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3 poemas de Marcos Siscar

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Ilustração: Ula Kapala


JUNHO


alguns voltam às ruas outros saíram agora
cada um se esfrega como pode
mas as bandeiras antes portais da situação
hoje são pedágios que não queremos mais pagar
o rei morreu viva o transporte! o transporte é livre!
revolutions are going to be easier to start google said
but harder to finish a todos doravante
a carona do coletivo a cada um entretanto
o estorvo de tirar a própria foto



CAUSA PERDIDA

I.

Um inseto queimado de tanta luz se move na lápide branca da sacada. Observo seus gestos, tão lentos, tão brancos. Passo meus dias a observá-lo. O sol da manhã nos ilumina, tudo em torno está banhado de fosforescência tépida. Nenhum suor, nenhum vento, nenhuma ameaça de tempestade. Só o inseto se contorce, frágil, insignificante, sobre o piso. Alguém me chama, de longe. A panela está no fogo, mas a urgência se perdeu. O caminho até aqui é longo, só o inseto agoniza, sem drama, sem fome, sem símbolo, protegido pela minha atenção e pela minha diligência. Olho para o inseto indefinidamente. Não há desespero, nem esperança. Apenas sua agonia nos mantém vivos. O rastro de suas entranhas fosforescentes. Sua lenta mumificação solar. Quando a gata, predadora de causas perdidas, perigosamente se aproxima, encaro-a com faíscas, cheio de alegria, arrepiado por uma mal contida feracidade.



II.

Um inseto agoniza ao lado de minha mesa. Eu mesmo o envenenei por legítima defesa, por precaução ou talvez por hábito. Não quero encará-lo, agora, enquanto agita as asas, em decúbito dorsal. Há algo de infinitamente indecente na morte. Desvio o rosto e, se fumasse, acenderia um cigarro afetando indiferença. Mas ele se agita desesperadamente. Qual a dose certa de veneno para nossa tranquilidade? Tento virar a página de um livro, procurar um objeto perdido no outro canto da sala, mas do meio do silêncio, de tempos em tempos, ele vibra as asas velozmente. Como se me chamasse. Seguramente me chama, usando o estertor da sua espécie. Talvez sofra. A morte do outro demora, mas me chamando já está, bem aqui, onde eu mesmo moro. Observo seus gestos escuros. Hesito entre a comunhão das espécies e o indulto da indenidade. Chego mais perto, fico agitado. O sol da tarde nos castiga, o ar está parado, minha cabeça lateja inalando um resto de veneno. O inseto movimenta suas patas, suas asas, duas a duas. O dia não termina nunca. Nu como ele, em sua piscina de sol, vou me queimando de tanta luz.



MARCOS SISCARé poeta, tradutor e ensaísta. Publicou, entre outros, os livros de poesia Metade da Arte (2003), O Roubo do Silêncio(2006), Interior via Satélite (2010) e Cadê uma Coisa (2012). Tem livros traduzidos e publicados na Argentina, na França e na Espanha. Participa de antologias nacionais e internacionais (Argentina, EUA, Portugal, França, Espanha, Bélgica, Alemanha, Hungria). Traduziu autores como Michel Deguy e Jacques Roubaud. É professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, tendo publicado, entre outros, Poesia e Crise (2010) e Jacques Derrida : literatura, política e tradução (2013).


SUIÁ OMIM | 5 POEMAS

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Cy Twombly - Petals of Fire, 1989.



lomi

cocei teu sono
enchi três potes
puro arco-íris
desaguou pro texto
tombou no bombo
e nele repicou
sobraram três potes
vai existir no mundo
recipiente para tudo?




brilho

o impulso
encontra o lá
e o cá
no porto
o transatlântico
negro
chegou cedo
borbulhaste?
borbulhaste?
omitiu-se
trocando
olhares por
palavras
engasgadas
fortalecidas pelo
engenho dos
dedos
na nuca
(nunca mais faça)
implorou
mudo
muda
instante sólido
barreira
vincula
lua
de meio abraço
entrelaço
foz de purpurina negra




traqueia

a dobra agonizou
pro-teve-se de manifestos
o ócio indumentou
fermento
prisma translúcido
não viu
piu
pio
todos os homens do reino
todas mana, pense!
enquiskilhou-o no papel
comprimiu o novelo
calor sem tamanho
ensimesmou na sub
somou-se
ponderou-se
escapou-se da jetividade
tropeço que não cai
lovestory
não no final
no durante
trépido soluço
dos corpos
dos copos
espumantes




notório

para reginaldo saddi (in memoriam)
começou xingando a estagiária
da lama iria
desafirmar
ainda que lhe 
valesse mil repetições
virou mesa
e falou alto  
cantou em ira maior
pleiteou defesa
agiu
com veemência

vasculhou caixas-pretas
(nada mais que crânios)
alheias
arrependeu-se
suou
capitalizou

até que amarrou na sombra
um enorme
cavalo de madeira
e instalou-se
ali
na casa dos mitos




artista do sono

ê vai
século
e quartinho digerindo
modernismos

do banquete-espetáculo
muitos retalhos
retaliações
metamorfoses brutas
mato a dentro
vestígios de fogo
na lua do dia

não há sono
no pós-sexo
um desaba
outro acende
um livro
desperta
de vez
a fruta mordida
no assalto
à geladeira
quem sabe a matéria
mais chata do
único jornal
recente
não oferte sono

quando a própria ida ao jornaleiro
torna-se um sonho
cotidiano
(o jornal recente
de cinco dias atrás)

na viagem
olho no trecho aberto
cerrado
estrada perfeita
as a long way
um som
auscultado
very dentro
corpo-mente
agentes diretos
projetantes
debaixo da cachoeira
silêncio
o som desnudo do fogo

leve a fita métrica
sempre que for
à praia
junto a uma bússola
naturalmente
o mar pode te chamar

meros autoenganos
as tentativas de fugir
da (in)sônia
tal qual
funcionário do circo
que mantém-se
acordado há 208 noites
mais precisamente
sem
dormir
bailando
traçando livros
banhando
escrevendo terrorismo
ou mordicando
frutinhas
pequenas

artista do sono
pois que
a fome
lhe cabia
nos olhos
ainda
iluminados
sorridentes
sob uma tenda
de maracujá
infantes formigas

vem de dentro
a latência de pular
da cama
misturar-se
ao vento
quem sabe
uivar diante
dos espetáculos
da lua
&
do nascer
do sol
sustentar o estandarte
do cordão dos errantes
poetas
almejantes da dormência
do não dormir

agora
jogado
no futon
e não
numa
cama de pregos
sonha com
o oriente
invertido





Suiá Omimnasceu no Rio de Janeiro (RJ). É poetisa, antropóloga e professora da Universidade Federal do Tocantins. Atualmente, prepara a edição de seu primeiro livro de poemas.

ELISA ANDRADE BUZZO COMEMORA 10 ANOS DA PUBLICAÇÃO DE "SE LÁ NO SOL"

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11 POEMAS DE "SE LÁ NO SOL" (7Letras, 2005)



Renascimento


Criei-me santa,
mas sou perversa,
galho de mil pontas.




Lei da ação e da relação


Minha vida passou por cima da tua
rapidamenterolo-compressorroeur
uiuabriuatropeloumorreuradicaleu

mas quem ficou estralhaçada fui eu




Das flores que se nascem


E se arrancam... roubadas
E se dão... usadas
E se jogam

No mesmo jardim




Gato lambendo a pata
passando no rosto
orelha ao avesso
morde consecutivamente a patinha
lambe a barriga
pequena língua rosa áspera
brilhantes pelos macios úmidos
Venha cá...
dê-me seu abraço quente...
Mas vai embora,
Quer dormir, descansar,
distante de mim.




A casa


Enfim encontro
aquela felicidade
no refúgio da casa
de plantas verdes
e gatos esparramados,
coisas banais,
mas de verdade.

Como um pássaro discerne
entre pular num galho ou cair no chão?
entre bicar um alpiste ou deixar-se caça?

Então posso escolher
deitar ao sol da manhã
de barriga vazia
e mente tranquila,
alisar uma cabecinha
sem compromisso
de ser boazinha.

Corro pra debaixo da saia da mamãe.
Papai, contente vou-o beijar

e a casa vai desaparecendo na esquina.




Era


Ele imaginava o terrível drama que se desenrolava perpetuamente no universo, e o seu coração estava repleto de piedade. Totalmente afligido pelos inúmeros males que haviam padecido os que viveram antes dele, vergando sob o peso desses vãos esforços acumulados no infinito dos tempos, o zartog Sofr-Aï-Sr adquiria lentamente, dolorosamente, a íntima convicção da eterna renovação das coisas.
Júlio Verne (O Eterno Adão)


Sob meus pés
circulam gentes
de outras eras
afundadas na terra
que já foi mar.
Em minha mente
segredam sombras
distantes montanhas,
mulheres-moças
reacendem num terral.
Fundos de oceano
- baú de viração.

Sou fóssil sou dócil
mas viro carvão
se solta no ar

Que venham as enchentes
os barros me encerrem
eu quero afundar
- caixa de metal
(me encontrem mais pra frente)
- garrafa estrelada,
eu vou ficar luz.

Se continua chovendo
nem cresce mais verde,
aos poucos se afoga.
Rio doce me abrace
e me solte noutro lugar




Viagem


No movimento da montanha azul
Seu rosto embebido em sombra e luz
Pude enxergá-los tão de perto, desfocados
O vento correndo liso pelo seu cabelo

Na montanha mausoléu

Naquele pontinho brilhante
A morada do ermitão

Aquele outro, imóvel
É a casa do pastor

Esses dois aqui
Não me enganam
Se escondem de mim
Quero saber o que tanto olham
Na noite de vidro

Se chover a montanha se desfaz
Em água nos meus olhos

No movimento da montanha marrom
Meus cabelos brincando com o ar
Vi seus olhos brancos de ternura
O calor quente do teu abraço me fez criança
Tive vontade de virar música
E entrar no teu ouvido




Sem açúcar, café


Naquela mesa de canto
um menino magrinho
sentado, quieto, de esguelha
toma seu chazinho gelado
enquanto passeia o canudo
ponderando as leis dos fluidos.
Aquele ali, caso não saibam,
vampiro júnior, sapato social,
camiseta preta, camisa de lã por cima,
ar despreocupado e ausente,
tem o mundo por dentro dos dentes.
E caso o encontrem, carinha lisa
de 17 aninhos (mas não tem)
e queiram sentar-se à mesa,
não se façam de rogados,
um cafezinho, cappuccino,
mandem lembranças minhas
que o menino é sorridente
e estou com uma baita saudade dele...




Bornel


As esquinas
não tem bares sujos
de homens perdidos.

Os assassinos são tratados
com tamanha piedade
que já se esqueceram
de um dia terem matado.

As leis estão nas mãos e nas cabeças,
consuetudinárias.
É um país às avessas
das modernas democracias.

Que os jornais não o publique
em caderno de mil folhas
com extravagâncias de mapas
gráficos e fotos coloridas.


Bornel é uma ilha afastada,
perdida demais para ser achada.




América


É preciso amar rapidamente
ler todos os livros interessantes
pintar os quadros com urgência
transformar toda farinha em pão
registrar todos os sentimentos

antes que as cabeças sejam cortadas.




Se lá no sol...


Deitada numa roda macia de luz,
vou tocar a lira perdida dos deuses.
Não me venha dizer que é sonho, mero engano,
porque a terra subiu até o cimo branco,
já se entranhou nas nuvens, não para de crescer.

Se lá no sol me faço
Lá, me rendo, se sou





*    *    *




Elisa Andrade Buzzo (São Paulo, 1981). É formada em jornalismo pela ECA-USP. Estreou na literatura com Se lá no sol (2005), sendo seu último livro de poesias Vário som (2012 [leia poemas aqui]), finalista do Prêmio Jabuti 2013 na categoria poesia. Participou das antologias Poesia do dia: poetas de hoje para leitores de agora, Roteiro da poesia brasileira: anos 2000, Hiperconexões: realidade expandida v. I (leia aqui) e II, É que os hussardos chegam hoje, dentre outras publicações. Foi coeditora da revista de literatura e artes visuais Mininas. Publicou a antologia de crônicas Reforma na Paulista e um coração pisado (Oitava Rima, 2013) e desde 2006 mantém uma coluna dedicada à crônica na revista eletrônica Digestivo Cultural.








THIAGO PONCE DE MORAES - POEMAS INÉDITOS

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Cy Twombly - Summer Madness




MEU OLHO SE ABRE como ferida,
Abre-se como tua boca incerta,
Porto íntimo em tua fronte.
Abre-se, à faca, em lágrimas,
Abre-se em fenda, chaga impossível,
Abre-se de tua cicatriz, como um livro,
Abre-se como tuas pernas
Que me apertam inconsútil
Até que cedo e me achego cego
Em derradeiro afã
À fonte que ao se dar
Me suga por completo,
Que me sutura vivo
Da noite até de manhã cedo.





TENHO PENSADO no fato de haver
Neste mundo astronautas e dispersos
Maestros, poetas, relojoeiros.
Tenho pensado talvez que no fundo
Ourives, alfaiates, sapateiros,
Raros afinadores de piano
De cauda, afiadores de facas,
Domadores de leões, perfumistas,
Lixeiros, transformistas, xamãs, mímicos,
Piratas – corsários e bucaneiros –,
Tecelãs, coletores de cadáveres,
Tocadores de realejo, lambe-
Lambes, carpideiras, pajés, arqueiros
Etc. etc. e tal

Sejam todos o mesmo vasto ser,
Sejam todos o mesmo vasto nada.
 




INTOCADOSpela manhã
E ainda não tocados pela tarde,
Seguem como grade escura
No cárcere em que ardem.

Nesta prisão furiosa desde o alto,
A melodia não se ausenta,
O dia é exato (e os remos
São espadas trácias).

E o mar, se as ondas são lentas
Ou audazes, mantém-se cárcere.
E o mar, terso ou tenso,
É um lar em viagem. 




RETORNO A TI pelo indecifrável
Lastro das têmporas.
Voz de ninguém,
Outra vez,


Poços.


Penso adivinhar os teus passos
Em maio.
Não há pressa
Nem estrelas

No que ouço,
Só os longes dormem aqui.

Lanço minha corda ao fundo
E peço qualquer imagem
Nesta noite.

A corda não retorna
Nada.


Passas. 




AO ACASO

Em profunda fonte soam tuas estrelas.
Noite silenciosa e cinzas feito um corpo esvaído
Sobre o qual se erguem os dias do futuro.

Teus sonhos segues a cidade que são,
Íntima e adiante, quanto mais lenta fores
Rumo a tua morada ou Ítaca.

Não importa o teu chegar, mas o ir pela poeira dos dias,
Pelas aporias e flores ao fundo de uma tarde violenta,
Pela ideia que tens da tua chegada em euforia.

Profundo é o sofrimento do mundo,
Em manhã ou noite luminosa,
A morte e o sono irmãos.





Thiago Ponce de Moraes é poeta e tradutor. Os quatro poemas iniciais (sem título) são inéditos em livro e devem integrar seções de Dobres sobre a luz, nova compilação em lento progresso. O poema Ao acaso foi publicado no livro De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010).

4 poemas de Abiatar Machado

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Ilustração: Amedeo Modigliani


Poema para Modigliani

A cebola me entontece quando imagino
as mulheres dos seus quadros
- sujas de corpo e Nouvelle Vague.
A cebola se incomoda com o nosso encontro,
pois estou espantado com suas mãos
colhendo as raízes visíveis do espírito.
Modigliani, o cubismo te pertenceu
vestido de mulheres nuas.
Não todas as mulheres do mundo
mas as expressões possíveis de um único nu.
Modigliani, a subjetividade é uma cebola
me envenenando as margens do tempo.
Uma cebola atávica como as crenças humanas
um ardor incomensurável gesticulando
uma inércia nas ruelas do meu sentir.
Ela sabe do meu amor pelo seu verbo extemporâneo
e da minha admiração  pela sua dança
em torno do retrato de Balzac.
E sabe o segredo do vazio
e se ergue como se tivesse olhos.
A topologia arqueológica da sua arte
me encontra através desse bulbo fisiológico.
Invadido pelas suas camadas etéreas
escrevo minha experiência dos seus quadros
- cartas invisíveis para um magnífico silêncio.
não somente a beleza feia da paixão,
mas a nudez dos rostos e os descaminhos.



o-tempo-vaga-demente
  
O tempo vagava demente naquele tempo.
Era um abril moreno, quase inverno.
Minha sombra desejava esquecer o enigma.
O enigma esvanecia minhas pálpebras.
Íamos pelo mato,
eu, o Tadeu e a meretriz.
O sol era o nosso edênico concubino.
Com sua reza, a moça nos servia de dentro da mais desvairada dedicação.
Tadeu olhava aquele dorso
Sua tez e seu suor.
Da sua vida na estrada
Tadeu tinha aprendido uma alegria pesada,
curiosa, que não agradava qualquer vida de gente.
Desconhecia a pseudo-humanidade
Sabia esse conhecer humano
que vive sem preconceito
no torpor dos corpos e das nuvens.
A puta sorridente
apresentava-nos  seus segredos e sua cruz,
tinha nos seios um tímido desdém.
Tadeu sorria
enquanto meus lábios
eram asas infernais
abrasando nossas sombras
aquelas que  queriam trepar
e se perder de avencas e sorrisos.
O espaço estava completamente avesso à sua conduta normal,
aprendera com o tempo os gestos de um enigma tresloucado. 
No Morro dos Ferros as putas não adormecem nos quartos
As putas se desfazem nos braços da chuva.
Tadeu habitava com desenvoltura esse jardim árido chuvoso
A vida não terminava nunca
A meretriz rabiscava o enigma no meu caderno
Naquele tempo escrevi o prazer do texto na reza das putas
Escrevendo me deparei com uma inesquecível incongruência de vozes.



A experiência do poema

O poema tateia meus desenhos
Mãos lavradas, gélidas, fumegantes.
Letras do meu pretérito,
escritas no porvir.
O poema se torna meu espírito
aquele que não existe
mas me aprisiona na superfície do céu
enquanto símbolos caem pelas ruas no mês de março.
Frutívoro, ele se alimenta das raízes do corpo.
Ama o balé do sublime
e  experimenta a incongruente beleza da terra.
- Uma nevoa de nadas perguntando meu nome -
Eficaz elabora minha persona pornográfica:
- Tão bonita, minha namorada, com o poema na boca.
Elevado, me elogia lentamente.
Sou sua elegia eloquente, sorvida na penumbra.
Mas se temos um pacote de balas
ele me embrulha o rosto
exibe com maestria meu sorriso bobo.



Lupanar

As garotas podem ser amadas com incenso e música tântrica
Podem até dançar um funk para o meu sexo que não deseja o descanso da banca de frutas até interior da tarde. 
Elas se transfiguram em um mosaico de explosões eróticas enquanto meu corpo é vendido a varejo no balcão da mercearia.
Úmidas deidades,
Elas se afogam em cerveja
e retorcem o meu corpo como se fossem o ócio.
As garotas me provocam
e se revelam pouco a pouco para meu nariz em chamas.
O barulho que elas ouvem não oferece sentidos ao meu corpo.
Elas dançam cachorras de plástico
Automóveis escatológicos.
Aluadas, elas dobram tudo e não se arrancam de mim nem mesmo quando estou velho e sou comensal no ano de 2013.
No momento em se deparam com a alameda cruel dos meus desejos
não sentem vergonha da libertinagem nos meus olhos.
Para elas é preciso escrever um poema biodegradável
Amá-las como se ama um evento em nossa pele, passível de se tornar um barco ou anuncio de sabonetes.




Abiatar Machado é de Caratinga, Minas Gerais. Estuda filosofia e escreve poesia. Mestre em  Estética e Filosofia da Arte pela UFOP e doutorando em Filosofia pela UFMG.  

Paisagem que devora homens. (por paulo guicheney)

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Acordar e ter um nariz enfiado no cu ou precisar da leitura de um dos Evangelhos, aquele no qual Cristo morre sujo como um cão, feio feito um deus que perdeu o fígado em uma briga de velhinhas – Ah! Sempre as velhinhas!

“Aonde você vai, amor?
“Sair”.
“Certo. E quando você volta?”
“Não sei. Cedo, talvez. Não demoro. Não se preocupe, querido. Vá dormir.”

Sim, vou dormir. E nessa noite tenho uma cabeça a mais. E sabemos das bombas. E de como ver o mundo em preto e branco. E entendemos que meu Traumraum evita que eu te estrangule como me ensinaram no judô há tanto tanto tempo que me esqueci already. Sabe, Alice? Sou um homem que perdeu as pernas em um bombardeio de pianos.

Goyastadt é um Lager às avessas.
Rumor que desenha vozes profundas.

Alice, Alice. Esta é uma paisagem que devora homens. Do 13º andar voam moças todo o tempo.
E um BOM DIA em coro de prostitutas não pode ser sinal de felicidade.

“Vamos ter um filho?”
“Vamos. Quero um nome bíblico.”
“Que fofo! Qual?”
“Barrabás. Ou Pilatos.”

Padecei entre os porcos e encontrai a felicidade! Padecei, homens! Quando Deus nomeou os animais todos teve a Fúria entre as pernas. E deslizou entre a terra e o mar. Cansou-se. Acreditei nisso. No Modell Wien. Quando você disse, I can fix it. Não, Alice. Você não pode. Ninguém pode. Quando precisamos de outro estômago para abrigar o álcool nosso. Onde Deus.

Há algo errado comigo, Alice. Algo químico.

“Você me deixa cansada. E tudo em você é tão pesado. Você reclama todo o tempo. E sofre. Eu quero ir embora.”
“Mas você queria. Você disse isso. Eu me lembro.”

Quando um novo amor é a mesma coisa. Quando um novo amor é sempre a mesma coisa. Quando um novo amor é um trapo estranho em um caixa de remédios. Quando uma caixa de remédios voa voando pelo quarto. E tudo para. Estou onde mesmo?

“Eu sou sensitiva, não consigo lidar com esse seu pessimismo, com essa sua energia.”
“Caralho, Alice! Que porra de energia?”
“Falta amor em você. Você não ama nada.”

Tenho um prego na mão esquerda. Eu cresci em uma ferragista, percebo de pregos. Quando criança, antes bem antes do Protektorat, havia amor no mundo, mas havia também meu pai. E meu pai era Senhor de uma violência sublime, fina. Dessas que dão de comer aos monstros. E assustam os assassinos.

Sinto o Ar. Sou este homem, Alice. O que você não entende é que estou bem aqui. No final, no apodrecer dos corpos, Sabbath está certo: não vou sair daqui porra nenhuma. Esta é minha casa.
Valium é o nome de um rio.

***

*trecho de “Goyastadt”.




O conspirador no Forte do Touro

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1.
no espaço infinito
infinitos globos e nenhum canto
de escuridão, solidão
imobilidade.

2.
são jorros de gás rosa flamejante,
eclipse solar total, manchas solares
varridas por tempestades sobre superfícies imensas
e um vislumbre de núcleo de estrela,
 como relativa obscuridade.

assim, não há mais quimeras.

3.
sol em declínio.
decompor-se
ao que deveria ser: água.


4.
vocês desprezam profundamente os cometas
brinquedos miseráveis de planetas superiores
que ásperos, separam-nos em centenas de formas,
 inflam-nos com fogos solares e
finalmente, jogam-nos fora em farrapos.

5.
um cometa vago exalava perfume
cujo nada cansou a língua que procurou defini-lo,
e iria desafiar a força que rege o universo!

6.
cometas não incomodam ninguém
mas todos os perturbam,
porque são os escravos humildes da atração.

7.
evitando passes fatídicos
iludindo as grandes aranhas das planícies zodiacais, 
o cometa das alturas polares derramando-se sobre o sol,
 e prontamente circulando em colunas imensas, sob fogo inimigo.

8.
Os mortos são reconhecíveis nesses lampejos fantasmagóricos em que as luzes vitais das estrelas se refletem.

9.
não há caos,
nem mesmo naqueles campos de batalha
onde milhares de milhões de estrelas transformam
os mortos na vida ao colidir
fixando-se em chamas durante séculos.

não se faz distinção entre o que parece estrela
e o efêmero. Que são esses bilhões de sóis?
um dilúvio de brilhos.

e esta chuva fecunda o universo.

10.
planetas extintos
indefinidamente seu cortejo fúnebre,
reforçado a cada noite com a chegada de novos funerais
como as luminárias de um show de luzes.

11.
universo eterno, estrelas perecíveis,
cada centímetro do chão que pisamos tem partes de tudo,
mesmo o chão sendo testemunha muda
e não suspira uma palavra do que lhe foi dado contemplar na Eternidade.

12.
cada um dos nossos corpos
é filho de uma terra,
e cada terra é o corpo de outra terra,
reais.

somos parte da cópia
e não falta nada.

13.
o passado consumado pertence a nós.
o futuro, somente quando o mundo morre,
cada segundo traz nova bifurcação,
o caminho e a estrada que poderia ter sido.

seja o que trouxe a existência de nosso próprio planeta
e a conclusão que já viajou milhares de milhões de vezes.

14.
assim possui corpos de casal completo,
bem como um número incontável de variações que se multiplicam
e sempre representam a sua pessoa
mas que pedem apenas pedaços de seu destino.

15.
estrelas pobres!
seu papel é apenas sacrificial –
criadoras e servas do poder produtivo dos planetas,
a sua carreira ingrata e monótona como tochas.

ter o brilho que está por trás deles
e esconder as realidades invisíveis em que vivem.

cem corpos simples são responsáveis por todos eles
e eles estão cegando chamas agora e um dia serão escuridão e gelo
que vai ter volatilizado a procissão de suas rainhas numa nebulosa.

17.
toda pessoa é infinita e eterna através de outros ela mesma
de sua idade atual, de todas as suas idades, a cada segundo, ao mesmo tempo,
ela tem milhares de milhões de corpos que estão nascendo, morrendo

de segundo a segundo, desde o nascimento até a idade da sua morte.

Em nome da árvore - Lucas Puntel Carrasco

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Key Of Tree,Elisabeth Coursin


Na esquina da rua Defensa com a Bethlem, na Plaza Dorrego em San Telmo, entre a loja de sombreros e o portenho que expõe livros na praça, um artista de rua me vendeu anos atrás uma pintura que mostra, ao fundo, o horizonte de prédios de Buenos Aires e, em primeiro plano, uma pessoa em pé no parque. No lugar da cabeça, a copa de uma árvore.
Recentemente em Ajapi, observando a paisagem de um sítio, fixei o olhar em uma árvore frondosa e lá fiquei, entregue à tarefa de escaneá-la desde as raízes, subindo o olhar pelo tronco e alcançando a copa, cujos galhos se ramificavam até as folhas.
Pela semelhança do formato, comecei a imaginar que um cérebro em tamanho ampliado se encaixaria certinho na copa dessa árvore. Além do formato, também associei as funções cerebrais às funções arbóreas de conduzir e distribuir os estímulos nervosos (a seiva) do corpo (o tronco) para os neurônios (as folhas) através dos nervos (xilema e floema). Imaginei ainda o inverso: se uma árvore em tamanho reduzido caberia em nossa cabeça. Então tive esta epifania: as árvores são cérebros.
Outro dia me deparei com uma ilustração do século 18, “Artérias do corpo humano”. Talvez devido ao traço do nanquim em bico de pena ou quem sabe fosse intenção do ilustrador mostrar todos os vasos sanguíneos de uma pessoa, seja como for, o primeiro impacto dessa imagem para mim foi que o corpo humano parecia, por dentro, uma árvore.
Arteriárvore, arvorérebro, cerebrárvore… As árvores merecem sercelebradas.
Do brotinho de planta à perfeição dos corpos, das ondas do mar às órbitas planetárias: parece que o movimento evolutivo de tudo segue um mesmo padrão de fluxo em espiral.
Na música “As árvores”, Arnaldo Antunes diz que elas “mamam do sol pelas folhas”, “chovem depois da chuva”, são “cabeludas”, “crescem como as pessoas mas não são soltas nos passos”, “ficam paradas”.
Já no segundo volume da saga “O senhor dos anéis”, quando os hobbits cruzam a Terra-Média em direção a Mordor para tentar destruir o Anel na Montanha da Perdição, no caminho eles acabam encontrando os ents, árvores humanoides que andam e falam.
Assim como na pintura de San Telmo, começo a imaginar como seria encontrar um ent em plena cidade. Ou seja, uma pessoa com cabeça de árvore caminhando pelas ruas.
Eu seria uma dessas figuras. Arvoro-me em ser arbóreo: eu queria ser uma árvore.
Se assim fosse, de qual espécie eu seria? Com qual tipo de árvore-totem meu arquétipo simbólico se identificaria? Um baobá? Um ipê? Uma paineira? Alguma árvore frutífera? Uma das figueiras de são Benedito? A árvore que uma vizinha cortou porque maritacas cantarolavam na sua janela? Ou aquela outra que derrubaram pois minhas raízes abriram o concreto da calçada?
Se dividimos o mesmo planeta com as árvores, por que não podemos dividir a mesma calçada?
Por mim, o mundo seria só de árvores.Na escala evolutiva, seria o fim dos humanos. Noves fora, é a redenção do planeta.



Lucas Puntel Carrasco


5 poemas de Catia Cernov

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Ilustração: Anja Millen


Akenaton

Desce de suas esferas akenaton
Não somos mais servos dos anjos
somos amigos dos astronautas
e dos cavalos qe pastam na chuva

servos serão os qe seguem akenaton
senhores, os qe se creem akenaton

por nós mesmos geramos akenaton
e toda sua hierarqia de luz
o medo do mundo de cima
(como se aqela luz não fossemos nós próprios)
medo de voltar pro mundo debaixo
(como se não devêssemos sujar as mãos de terra)
Tudo é nossa casa
nosso jardim nosso lixo

e por nós mesmos teremos de destruir akenaton
teremos de ser os matadores de anjos?
Pistoleiros santos?

As estrelas cadentes não são raras
Raros são os qe sobem a montanha
pra comer fagulhas do universo

Desce de suas esferas akenaton
vem conosco tomar seu cálice de vinho
amar os cavalos qe pastam na chuva
e fumar a neblina das rodovias

deixe qe os beijaflores
guardem os arcanjos
e venha nú, 
porqe aqi em nosso jardim
as flores
são sexos abertos



Marcha dos Girassois
  
Olha Emily, como marcham os girassóis
Parecem os soldados do agronegócio
Olha Emily, como dançam as papoulas
Parecem as putas tristes dos outdoors

Ve, quanto agrotóxico
Pétalas de veneno
Folhas maquiadas
Que triste, Emily!
Eles não beijam as borboletas
Elas desconhecem o louvadeus

Olhe lá, Emily, um beija-flor de sucata!

Em cada vidro de perfume há um genocídio de flores



Ilustração: Amja Millen

  
O Beijø de Juana DǞrk

Puseste saliva nɐ bocɐ do soldadʘ, Juana Dдrk?
Deixaste t3u mel d
ϵ luz no céu da bФca delэ?Ǝu sei qe foi tԑu aq3le beij, JDark!
Ainda ont
ԑm eu vi o sФldado deseʁtando
Se unindo aos profэtas & vagab
ndos
Ma
chando ɔom os jagunços sΔntos
E ©onspirando entr3 os an
ʉrkistas
Komo foi qe b
ԑijou a boca de s3u assassinoȻom a doçura do ɐmor ƌo mundo, JD4rk?
Qem t3 deu e
ϨϨe koracão d koragem?
É Blake, o anjo qantiko, o s3u guia?
Pois salvaste 1m soldΔdo
Da mo
ʁte sэm luz!
Vê aqel3 moço qe vai lá
A kaminho d4 luz
Com girassóis nos olhøs
Ǝ koracão purifikado?
Poys foi el
ԑ  tu beijaste, JDɐrk!!


  
Daime Blues

Daí-me noticias do mundo de lá!
Daime noites azuis
Daime os homens pretos de terra 
E dai-me os homens azuis das esferas celestiais...
Quero tudo, embora não deseje nada.
De-me, Antonio Conselheiro, tardes de guerra
Daime, mestre Irineu, noites de chuva
Sobre a floresta encantada
Os cavalos tristes que comem as ervas alegres
Give-me, Bob Dylan, seus versos de luz embriagada
Daime todos os dias
O konhecimento silencioso da mente
Não me negue todas as coisas do mundo
Daime o trabalho triste dos pescadores
Daime o pensamento árduo dos filósofos
E livrai-me de mal dos senhores da guerra
Que caia sobre mim o suor sagrado de seus filhos da terra
Daime o ócio criativo dos burgueses
Daime as maquinas que corroem meu fígado de operário
Daime as dores e medos do mundo
Let-me, Lenon, um “dont let me down”!
Daime os dias virgens e as noites de tesão
Daime as celas de liberdade, Sr. Thoreau!
De-me Baco, do sangue da uva
De-me Alice Sartre, o seu mais precioso delírio!
Darma, Sidarta, sua mais nobre verdade
Daime um copo de vento
Pra que o tempo seja um intento
E que meu medo seja apenas um breve evento
Daime quantuns forem as moléculas do espírito
Daime santa paciência
pra suportar tanta luz!!!



Hai Kais do Purgatório

O deus qe há em mim
Qer comer o deus qe há em ti
Kamastrê!





Catia Cernov, escritora nômade, filósofa orgânica e produtora independente, vaga entre as cidades com seus livros de poesias e também ficção científica.  Autodidata, desertou á Academia, e mora num universo onde “É permitido delirar!” Tem 46 anos, 3 filhos, e mora em Florianopolis SC. Seus textos, ensaios libertários, contos, ficções, poemas, são fragmentos de seu universo em expansão. Ela mesmo escreve, edita e imprime seus livros, pelo seu selo Cernov Produção Independente. Já publicou na Revista Caros Amigos, Edição especial Literatura Marginal; publicou seu primeiro livro “Amazônia em Chamas”, contos, pelo Selo Povo, do escritor Ferrez, de São Paulo, através da editora Luzes no Asfalto. Publicou seu segundo livro “Sapiens”, ficção científica, pelo seu próprio selo Cernov Produçao Independente.  Mantém um blog : Kabaré de Rosa Negra (Catiacernov9@blogspot.com)  e suas poesias estão fragmentadas em páginas de rede social em:

Samba de ' O Livro das árvores dentro do livro dos anjos sem nome '

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Os Extraterranos habitando
o nãomundo, o exmundo
aprenderão com os Terranos
a converter mundonenhum
em  Terra 
em Transe da Terra
os Extraterranos
desse modo
se lembrarão 
de seu corpo imanente de água
pela ausência da água
de seu corpo imanente de ar
pela ausência de ar
de seu corpo imanente de fogo
pelo calor de 52 graus
de seu corpo imanente de terra
pela saudade das florestas
saudade das árvores
árvores que são anjos 
sonhando que são árvores
árvores que são anjos sonhando
que são humanos terranos celestes
ou seja Índios
Ou seja
Índios

Marcelo Ariel 

Alvéolos Desaveludados - Guilherme Gontijo Flores

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Ricardo Pozzo vem se tornando uma espécie de figura-emblema, ou baluarte-vivo da poesia feita em curitiba, pelo seu trabalho não só de poeta, como também de agitador, performador, incentivador ou mesmo de incitador poético. felizmente, ou mallarmaicamente, tudo acaba em livro & aqui nós temos a primeira coleção da sua poesia por uma editora.
porém mais importante aqui é ver como seu projeto de poesia encontra a sua fotografia para formar uma visão poética da realidade contemporânea: nos dois trabalhos, o indivíduo aparece devorado pela cidade; em vez da diversão antropofágica oswaldiana (lembram  que “a alegria é a prova dos nove”?), estamos diante de uma figura fendida no espaço, ou melhor dizendo, de uma figura que não passa de restos da trituração urbana — “urbefagia” é o conceito de uma série de fotos que ele já publicou. daí que restem como autorrepresentação imagens como “é desgosto meu hálito de alcatrão”, ou a figura de uma “onça desonçada” no centro da cidade, tudo entremeado por monges incinerados, crianças esquartejadas numa mala dentro da rodoviária, vítimas de explosões, rasgos de mitos, informações científicas, afetos pessoais,de vítimas da mídia &da insônia, da própria vida. assim, na falta do banquete da vida, parece nos cabe apenas “comer com os olhos banquetes sobre a mesa”, virar-se com as migalhas da experiência contemporânea diante dos “cães hidrófobos”, ou dos “semáforos vertiginosos” que emolduram o cotidiano, sabendo na pele que o “cão que ladra morre”.
só que o desconsolo da sua poesia é irremediável apenas na aparência. pozzo não cede ante as migalhas da vida, mas constrói dessas migalhas uma est-ética também em frangalhos que pode causar aquele incômodo em que se funda o poético. como ele mesmo nos dá a dica, é melhor “abdicar do rigor da higiene”, mas apenas se for para “aguentar as consequências”, ou seja, enfrentar a voracidade citadina no seu âmago — não na margem da fuga. em parte, esse projeto me faz pensar na obra de Joseph Beuÿs, com suas construções feitas de gordura animal & feltro: o cheiro que inevitavelmente precisa subir & incidir sobre quem observa a obra, a animalidade que deve tomar conta daquele ambiente excessivamente civilizado por meio da visualidade experimentada da decomposição da obra por ser ela também orgânica, tudo isso derivado de uma necessidade de reanimalizar o centro urbano, para revigorar o homem. na dúvida, “aperte o gatilho para saber que você está vivo”, ninguém disse que seria fácil.



guilherme gontijo flores (brasília, 1984) é poeta, professor e tradutor. estreiou com os poemas de brasa enganosa (2013), finalista do prêmio portugal brasil telecompublicou traduções de as janelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de rainer maria rilke (em parceria com bruno d'abruzzo), e d'a anatomia da melancolia, de robert burton, em 4 volumes (prêmio apca de melhor tradução e prêmio jabuti de tradução 2014). 

"OITO E CINCO", CONTO DE NARA VIDAL

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Saiu sozinha. Sempre fazia isso, sair sozinha. Andava gorda e lenta. Não tinha ninguém em casa, um sobrado em pedaços na Rua do Lavradio. Seu nome, Marlene Solange. Uma vez arrumou um bêbado que transava com ela gritando Mar, Sol! Um desatino. Marlene Solange esperava o bêbado acabar o que tinha começado, o que sempre demorava muito mais do que estava disposta a esperar. O homem era poeta. Desses miseráveis que só têm dinheiro pra cachaça.  No sobrado, Marlene Solange escrevia prosa. Não gostava de versos. Contou pra ele. O bêbado foi embora. Ela ouviu o barulho da tábua solta no degrau de saída e uma batida na porta. Acendeu um cigarro e foi pra janela escrever. No parapeito, o sutiã de lycra, furado, largo. Ainda acompanhou o amante, aos tropeços e cheio de cachaça, ir pra casa. Casa era um conjugado em São Cristóvão que ele dividia com a mulher e o rapazinho de oito anos. Falava da Dorileia e do menino Wagner com o orgulho de quem não deixava faltar o feijão com arroz e uma carne no domingo. Vai ver era decente. Do sobrado da Lavradio, sentiu pena do homem. Depois e antes de bêbedo, de certo era um homem.  No bar Oito e Cinco, chegaram a transar no banheiro, por conta de uns poemas que ele disse pra ela. Não tava bêbado. Foi rápido. Ele se desculpou, o pobre coitado. Mas a demora chateava Marlene Solange. Ela perdia a concentração e começava a sentir o cheiro de pinga em bafos na sua orelha. Ele, orgulhoso do seu controle, revirava a Marlene Solange de tudo que era jeito. Nem nisso combinavam. Ela tinha uma preguiça dos diabos, mas dava pro bêbedo a impressão do agrado. Queria sair dele, mas tinha pena. Como será que se chamava? Vai ver o problema era que ele gritava Mar, Sol e disso ela não gostava. Chegava a sentir enjoo.

No Oito e Cinco arrumou um outro. Não era poeta. Era contista. Outro nível. Bebia sangria. O homem nunca perguntou como ela se chamava. Dava a ela nomes diferentes dependendo do vestido do dia. Ele, amante do cinema de Hollywood. Ela, amante dele. Marlene foi Greta, Rita, Vivian, Anita. Um dia, de vestido marinho listrado e lenço amarrado ao pescoço, foi Grace.

Sem água no sobrado, Marlene Solange acumulava roupa suja. Apareceu de calça no Oito e Cinco e com a saudade que só os amantes têm, foi lá entregar-se ao seu homem. Ele rodopiou a amante pelos olhos surpresos, ao avistá-la de calça e um cigarro caindo da boca. Naquele dia, ganhou o nome de Marlene. Nunca mais se viram. Lá do parapeito da Rua do Lavradio ela ainda viu ir embora, aos tropeços e cheio de sangria, outro bêbado.





 Foto: Bette Davis como Mildred, em "Escravos do desejo" ( John Cromwell, 1934). 



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Nara Vidal, mineira de Guarani, formou-se em Letras pela UFRJ e tem Mestrado em Artes pela London Met University. Há 13 anos mora na Europa, Nara escreve para jornais e revistas diversos. É autora dos infantis e juvenis "Arco-íris em preto e branco", "Pindorama de Sucupira", "A menina e os relógios" e "O doce plano das galinhas". Ganhou em 2014, pela segunda vez consecutiva, o prêmio Brazilian Press Awards em Londres, pelo seu destaque em Literatura. Foi também ganhadora do último Prêmio Maximiano Campos de Literatura. Neste ano Nara lança vários infantis e seu primeiro adulto.












ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "GLACIAL", DE JORGE ELIAS NETO

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        Jorge Elias Neto não é um autor estreante. Além de diversas antologias, o autor capixaba já tem três volumes publicados e surgiu em 2014 com um novo livro de poemas, Glacial, pela Editora Patuá. Um livro preparado como um derrame, digo, de palavras pela terra. Assim me sugeriu o poema inicial. “Compondo o sítio arqueológico” – um jardim de epifanias que se expande.
            
        O autor nos apresenta a grande chave da própria obra justamente com seu poema inicial. Em se pensar em epifania, cada poema torna-se um símbolo a ter atribuído seu significado (ou mais de um) ao longo da leitura. A possibilidade de múltiplas leituras confere universalidade ao seu texto, uma das mais desejáveis características de uma obra de arte. A poesia acontece no leitor tanto na leitura quanto no despertar para o significado. Glacial obriga a um silêncio interior em que perguntas buscam o próximo verso imanentes de caminhos a serem seguidos. Essa imanência da arte literária vem à tona como nos versos: “o céu conspira / dentro de mim / ponto / sujo no útero / da neve”, do poema “Insignificância”. Uma bela metáfora sobre a ontologia poética e individual em que o pessoal poético de um autor é tensionado pra tornar-se não apenas pessoal, mas universal, por conseguinte.

Poesia e enigma parecem estar à espreita em Glacial e a construção do eu poético surge gradativamente.  A jornada dessa construção de sentidos pode ser percebida mesmo pelos títulos dos poemas que demonstram uma expedição do “sítio arqueológico” ao “sujeito”. Uma trilha inconstante, talvez como nos versos do poema “A logística das formigas”: “em fila, /agarradas / à impossibilidade.” Muito provavelmente outra meta-referência. A arte em si é uma impossibilidade, a poesia, insustentável. Essa impossibilidade, que ainda assim faz avançar os poetas encontra seu ponto alto no poema “Discurso para o cadáver”. Qual porém, autor, é o corpo morto? A poesia, ou o poeta? Afinal, “um momento – breve – / (o tempo de observar a indecisão / das chamas perante o choro / humano)” é o momento em que vive na leitura o poema, e depois cessa.

Poemas como “Máscara mortuária”, “Inércia”, “Um resto de sol no desalento”, levam adiante a soturna figura que uma morte ocorre envolvendo os poemas em uma trama que precisamos entender. Durante a leitura, a questão do homem que cessa e com ele a poesia, percorre meus pensamentos. Será que Jorge Elias Neto sucumbe no indizível? Ouso responder que em Glacial a mesma palavra que anuncia o cadáver, é a palavra que o preserva para sempre, porque a palavra é a própria presença do homem.

Estranho me parece, mesmo depois de seguidas leituras, um uso equivocado de epígrafes. O conceito da epígrafe é o de conter ou introduzir o significado de algo. O texto subsequente, claro. Seu uso como parte constitutiva do poema, como faz o autor, parece ligeiramente exagerado. Ainda mais se boa parte delas parece vir de outros textos de sua própria autoria, o que resulta numa incomum autocitação. Este aspecto destoa com a coesão do volume.


Por fim, Jorge Elias Neto também nos traz poemas como “Pisco”, “Paisagem” e “Cronópios”, contrapontos finos ao soturno fio condutor do livro. Poemas que compõem outros pontos de relevância para o “sítio arqueológico” em que repousa a cadeia de poemas de Glacial, que ainda traz as ilustrações de Felipe Stefani em perfeita sincronia com os poemas. Como disse acima, a mesma palavra que anuncia o cadáver, é a palavra que o preserva para sempre, exemplo disso, os versos finais do livro, que reverberam na existência do poeta e da poesia: “A serenidade possível / sem um deus, não / está ao alcance dos eus / idealizados, / mas no sujeito / cuspido e escarrado, / despido / de deslumbramento / – marcado. ”





LEIA POEMAS DO LIVRO




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Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR






Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.







[as guerras búdicas: o último exército de buddha-bots, em lótus] por alexandre guarnieri - parte 13

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tudo à volta evoca paz, caem pétalas de cerejeiras em câmera lenta, a cena é filmada em bullet time no pátio de um monastério, aos pés da montanha de topo nevado, num travelling que contorna a arquitetura a paisagem os monges de metal que ostentam seus vincos de fábrica, túnicas laranja ou nus, sentados em lótus, sob a aurora do único encaixe possível de todas as peças móveis...


respirando... ? [trinando]


          respirando... ? [zumbindo]


                  respirando... ? [bzzz trrr rrrr zzzz]


tudo está lá, apesar de não podermos ver, as máquinas não captam, desde sempre esteve lá, a luz é tragada como num buraco negro, mas perto, bem perto dos olhos, apenas a alguns centímetros das epidermes sintéticas, pele adentro, os elétrons em vórtex, o jorro irrefreado das sensações violentas, o que nestes corpos ou máquinas se afunda é a declaração de guerra e a guerra já deflagrada com seus massacres e pesares, com seus fuzileiros artificiais formando desenhos no mapa da batalha, com suas bombas sujas, com suas miras cirúrgicas aplicadas ao combate, com seus generais kamikaze dando ordens e as cumprindo eles próprios, se explodindo junto ao inimigo, para o orgasmo dos estrategistas que se entregam aos bacanais dos assassínios, festas em que os convidados se esfaqueiam mutuamente, seus comandos de extermínio sob as fardas, medalhas e comendas, suas contendas mais sangrentas correndo nas veias nesta guerra entre glóbulos, entre células, entre átomos de carbono, que se arranjam, estranhos, quando todos os corpos são pilhas de blocos soltos, flutuando uns sobre os outros, robôs ou homens, e no espaço entre eles, toda guerra, toda ameaça, todo medo, se instala, explodem capricórnios, há sangue salpicando o jardim das flores de lótus oremos pois meditemos pois esqueçamos pois do que incomoda desapeguemos pois nossas mentes da melhor de todas as mentira da única mentira possível sobre se estar vivo ou pendendo entre o que vive e o que não vive entre a carne viva e o objeto inanimado o robô meditante - buddha-bot - nos salve nos entenda nos transcenda no aço desapegado que a carne terminará a humanidade terminará toda a sabedoria legada às máquinas espiritualizadas aos homens de lata livres de samsara ommmmmmmmmmmmmmm zrzrzrzrzrz trtrtrzzzzzz rrrrrrrzrzrzrzrzrz [ruídos de um antigo modem discando antecede o derradeiro oooooommmmmmmmmmmm do último exército dos buddhas sintéticos]




 









imagens: arte cinética de Wang Zi Won; filme "Doomsday book" (2012, Kim Jee-woon)



*    *    *



ACOMPANHE A SÉRIE!


PARTE 1

PARTE 2













*    *    *



Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.





2 POEMAS DE ROBERTO DUTRA JR.

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APAGAR A PRAIA


grão
um grão
esse grão

as ondas explodem
espetáculos de espuma
invisível força
previsível infinito
linha de esperança.

desfaz-me a carne e nunca se cansa
de apagar os nomes na areia mansa.

o braço do mar levou a lembrança
de tantas palavras eu disse
quando criança na areia.

praia sem nome, olhos presos no horizonte
sempre dois, talvez uma teia,
finda o sol e resta o amor,
palavra e tempero na ceia.

era encantamento sereno
uivo de baleia soando pleno
nome de sereia soprando veneno.

nova manhã quebrando o tempo
retoma o palco, refaz o enredo
invisível força, previsível infinito
o mar remonta o destino do desejo
entram as crianças, perdem o medo
deixam na areia as mesmas marcas.

palco de areia espuma e água
nomes sem letras e conchas mudas
pois não ousam nem nas profundezas
proferir o som preso na saliva
uma ou outra miudeza do carinho dos olhos

– pura correnteza –

na nossa pele some o que as ondas escondem com mil nomes

some mais outro poente…

grão
um grão
esse grão

– pare mar, de apagar a praia onde escrevi minha canção.




PÁGINA DE CAOS


esta página de veneno
esta página de tempo
esta página de vento

demolida nos lábios
a leitura amarga
e sempre amanhecer
palavra

esta página de caos
esta página de vazio
esta página de obsceno

clarão nos átrios
a fissura coronária
resta escrever
escara

quebrar espelhos e joelhos
sozinho e sem imagem

o prazer é imperdoável.





Imagem: Moebius



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Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.






Dos diários de Marieli Adriani Becker

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                                Desenho da autora por Marceli Becker


Este espinho que guardo na boca, você não o entende, mas finge. 
Eu, uma mulher amarrada pelas pernas, também finjo. 
O espaço sempre manso com seus odiáveis pássaros que caem e caem 
sempre caem como um som que abre um céu, um caminho, e também 
aquele barulho que não se sabe o que é e é tudo o que está no mundo,
aquela coisa que os débeis chamam de vida e que eu chamo de
tempo maldito que nunca cala a boca. Este espinho cuja estupidez de uma revista chama
de tpm, a estupidez do psiquiatra chama de depressão, a estupidez do poeta
de melancolia e toda estupidez sempre chama. Eu com essa chaga maldita
a buscar no alcoolismo um reverso medicamentoso, não me enganam aquelas
caixinhas com suas faixas medonhas dizendo que podem te matar ou te salvar
ou qualquer coisa que te atingisse, e você ainda finge que funcionam, porque dorme,
e isso deveria bastar. Por que diabos o mundo tem mil anos e ainda a verdade
não é coisa que escorra dessa boca espinhenta feito sangue novo e fresco?
O cheiro, sempre o cheiro, de morte, de agressão, de penetração repentina,
qual é o corpo que está preparado para essa desordem do mundo?
A faca cotidiana não pode fazer buracos nos meus pulsos. Alguém poderia
dizer qual é a utilidade deles senão essa ponte pulsando sangue, um toque,
uma junção, uma coisa sem forma-face-sentido, um caminho disfarçado até
sabe-se deus onde, porque não sei por que é que tenho mãos. Não gosto da poesia.
Assim como não gosto de flores plásticas com seus espinhos metafísicos patéticos.


Marieli Adriani Becker

5 POEMAS DE "ANJO DILUIDOR", DE JON MOREIRA

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Os Anjos


que são poetas mortos
carbono, comida pra bicho
o breu em que vivem
a própria terra infecunda
pó pedra dejetos de arte 
que não são poetas mortos
esterco letrado de árvores
pensamento verde
lavouras poéticas
carvalhos frondosos 
soletrando poesias
palmo a palmo no chão preto


***


Higgs


Minúsculo deus
Filho, pai e espírito 
Do Nada

Da colisão irreversível
Fez-se pão, vinho
Massa

Fez-se Deus
Corpo da mesma
Matéria do mais
Remoto Eu

Melancólica Molécula
Seus filhos paridos
sem pai

Um dia que já não bastava
ser-se
Adão, sentindo-se só
Criou Deus.


***


Casta


É de estirpe todo o adorno com que saem os verbos.
Vogais rasgam sempre, ditos arranhados dos dentes.
A casca e o laço dado dizem tudo do caroço.
O corpo é de carne pouca, nem sei se tanto.
Disto ou doutro há cerrar o queixo,
cessar assim a raiva.

Sendo de todo o avesso do que refrata.
Não por mal, nem por outra coisa,
apenas por o ser.


***


A Primeira Manhã


O sol
-como num clichê de novela-
esperou por nós
e a sós, nascemos.

O silêncio nos foi pai
ao redor das bocas
calou-nos a sete nós
trancando um tão por
dentro d’outro
que ressoa num
a outra muda voz.


***


Recolheita


para André Ricardo Aguiar

A cana chora no estio do verso
e olha, onisciente,
foice e chão.

palavra cortada
putrefato, adubo, humos,

E o lavrador -que já não lavra-
talha o baixo e a cisma
lhe abandona a raiz

Flor sem talo paira
infecunda
em perpétuo desvão

A dor na palavra morta
É Saara num
           grão de mar.




*    *    *





*    *    *




Jon Moreira, autor do livro Anjo Diluidor, nasceu em João Pessoa em Agosto de 1990. Graduando em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, tem alguns de seus poemas publicados em suplementos literários e blogs. Em meio ao tempo abraçou o silêncio das palavras.












05 poemas de Neuza Ladeira

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Mordaça

Não encontrei um lugar
Que me coubesse
As cicatrizes

O medo que passei
Você desconhece
Nem vislumbra

Horizontal
Foram tempos
Num bacanal de dores

Naquele teatro
O peixinho de
Tibério
No abismo
















Carnaval

Sem fôlego
Apazigua no passo da passista
E no ritmo
Da bateria
Os dias vermelhos da vida.

O entrude vem do marejar
Os homens de além mar

Na tamborada
Cabo Verde Madeira
Açores

Um soar, um suor.

A coroa recebida como carne no varal fez um belo carnaval.

A rainha portuguesa
Leviana e distraída
A boca enviesada

Vende fofocas
Estimula a masturbação Nacional.
















Cantiga


Por onde andam
Os pastores amorosos?

Aqueles que o poeta cantou

De amor, de amigo

E minha graça portuguesa me contou?














Poética

Pesada de engano
Asas dilaceradas
Custou a curá-las 
Para dar vazão ao longe
E perceber 
O cinza do insólito 



  

Diáfana

Esqueceu-se de que o tempo
é curto
e o caminho
estreito

A Menina transparente
no quarto azul
é menina de carne




Neuza Ladeira:  nascida em Belo Horizonte, artista plástica, aquarelista, poeta. Autora de Opúsculos, editora Anomelivros, Os comedores de Sonhos, Quarto de Dormir e Quarto de Pensar, ainda inéditos. Foi, muito jovem , presa política, torturada em quatro estado brasileiros, à época da ditadura militar, e sua experiência de vida reflete-se sobremaneira em seus versos e telas.

Ilustração: pinturas de Neuza Ladeira

5 poemas de Lorrana Maciel

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Ilustração; Romeo Zanchett



RUÍNAS

Morderei começando pelo umbigo
Assim tudo o que há abaixo dele
Ficará em chamas
Até as ruínas de pedra ao longe
Irão ouvir os teus gemidos...



CALCINHA

Meu poeta se tu não tens papel
Então escreve na minha calcinha
Mas não ligue se ela estiver
Molhadinha...


  
SORVETE

Não entendo tomar soverte
Quando na verdade se lambe
Me convida pra lamber sorvete
Quero lamber o teu sorvete


Ilustração; Romeo Zanchett



DIRETA

Fode minha boca
Fode minha buceta
Só não fode o meu coração



LACRAIA

Tua língua em meus seios
É como uma lacraia
Passeia de um lado para o outro
Me fazendo agitar cada músculo interno...




Lorrana Maciel, 21 anos, natural de Macapá – Amapá, é Mãe, poeta, atriz, instrutora de teatro, técnica em informática e tradutora de espanhol. Em março de 2014 foi premiada em 1º Lugar no I CONCURSO POÉTICO DO GRUPO PENA & PERGAMINHO. Já foi publicada no blog Jornalismo Cultural como poeta do mês de abril/2014, tendo sido também entrevistada no quadro Pergaminoso do Mês, pelo grupo Pena & Pergaminho. Suas poesias apresentam tom mais apimentado/romântico e são divulgadas principalmente através do blog LM Meus Rabiscos. Atualmente desenvolve o projeto do livro “DOCES E AMARGOS DEZEMBROS”, ainda sem previsão de publicação.

7 poemas de Marcelo De Angelis

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filosofia

viver como se tudo
desse em nada
tudo dissesse nada

e o nada fosse
a única pergunta possível




unoverso

um poema que não nos tomasse
mais do que um único verso
que fecundasse essa noite
numa úmida e só palavra
numa única e só sílaba
menos do que isso

num arfar




serpensar

            ser
             pensar
             sentir
             o vento
             ar
             em repentino      
             movimento
serpente
             ar
             o sentido
o momento

tempo doravante                    
             ciranda
             beatriz & dante
             medida circular
serpente
             inferno
             amante




da natureza das coisas

assim como

            a voz do peixe
            é o murmulho do rio

            a vocação da nuvem
            é dar rosto ao vento

            e do gosto da rosa
            é se paramentar com espinhos

            próprio da tarde mansa
            é devanear o tempo

quem percorre a sombra das coisas
engatinha no segredo delas
e ilumina o livro do dia




da identidade do mar

              álgebra abstrata
cardume de números 
estrutura repetitiva
paradigma marítimo
               caracol labirinto
               algoritmo infinitesimal


algo lívido      nobre   vívido
algo ríspido    forte     bíblico
               algo líquido    lúcido  lógico
algo mítico inédito  nítido


fluxograma narrativo
sequência lógica
               das ondas

máximo divisor comum
              das águas

              iteração:


memória limbo
               memória ram
memória limbo
               memória mar
memória limbo 

memória ram
memória limbo
              memória mar
 
oceano linguagem



ocaso

           o sol se põe
como quem se põe
no lugar de um amigo
           breve instante
           em que a noite
não se opõe ao dia

o ir do sol supõe
antecipar estrelas
solapar trevas
e conspirar silêncios

naquilo que tudo
em tempo se torna
tanta ausência
nem a luz explica

onde eu estava
quando você não veio?



no conforto da noite mais lúgubre

no conforto da noite mais lúgubre
escreve o poeta seu parco legado:
uns rotos e malbaratados versos
uma melancolia que recusa razão

prisioneiro de sua própria infinitude,
sem ponto de partida ou de chegada,
o poeta em si permanece imóvel
enquanto golpeia a mente em vão

aos que tiveram a coragem de se ir
e em noite assim se lançaram do cais
o poeta, coerentemente, lhes diz não

e por entre tormentos e dissipações,
a vida marcada por silente ausência,
perscruta a sombra azul da infância


Ilustrações: Marcelo De Angelis




Marcelo De Angelis é 
natural de Porto Alegre
e radicado em Curitiba,
é formado pela UFRGS
em Comunicação Social
e atua na área editorial.
Desenho e pintura são 
suas outras paixões 
irremovíveis. O tempo,
o devir e essa névoa
que é o indivíduo são 
temas recorrentes em 
sua produção, marcada
por um olhar enviesado,
típico de quem confia
mais na memória,
inventada ou não,
do que naquilo que vê.



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