no segundo
arrancaram-lhe as cordas vocais
...
no terceiro
quebraram seus braços e pernas
...
no quarto
perfuraram-lhe os tímpanos
...
no quinto
furaram-lhe os olhos
...
no sexto
invadiram seu território
mais íntimo e mais sagrado
:
o sexo
...
no sétimo descansaram

agora é tarde
a liberdade está morta






paragem

faz escuro dentro dela. ela está enrodilhada nos pensamentos desconexos que antecedem o sono. observo o semblante mudo, travesso e sereno desta mulher. minha mulher? minha mulher, tão independente, tão dona de si. mulher que cabe tão bem dentro dos meu braços, dos meus passos, dos meus dias. poesia. tenho sono, mas me detenho naquela lua que ela equilibra na preamar do instante. com a ponta do dedo toco-lhe a ponta do nariz. e todo espaço se ilumina de estrelas com o sorriso que ela desata. desatino. vazante. orifícios. sendas. luz. penumbra. jorro. pequena morte. nascente. nela amanheço.








Bianca Velloso, completou 35 anos em 07 de novembro de 2014, é nascida gaúcha, em Porto Alegre; e crescida manezinha, na Ilha de Santa Catarina. Optometrista por profissão, mãe por opção, escritora por paixão. É também programadora da Rádio Comunitária Campeche, em parceria com Paulo Renato Venuto e Glauco Marques apresenta o “Sábado Arrastão”, um programa de entrevistas com foco em música e poesia.


Ilustração: fotografia de Suzana Pires, modelo Marina Cougo

Lançamento de Alvéolos de Petit Pavê - Ricardo Pozzo

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Um drone observa-me
por entre alvéolos de petit pavê
na cidade tipo exportação
feita pra ninguém

E meu irmão,
que encontra-se jogado
para fora do espetáculo
saca de vísceras instituídas em álcool,

lamenta que a vida é rinha
sem saída;
e a infância invisível,

tal qual o mendigo,
por entre alvéolos de petit pavê.
.

Foto: Decio Romano
Autor do livro Alvéolos de Petit PavêRicardo Pozzo nasceu em Buenos Aires. Poeta, fotógrafo e músico. É um dos organizadores do Vox Urbe, projeto literário do WNK Bar. Editor assistente do Jornal RelevO.   



O evento será realizado dia 03/03 (terça-feira) a partir das 21h no WNK Bar - Rua Trajano Reis, 326 - Curitiba - PR

[as guerras búdicas: a aurora dos nekro-monks] por alexandre guarnieri - parte 14

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[ OU 'TUKDAM', O ANTIGO ARDIL DOS MONGES-MÚMIA ]




Morri há milênios [...[
                                          sereno, cuidadosamente embrulhado na mortalha, as camadas de pele e tecido, como uma flor de pétalas secas que, quando encarquilham, se dobram sobre si próprias para preservar, contra a derradeira fragilidade, tudo o que poderia restar, ao que parece, de minimamente estrutural... quando os últimos átomos se desatam, voltando ao nada, de onde desabaram em silêncio, do clarão outrora turbilhonado pelo primeiro estrondo, lá onde terão surfado ao ruflar das asas inaudíveis do segredo original recém-inaugurado [...[






Morri há milênios [...[
                                          entrevado, alvo do rigor do meu inverno, o espírito aberto pelo frio como uma gazela pelo tigre, meditando naquela última e longínqua montanha, tamanha, talvez encravado na escarpa aberta à faca pelos bodhisáttvas primais nas bordas de um vulcão adormecido desde o resfriamento desta esfera, entre as pedras que sempre me pareceram eternas, mas até elas, sei, um dia passarão de monolitos colossais a mero pó, que o vento soprará daqui, deste planeta, de volta ao vácuo da mais absoluta e escura imensidão [...[






Morri há muito tempo [...[
                                                 mas estou aqui, ainda, emanando do centro de um arco-íris invisível, minha energia vital que susteve, desde sempre, a plena consciência de minha jornada evolutiva, do inanimado ao vivo, do mineral a árvore e daí ao animalesco mundo humano superado pelo desenvolvimento da glândula pineal que agora, abraçada ao estado especial de 'tukdam', se esquiva da carne, ainda que de dentro dela, do centro que apodreceria inteiro mas ainda a mantém, resvalada pelos vermes que insistem, ainda e ainda e ainda, na devoração da primeira à última fibra deste meu único cadáver que grita, inconsútil, no silêncio das próprias partículas [...[






Morri bem aqui [...[
                                    durante a contemplação do brilho venenoso de estrelas híbridas, como olhasse, suspensas, um escafandro do fundo de uma piscina, bilhões ou trilhões de anêmonas e águas-vivas acesas e enguias elétricas como cometas, o olhar pendendo entre a verdade da peçonha e a aparente transparência em neon glow, sob a mais bela altura onde os oxigênios se rebelam e os pulmões sofregam quase entregues a definitiva asfixia, diante de nuvens altíssimas ou acima delas porque só lá a linha do horizonte magistralmente se revela, ampliada como nenhuma vista rente ao chão revelaria, daqui grandiosas pedras pontiagudas se elevam, como cada uma destas agulhas ou colunas arrancadas da terra pelo aéreo desígnio do céu aberto sob a garganta do cosmo... aqui alcancei 'tukdam', sentado em lótus, no meio da ponte pênsil sobre o abismo onde dois lados se antagonizam: num deles como se definiu a morte, entre os vivos: seus ritos, seus filhos, suas vítimas; do outro, como se definiu a vida, para os idos, seus íntimos vícios, o sexo enérgico, os assassinos passionais, os suicídios [...[






Morri há milênios [...[
                                          séculos passados do agora se multiplicaram desde minha passagem primeva [...[ tempos tremendos se implantaram nos palácios da memória precária [...[ ainda assim me mantive vivo, mesmo morto, me mantive esquivo mesmo além do último suspiro, habitando este mínimo vestígio físico, guardado como uma joia nas tantas membranas de feltro e pêlo da manta trabalhada em raros panos de ínfimas fibras, tramas intrincadíssimas... e apenas neste precário estojo mantenho um ciclo respiratório que a cada década se completa, inspiro, cinco anos, expiro, outros cinco, eis o que persigo... foi o que me manteve ativo, pelo micro [...[






Estou morto e vivo[...[
                                            convertido em símbolo, apenas lido no Necronomicon, um necro-monk, e só como a múmia de mim mesmo atinjo a última santidade possível... é onde permaneço... imóvel em mim, sobre o trono dourado de uma serenidade julgada inatingível... regulando por algum sagrado automatismo, os mil ponteiros deste relógio sem fim... cada segundo agora durará dias semanas anos, sinto a realidade se abrindo de dentro, implosiva, enquanto a claríssima malha dos fractais de gelo preservarão meu cérebro meus nervos medula olhos sob as pálpebras que trancam a luz do mundo o lado de fora desta porta é a pesada pedra caída diante de meu desejo de ver viver ouvir sentir farejar o que quer que seja, porque agora outra vida se desenvolve radicalmente além do sensível, interna, e por isso mesmo mais e mais vasta pelos séculos que transcorrem nas veias e artérias petrificadas... frios os velhos novelos que enfim me mumificam por anos décadas séculos, por uma era!




...[...[... subitamente algo incompreensível acontece...
o belíssimo e ininterrupto sonho lúcido, interrompido ...]...]...




Estou finalmente ressurrecto [...[
                                                               eu sinto! o meu ego ainda existe! o maldito não se extingue! tento abrir os olhos os braços e estão duros e estou mudo e surdo e cego [...[ é quando me roubam o corpo o estojo o tronco desmembrado do pescoço, como uma peça de açougue [...[ é quando me enfiam na máquina simultaneamente gelada e incandescente que me desloca a alma descola o espírito aflito com agulhas e produtos químicos [...[ é quando me ataca o raio laser o scanner a tomografia os isótopos radioativos! [...[ tento gritar mover o ar mas as cordas vocais são veios de pedras que erodem contra qualquer possibilidade da voz alcançar externa qualquer outra parte arde a claridade que a máquina emite entre ruídos de rachaduras se abrindo tudo é apenas o deserto que escalavra a matéria que resta é quando eu tento gritar "estou viiivo!!!""eeeeu estou vivo!!!!" dentro deste saco de ossos secos e pele, enrijecidos, "EU ESTOOOU VIVOOOOOOOOO" e me matam os cientistas os jornalistas as fotografias os budistas mesmos que avançam em caravana como bichos as máquinas e bisturis que me examinam enquanto sinto tudo se esvaindo indo sumindo e sei que desta vez será algo sinistro e irreversível ]...] eis o tenebroso abraço apaixonado do limbo... eu morro aqui, agora... entre vocês... que amorosamente me assassinam... ignorantes e seculares devotos vociferando tantos mantras que supostamente afastariam todo o mal... mas é mentira... eles vêm armados até os dentes, exércitos de monges em guerra para purificarem uns aos outros com manchas de sangue e desmembramento ]...]





[...[ estou, então, finalmente morto [...[ sinto ]...]
[...[ mas ainda me movo ]...]
[...[ e ouço tua voz interna, mesmo em silêncio,
diante do monitor ou de qualquer outra tela acesa
[...[ agora ]...] lendo este texto ]...]






é quando abro os olhos e vejo e ouço e sinto o teu cheiro! estou diante de ti


"não me vês aqui?"...

"vem, eu sou teu mestre"...

"vemmm m  m"... "mm m m m   m   m     m"...


"ouves meu sussurro?"

"meu bruto e suave urro, escutas o súbito murmúrio, de teus tímpanos
(desobstrua-os sem que se destruam)?"

"meu berro, se etéreo, escoa sem malogro ou recuo?"


"que som ecoa em ti, de mim, em meu último túmulo?"























*    *    *



[...[ ALGUMAS NOTÍCIAS SOBRE A ORDEM NEKRO-MONK ]...]








]...] ELES ESTÃO ENTRE NÓS [...[






imagens: "Milky Ways", série de esculturas nekro-monk de Mihoko Ogaki



*    *    *



ACOMPANHE A SÉRIE!


PARTE 1

PARTE 2














*    *    *




Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.








O Professor de História - Emerson Machado

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Ilustração: Muhammad  Anwar


Saulo tinha muitos cabelos brancos. Quem o via de longe afirmava que toda a cabeça dele reluzia o brilho do Sol. O que não era bem verdade, ele gostava de lembrar: ainda tinha vários fios apenas acinzentados na nuca. “Pelo menos nunca fiquei careca”, pensava quando não podia rebater o argumento de que o tempo realmente passou. E não tinha como voltar atrás. Estava velho. Sentia-se velho. Os joelhos já não funcionavam direito. A dor nas costas era inevitável ao caminhar distâncias que seriam consideradas curtas cinquenta anos antes. As rugas no rosto até combinavam com a brancura dos fios caídos sobre a testa. Só não ficava bem por fazerem companhia às orelhas e o nariz que continuaram a crescer — mesmo quando Saulo sentia que estava a diminuir a estatura. “Maldito nariz. Malditas orelhas”, dizia a si mesmo quando olhava no espelho. Gabava a ele próprio a brancura dos dentes, que não precisaram ser substituídos por uma dentadura. “Alguma coisa tinha que ficar no lugar”, falava enquanto caminhava sozinho e pensava em tudo o que perdera na vida.
E era de estranhar que aquele senhorzinho caminhasse pelos corredores da Universidade com a bengala firme. Não tremia enquanto caminhava. A história mudava quando se sentava. “Sempre imaginei que sofreria de Parkinson quando chegasse a essa altura da vida”, era o que indagava quando alguém percebia que tremia enquanto tentava se conter.
— Senhor Saulo? — chamou uma mulher jovem quando ele adentrou o diretório acadêmico. Ela devia ter metade da idade dele. Era bonita, mas infelizmente Saulo não pôde notar a cor dos olhos dela. Sempre reparava neste detalhe. A cor dos olhos era importante para ele. Mais jovem, sempre sonhou em ter olhos verdes. “Talvez percebessem mais rapidamente a minha beleza se tivesse olhos verdes”, afirmava em pensamento. Ele sentou-se em uma poltrona confortável assim que a mulher indicou com a mão esquerda. O dedo anelar ocupado — Saulo não perdia este pequeno detalhe. “Sorte a dela”, sorria internamente. — Pode me dizer o porquê de ter se candidatado à vaga para professor de História da Humanidade?
— É a minha especialidade — retrucou com um leve tom mal-humorado. — Está escrito no meu currículo. Nada mais natural que eu me candidate a esta vaga... — a voz erguia-se em uma rouquidão leve. Possivelmente resultado dos cigarros que fumou durante a vida.
Os dois se entreolharam enquanto a mulher folheava as qualidades do candidato. Não era possível perceber por algo que ela disse ou tenha demonstrado com as expressões faciais, mas estava satisfeita com o currículo de Saulo. Também, pudera: duas graduações, uma em História e outra em Geografia. Logo após vinha o Mestrado em Estudos Culturais feito na República Tcheca. O doutorado francês surgia em seguida. Falava e escrevia em cinco idiomas fluentemente — e arranhava mais três. Os artigos científicos dominavam várias páginas do que a mulher tinha nas mãos. Livros publicados às pilhas — Saulo nem carregava mais exemplares consigo: não sabia quais escolher. E não estava mais acostumado com entrevistas de emprego. Deu aula na mesma Universidade durante décadas.
— O que motivou o senhor a sair da... — a mulher não precisou terminar de formular a pergunta. Saulo já abria a boca para responder: “Precisava mudar de cidade. Não aguentava mais o mesmo lugar.” — O senhor realmente tem passagens por diversas cidades e países. Deve ter sido difícil permanecer na mesma Universidade por tanto tempo...
“Não foi difícil”, pensou em responder, mas não queria parecer grosso. Ou prepotente. Resolveu sintetizar: — Gostava muito daquele lugar, mas mesmo em minha idade tenho esse espírito de mudança. Gosto de novidades para manter-me vivo.
— Mas trabalhar com História não é lidar com novidades — retorquiu a mulher que encarou Saulo nos olhos. Ele não hesitou em retrucar: “O que é novidade agora, daqui um segundo já é História”.
Quase arrancou um sorriso dela. “Droga, ela podia ter sorrido”, ouviu o pensamento ecoar pela mente. E complementou a resposta: — E se eu ainda não conheço, ainda é novidade para mim. A História sempre nos surpreende.
— O senhor tem um conhecimento muito rico adquirido como historiador e nossos alunos exigentes devem se identificar com a sua sabedoria — comentou ela. Era esperta, Saulo notara. Falou em retorno: “Eles aprendem comigo, eu aprendo com eles. É uma troca.” — Uma troca?
— Sim — Saulo não era a pessoa mais paciente do mundo, mas começava a não se incomodar com a intimidade forçada da entrevistadora. — Eu tenho tanta História para contar... Sobre o Universo, a vida, sobre como nos tornamos quem somos hoje. Sobre a importância de sabermos da História para criarmos a identidade que temos de nós mesmos. Tudo é História.
— Desculpe — a mulher fechou o currículo e colocou as mãos abertas em cima das coxas. “É uma mulher muito bonita. E simpática. Geralmente estas duas qualidades não vêm juntas”, o pensamento a inundar o cérebro. — Preciso perguntar: o senhor é feliz com a própria História?
Um silêncio perturbador dominou toda a sala. Os sons de risos de estudantes no corredor metros e metros dali só deixavam o ar mais pesado. Passos de pessoas indo e vindo incomodavam. Até o pensamento de Saulo pareceu se calar. “O que eu respondo agora?” Nunca ninguém lhe tinha perguntado isso. Em vista do que sabia do mundo, quem o cercava o devia achar um velhote ranzinza, mas contente com a vida que conquistou. E sem poder discutir com o que começara a surgir na mente, Saulo não teve outra opção se não responder.
— Sou — mentiu. E antes que ela pudesse indagar qualquer outra coisa, completou: — Comece qualquer história da área que eu pesquiso e saberei completá-las todas — para Saulo, toda História tinha um Fim. E este fim poderia significar um novo começo. — Estou contratado?
A mulher sorriu e virou os olhos novamente para as folhas do currículo sobre as pernas. Possivelmente um sim. No entanto, Saulo não comemorou o emprego novo. Aliás, achava que era o mesmo emprego que sempre tivera depois de todos os diplomas que conseguiu na vida — apenas em uma Universidade diferente. Comemorou o fato de ter terminado a entrevista sem precisar revelar que existia uma História sem Fim. Apenas alguns capítulos escritos. E a pior parte: ele não sabia colocar um Fim para esta história.
Chegou em casa aliviado. Lá, era um aglomerado de salas com estantes que iam do piso ao teto, abarrotadas de livros. Há alguns anos não cabiam mais exemplares nas prateleiras e pilhas começaram a se formar sobre os tapetes por quase todos os cômodos. As imagens penduradas em partes da parede ainda visíveis eram as únicas faces na residência. Não havia fotos de Saulo nem de uma possível esposa (ou esposo, nunca ninguém soube questioná-lo sobre sexualidade). Não havia imagens de filhos ou netos. Retratos de pessoas desconhecidas e monstros primorosos eram os únicos rostos pela casa.
Porém, um segredo estava atrás de uma das estantes — a primeira que Saulo comprou para o lar. Guardava em caixas velhas e mofadas o que tinha escrito da História sem Fim. “Pensei que não sobreviveria à entrevista se precisasse contar o que não tem final”, disse em voz alta para a casa vazia. Pegou uma folha amarelada pelo tempo em um dos recipientes e leu.
As palavras doíam. As frases faziam até a voz do cérebro se calar — em sinal de respeito. Os parágrafos apareciam como pedras sendo colocadas uma a uma sobre o coração de Saulo. “Um arrependimento: ser um professor de História com apenas uma parte dela que não sei terminar”, lágrimas brotaram e deslizaram suaves pela face, depositando-se nas brechas de cada ruga. Na página escrita à mão, o nome de quem receberia a carta tinha sido apagado. E o endereço no envelope nunca recebeu as palavras contidas ali. Saulo não conseguiu terminar a própria História. Aquela que começou aos 20 e poucos anos. E que, mais de cinquenta anos depois, continuava sem um Fim.

[...]
Eu ainda te amo. E você me ama, eu sei. E você sempre complicou tudo. Confesso, eu também compliquei. Não tratamos o que tínhamos de forma adequada. Não creio que valorizou tudo o que eu sentia. Por isso, não sabia como agir. E eu ainda te amo tanto... E não é em toda esquina que você encontraria alguém disposto a amar, como eu estava. Eu estava disposto a esperar o tempo que fosse preciso. Terminar os estudos, comprar uma casinha perto daquele parque que adorávamos (ou onde você quisesse, eu não me importava — desde que estivesse contigo). Sonhava em casar com você. Viver o resto da minha vida construindo a Nossa História — não só a Minha.
Às vezes, penso que você queria o que não tinha. E você me tinha. De corpo e alma. Só parecia temer me fazer feliz, como se o que eu era fosse algo distante demais. É quase como se você não pudesse me acompanhar e eu não pudesse lhe seguir também.
O fato é que você poderia ter tudo. E eu também poderia ter tudo. E poderia ter tudo se eu tivesse você. Eu não queria viver sem o seu amor. Não estávamos tão longe quanto você imaginava. Só estávamos desconexos, em sintonias diferentes. E amar é encontrar uma sintonia por menor que seja em meio ao caos que podemos ser.
Porém, por mais que eu quisesse estar com você e estivesse disposto a fazer tudo para isso, sei que a sua escolha foi outra. E você não me escolheu.
Só me faça um favor: diga que não se esqueceu de mim. E tudo o que eu senti e sinto. Sei que na Minha História, você é a parte mais importante dela. E, acima de tudo, de todas as coisas que lhe falei que não esqueceu que amar é a força mais poderosa que existe.
E ainda eu te amo.
[...]



Emerson Machado é jornalista pela Universidade Tuiuti do Paraná e escreve reportagens para o Diário da Amazônia. Tem vários livros infantis e juvenis publicados, entre eles O Investigador de Sótãos — livro selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE 2011), do Mistério da Educação. Também tem contos premiados em concursos literários e publicados antologias e revistas. Acredita que foi irlandês em uma vida passada e adora viajar, ouvir histórias e fazer maratonas de documentários dos mais variados gêneros. Ele não gosta de pipoca.

Fôlego - Lucas Verzola

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Ilustração: Cyrnic


Quando a porta se abria e um feixe de luz invadia o quarto, meu corpo gelava, meus pelos se arrepiavam, meu coração disparava, meus olhos se arregalavam e depois fechavam bem forte como se fosse pra reforçar a figa bem apertada que eu fazia em cada mão pra que não fosse eu o escolhido da noite nem nenhum dos amigos mais próximos, se bem que tinha noite que não só eu torcia para que não fosse eu nem os amigos mais próximos como também desejava que alguém fosse levado, geralmente um descontrolado que gritava pra dedéu ou um interno mais violento que ameaçava a nós, um grupo que, ainda que extremamente rotativo, costumava abrigar os loucos mais calmos do lugar, o que era um grande trunfo já que nos fazia passar despercebidos aos olhos dos enfermeiros – ou cães de guarda, como os chamávamos –, que sempre procuravam casos considerados extremos para levarem ao primeiro andar, onde as amarras eram mais apertadas, os sedativos eram mais fortes, os choques eram mais potentes, e de onde, diziam os cães, os meninos saíam direto para a casa dos pais, o que intrigava a todos nós, e intrigava tanto que o dezessete (tínhamos números, não nomes) forçou uma crise aguda pra ser levado pra lá e, quem sabe, voltar pra casa, o que nunca soubemos se de fato aconteceu porque nunca mais vimos o sujeito, todavia, se fosse pra apostar, diria que essa estória de casa dos pais não passava de conversa pra boi dormir, não só por ter aprendido a considerar mentira tudo que de bom eles falavam, mas porque o trinta e seis e o catorze nem família tinham e evaporaram logo depois que foram ao primeiro andar pelas mãos do enfermeiro Afrânio, um nojento de bigode de ruivo parecido com o Eufrasino do Pernalonga, que cheirava a formol e tinha o jaleco sujo daquilo que tinha certeza ser sangue, e devia mesmo de ser, já que ferida aberta era extremamente comum, e mais comum ainda era que elas se infeccionassem, se espalhassem por uma grande área, soltassem pus e outros líquidos que deixavam o ambiente mais fedido ainda, servissem de incubadora de vermes, culminando quase sempre em graves problemas como cicatrizes na epiderme, deformação e amputação de membros e até na morte de alguns dos meninos, algo que, para o bem ou para o mal, aprendíamos a encarar com normalidade quanto mais tempo passávamos lá, mesmo que nunca soubéssemos ao certo quanto tempo estávamos internados, já que não havia contagem oficial e nossa tentativa de calcular os dias com rabiscos na parede, quatro linhas na vertical e uma na diagonal a cada cinco dias, foi frustrada quando levaram dois dos nossos para o primeiro andar para a incredulidade geral, porque é difícil pra chuchu acreditar que uma mera tentativa de medir a passagem do tempo fosse causa para medidas tão drásticas, que, aliás, foram se tornando cada vez mais corriqueiras a ponto de um simples feixe de luz transpassando por uma brecha entre a porta e o batente gerasse tanto medo, ainda que ele nunca tivesse se concretizado em perigo de fato pra mim, que sobrevivi enquanto sucumbiam os que estavam em minha volta, talvez por falta de força na figa ou, quem sabe, por terem se resignado no subconsciente, algo que eu nunca me permiti nem com a dor de centenas de volts entre dois eletrodos instalados nas têmporas nem com a dor dos golpes certeiros dos cães nos alvos mais fáceis dos corpos franzinos de pobres crianças nem com a dor da fala dura de quem me dizia ser minha loucura culpa da puta da minha mãezinha que sífilis não pegava se fosse moça direita nem com a dor de ver os amigos sendo levados pra não voltarem jamais, pra serem esquecidos, pra desexistirem, como poderia ter acontecido comigo ainda que eu resistisse, ainda que eu lutasse, ainda que eu fizesse a figa mais forte do mundo, e é por isso que escrevo: como forma de continuar resistindo e existindo, ainda que tão longe daquele lugar, para que não se esqueçam jamais.




Lucas Verzola é autor do livro de contos São Paulo Depois de Horas (Editora Patuá, 2014, finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2013/2014) e, com críticas, contos e poemas, colaborou com jornais e revistas literárias, e integrou antologias e coletâneas. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, atualmente ocupa cargo de servidor público estadual, é editor e revisor freelancer, e foi assistente da ombudsman, redator, repórter e editor-assistente no Grupo Folha (Folha de S.Paulo e Publifolha).

Tudo pra vocês

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Tudo pra vocês é "NOOOOOSSA"!

A outra já tá até nervosa

Percebo pelo jeito de mexer no cabelo





Tudo pra vocês é putaquemeparível

Já seria de esperar tanta surpresa

E de soltar agradável brado dável.





Tudo pra vocês... é onipresente.

A sensação de se envolver em névoa viva

Mas são apenas coisas entre as gentes





Tudo pra vocês, comprovo, não é tudo:





Atenção aqui, na cerveja gelada

Fritz fazerr tirra-gosto atrravessar a caneca

E SAIRRR DA OUTRRA LADA!!!

4 POESIAS & FOTOGRAFIAS por HELENA BARBAGELATA, A ESTRADA DOS OLIVAIS

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A estrada dos olivais

Desamarramos as barcas do sonho, percorremos léguas para atracar no mesmo ancoradouro que nos viu partir, fronteiras no desenho da geometria, e as várzeas em oiros demorados iguais por toda a orla como os ombros das águas;


São os mesmos lençóis de sombra, onde se estendem os almoços solares, silenciaram aqui os mercados, proibiram-lhes os frutos exsudados da tarde, descansam o corpo sobre a cal e dividem no regaço o perfume merecido das maçãs;

Seguimos as artérias de vinhedos, os mapas amarrotados como essas mãos que aqui furtavam os azuis aos mares e ao ar as músicas interditas, as lájeas em que escondiam o tremor da noite, as palavras com que embebiam os poços da fome;

São os mesmos olivais que abrem as estradas, os ramos açoitados pelos varares do tempo, ainda oferecem nos braços a poção dos deuses, levam os dedos irrigados a desadormecer os moinhos, pousam a vida sobre os lábios da morte.





Kalokairi 



Academia de Platão


Sobre os mármores austeros da academia, correm os pés desnudos das crianças, puídos de terra e de sal, aqui só entrava quem sabia matemáticas, os pátios acolunados para erguer o pensamento.

Escorrem hoje as palestras por entre as mãos de um menino, rindo-se largamente, agarrando e soltando mancheias de gravilha, desconcertando os pupilos do seu longo estudo.

No resguardo dos plátanos tecem histórias de sonhar, se a imaginação é o brinquedo das infâncias simples, de roda de Platão agitam as suas cançonetas, e o velho busto mosqueado de cores parece debruçar-se num sorriso.

Ali onde foram átrios e bibliotecas, vão correndo muitos, soltando laços dos vestidos, desatando as cabeleiras luminosas ao passar da brisa, bailando e chilreando, aprendendo das aves a aritmética.

Sob a fronde pesada da oliveira, procuram a sombra do mundo, um colo para dormir os rostos passeados, e árvore sabedora oferece-lhes ternos os braços para os embair nas horas lentas da tarde.





Eirene


O Oráculo de Apolo


Queremos um bálsamo para lembrar, a
juventude parece-nos interminável, aqui
onde o tempo afrouxa os seus rigores,
entre a vertigem dos oráculos e o açoutar
das oliveiras; as árvores rasgam os esteios
das nuvens, perfilando caminhos gastos
de romagens,quantos homens, quantos ecos,
acamados no seio das montanhas; tanteamos
a beleza apresada das estátuas, o volume
sensual na talha dos amantes, eternos como
o canto estridulante e incansável das cigarras,
aflando a poeira hirsuta sobre os túmulos,
desprendendo-se como um hino ao nosso
passo, porque os deuses nos esperam;


Queremos um bálsamo para esquecer, a
vida parece-nos passageira, aqui
onde
o tempo cerra o umbral do dia;
derramamos a larga faina do sangue
nos
corpos entontecidos, como as tardes
ateadas de verão que se adentram pela

noite sem sossego; empapamos a sede
nos lábios, deixamos que o vinho alague
as artérias finas da cidade, que chore
pelos encordoamentos adocicados das
cítaras e dos coros, que transborde
pelos olhares amassados de mar
e de espuma, que derrame pelas mãos
os desejos mais tenros, porque os
deuses assim querem;

 

Galini


Quanto azul

Os vales embalam as águas docemente num aperto, e as velas acanham-se ao fundo como lenços húmidos de lágrimas, viemos desse ocidente imperceptível, da linha imersa de oiro que assinala o infinito, só temos longe;

Aqui o mar desfaz-se sobre os seixos em ósculos delicados, os mancebos mergulham os braços na procura distraída de algum tesouro movediço, o torso corado de luz, o corpo sem peso onde se abrigam as primaveras breves;

O pai dos mares acoita-nos entre os mármores arejados da sua casa, os homens dizem que ordena os humores do cúspide da falésia, e o mar assentado em volta como um manto imóvel de cores, a transparência que bebeu aos céus sequioso de ar;

Quanto azul é preciso para o fazer invisível? Preenchemos o olhar até ao limite de navegações, e não aspirámos ainda o último hálito do sol, ali onde morre a tarde num vértice desconhecido;

Quando chegarmos emurchecerão por fim as pupilas, enxutas sobre o regaço da terra; dizem que só então conheceremos a alma.



Ítaca




Helena Barbagelata nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1991. É uma artista multidisciplinar, dedicada às artes plásticas, música e letras. Participa em revistas e antologias literárias em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laureada em diversos concursos internacionais. Foi a mais jovem vencedora do “Prémio Poesia e Ficção de Almada” (Edição de 2012), com a obra “O Mar de Todos os Deuses”, atribuído por unanimidade pela Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade de Língua Portuguesa e pela Câmara Municipal de Almada. Tem publicada a obra Soliloquia (Apenas-Livros, 2013).

5 poemas de Cleyson Gomes

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Ilustração:Davi Preissel



DÉDALO

Sou
uni-
vers-
al(l)

(quando)

re-
conheço
o
meu
quintal.




MOLDURA ETÉREA

Um hades habita em nós.

Basta a súplica do instante ilusório
reprimir o andar do alívio povoado dentro...

Ao corpo que repara os dias
– sei o rumo que vou –
digo que não sei onde estou

Uma explosão inútil & caótica
vagueia do lado de fora:
os olhos de-
                    moram
na íris de um arco em repouso
                             sem triunfo

Convivo eteceteras...
Ser: vício, cio...
Convívio em si, terás?




Ilustração:Davi Preissel


IN FLUXO DE CONSCIÊNCIA

Estou
em transe
O corpo
edifica o silêncio

Meu horizonte
ao norte
é rumar vid’adentro
à morte



LIDA CONTÍNUA

Mar
       tire-o!

A imensidão do Nunca-mais
me cansa

Os ossos que me compõem
são prumos
pr’ofício.



ENIGMÁTICA

Na porta
da geladeira um lembrete:
“hoje ainda é ontem”
amanhã será que dia?

Disfarçando o advérbio
– transgredindo as horas –
e as cinzas que sobram...

... Sopro ao vento...





Cleyson Gomes (con)rompeu a existência em 1982 no arcaico município de Campo Maior (PI), mas fixou raízes na provinciana Theresina (PI), onde habita desde os sete anos de idade. É autodidata e autodidático. Ziguezagueador de hipermetropia, timidez e claustrofobia. Iniciou as faculdades de História e Letras/português, abandonou ambas. Publicou os livros "Poemas Cuaze Sobre Poezias" (FCMC - 2011) e "Aos Ossos do Ofício o Ócio" (Penalux - 2014). Também é músico, letrista, compositor e autor de livros inéditos. Cultiva como bonsai o blog “saladapoeticalia.blogspot.com”. Tem poemas publicados em revistas, sites, blogs, coletâneas, muros etc. Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis. Adora fígado acebolado. 

ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "DEVOLVA MEU LADO DE DENTRO", DE SINHÁ

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DEVOLVA MEU LADO DE DENTRO


         Sinhá é o pseudônimo de Eveline Gomes, autora de Devolva meu lado de dentro, um livrinho que surpreende pelo tratamento da poesia e profundidade com que as emoções são dispostas para o leitor. Sua unidade e transparência de material humano tornam difícil escolher apenas uma passagem que possa ilustrar a maturidade das palavras de Sinhá ao tentar exemplificar o que seria o lado mais exposto de si, usando o mote do seu título como ponto de partida.

         Provocador já desde seu primeiro verso, a leitura transversal de suas páginas tira o leitor da zona de conforto e parece indicar que para certos assuntos, não adianta cômoda ou comedida posição – nem para a leitura. Pessoalmente, esta simples decisão alternativa de diagramação, já acenou pra mim uma obra de arte.  Aquele objeto que me incomoda e me faz pensar além do que julgo ser minha compreensão de tudo. Aquilo que me desperta, atiça meus pensamentos e mostra muitas vezes o limite da expressão humana. Devolva meu lado de dentroé um mergulho ao dentro da autora, um profundo sem volta, de palavras claras e colocadas na dose correta para que a fruição de sua leitura não permita o menor desvio ou desatenção. O livrinho é feito para que seja lido de uma só vez, sorvido, tragado e cumpre magistralmente esse papel.




         A temática de Devolva meu lado de dentro envolve principalmente o terma do amor, ou se preferir, de um relacionamento. Esta poderia ser o maior problema para qualquer leitor de poesia contemporânea por si só. Afinal, o que podemos encontrar em uma autora nova que já não tivesse sido dito e explorado em redondilhas, alexandrinos, épicos e tudo mais. A motivação primeira de todo e qualquer poeta que já pisou na Terra parece ser o amor. Estaria esgotado o tema? Estariam todos os possíveis amantes descritos em eu-líricos de todo e cada um dos séculos? Não há como um leitor experiente de poesia não fazer essas perguntas quando se depara com mais um livro, ou um poema de amor. A melhor das surpresas nós encontramos nos versos de Sinhá.
         
        Devolva meu lado de dentro pode ser lido como um poema apenas, o que torna ainda mais intenso seu texto, com as páginas propondo pausas e descobrindo, trazendo à tona frases-versos (é isso mesmo que quero dizer) de enorme efeito lírico e de síntese. Como não se entender a ansiedade latente de: “a noite não me deixa dormir”? Verso este que conecta a autora a quase todos os outros artistas e acometidos da criação. Não quero nem gastar uma frase para deixar o exemplo que a noite é o período que favorece a criação o sonho e tudo mais que possa ser compreendido com sentimento e arte. Não é uma generalização, é um canal de comunicação que será entendido por muitos que já perderam uma noite por uma razão além da razão.

         Devolva meu lado de dentroé um livro em se pode abrir em qualquer página e encontrar algo como: “enchentes de dor / escreveram nos muros do meu peito. / secou. / ficou a marca / até onde você foi. / mude para outro lugar / e esqueça o endereço / da minha cabeça.” Ou ser tomado de assalto pela crueza de “no telefone curto, / o amor mudo.” Ser paralisado pela verdade de: “enxaqueca. / você e essa dor / não me saem da cabeça.” E ansiar a entrega em: “quero secar você, / do nosso suor / no meu varal.”

         Observe agora o a rápida seleta de versos/poemas que retirei para o parágrafo acima. Perceba as palavras mais simples, o substrato mais basal de língua disposto em sílabas de toda hora. Sinhá me fez pensar que esse é o material mais precioso da obra de arte e o que a torna atemporal. Em se tratando de sentimentos, e literatura mundial, o que se espera da poesia não é mais o rigor do verso, ou a riqueza do dicionário. O verso branco é liberdade almejada há séculos, mas impõe outra maestria aos poetas. O que esperamos encontrar é a capacidade de transmutar a língua em imagens amplas de significado e possibilidades de leitura. Metáforas que se expandam, encompridem o significado da língua e demarquem a originalidade da lírica de seu autor. Sem se descuidar da pausa, da musicalidade da palavra ouvida, o som da voz levando o enigma. Essa capacidade de transmutação da palavra cotidiana em poema é a marca da originalidade de uma artista, e está presente em cada página do livro de Sinhá.


         Devolva meu lado de dentro surpreende e revela uma poeta experiente no ofício do verso. De leitura rápida, anos-luz distante da superficialidade, é para ser lido e relido. A cada leitura um novo lado ainda mais profundo de nós mesmos.



*     *     *



A artista urbana e poeta Sinhá, nasceu em Natal – Rio Grande do Norte no ano de 1982. Em 2007 mudou-se para São Paulo, onde, desde então, dedica-se com paixão a pintura nas ruas. Seus trabalhos permeiam o universo feminino, cheio de força e sentimento. Em 2010, Sinhá desenvolveu um projeto grande e importante dentro de sua trajetória, o "Retratos Coletivo", no qual pintou um grande mural na lateral de um dos prédios do Conjunto Habitacional Cingapura Piqueri, na Marginal Tietê. Dentro da literatura, após participar de algumas coletâneas, Sinhá lançou seu primeiro livro de poesia intitulado: “Devolva Meu Lado De Dentro, em abril de 2012.




Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.






















ITINERÁRIO DO SOL ||| SELEÇÃO DE POETAS CAPIXABAS [PARTE 2]

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ITINERÁRIO DO SOL

introdução e seleção por Jorge Elias Neto



LEIA A [PARTE 1]




Paulo Roberto Sodré




Paulo Roberto Sodré (1962), capixaba de Vitória, tem textos publicados desde 1984; os mais recentes são Senhor Branco ou o indesejado das gentes (poemas, 2006), Poemas de pó, poalha e poeira (2009), e Guido, a folha e o capim (literatura infantil, 2010). Atua como professor associado de Literatura Portuguesa na UFES. doutorou-se na Universidade de São Paulo (2003).





Conversa com sombras

Para Lino Machado

1.
Sob a sombra da mangueira,
um rato (de si empoeirado)
fuça o sumo solar da manga
largada, à sorte, ao chão.

O chão, entregue a sua generosidade,
acolhe a sombra, o rato, a manga,
e o pássaro, repentino na paisagem
desarmada, estranha. E fecunda.


2.
O rato, esquecido de si
à luz indócil do meio-dia,
não sente senão a bondade do fruto
suave sob seu escuso olhar corroído.

O que vê da manga ninguém saberia.

Colhe o fruto sem dar por isso,
mas lépido, ao som de passos,
retorna à ausência de luz.


3.
Filigranada em sombra,
a mangueira permanece,
-como o chão, entregue
à ventura de seus frutos
à mão, à boca, à sombra.


4.
Do escuro cavado à sorte,
espreitam o rato e sua poeira,
inertes no cheiro acre
que só a sombra dócil,
o chão
e a manga
ignoram.



*    *    *
 


Oscar Gama Filho




Oscar Gama Filho (1958) nasceu em Alegre (ES). Publicou seus poemas em De Amor à Política, 1979; em Congregação do Desencontro, 1980, em O Despedaçado ao Espelho, 1988 e em O Relógio Marítimo, pela Imago, em 2001. Publicou ainda História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico.



O amor no futuro do presente



Pois eu, vidente do amor que virá,
Sei que não tenho presente
de onde possa alcançar o futuro do presente,
Sei que não posso alterar o meu fado,
E sei também que posso alcançar
apenas o futuro do passado.

Estou partindo sem coche.
Há muito, desde ontem, que estou a pé
partindo até hoje.

Com um pé no passado em que fico,
Parto para o presente que renego
e para o caminho hemorrágico
de uma brisa feita de pregos.

Estou partindo à força, sem que haja passagem.
Amanhã, se você me procurar, amada do futuro rico,
Terá de gastar três dias de viagem
para chegar ao passado em que fico,
Para chegar ao passado em que fico sem nós dois.
Mas creia que, em três dias de viagem projetados para depois,
Não se acha aquele que está preso ao passado.

E eu, que um dia amarei seus lados,
Estou cercado pelos meus pés no passado e no presente,
Um rei preso que se ressente,
Estou cercado pelo meu próprio corpo,
Prisão privada que os limites do rei torto demarca e retém,
Um próprio corpo só, em que não existe mais ninguém.

E eu, que um dia a amaria,
Estou cercado pela prisão quente                                                                
que meu corpo estende
no tempo que meu corpo fia.



*    *    *
 

Marcos Tavares




Marcos Tavares (16-01-1957)  é   natural  de   Vitória (ES).   Ficcionista, publicou No   Escuro, Armados (contos, Ed. FCAA / Anima, 1987) e  GEMAGEM ( poemas, Ed. Florecultura, 2005). Participa de publicaçõesoutras. Eleito em 2011, ocupaa  Cátedra  nº15 da  Academia  Espírito-santense  de  Letras (AEL).




RE /TALHOS


Asmeninas choravam  e  choravam
e  eu  punha   colírio   nos  olhos.
Hámuito  perdi  meu  coração
entre   um  amor  e   uma  rua.


Orelógio  está   quebrado.
Oemprego,  difícil.


Aindaacabo   num   hospício,
ou  em   Faculdade   de    Letras.


Omundo  não  é   só    palavra.
Omundo  é  redondo   rodando.
Eos   homens   continuam  quadrados.


Opai  queria-me    engenheiro,
depois   vieram   outros   filhos,
e   fiquei   sendo   o   mais   velho.


Nãoagüento   mais   essa   morte.
Tenhomesmo   é    vontade   de   viver.
Umdia    hei   de    ser   um    homem.


(  Junho / 1979 )




OS SETE DIAS


Noprimeiro    dia,   visto   que   estava  escuro,
muito   escuro, quase   trevas, acendi  a   lâmpada.


Nosegundo,  senti  a   expansão   das  águas 
e    providenciei   conserto   no   encanamento.

Noterceiro, semeei    alface,   reguei    as    plantas,
colhi   os    frutos    segundo    as    espécies.


No     quarto,fui     tentado   a     dormir,
então, resoluto, serrei    a    cama   e   a    janela.


Noquinto   dia,  soltei    os    pássaros,
aos    cães   dei   de   comer   e   de    beber.


Nosexto,  depositei    o  lixo   recolhido 
aos    cinco    cantos   da    casa.


Nosétimo, exausto, deitei-me   ao   chão,
e, vendo  o   quão   isso   era   bom,  ali    descansei.


Enão  sou   ---- obviamente  ----   Deus   algum.


(   30-08-1982 )






                                      POLUIÇÃO




CO      COCOCO
tossetossetosse
CO      COCOCO
tossetossetosse
CO      COCOCO
tossetossetosse
CO      COCOCO

tosseCO
tosse CO
tosseCO
tóxico
monóxido
carbônico

ó
t
bi   o




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LEIA A [PARTE 1]




Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR AQUI


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