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Distrito Federal, romance de Luiz Brás, resenha por Manoel Herzog

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Distrito Federal, de Luiz Brás


Por Manoel Herzog


Encontrar o Curupira ou o Saci-Pererê no enredo de um romance futurista pode parecer uma sofisticação de ficção científica - e é. Quando, todavia, as figuras folclóricas habitam um universo paralelo, que é o que lhes cabe, mas junto com outras ancestralidades como a anta, a jaguatirica, os índios, as árvores, fauna e flora de um cerrado morto há eras, a sensação de incômodo passa a habitar o leitor.
Distrito Federal (Editora Patuá, 2014) é romance de horror, o horror que caracteriza a desagregação moral da política nestes tempos de estertor do capitalismo. Mormente o capitalismo de país periférico, a reboque do que se pode entender por civilização, onde a livre iniciativa e a possibilidade de ascensão, máximas do ideário liberal que sustenta o regime, são truncadas pelo protecionismo do Estado aos grupos de privilegiados e à corrupção política, na medida em que este mesmo Estado deixa à mercê os que deveria cuidar.
Luiz Brás constrói seu romance com um texto fragmentário, de uma curiosa prosa poética, concatenando as divagações de um personagem central, o Curupira, mas narrado por uma interlocutora, figura que mescla maternalidade e companheirismo. O Curupira do romance é ser folclórico/elemental que se apossou de um organismo humano modificado, uma espécie de ciborgue. A trama se passa num futuro longínquo, onde próteses compõem parte do corpo humano, corpo este que pode bem ser invadido pelo que sobrou, em fantasma, de um tempo sepultado de Natureza e brasilidade. Curupira, habitante do organismo protagonista, é reconhecido por sua preceptora, a narradora da história. Ela descreve em minúcias como o personagem central, mistura de espírito, corpo e prótese, ou, noutro plano possível, passado presente e futuro, se incomoda com o cheiro de podre da corrupção, do qual só se livra matando e esquartejando corruptos e corruptores.
É assim que o serial killer da trama vai dando corpo a este denso romance, sacrificando cruelmente o juiz que vende sentenças; o deputado que recebe dinheiro de empresas para votar conforme seus interesses; o assessor de ministro que vende possibilidades junto com o governo; o secretário de Educação que desvia verbas da escola pública; e assim por diante.
Notam-se, neste romance de tempos hodiernos, duas influências de uma mídia que vem, se não suplantando, mesclando-se à Literatura, como a tantas outras formas de expressão - o Cinema. Ouvem-se aqui ecos de filmes: Constantine, de 2005, e toda a série de Hannibal Lecter, que inicia em O Silêncio dos Inocentes. No primeiro, estrelado por Keanu Reeves, o personagem central, um exorcista, interage em universos paralelos que são todos vivenciados a partir de um único ambiente. Assim o inferno, o paraíso e a terra estão todos num único lócus, dependendo do ponto da visão dos personagens. É o exato caso deste livro, em que o Curupira enxerga em espírito coisas já falecidas, espectros de animais silvestres extintos, índios, um cerrado morto sob os escombros de a civilização de concreto que é Brasília, sede do governo de uma nação que não deu certo, pois pautada na corrupção, no predatório, no lucro imediato. A síntese do país que formamos, desde a crueldade do colonizador à absoluta subjugação, que redundou em conformação masoquista dos nativos e escravos, indefesos à brutalidade, tudo selado pela ganância do imigrante, que veio tardiamente também ele ser explorado e explorador. Desta nação resulta hoje, agonizando o recurso natural com exaurimento e morte de toda uma Natureza exuberante, a corrupção política e a lei do levar vantagem em tudo, como uma tentativa desesperada de tentar sugar do bagaço as últimas gotas de sumo.
O protagonista encarna a revolta de um povo sofrido, portanto. O desejo latente de vingança, de devolver a violência suportada historicamente. A correspondência com a segunda referência cinematográfica surge então e, constituindo-se num assassino cruel e metódico, encontra como único lenitivo ao cheiro pútrido a matança e esquartejamento dos corruptos, o que faz com requintes, saudado e estimulado por sua narradora. Chega mesmo, depois que os produtos dos crimes ganham o noticiário, com os corpos descobertos, a arrebanhar um séquito de admiradores, que o toma por mestre. No entanto Curupira gosta de agir sozinho - sua missão não o enobrece, sabe que está delinquindo, matando, mas o faz como que por um impulso de justiça, mata escórias sociais, daquelas sem as quais o mundo pareceria ficar melhor. Este o mecanismo que sustenta a pena de morte, a tortura e tantas aberrações, tão desejadas, no calor da revolta, a dias de hoje, por multidão de desesperançados que, sem estofo político ou conhecimento de História, reverbera o discurso fascista. Luiz Brás trata com muita sensibilidade o tema, fazendo do protagonista, o assassino Curupira, um encarnador da revolta de toda uma nação. E de seus métodos, num terreno literário, futurista e insólito, a catarse de um povo que sofre as consequências do processo histórico que resulta no país injusto que conseguimos ser, a despeito de tantas lutas por dias melhores.                 
           Distrito Federal escancara uma realidade política aversiva, mas mais do que tudo, verdadeira. Dá dimensão à insolubilidade de nosso problema, que  não se vai resolver nem amenizar com troca de partido ou de políticos no poder, mas apenas com uma total subversão a um sistema carcomido, no qual corrupção é corolário primeiro, mas a injustiça é a tônica. Uma obra incômoda, forte, reflexiva. Fragmentária. Como o ser do próprio autor, que se desdobra em escritor, ilustrador, crítico e tantas outras facetas, a obra, nessa desagregação caótica busca uma unidade, trazendo-nos à compreensão de uma condição social e histórica que precisa, urgentemente, ser discutida. Não há campo melhor para se começar a remodelar que a Literatura.

***



Luiz Bras nasceu no dia 22 de abril de 1968, em Cobra Norato, pequena cidade da mítica Terra Brasilis. É ficcionista e coordenador de laboratórios de criação literária. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Hoje coleciona miniaturas e gravuras de zigurates. Gosta de pensar que essas construções míticas, sagradas, simbólicas abrigam criaturas e mistérios do passado e do futuro. De nosso mundo e de outros. Espantou-se ao ver pela primeira vez, no Centro Espacial de Hooloomooloo, uma prótese neurológica conectada a um exoesqueleto. Agora está tentando resolver, na literatura, a mesma mistura de fascínio e medo que nossos antepassados sentiram ao domesticar o fogo. Só acredita em biografias imaginárias. E nos universos paralelos de Remedios Varo.
Venceu duas vezes o importante e impossível Prêmio Príncipe de Cstwertskst, na categoria romance (2010) e na categoria conto (2014).
Principais livros: Distrito federal (rapsódia, 2014), Pequena coleção de grandes horrores (minicontos, 2014) e Sozinho no deserto extremo (romance, 2012).


MANOEL HERZOG
 Autor dos livros A comédia de Alissia Bloom (Patuá, 2014) e Companhia Brasileira de Alquimia (Patuá, 2013), Manoel Herzog nasceu em Santos a 24 de setembro de 1964. Em 1987, estreou com a publicação do livro de poemas Brincadeira Surrealista. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com o romance Amazônia, do Prêmio Sesc 2009. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Em janeiro de 2012 publicou o romance Os Bichos, pelaEditora Realejo. O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi premiado pelo FACULT. Também escreve quinzenalmente uma crônica literária na coluna Cais das Letras, no site Cinezen: http://cinezencultural.com.br/site/
O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014.



4 poemas de Sonia Regina

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Ilustração: Jaap Voets



Há um silêncio detido


no final de semana sem sol
há um silêncio detido
no caderno de poemas sem título.
no mar, à procura do último verso
naufragado, é navio submerso:
morada de peixes que o percorrem
em sua extensão e sentido.



O Poema


A noite aparece, pouco densa,
oferenda fabulosa e pura.
Escrevo, apenas.
Os dedos brilham ao som
das teclas tornadas letras,
signos ainda não desbravados.
Construo e inauguro leitura possível.
Sem remissão, sílabas claras
são lastro seguro.
O vislumbre de uma passagem
irrompe e versos surgem na tela,
buracos luminosos plenos
do sublime experimentado na carne,
do transcendente fogo dos deuses.
Pressinto o mistério da transmutação
de um instante extraordinário.
Estou cravada no mundo;
numa quietude geradora parto
das ruínas, sem milagres nas mãos;
lavrados em nenhuma escritura,
a força atenta e o valor guerreiro

fundados no sangue.



Ilustração: Raphael lopez



Todas

"Em todos os balcões de bares,/senhora, em todos os caixas/
de supermercados e nas filas/de ônibus, induza o espírito/ao retorno."
Pedro Du Bois, em TODOS


procuro uma imagem para o teu poema e não encontro.
parece que nada de sacro se exprime e só o efêmero se
expressa - amargo como o café.
o que vejo são nomes escritos na praia,
preces ditas em línguas que desconheço
e uma margarida amarela revelando o degrau de longa escadaria.
nenhum pouso, senão o da corrente nos dedos sem força.



Para além de mim

Ao meu filho Pietro
  
Não digo a carne ou o mundo e retorno a eles.
Não é uma doação. Aqui estou abraçando
o território que é meu e não se perdeu nas sombras.
A minha alma dou à terra, assim como minhas mãos
e passos. O sol é brando e o vento assovia no meu
caminho de palavras. Conquistei-as.
Com elas fiz-me pedra e ela agora vive fora de mim.
A ela me ligo e ela a mim se liga - é o meu maior amor.
As palavras o sabem.




Simplesmente soreg, ou SR: é como a escritora e poeta carioca Sonia Regina assina seus trabalhos de arte digital. Exerce a psicologia para o Estado do Rio de Janeiro, tendo sido licenciada pela PUC/RJ e pós-graduada pelo Instituto de Psiquiatria/UFRJ. Na web é editora da Revista Literária Digital Letras et cetera e do Periódico Digital de Imagem e Poesia Laboratório da Palavra, além dos blogs e sites No fluir da Metonímia 1 e 2, Somente Prosa, Pousio e Um Poema. Prefaciou 10 Rostos da Poesia Lusófona, coletânea de poemas de autores brasileiros e portugueses. Organização: Fernando Oliveira. São Paulo: All Print Editora, 2008; escreveu a Nota Introdutória da Antologia Poética Amante das Leituras Portugal: Amante das Leituras Edições, 2009; prefaciou o livro de Conto e Poesia de Jorge Xerxes: As Cinquenta Primeiras Criaturas. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010 e prefaciou O Fim da Inocência e outros contos, E-Book de Mário Rufino, escritor português.Publicou um livro bilíngue de poemas: Uitzilim. Rio de Janeiro: Letra&Cia, 2003.Participou de várias antologias, no Brasil e em Portugal. Integra os grupos de criação e discussão literária Utopoesia (Argentina), Amante das Leituras (Portugal) e Encontro de Escritas (Portugal), em cujas antologias consta.

A Flor - Henrique Fagundes Carvalho

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Ilustração: deviantART



"E se você dormisse ? E se você sonhasse ?
E se, em seu sonho, você fosse ao paraíso
e lá colhesse uma flor bela e estranha ?
E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos ?
Ah, e então ?"

Samuel Taylor Coleridge

Despertou. Por um instante de hesitação não soube onde se encontrava. Olhou ao redor: definitivamente, não estava mais no paraíso. O paraíso não se parecia com seu quarto. Era, antes, como um jardim. Contudo, tão inegável quanto o fato de estar deitado, sobre sua cama, tão real quanto a esposa que ressonava a seu lado, era a flor que ele agora tinha nas mãos. Reconheceu-a. Aquela flor, colheu-a no sonho.

Num primeiro momento, fez o que faria qualquer outro: duvidou. Sabia que ela não poderia estar ali. Não ignorava que as flores que se colhem em sonhos estão presas a esse universo, como tudo mais que habita o mundo onírico. Apenas nós somos capazes de transitar entre os dois mundos: o real e o dos sonhos. Estes não são capazes de se impor à realidade. Porém, quanto mais negava a existência da flor, com mais veemência esta se impunha aos seus sentidos, em cor, nitidez, textura, forma, aroma... A flor permanecia, bela, viva, quase pulsante. Inegável. Inelutável.

Quis acordar a esposa para que ela testificasse a existência da flor e, deste modo, certificar-se de que não alucinava. Mas, abandonou a ideia, por medo de que a mulher, uma vez desperta, vendo a flor não lhe acreditasse na origem e, não a vendo, desconfiasse (com razão) da sua lucidez.

A certa altura já não duvidava. Sabia que ela estava lá, entre seus dedos, tão real quanto estes. E, embora não fosse botânico (longe disso, vivia entre números), intuiu que se tratava de um exemplar jamais visto. Seus contornos, seus matizes e seu perfume, sobretudo este último, atestavam esta singularidade. Este odor (inebriante, único) ia tomando conta do quarto e, em breve, irradiaria por todo o apartamento. Não tardaria até que este cheiro se espalhasse pelo prédio, as ruas, a cidade e quiçá por todo o mundo (não se deve subestimar o poder de uma flor, sobretudo se colhida num sonho). Imaginou que em breve algum vizinho insone bateria a sua porta procurando pela fonte dessa emanação. E o que diria quando lhe perguntassem de onde surgira tal espécime? Acaso alguém acreditaria nele se contasse o modo como tinha vindo ao mundo?

Súbito, ocorreu-lhe que teria de livrar-se dela, antes que o mundo conhecesse sua existência. Não sabia, no entanto, qual era o meio adequado para livrar-se de uma flor colhida num sonho. Pensou que não poderia, simplesmente, atirá-la no lixo (sendo os sonhos e suas derivações parte de quem os sonha, tal ato equivaleria a abandonar-se numa cova).  Logo intuiu que também não poderia desfazê-la. Embora tangível, suspeitava nela algo de imaterial, pois, sendo consubstancial aos sonhos, devia como estes ser indestrutível. Pensando nessas coisas e narcotizado pelo perfume, acabou adormecendo quando já amanhecia. E não sonhou mais com coisa alguma.

Por fim, despertou. Num jardim.




Henrique Fagundes Carvalhoé natural da cidade de Perdões (MG). Há 10 anos mora em Belo Horizonte onde ganha a vida como servidor público. É hipocondríaco e sofre (entre outros males reais e imaginários) de uma irremediável paixão por literatura. Tem alguns contos e poemas publicados aqui e ali. Cultiva o blog No livro de Areia (http://nolivrodeareia.blogspot.com.br/).

Mezzo Voo - Sônia Barros

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Ilustração: Olivier Ramonteu



Origens
                                               para Maria Aparecida Rangel Murbach                  


1
                                  
Persigo o sonho
                                                           do vôo
                                   desde sempre,
                                   desde antes
                                   de nascer.

                                   Sobrevoava abismos e subia
                                   rumo às nuvens
                                   (bracinhos abertos)
                                                           no céu dos sonhos
                                   de minha mãe:
                                   mulher que não me gerou 
                                   mas amparou-me
                                                                       na queda
                                   e cultivou minhas asas.
                                  
                                   Essa mulher da terra
                                   também aprendeu
                                   a alçar vôo.                            
                                  

                                  
2

                                   Cidadezinha,
                                   pracinha,
                                   bibliotecazinha.
                                   Dentro delas,
                                   o castelo:
                                                           livro-asa
                                   livro-água
                                   nas mãos em concha
                                   da menina lagarta que sonhava
                                   borboletas cor-de-nuvem.

                                   Quartinho
                                   (penico, lamparina, espiriteira).
                                   Dentro dele,
estrelas
                                   nasciam dos lábios
cansados da mãe
                                   - de olhos fechados pelo peso da lida –
                                                                       voavam
                                   e enchiam a boca sedenta de asas
                                   da menina
                                   sempre acordada.
                                  

                                  

                             Fuga


                             Ao som intenso do concerto
                             para viola e oboé de Bach,
                             embora allegro,
                                                                 escureço.
                             Conheço o meu avesso:
                             vejo de perto os longes,
                             sorvo o eterno
                             no vórtice de um instante.
       
                             mal-estar bem-estar não-estar
     
                             Sofro
                             no peito o sopro de Deus:
                             lava-larva
                             transbordante
                             à força do compasso
                             em que navego:
                                                                 fuga de alma
                             (nem sequer andante)
                                   em corpo allegro.
                            



Poesia
                                         para Angela-Lago


                             Mão forte e macia de Deus
                             na minha barriga.




                                   Preciosidade
                                                           para Fanny Abramovich


                                   O menino me disse:
                                   - Gambá solta pum verde!

                                   Morri de vontade
                                   de ser um menino.
                                   Dizer coisas assim
                                                           feito passarinho
                                   que desconhece gaiola.




                                    Desinocência


                                   Quando era criança,
                                   vivia desenhando porquinhos voadores.
                                   E não adiantava a professora,
                                   com olhar de Medusa,
                                   me dizer:
                                   - Onde já se viu porco voar?
                                   Eu não apagava os porquinhos,
                                   não lhes tirava as asas,
                                   não os fazia descer do azul,
                                   de jeito nenhum!

                                   Meus porcos ainda voam
                                   (quase) tão livres
                                   quanto na minha infância.
                                   Às vezes, um ou outro porco despenca.
                                   Agora sou eu,
                                   Perseu sem sandálias aladas,
                                   a duvidar.



Poemas do livro mezzo voo, nankin editorial.




Sônia Barros nasceu em 24 de agosto de 1968 em Monte Mor (SP), e desde a infância mora em Santa Bárbara d´Oeste (SP). Formada em Letras pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep. Fez teatro, dança e canto. Além de mezzo voo, publicou 17 obras para o público infanto juvenil, dentre eles: Coisa boa (Moderna); O gato que comia couve-flor (Saraiva), Asas de dentro (Scipione), Ciranda mágica e outros poemas (Positivo), A coragem de Leo (FTD). Seu segundo livro de poemas para o público adulto, fios, foi o vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2014 na categoria poesia. 

Suave como a morte - André Luiz Cosme Ladeia

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Ilustração: Denis Butorac



“Guerra”

Na Guerra
Os homens
Carregam
Os
Mortos;

As mulheres,
As crianças;

Os nômades,
As sacolas;

Só a vida que é
Deixada para trás.



“Tortura”

A gota d´água caindo devagar,
A luz ligando e desligando
Ininterruptamente
O choque frio
A unha sendo retirada
A cabeça mergulhada
A dor, a sede, a fome,
O espelho
  


“Primeiros Versos”

Da rodoviária estropiada
Escrevo esses versos
Como quem morreu
E não conseguiu voltar

Os primeiros versos são eternos
Porque a alma assim o quis

Revisar sob o pálio da perfeição
Seria como mutilá-los
Tornando-os impuros

Os primeiros versos são inofensivos
Como o primeiro amor

Por que o poeta haveria de saber mais que o espírito?
(De ser mais pretensioso?)

O poeta é o instrumento da alma
que tem a contumácia em não se calar.



“Conversa com Crítico”

Certa vez conversei com um crítico famoso
Laureado com alguns dos maiores prêmios
Da língua portuguesa.

Naquela ocasião, ele me disse que não lia novos autores
E que havia um “choque de geração” entre eles
- o que impediria o diálogo.

Enfim, era um desses intelectuais esnobes e envaidecidos
Como os parvos prêmios que cultivava.

O que ele não sabia é que dentro
de dez, vinte anos de sua morte
Ninguém mais se lembraria dele,
Enquanto os autores que ele soberbamente dispensou
Ficariam eternizados pela história.

A poesia é cruel com a crítica
Porque é através dela que se reescreve a história.




André Luiz Cosme Ladeia nasceu no Rio de Janeiro, em 1983. Atualmente, mora no sul de Minas. É autor de “Suave como a morte”, seu livro de estreia publicado pela Editora Penalux.

5 poemas de Goulart Gomes

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Ilustração: deviantART



SOCORRO PRONTO


shampoo para queda de cabelo
aspirina para dor de cabeça
se quebrar o braço, engessa
e cachaça para dor de cotovelo

qualquer coisa serve pra virose
chama a Neosa, que é mulher de raça
se doeu, passa gelol que passa
se não resolveu, aumenta a dose

pra curar o porre, estomazil
melhoral é melhor e não faz mal
se tá enjoado, sonrisal
quer sumir, é só tomar doril

pra espinhela caída, sabiá
tá azeda? Scott em emulsão
pra vazio no peito, xarope Brandão
mas o seu mal, só eu posso curar...

agite-me, antes de usar.




REPRODUÇÃO


deles não ficou
semente, mensagem ou filhos
que vale a vida sem  continuarmos
na pretensa imortalidade do futuro?

do fruto do pecado, peco
óvulo infértil
casca grossa  de pau-d’arco

como se reproduzem as nuvens?
o vento as engravida?
ou as gotas que evaporam, as fecundam?

versos não fazem o seu papel
enquanto não são escritos
não lhes perdoo existirem...
assim como a mim mesmo




O DIA EM QUE MORREU DIADORIM


O dia em que morreu Diadorim
Todas as flores murcharam no jardim

Quatro tábuas cortadas a facão
Apregadas compuseram seu caixão

Redemoinhos se formavam no terreiro
E o vento apagava o candeeiro

Não se ouvia um pio de acauã
Labaredas arrastavam a manhã

Nem um boi mugia no curral
Nem um soluço saltava do embornal

Nem um passo, nas veredas, se ouvia
Nem a lua, que tudo alumia

Abriu seus olhos, claros, como os dela
Em cada canto da mesa uma vela

O seu corpo todo foi lavado
Pelas lágrimas de dor de Riobaldo

Todo amor, de alguma forma, tem seu fim...
O dia em que morreu Diadorim




NA LINHA DO TEMPO


eu sei que é perda de tempo
tentar lhe convencer
que o tempo não existe
se o relógio insiste
hora após hora
em bater

Einstein já falou
que tudo é relativo
e esse momento marcado
gravado, incisivo
já passou

o caminho que eu faço
em um ano-luz
você leva a vida inteira
pra fazer
mas se no seu tempo
tudo flui
quem sou eu pra desdizer?

se sob o seu olhar
tudo congela
o ponteiro dos segundos
até espera
e nada mais se faz
cessa a pressa, o alvoroço
outono vira primavera
e o velho vira moço
em frente ao espelho

no meu tempo era assim:
o caminho valia mais que o fim
e a pressa, essa
não valia nada
se queríamos a perfeição

desejo mesmo
que seja tudo pra ontem
pois assim eu voltaria
ao anteontem
pra nunca mais sair

não me venha dizer
que é urgente
nem eu
nem você
nem ninguém
vai ficar pra semente
o tempo é kairós
e quem passa por ele
somos nós

por isso só lhe peço:
daqui pra frente
dê um só passo
de cada vez
e se deixe flutuar
na fluidez
do ritmo que cada coisa tem

cada um escreve a própria história
e deixa registrado, na memória
o feito, o jeito, o fato
o gosto, o tato, o cheiro
e não as cicatrizes dos ponteiros




TEMPO IDO


Eu hoje acordei, de madrugada
Com o som da tua voz em meus ouvidos
O cheiro do teu ventre em minhas coxas
E o veneno do teu sangue em meus sentidos

Abri os olhos, e ainda em vigília
Era como não tivesse já dormido
Rolei na cama, apertei o travesseiro
Sentia todo o corpo entorpecido

Para o meu ser, ainda confundido
Estive com teu corpo em minhas mãos
Umedecia-te o clitóris entumescido!

Lamentei tudo que podíamos ter vivido
E relembrei os versos da canção:
Alguém amar-te mais que eu... duvido!




GOULART GOMES nasceu em Salvador, Bahia, em  1 de maio de 1965. Administrador de Empresas, pós-graduado em Literatura Brasileira (UCSAL) e  em Gestão de Comunicação Integrada (ESPM-RJ). Atua na área de Comunicação Empresarial. É numismata e pesquisador de ficção científica. Fundador do Grupo Cultural Pórtico (1995) e criador da linguagem poética Poetrix (1999). Obteve 69 prêmios em concursos de poesia, prosa e festivais de música e participou de  54 coletâneas publicadas no Brasil, Cuba, Espanha, USA, Itália, França e Coréia do Sul e tem trabalhos divulgados em vários outros países. Atualmente é o Coordenador do Movimento Internacional Poetrix. Como editor alternativo propiciou a publicação de 56 livros e coletâneas de novos autores. É professor voluntário de Literatura Brasileira, no pré-vestibular social Ação Pela Educação. Publicou Linguajá (poesias); Minimal (poetrix); Todo Tipo de Gente (contos) e Vós Sois Máquinas (FC), dentre outros.

[as guerras búdicas: o sutra da visão do lótus florindo pelo viés de um velho espelho] por alexandre guarnieri - parte 12

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nesse lamaçal lamentável de massas pegajosas de terra entremeadas de água turva nasceu uma flor obscura, esse lótus sitiado que é o meu segredo. este segredo é problema meu e é um problema só meu ele ser meu segredo. há um sufocamento de areia movediça plantado no centro desse meu segredo, que afogo e continuo afogando continuamente por anos a fio. a ninguém pertence a ciência da estrutura interna desse segredo, sua engenharia, nem a mim, onde ele cabe, que suas quinas, de suas pétalas de lâmina, de seu aço de carbono indetectável, se me pressionam os tímpanos, não sei como vem, de onde saem. só dói, quando suas agulhas derrubam lufadas desconfortáveis de um canto a outro desse salão deserto, no templo de andar inteiro do meu peito. quase sempre há um elevador interno, que troca de andar enquanto persiste a dor de seus cabos descendo do estômago ao sexo, como se despencasse, ainda assim, lento. quase não caberia no meu corpo esse problema se não fosse só meu, mas careceria compartilhá-lo, expurgá-lo, livrar-me dele, mas não seria assim leviano porque sobre ele há também o meu apego, que degenera aos poucos essa reserva, apesar de não sabê-lo inteiro, apenas uma pequena parte dele se deixa perceber, nem sempre com nitidez se forma sua imagem de nuvem.

não pertence a nenhum de vocês esse segredo só meu, aprendiz e mestre de mim, esse incômodo que se soubessem qual, dariam "graças a Deus, é daquele ali, não meu!" por isso deliberadamente desviam o olhar do espelho dos olhos, por onde começam a escorrer num túnel úmido, lágrimas salobras que lubrificam esse poço profundo, longe, lá dentro onde se esconde o problema, trancafiado, como uma evidência de crime atirada no centro frio de um lago congelado, no último dia do inverno, é lá onde ninguém quer olhar, sequer perceber que nos olhos daquele outro há uma fechadura, uma fenda, carecendo a chave de um outro olhar que destrancaria essa angústia, mas por enquanto desvia, evita, interdita, desliza para fora da briga, que bastaria o encontro desses dois olhares para arrebentar o cofre-forte, cujo interior sem ninguém apenas contém o som do segredo, se debatendo (um bicho), interminável e dolorido como um grito, o guincho de um mamífero no abate, lançado à morte, rumo ao próprio limbo.

nesse momento de extremo desamparo, que alma, que amigo comovido, que parceria solidária ofereceria algum alento ou calor? porque não pertence a vocês esse segredo plantado no lamaçal, essa flor, que ainda rego e alimento (quisera dar veneno. mentira), não lhe negaria a vida. me compadeço dela. porque desejaria acreditar nesse problema como a minha salvação (por que não?). e quase acredito nisso. talvez um dia ele faça estremecer o abismo, exploda a água aprisionada, ressurja como chuva, pra lavar a alma, uma granada amorosa que exploda o preconceito, a incompreensão, a ignorância. por hora, apenas esse desamparo desgraçado me abraça, arregaçando meus nervos, me colocando à prova até o último fio de cabelo. e me convenço a esperar um pouquinho mais, e mais, quem sabe se amanhã, ou no dia depois, quem sabe se daqui há um ano ou dois? até lá me olha no olho e diz: é com amor ou pavor que você se vê pelo espelho dos meus olhos?      

















imagens: arte cinética de Wang Zi Won



*    *    *



ACOMPANHE A SÉRIE!


PARTE 1

PARTE 2












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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.



Um osso do verso

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O cheiro que acorda a manhã tem raízes ocres.
E se se esquece a palheta?
E se se perde o horário?
E se tragando no tráfego no rádio no atropelamento na lembrança na resposta se se des-cobre o olfato? Digo, praquilo que é da Verdade, o não dito.
Que às vezes aquilo vem feito deus feito orvalho feito o rouco do locutor que erra o erre feito a cor dos pares. A dor dos semblantes. Mas isso tudo é muito pequeno, veja: já não se vê como toca. Como tolhe. Come-se. Sem olhar os dentes. Sem orar os crentes. Sim, senhora. Às vezes, deveras, vê-se sorrateiramente, quando a vida em estado comercial, de esguelha. Vezes se se cura com o sinal, vezes não. Que há o atropelo de som e de líquido e de insípido que é o. Isso. De ver que seja insípido. A sorte é que há sempre outros semáforos, há passos, há laços lassos. Do que se faz alimentar esses ó(s)culos. Pra ver melhor o não.

5 poemas de Mônica de Aquino

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Ilustração: Kimerajam/deviantART




Hoje, inaugurou-se
um segredo.

Tão pessoal
que incomunicável.

E, por isso mesmo
falso.




*
Na liquidez do instante
o traço exato.

Verniz que cede
ao aço

ácido.

(metal que subjaz   
silente).

Tua rotina mineral
dissolve-se
e ascende:

matéria-prima.

Em cada repetição
a perícia:

corroer-te
com arte
misturar-te a mim:

tua anti-rima
água
corte.

Água-forte.



*
para a plaquete “Cacaso, não por acaso” em homenagem ao poeta


Não por acaso
o verso fácil
de quem já sabe em si a pedra
do caminho a pedra          
docabralino verso
o concreto da síntese

e mistura tudo num pulo do gato
escaldado, o mesmo

que comeu o lirismo
que estava aqui.

Mas nenhum lirismo é um verso
que não é do seu poema –

e rima romântico e perverso.

Não por acaso a alquimia
de corpo e texto
na metafísica dos beijos

na queda de quem sabe a nuvem.               

Nem por acaso remar rio acima
com o verbo ágil         
de quem desce                      
a correnteza

no desejo de (re)conhecer      
todas as formas de delicadeza.          

Por acaso, talvez, a vertigem
da margem

no poema que nos contempla.



*
A violeta azul no esquadro
equilibrava o meio-dia.

A mulher que se encantava
com antúrios e orquídeas
sempre escolhia a flor miúda –
não era boa com coisas vivas.

Assim, quando vinha a morte prevista
jogava fora vaso e terra –
não tinha talento para restos –
ia ao supermercado da esquina
e comprava outra flor qualquer.

A beleza da janela
era provisória
e idêntica ao que conhecia.

Mas a casa nunca foi sua – e não seria
nem saberia sua raiz
na madeira antiga
Era, antes, de metal e de pedra.

Talvez se as janelas se abrissem
para uma outra janela
talvez.



*
O peixe que ontem
sugava transparências
amanheceu morto de excesso.
A morte é leve
e pesa a superfície.

Encheu-se o aquário
de vazios
e rastros esparsos sobre o vidro
confundem memória e silêncio.

O peixe que ontem
mastigava a ausência
destilou-me a espera.
A vida breve
dispensa a superfície.

Encheram-se de vazios
os meus restos –
iscas dispersas entre as águas
confetes que não me alimentam.

O peixe que ontem
distraía o absurdo
enfeitou amor e luto.

A vida é febre
e ferve, e agora

é recriar o aquário oculto
limpar vidro, excesso
líquido.

Limpar o peixe: comê-lo;
e transbordar

o vazio.


Nascida em Belo Horizonte, em 1979, e formada em direito pela UFMG, Mônica de Aquino começou a escrever bem nova. Aos poucos, as chances de mostrar seus poemas foram surgindo. Participou das antologias O achamento de Portugal, organizada por Wilmar Silva, e Panamericana, que teve curadoria do poeta catalão Joan Navarro.  Textos seus foram publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais e na revista Piauí. Oito anos depois de ter lançado Sístole, seu primeiro livro, publicado pela editora carioca Bem-te-vi, a escritora venceu do Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2013 com o livro Fundo falso, coletânea de poemas.

Poemas de Vera Lúcia de Oliveira

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Meninas


as meninas que da alma pulam
brincam de esticar
o tempo

com suas saias rodadas
dançam a canção mais pura
que aprenderam
correndo
entre as junturas dos ossos




As gabirobas

em nosso peito, pai, mora o frescor das gabirobas
amontoadas em sacos escuros de onde saíam folhas
de alguma floresta escura que penetravas sozinho
o cheiro enchia a cozinha a mãe corria para
apanhar as vasilhas os cachorros latiam sua sombra
nós espremíamos o sumo nos dentes e a penumbra
pairava nos bagos dos bosques açucarados





Ferrolhos

de uma cidade vim
que mora dentro de mim
nasci madura no dentro
de mãe serenando vento
num branco de madrugada
rasgado de trovoada
e vária, larga de olho
a cutucar os ferrolhos






Vozes

vozes na tarde porosas
penas de pássaros
sopradas enfiam-se
por frinchas escavam
nichos nos vãos
abrigam veias vagas
surdos corpos de som




A cicatriz

muita ferida posso
quer no amor quer no ódio
desatrelo freios
monto muito muro
divisório

reconstruo a cicatriz
como um arco romano
que nem o tempo
corrói




Aprendi o vento

aprendi o vento nas traves doendo
aprendi no escuro das traves
aprendi nas telhas
moendo seu sopro
aprendi como um bicho
aprende o uivo
de outro bicho
como a viga
o estalido
de outra viga




Os pássaros


os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto


(Todos os poemas acima são do livro Entre as junturas dos ossos.  Brasília, MEC, 2006)

Ilustração de Talarico

Nota bio-bibliográfica

Vera Lúcia de Oliveira, formada em letras pela UNESP, doutorou-se na Itália e é professora de Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia.Poeta, ensaísta, tradutora, organizou antologias de vários poetas, entre os quais Lêdo Ivo, Carlos Nejar e Nuno Júdice. Recebeu, em 2005, o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com o livro A Chuva nos Ruídos (Escrituras). Em 2006, o seu livro inédito Entre as junturas dos ossos recebeu do Ministério da Educação o "Prêmio Literatura para Todos" e foi publicado pelo MEC em 110 mil exemplares e distribuído nas bibliotecas de todo o país. A autora, que escreve tanto em português como em italiano, recebeu também outros prêmios nacionais e internacionais de poesia e seus poemas foram traduzidos e publicados em várias antologias no Brasil, Itália, Alemanha, Romênia, Espanha, França, Portugal e Estados Unidos.
Entre os livros publicados, estão Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio), Ed. da Unesp e Edifurb, São Paulo, 2002; A chuva nos ruídos (antologia poética), São Paulo, Escrituras, 2004; No coração da boca(poesia), São Paulo, Escrituras, 2006; A poesia é um estado de transe (poesia), São Paulo, Portal Editora, 2010; La carne quando è sola (poesia), Firenze, Società Editrice Fiorentina, 2011), Vida de boneca (poesia infantil), São Paulo, Editora SM, 2013; O músculo amargo do mundo(poesia), São Paulo, Editora Escrituras, 2014.



Arsénio Mota (Portugal) resenha Corpo de Festim, de Alexandre Guarnieri

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O regresso de Alexandre Guarnieri à poesia acontece com um algo epifânico Corpo de Festim. Este seu segundo livro – após Casa das Máquinas, Rio de Janeiro, 2011, que comentei aqui – traz um subtítulo expressivo: Antropoemas. Mas talvez o plural fique ali a sobrar para o leitor capaz de perceber na obra o poema unitário que nela se contém, afinal uma aantropogênesepoética.

Obra rara, portanto. Não por abolir as maiúsculas dos textos (excepto no poema final) e usar sinais gráficos – barras, parênteses, colchetes, vectores: sinalética pessoal – ou grafar nomes próprios em itálico. A raridade da segunda obra de Alexandre Guarnieri avulta porque evoca as etapas que conduziram ao nascimento da humanidade na natureza, “até que…” 

Sim, “até que…”, na sucessão cataclísmica de fenômenos cósmicos, ou seja, após o big bang primordial, se formou o ambiente terrestre, matriz da vida, no terceiro planeta deste Sol situado numa franja da Via Láctea. Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014) consagra o primeiro capítulo ao tema: átomo de carbono e, logo, a sangue, suor e celulose; útero, incubadora, até atingir terra firme. 

O Poema invoca portanto a maravilhosa epopeia do nascimento da humanidade com uma força quase épica que se expande no capítulo seguinte. O corpo vivo, formado por evolução milenar, lembra-me a “casa das máquinas” com seus órgãos internos, filtros, baço, rins, fígado, coração, pulmões, e uma mecânica de fluidos, sangue, suor, lágrimas, saliva, sêmen, leite materno, urina, pus, etc., e pele, cabeça, ombros, joelhos, pés, ouvidos, olhos, rosto. De facto, “darwin não joga aos dados, mallarmé sim”… “até que…” 

Os elementos anatômicos são aplicados no Poema de tal modo que aparece construído como um organismo textual dotado de membros e respiração. Logo, o Poema humaniza-se. Mas no terceiro e último capítulo, “vigiar e punir” (onde sobressai o poema “cotidianometria”), sobrevém o trágico desgarramento que a imagem da capa explicita – a degradação do Homem acorrentado. 

Corpo de Festim mergulha finalmente nas tragédias humanas do nosso tempo com expressões de violenta rejeição, repulsa, horror. Cito: “Não há (…) algo que resolva o medo a náusea o mal estar da civilização”, “quando a doença e a cura, indissociáveis siamesas, já são partes da mesma mistura” (pág. 46). Uma saída: “desaparecer de vez” como Houdini, o famoso mágico. 


Alexandre Guarnieri (n. Rio de Janeiro, 1974) tem o cuidado de advertir, em parte inicial da obra, que ali “há páginas em que apenas a aparência é pueril / decifrá-las nem sempre é fácil, há vários níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, o seu sentido” (pág. 23). E tem a consciência de que alguém, “se atravessa a ponte / abdica de um dos lados” (pág. 97).






resenha publicada inicialmente aqui




Foto: espetáculo "Teu Corpo é Meu Texto", da Studio3 Cia. de Dança.



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LEIA POEMAS DO LIVRO

AQUI (escamandro),

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OUÇA POEMAS DO LIVRO

AQUI (por Tavinho Paes)

& AQUI (por Adriana Aneli)



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Arsénio Mota, escritor português (1930- ) estreou-se em 1955 começando a publicar poesia e, em seguida, ficção, crônica e estudos diversos. Viveu cerca de três anos em Caracas, Venezuela, e em 1963 fixou-se no Porto para se dedicar ao jornalismo. A partir de 1985 marcou presença na literatura infanto-juvenil. Dedicou-se ainda à tradução e organização de antologias. Em 2005, Serafim Ferreira organizou o livro comemorativo Arsénio Mota - Cinquenta anos de escrita. Dispersou abundante colaboração, nomeadamente apreciações e recensões literárias, por livros de vários autores, revistas, suplementos literários e jornais.









Alexandre Guarnieri
 (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.

Dois Poemas de Caio Cardoso Tardelli

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Na noite inerte, como se visse
Um luar estendido no jardim,
Vi tua sombra triste vindo a mim...
As flores transpiravam meiguice

Como se a lembrança as sentisse
Na flórea tristeza do jasmim...
(Vagava a eternidade no jardim...)
E sem que o meu pobre olhar visse,

Caminhavas para a minha alma
Com os passos tácitos e sombrios,
Qual um longo véu que se espalma

Secretamente nas almas quedas...
Eu era, então, uma folha sobre os rios
Que sonham ao luar das alamedas...

-

PERSCRUTAÇÃO

Quanto mais em meu ser adentro,
Com ávido afã, instinto de noite,
Mais a descrença nele concentro
E às vãs tormentas dou acoite...

As florestas primitivas desbravo
À luz da tarde que morre encantada...
E eu me adejo, em sonho flavo,
E não me encontro... não vejo nada!


Um Abraço Preso na Garganta - Conto de Maria Balé

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     O barulho da chuva que cai no metal da janela do quarto se antecipa ao despertador. Ele abre os olhos. Lentamente. Olha para o relógio. É cedo. Tem um tempo, ainda. Cede aos apelos das pálpebras superiores que, sem resistência, voltam ao estágio anterior. A noite, insone, passara arrastada.
Sem saber ao certo se é cansaço ou melancolia a causa da impenetrável espessura das horas, ele decide levantar-se. Permanece mais um pouco sentado na ponta da cama e, na tentativa de aliviar o peito comprimido pela angústia, respira fundo. Incontáveis vezes. Técnica de controle de estresse que aprendera num estágio nas Forças Armadas do Canadá, nos primórdios da sua juventude.
      Dispensa o desjejum e prepara-se para a viagem, há semanas, planejada. Às sete, em ponto, lá está ele, Treserres, apelido de Radamés Rodrigues Rangel, o motorista da empresa de transporte contratada.
         Viajar, desde sempre, é uma de suas paixões, não importando se a trabalho, para um destino turístico badalado ou um lugar exótico como São Tomé das Letras. Ou dos Números, talvez. No entanto, essa partida suprime a excitação e a alegria de tantas outras.
        Os respingos da garoa rala de final de outono no vidro da janela do carro remetem à tela vazada que cobria o berço das crianças. Nenhuma conversa. Sequer uma palavra. O pensamento, deslocado daquela data, vai e vem, na intermitência das lembranças daquele menino. De dois, o filho preferido. Seria por ser o mais inquieto e arredio? Alto, forte, grandes olhos azuis como faróis no anguloso rosto selvagem e bronzeado, sua imagem insiste em vestir-se com o uniforme militar camuflado. É assim que aparece na foto ampliada, em destaque na parede do quarto dos garotos, fantasiado de Rambo, nas recorrentes brincadeiras de moleque.
        Elias, nome escolhido em reverência ao personagem de Willem Dafoe, no filme 'Platoon', o clássico drama de guerra americano e o filme da vida desse pai, ex-militar e ex-combatente. Não raro, num quê de orgulho pelo heroísmo alheio, refere-se ao filho como 'Sargento Elias', uma alusão ao seu desejo de que seu rebento tivesse a força de caráter do aguerrido soldado de Oliver Stone.
         Zeloso, cuidou do futuro dos filhos como se cuida de uma planta medicinal que salvaria vidas, nos longos períodos de treinamentos na mata.
      Os matizes alaranjados da metrópole poluída dão conta que, enfim, chegaram.
         Como a noite anterior, a viagem fora viscosa. Com as mãos, ele tenta desamassar a roupa, calça jeans azul-claro e a elegante camisa de tricoline branca. Alonga as pernas e o dorso, respira fundo, incontáveis vezes, para se recompor e vencer os seis degraus da pequena escada.
         A passos largos, percorre a estreita alameda externa e adentra à pequena sala de espera. Estar ali, tão perto, alivia a ansiedade pela longa espera. Nem cansaço nem melancolia. Em minutos, seus braços prenhes de abraços, encontrarão o filho. Sem pressa, acalentará seu Rambo-mirim. Seu adorado 'Sargento Elias'.
         As medalhas, as condecorações e honrarias se esvanecem frente à felicidade daquele momento.
       O agente de plantão convoca a visita para Elias de Albuquerque. Num salto, o pai posta-se diante da grande porta na parede do sorumbático corredor que leva ao pavilhão contíguo ao prédio da frente, onde o silêncio só é interrompido pelo eco da solidão nas vigas das grades.
     Minuciosamente revistado, encaminha-se para o ansiado encontro com o filho que, preso em flagrante, aguarda pelo julgamento por tráfico de drogas nas dependências da estrelada universidade da qual, bom aluno, fora desligado do curso de Engenharia Naval. É a primeira visita, desde a sua prisão, há pouco menos de dois meses.
      Inocente? Culpado? Se inocente, ele precisa de mim. Se culpado, precisa mais, muito mais, pensa o pai, ao som metálico dos seus passos apressados.
       E lá está ele, o filho, do outro lado da masmorra. Tudo o que pode ser visto, por um estreito vão que corta a parede, é o olhar fosco de turquesa bruta. Nada além. Nenhum contato físico. Nenhuma conversa. Sequer uma palavra. Apenas um abraço preso na garganta.






Maria Balé escreve conto, crônica e poesia. Mora em São Paulo, capital. É pós-graduada em Comunicação Corporativa, produtora de páginas e fotógrafa.
Publicou aqui em Mallarmargens e nas revistas eletrônicas Germina, Diversos Afins e Algo a Dizer. Também integra a coletânea de poesia organizada por Luís Brás, Hiperconexões: realidade expandida.

Foto da autora: arquivo pessoal
Ilustração do conto: Cena do filme Diamante de Sangue, de Edward Zwick

INSTALAÇÃO DE ADRIANA FONTES NO RJ (PALÁCIO DO CATETE)

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VESTES, VESTÍGIOS, RASTROS DO TEMPO

Instalação de Adriana Fontes
inaugura temporada de férias na
Galeria do Lago

Exposição abre em 13 de
dezembro e vai até 1º de
fevereiro

Uma maneira poética e inusitada de visitar o Palácio do Catete. É o que propõe a instalação Vestes, Vestígios, Rastros do Tempo, da artista visual Adriana Fontes, na Galeria do Lago. A exposição, a ser inaugurada no dia 13 de dezembro (sábado), abre a temporada de férias na galeria de arte do Museu da República, quando a instituição recebe seu maior público. Com curadoria de Isabel Portella (coordenadora e curadora da Galeria do Lago/Museu da República), a instalação fica em cartaz até 1º de fevereiro.

A instalação é composta de dois vídeos com fotos projetados em tecidos fluidos que pendem do teto. As imagens e a trilha sonora remetem ao palácio como um local imaginário, transportando o espectador a outros espaços.

Ao longo de 12 meses, Adriana Fontes foi capturando imagens e sons do local, como numa “conversa” imaginária com o palácio, palco de tantos acontecimentos sociais, articulações políticas e momentos de comoção nacional. A pesquisa transformou-se num site specific, um trabalho exclusivo para a galeria, criado a partir de estímulos sensoriais e poéticos do local.

“A exposição poética visual de Adriana Fontes traz a possibilidade de olharmos de forma diferente para o Palácio do Catete, onde tantas histórias se passaram e tantas camadas de tempo se sobrepõem”, explica a curadora. 







SOBRE A ARTISTA

Adriana Fontes especializou-se em Figurino Histórico Teatral e Cinematográfico, na Escola Arte
Moda, em Florença (Itália); e em Pintura na Escola de Belas Artes Massana, em Barcelona
(Espanha). Graduou-se em Licenciatura em Artes pela Bennett/RJ, fez pós-graduação em 2
História da Arte e da Arquitetura no Brasil na PUC-RJ, e mestrado em História Social da Cultura
também pela PUC-RJ. Fez diversos cursos de pintura, desenho e escultura na Escola de Artes
Visuais do Parque Lage. Foi Professora de Artes (e Figurino) em projetos culturais e em cursos no
Rio de Janeiro, como na Universidade Estácio de Sá (RJ). Foi Cenógrafa e Figurinista em diversas
produções teatrais e cinematográficas, como o grupo O Tal. Atuou no Atelier de Cerâmica,
desenvolvendo peças escultóricas e utilitárias. No campo de Arte e Educação, trabalhou em
importantes projetos, como o Núcleo de teatro da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ);
Programa Educativo do CCBB – RJ; Núcleo de crianças e jovens da Escola de Artes Visuais do
Parque Lage (RJ); MAM Educação (RJ); e Centro Cultural Telemar (RJ). Fez pesquisa histórica de
arte para a novela Paixões proibidas. No Museu Histórico Nacional (RJ), realizou a exposição
Caminhos de Santiago; Arte no Período Românico em Castela e Leão. Fez a coordenação
pedagógica do programa educativo do Museu das telecomunicações/Centro Cultural Oi Futuro
(RJ). 





Os Invasores - Diego Callazans

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Ilustração: David Preissel


   Não estava convicto de, ao chegar, ter dado as duas voltas de costume na porta. É provável que o tenha feito, mas não sabia ao certo. Não era raro sentir-se assim. Certa vez retornara sete vezes para verificar, perdendo um compromisso importante, o que arruinou sua primeira oportunidade de promoção em mais de vinte anos de empresa. Por certo, seu chefe daria um riso curto e gentil se soubesse a razão do atraso – um riso de quem diz “só você” – e não seria preciso pedir desculpas, como o fez tantas vezes, o que tomou preciosos minutos de um dia cronometrado. Tão esdrúxulo e banal era o caso que renderia piadas para o bar na sexta. Ele mesmo riria, entre a tônica e o suco. Não que lhe fosse engraçado. Mas por tanto tempo convivera com suas manias que, como em longos casamentos, não mais se levava a sério. Seria um caso para divórcio, cansado que estava dos  rituais, dos receios, dos segredos. E, a bem da verdade, o sexo já não era dos melhores.
   Não era sem cansaço que remoía as lembranças pela certeza das voltas na porta. Suas ranhuras comportamentais tanto o irritavam que ansiava pela oportunidade de se livrar de si. Era isso – e a forma como a lua cheia lembrava-lhe a mãe doente, coitada!, que tomara uma dose excessiva de barbitúricos e fora dormir nos braços do Abismo – que tinha em mente no início daquela noite estranha de Agosto, quando seu irmão foi visitá-lo e quebrou o braço. E agora, ossos expostos, acalentava com seu arfar contínuo a criança inquieta que arrastou consigo.
   Não havia como ignorar seu braço aberto ao vento, e o modo como sua vida parecia escorrer pela boca. Não estava distante o socorro. Diziam não ser enxeridos os médicos. No entanto, como sair da cabana se, quando observara da última vez, a porta para a mata estava aberta e o rifle – só imponência, sem balas – tão bem oculto, por conta da visita do menino?
   Buscou na cachola o traçado da manhã – longínqua para uma mente vaga, dada a minotauros – quando a arma, sua salvação relutante, fora guardada. Não a encontrando em canto algum do almoxarife encefálico, voltou um pouco mais, ao dia em que a trouxera pra casa. Não conseguiu firmar. Rememorou, então, os passos até a loja de caça anos antes, tentando reconstruir quadro a quadro toda a cena, mas desistiu porque os lapsos geravam sombras dançantes, que, ao se deterem mais na lembrança, ganhavam como que dois olhos.
   Sua visita à loja podia ter sido infrutífera – ou não ter sido. Não havia como garantir que tinha comprado o rifle. Resolvera, isso sabia, adquirir um da última vez que ouviu os ruídos. Talvez dera por concreto o que era tão só intento. Na tentativa de restabelecer as ideias, apelara demais ao delírio. Não seria o primeiro caso.
   No dia anterior, ao desfrutar de seu melhor assento, dera com o duro chão carcomido da sala de estar. Questionara de pronto quem lhe tirou a poltrona, depois se o haviam feito e, por fim, se já tivera uma. Olhando ao redor, concluíra que não. Diversos outros móveis que julgava possuir também não estavam lá, o que o levara enfim a constatar a discrepância entre as coisas em si e sua impressão delas. O que disso resultou foi um vazio que ele podia guardar entre as mãos e que não quietava em canto algum do corpo.
   Somente o fumo lhe aclarava a vista. Foi até a estante por seu  cachimbo, e foi uma surpresa achá-lo. Ardeu a erva e pitou. Andou pela cabana a pôr neblina nas vagas. Deliberou suas sandices. E concluiu, não sem riso, que os objetos desapareciam quando esquecidos. Era preciso lembrar-se deles continuamente ou poderia perder-se em expectativas. A ideia encheu-o de temor – e delícia. E o esforço pra tê-la amplificou o cansaço. Foi pôr-se à rede pro merecido repouso e deu-se à noite, com suas carícias de sândalo. Sua mão desceu ao submundo para aventuras proibidas, e isso lhe devolveu a altivez.
   Teria dormido não fossem os gritos do quarto ao lado, vindos do irmão e sobrinho. Perdera a poltrona, o rifle e agora o sono. Mas estar atento era o caso, com a porta aberta pra mata.
   Arrepiou seu senso a certeza de que já não era o caso de trancas ou rifles que não existiam. A porta estava aberta há algum tempo. Um dia esteve fechada? Não mais sabia. Moveu-se só o tanto para subir os lances e dar os passos que o levaram ao quarto. E lá ficou com os parentes, calados.
   Fincou os olhos numa fresta por movimentos externos. Se invadiram a cozinha, calculou – decerto que o haviam feito! –, não tardaria chegarem ao saguão e assim tomarem a escada. Nada difícil a um deles, a qualquer um, galgá-la em bem poucos lances. E logo estariam na entrada do quarto.
   Ele mirou pela fresta. Não via senão frações do imóvel. Ao coletar os fragmentos e reuni-los, a imagem formada era menor do que a versão da casa que guardava na ideia. O vácuo que a mente gerara enfim sugava o ambiente. A cabana se encolhia para caber no conceito. E seus ruídos comuns se distorciam para moldar-se ao espírito. Ouvia vozes. Viriam de baixo. Por certo tomaram o saguão, e subiriam a escada.
   Voltou seu rosto para o irmão, que parara de gemer por conta do braço, que uma das criaturas – por certo – quebrara, e agora respirava lento e baixo. O menino fixava, no tio, seus olhos sentenciosos, a arrastá-lo ao abismo. A correnteza era forte; tomou distância. Moveu sua atenção à porta, aos invasores. Mas o olhar do menino ainda puxava. Era tal peso que apagava a criança. Seu tio adivinhou, ainda de costas, que ao virar-se não mais veria. Já não estava. Mas seu olhar punha arranhões nas paredes, sangue no piso e rombos na janela. Tentou argumentar consigo que o pequeno abandonara o quarto, assustado com os gritos do pai espancado. Mas não havia outra saída, senão a porta que o largo corpo do tio bloqueava.
   Era preciso que houvesse outra saída do quarto! O garoto não estava lá! Seu tio acorreu à janela. Trancada. Pregada. Do lado de fora do vidro frio, a mata era borra ao leite. Notou que não estavam no andar de cima. Talvez não houvesse um andar de cima. Nesse caso, não havia escada. As criaturas estavam mais próximas do que supunha. Batiam à porta naquele instante. Seus sons lembravam uma voz grosseira. Como a de um homem que conhecera no bar e o convidara à sinuca. Quis sorrir; segurou. A familiaridade, por certo, era uma artimanha dos monstros, pra evitar resistência. Não que fosse durar muito. Já não dormia há três dias. Se estava lúcido, era à força.
   As criaturas vinham do lado denso da mata. Mantinham certa distância da casa, mas os infantes as atraem. Por isso, não era bem-vindo o pequeno. Ele falara ao irmão. Avisara. O menino agora devia estar lá fora, à mercê das feras. Nada podia fazer. Nada podia fazer. O tempo estava contra ele, o tempo. Não seria possível ou aconselhável arriscar-se a uma busca. Não seria.
Como estava frio naquele quarto fechado, em Novembro!
   Olhou o irmão mais uma vez. Estava calmo. Nenhum ruído mais vinha de sua boca azulada. Os sons externos, porém, aumentavam. Ele avançou contra a janela com uma cadeira. Não havia cadeira. As mãos sentiram o impacto. O vidro arrebentou, ensanguentando-as à altura dos pulsos. Sentia os cacos nos vasos. Chegariam ao coração muito em breve, como monstros tomando o pátio interno. Os invasores venceram. Sua respiração alterou-se. Seu peito batia com o tique-taque de uma armadilha caseira. Abria e fechava, lançando-o, já fraco, para frente e para trás, como um marinheiro virgem que descobre o amor e a sífilis num porto longe do lar.
   Mirou o irmão. Seus olhos vítreos, em horror palpável. Notou, enfim, como se lembrasse, que além do braço quebrado, seu irmão também ferira o peito e a perna esquerda, e tinha o rosto marcado. Trazia ainda a traqueia exposta por um pedaço de vidro, que se encravara bem fundo. Essa chaga fizera com que tremesse inteiro. Dela espirrara sangue por todo o quarto. Mas estava agora já calmo; já tudo em paz.
   O ruído no exterior foi por instantes interrompido, depois ganhou novo corpo. Poriam abaixo a porta. Quis impedir, não podia. O cansaço se apossou de seu corpo. Ele pôs-se ao chão pra morrer, com seus parentes. De um lado, o irmão exangue. Do outro, o sobrinho, envolto numa manta, com uma marca roxa na glote.
      Dormiam todos em berço aberto. Teriam sonhos?
Rompeu-se a última barreira ao avanço, com a porta abaixo. Logo foi fim do ruído. Olhos correram, nervosos, por todo o quarto. Uma criatura recolheu-se a um canto, moída. As outras trataram das formalidades.
   Os invasores haviam, enfim, tomado a cabana.




Autor do livro A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013), Diego Callazans nasceu no dia 26 de julho de 1982 na cidade baiana de Ilhéus. Mora em Aracaju desde os cinco anos. Vários poemas seus foram publicados em revistas literárias – tanto impressas, dentre as quais a Celuzlose, a Novitas e o Jornal RelevO, quanto digitais, como a Mallarmargens, a Diversos Afins, a Blecaute e a Reversos. Seu segundo livro de poemas está no prelo. No momento, desenvolve seu primeiro livro de contos.

Titereiro de Edison Veiga - lançamento e poemas

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29/01/2015  - Lançamento do livro Titereiro, poemas de Edison Veiga. O evento será realizado dia 29/01 (quinta-feira) a partir das 19h no Bar Canto Madalena,  Rua Medeiros de Albuquerque, 471,  São Paulo - SP. 



Se eu pudesse 

se eu pudesse
pularia minha vez,
nem que eu fosse
uma tosse
dessas que passam
em três dias.

se eu pudesse
seria dois, seria três.
ou logo dez
de uma vez:
abriria uma franquia
de mim mesmo.

mas não sou texto
nem presto.
então não posso nada:
meu resto
só suspira
colhendo madrugadas.




Receita

Extrair
da dobra o nada
da obra o cada
do cadarço o ranço.

Depois
perder tudo.

Perder-se
agulha na palha
cachorro louco
caminhão.

Depois
prender tudo.

Com um clipe especial
tamanho GG
prender: caminhão
dobra cadarço
cada obra
nada ranço
louco palha
agulha cão.
Prender-se
a chaves, muitas.



Desolado

Mudar o mundo?
Desisti...
Deus não admite concorrência.




Convite pra vida

Vem ser vento
Que o vento sopra
Só pra vencer




Mais triste que ser lua é ser loser minguante

No meu sonho
todas as pessoas são tristes.

A diferença
é que umas constroem pontes

Outras
se atiram lá de cima.





Edison Veiga nasceu em Taquarituba (SP), em 30 de agosto de 1984. É jornalista e escritor, autor de Mingutas (Patuá, 2011), O Menino Que Sabia Colecionar (Panda Books, 2012),  O Theatro Municipal de São Paulo: Historias Surpreendentes e Casos Insólitos (Senac, 2013), entre outros. Mantém uma página no Facebook com curiosidades históricas de São Paulo (facebook.com/paulistices), extensão de sua coluna publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo e em blog do Estadão.com.br (oesta.do/edisonveiga).




O talento e a reflexão na poesia de Difunta Correia - 7 poemas

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apresentação 

Mais velha que Funérea
Escalpelada pela vida
Filha relegada das Parcas
Maldita como as malditas

Sou o que sou;
O vírus mais pervertido
O Ebola que evola
Um abismo no abismo.  


perspectivas do de cujus 

Em pé no caixão
— Com as mãos sob o ventre —
Observa-nos com seu semblante cerrado e corado.

Para ele, estamos deitados
— pálidos —
Nós, que já morremos. 
  

retrato de velhos tempos 

Em cada repartição
A foto insossa do presidente
Reproduz
O seu governo.

Nos hospitais,
A bandeira hasteada
Parada, inerte,
Murcha
Porque não venta. 


canção perdida   

1. 

Fora da Terra
O sol brilha
Incessante
Na noite
Enegrecidamente
Bela
Escarlate
Escura 

2. 

Dentro dela,
Em algum lugar chove
E
Uma
Velha
Canção
Toca
Perdida
Pelos
Anos.



UT-I-ML 

1.

Tudo começa
com
o ríctus
cínico
e
debochado
da
morte;

A solércia atrevida
O último vagido
Um ruflar
Estertorado
   
2. 

A nuvem turva
Se pôs no firmamento
O hausto vem vindo lentamente
Agonizando
O claustro
Delirante

A um passo da morte
Recordo-me dos que já morreram.


rabecão 

Atrás do Rabecão,
Uma carreata;

Na frente,
Os vivos
Correndo
Desesperadamente
Como se não fossem
Uma coisa só.


reduto

O corpo álgido
Repousa
No féretro
Brilhante e telúrico
— Etéreo e imarcescível —
Áureo como o algar.


perfídia 

O fim de ano
Coroa
O sepultamento
Autopoiético
E
Antropofágico
De
Uma
Civilização
Esquizo-suicida

O fim de ano
Coroa
As promessas
Antípodas
De
Uma
Corja
De
Excomungados;

O fim de ano
coroa
o
fim
de
um
ciclo
e
o
pérfido
início
doutro
natimorto.



Difunta Correia é uma defunta. Escreve, trimestralmente, para o site das Escritoras Suicidas. Não a confunda com a Difunta Correa - a Santa que amamentava mesmo estando morta. Com silicone estourado e os peitos murchos, está longe de amamentar alguém. A gravidade é uma merda.

Ilustração: Diego Rivera

THOMAZ ALBORNOZ NEVES - 5 POEMAS

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5 POEMAS DE“SOL SEM IMAGEM” 

  

 De costas, Rio, 1993.*

         O TOURO CEGO


O campo é estelar. Sem céu
O vento entalha esses no ar

A curva do arroio repele
o véu do orvalho caindo

Da pedra moura, com sede
o touro cego olfateia

O pasto se afasta em onda
Em espirais os ciprestes





         O CORDEIRO


À noite, entre os girassóis
os olhos fixos no céu
gira o chão sob o cordeiro

Em anéis o envolve o vento
(conchas de ar têm por centro
dragas, fundos de fontes)

E ao movimento de ralo
da constelação se move
o halo dos cornos nascendo





 Poeta dormindo, em Mimesis, de Auerbach, Roma, 1989.*



         POETA


Ao escrever
hora a hora ante
o vazio

Ouço abrir
anéis de silêncio
onde pouso o olhar

Ocos ecoam arcos no ar





         O VASO


Ao canto da parede branca
o vaso branco

a reta retém   a curva ecoa





  Moira, da un disegno di Boris Ender, Lavinio, 1990.*





         O SONO (fragmentos)



II

Tua aura
expande
o espaço


Para que o infinito
possua centro
tua nudez sonha a si mesma



III

Tua luz
              dissipa
                            as formas


No lago de calor
sou ar acorrentado



VI

No escuro
mergulhada em água rasa
o luar de tua nuca sonha ser face



VII

Do jade que há no ar
nasce o gesto

Rastro de pérola enegrecendo



XII

Tua aura
                   ecoa
                               no ar


Aurora no vazio



XIV

És
       ouro
                   onde não há luz


Dormes no cristal escuro
Um fio de relva divide a transparência



XVI

É dia


No centro
                   da luz
                               raias


A luz é tua sombra





THOMAZ ALBORNOZ NEVES
(Santana do Livramento, RS, 1963). Autor de Renée(1987), Sol sem imagem (1996), Exílio (2008), entre outras reuniões de poemas. Chama de esforços de leitura suas variadas traduções de versos, resultado dos anos vividos no estrangeiro. Graduado em Direito, é Mestre em Literatura. Da sua experiência no circuito profissional de golfe escreveu "Golfista" (2015, no prelo). Atualmente cria gado no Lunarejo, fronteira com o Uruguai.

* Croquis do Autor.


Sir Hipocloro, Cavaleiro do Cavalo Baio

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Descalço no asfalto
Não é então assim
Você todas as vezes?
A vida que eu levaria
Se existisse um Deus

Com certeza não seria Cor Wahabita,
Pra ele não querer ou conseguir
Traduzir na natureza
E ficar "descorado ou baio"
No fim de tudo.

Com certeza não seria
Um turquesa bruxuleante
Notando a presença do fósforo verde
Ainda que a sombra
Estivesse em outro universo.

Descalço no asfalto
Renuncio ao meu apocalipse
Crucifico o próprio ódio
Em meus tridentes de morcego


Mas depois pra aliviar o clima
Eu conto uma piada.


"CORPO DE FESTIM", O DE “HUMANI CORPORIS FABRICA” DE ALEXANDRE GUARNIERI

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por W.J.Solha



Por coincidência, fiz a resenha, há poucos dias, do novo livro de Biu Ramos, ERRE BALADA, categoria “lombra”, da editora Beleléu, em que o dito R. morre “com uma faca nas entrelinhas”, pelo que se lê no seu epitáfio isolado na última página:

Aqui jaz Digitus Erre Linhares.
Cap. 1, pag 13  –    cap. 25, pag. 98.
Sua vida foi um livro aberto.



Guarnieri escreve na página 16 de Corpo de Festim, em sangue | suor / e celulose (ii):
o sal que cada talho
encontra, arde, demora a curar
a chaga criada por cada frase exata /
todo golpe, pancada, cada agressão
que se aplique, fulgor, alarido de sílabas,
busca sobrepujar no parágrafo o que tinja
ou apenas preencha a claridade da página,
que seu terreno, até então anêmico,
esteja repleto / são números e letras
de chumbo o suor de sua pele impressa.




A fusão corpo-livro é corroborada na página 24, em \\ livro aberto //:

de pele é revestido o corpo, tecido
vivo \ no livro, chama-se capa
( o couro sob o título ) \ abri-lo:
gráfico grito \

Bem, pergunta-se: por que isso, em Alexandre e Biu? Porque não querem o leitor ofuscado pela ilusão literária. Buscam  o “distanciamento brechtiano”.

Wikipédia:
O efeito de estranhamento, distanciamento foi prática comum no teatro do início do século XX na Rússia e na Alemanha, principalmente entre os encenadores Erwin Piscator e Meierhold, assim como nas representações do agit-prop soviético. Este conceito se torna conhecido mundialmente a partir dos trabalhos teóricos de Bertolt Brechtseu objetivo é tornar claro ao espectador que ele está frente a uma obra de arte, de que a representação teatral é uma ilusão.

Bertold Brecht

Talvez nem fosse necessário. O título já é bastante eloquente. Google de novo:

Significado de Festim
s.m. Festa particular.
Refeição de pompa, banquete suntuoso.
Cartucho sem o projétil ou bala para tiro simulado.

“Banquete suntuoso”. Corpo de Festim é um banquete suntuoso, sim, como outro livro do poeta, que, aliás, teve na capa a mesma cena de Metrópólis ( filme que gira em torno de um robô ) de que me servi no  segundo de meus três poemas longos:


Quando aos cartuchos sem chumbo, veja como apareci em 1969 – pistoleiro de aluguel - no meu primeiro filme como ator:



Logo de cara dou vários disparos de meu 38  em minha vítima, que cai morta sobre um tabuleiro de gamão. Na vida real, porém, desviei minhas balas de festim – por um lance de intuição -  numa velha porta, milímetros à esquerda,  e todo mundo se assombrou, em seguida, ao vê-la com cinco buracos feitos pela cera.  Assim, fulminantes, são os versos de Guarnieri. Porque têm muita beleza e força.

Seguindo uma mesma linha – que vem de Casa das Máquinas – o corpo humano, de CORPO DE FESTIM, é – como vimos – literatura... e máquina, provando que é possível assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Outra coincidência: acabo de adaptar para teatro o romanceamento do Édipo Rei,  que é parte de minha História Universal da Angústia ( Bertrand Brasil,  2005 ), onde se lê isto:

ÉDIPO – (...)  Sei que somos todos robôs da trilionésima trigésima primeira geração, o modelo R-3.000.031,  e que nos autorreproduzimos levados pelo “amor”. Com aparente autonomia, acabamos acreditando até que temos alma – eterna – e que somos livres. Porém.... quanta coisa desconhecemos de nossa programação e funcionamento, inclusive os labirintos de nossa mente!
Isso não é nenhuma novidade: Hamlet já diz sobre si mesmo, em sua tragédia, ato II, cena II:   this machine.

Hamlet Machine é uma obra do dramaturgo e escritor Heiner Muller, um dos grandes nomes do teatro alemão. Foi escrita em 1977 e inspirada em Hamlet, de William Shakespeare.1 Na peça aparecem as catástrofes da história e da cultura ocidental, além da crise do artista e intelectual, dividido entre o desejo de se transformar em uma máquina sem dor ou pensamentos e a necessidade de ser um historiador desse tempo conturbado do século XX.2




O médico francês Julien Offray La Mettrie, em seu ensaio L’Homme-Machine [O Homem-máquina], desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano, não só através do estudo de seu próprio corpo, mas também de sua alma. A partir de seus estudos sobre ciência natural e anatomia, La Mettrie defendeu sua tese especialmente ousada para a época, dominada pelo pensamento cristão, de que o corpo humano é uma máquina que funciona mediante uma mecânica metabólica.

Novidade ou não, é o modo de meu Édipo entender como pode haver um destino mecânico, fatal, do qual não consegue se livrar. É o modo de Guarnieri fazer uma novíssima leitura do ser humano, pondo o corpo  como objeto de grande beleza,  como a que as máquinas, resultado de uma lógica funcional, sempre têm: 


Beleza. Daí que a todo momento ele reinventa a poética e a estética, enquanto disseca ( ou monta ) o Corpo de Festim, como se o fizesse com lápis de ponta extremamente fina:


( na ampulheta viva /
sangue é tempo )
(...)
com endereço fixo, todo homem tem o corpo como o próprio logradouro.

(...)
( Do crânio ) escapam-lhe tantos juízos – como se fugissem pássaros

(...)
acompanha o corpo este túnel obscuro,
dúbio / lúbrico, sujo / úmido, ao
longo da coluna – quando ereto, sua
verticalidade se sujeita à força da
gravidade e quando não, há tão somente
– silenciosa – a peristalse;

Corpo de Festim – “Antropoemas”, como se define -  é resultado de toda a cultura ocidental. Fatal que gere comentários eruditos como os de Mauro Gama e Jorge Elias, que encerram o livro, E nele mesmo rolam nomes como – de repente - os de Botero e Giacometti pra falar de corpos que vão de um extremo a outro, em termos de volume,

ou da obra de Christo, para significar “pele”.


O final é antológico. Como um grande monólogo, em  que ele diz coisas como
EU fundo o poema
no qual me refugio sozinho (dr. jekyll ou mr. hyde),

(...)

Frankenstein (criador e criatura),  sou o autor deste poema (onde o
excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o
prisioneiro solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados

Que dizer de Corpo de Festim, depois disso?

Guarnieri me lembra novamente o Biu Ramos:

(...)
desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro de
letras ciciosas e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo do
outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento,
austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho
do trono da alteridade), eu me livro de você.

eu me livro de você.

OK, Ok, eu já estava de saída, mesmo.



*    *    *





Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941), é um escritor, cordelista e artista plástico brasileiro (radicado em João Pessoa, Paraíba, desde 1962). W. J. Solha tem passagens também pelo teatro e pelo cinema. É autor, entre outros, da trilogia de poemas longos "Trigal com Corvos" (2004), "Marco do Mundo" (2012) e "Esse é o Homem" (2013). Leia mais sobre o autor aqui e aqui.








Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.

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