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O Poeta e o Poema - Willian Delarte

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Ilustração: Hord Beniamin



o suco de um coração moído não embeberá a poesia
a razão em sóis diluídos não a clareará
o poeta morrerá sem que o poema:

expurgue uma só emoção
arranhe qualquer questão
coce dois ou três dilemas

(nenhum verso poderá salvar a alma do poeta ...)

imprestável, descartável,
o poema é adereço inútil em sua sombra,
uma droga anti-analgésica que lhe consome
como um jeito doce do amargo saborear

(e não o salvará ...)

o que nasce da sua vontade de libertação
é opacidade na representação do dia -

do ritmo,
do belo,
da própria alma da poesia

(e nunca o salvará ...)

o poema é um espectro fosforescente numa noite escura
o poeta, de binóculos, só enxerga o que não vê
na varanda onde o poema dorme sem textura
um dedo o tateia em braile, mas não lê

(e jamais o salvará ...)

surgirá como uma azia sutil
qual célula gorda e cabeluda
no pé da garganta, que abriu
uma fenda entre o cérebro e a bunda,

e não
nunca
jamais o salvará,

ainda que o mundo possa revelar
no espontâneo assombro que o eleva,
tal como um ponto de luz pode tornar
evidente o poço sem fim das trevas


Willian Delarte



6 POEMAS DO LIVRO "EXÍLIO", DE MARCELO ADIFA

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Exílio


I.

Eu quase sorri
durante a noite
quando as paredes
de outro quarto gemiam

Minha cama
maiores as pernas
que estico sobre
o esmaecer das
madrugadas
           dá sinais de desconforto

Entre as traças há rodizio
Ora atacam minha pele
noutra são lembranças
E desgosto,
                 entre os lençóis
o que me causam

Às vezes o homem se exila
e o corpo o abandona, grita
a matéria viva que nele reside
alma, faísca, sopro divino

Nada importa
enquanto
a dor for a mesma


II.

Entre as horas que abraçam a madrugada
três ou quatro são as piores, pois nem sonho
nem acordo, sonâmbulo sem sono, dando
voltas dentro de mim, como quem se perde

e a estrada é cheia de curvas,
as lembranças se debruçam
entre o que vivi e o que se quis

Espero pelo sol, vejo as flores da varanda
Não cresceram nada desde que as reguei
cinco minutos antes

Estavam ali na outra noite?
                   Como coisas que achamos
entre remendos de memória
deito as costas sobre o peso do tempo


III.

O Sol se agacha entre as primeiras nuvens
meus olhos sofrem imersos em dúvidas
sobre o que fazer nas próximas horas

Olhos abertos procurando o centro
das imagens, sombras, pessoas,

Quando não se dorme
                              a porta
que divide os mundos se abre
espíritos amorfos vagueiam
vacilantes entre o aparecer
num segundo e o sumir no espaço

Aperto os olhos, o bolso
o estômago me aperta
estrangeiro de mim mesmo
                                  Levanto
É tempo de buscar a fé
meu alimento



  
Segredaria


Durante a noite
o sol se esconde
No peito dos homens
aquece o sangue
expande a alma

Mas continua
            segredo
da madrugada



  
Beijo de luz


Descubro
longe de casa
que o Sol não é igual
àquele que reside
nas fundas memórias
da minha infância

O beijo de luz,
passado a limpo,
queima mais do que
aquece
  


  
Engrenagem


I.

Levanta-se
e num giro
põe-se ao banho
que dura menos
que o cair da água

escova os dentes
enquanto come
não tem tempo
a perder
e corre,
            antes que passe
o ônibus – se vier lotado
não é novidade
            
crachá, macacão, os óculos
ligar a máquina e fazer parte
da engrenagem


II.

a máquina consome o dia
a fábrica dilacera o homem
as peças se copiam numa
                   iníqua igualdade
o suor que
percorre o corpo
não paga o sangue
que pinga
em lágrimas que se perdem

hora extra
as contas pedem
o chefe exige
quem não quiser
o caminho
              é sabido
sua humanidade escorre

chega em casa
todos dormem
banho, a cama gelada
o sono que o consome
mas nada de descansar a alma



  
A máquina


Pensa em sabotar a máquina
afrouxar seus parafusos,
romper as correias que unem
as partes,
            estourar engrenagens

Mas no caminho o pegam
                       (ou pagam?)
logo aparece nas assembleias,
quer ser deputado, presidente
forma sua claque,
                 conta votos como
quem separa garrafas

Eleito,
não esquece da máquina
agora a opera
impedindo que outros
queiram-na por fim



  
Quando estiver preparado


Exila-se longe do corpo
a alma que busca consolo
fugindo das dores, saltando
por sobre o abismo de cores
que o devolvem ao passado

Exila-se, não somente da cidade
e do povo que o fizeram homem
mas das sombras que o perseguem
                   e assaltam sua memória,
ferindo-o mais que a própria morte

Exila-se
e quando estiver pronto
voltará a vestir suas roupas
será chamado pelo nome
com que foi registrado,

morará entre os seus
novamente

terá voz, será corpo
que se move à sua vontade





*    *    *






Marcelo Adifa nasceu em Sorocaba, interior paulista, em 1979. Como engenheiro é especialista em gestão de processos e segurança do trabalho, além de ser dos autores mais publicados no Brasil em sua área de atuação. Paralelamente à carreira de engenheiro é letrista e músico, com parcerias com diversos ícones da MPB, e também, poeta e romancista. Foi ganhador do Mapa Cultural Paulista, um dos principais prêmios artísticos do Brasil, em três ocasiões, um em literatura e duas em música. Os poemas publicados nessa edição fazem parte do livro Exílio, lançado pela Editora Penalux em janeiro de 2015.











Experimentação, Processo e Linguagem em Vídeo - Kim Geraissate

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Série de videos baseados todos no mesmo texto, Estala Coração de Vidro Pintado, da escritora brasileira Fernanda Young. Estes vídeos fizeram parte da conceituação pratica do trabalho de conclusão de curso em design gráfico de Kim Geraissate - Experimentação, Processo e Linguagem em Vídeo - que buscou esclarecer o caminho dentro da ideologia de criação explorando suas possibilidades formais e poéticas com a orientação de Flavio Luiz Matangrano.



 
0001 :Vídeo inteiramente produzido através de um iPhone 4S, ou seja, captado, editado e publicado através do aparelho. Explorando ao máximo a hibridização das mídias. Trilha sonora California and the Slipping of the Sun, do grupo Gorillaz. Agradecimentos à Thayra Orsi Nayja Mandra e Thamy Geraissate.






0002: Pensado com um grade processo de experimentação livre o video 0002 se compõe de pequenas referencias diárias, retiradas de filmes, videos, revistas e fotografias. Atuação de Davi Kinki e narração de Marilia Bobb Correa. Texto Estala Coração de Vidro Pintadoda escritora Fernanda Young e adaptado por Ana de Souza Dantas. Agradecimentos a Pedro Alencar e a Fundação Armando Alvares Penteado.






0003: Produzido através de referencias diretas aos filmes La Dolce Vita(1960), Paris, Texas(1984), Orlando(1992), Fa Yeung Nin Wa(2000), Marie Antoinette(2006) e Melancholia(2011). Retirando de cada um deles uma referencia pontual, como, por exemplo, os closes de Paris, Texas e a trilha sonora de Melancholia. Com a participação de Maria Vitoria Vegas e trilha sonora de The Dø e Cracow Klezmer Band, respectivamente com Omen e Tirzah.






0004: Montado a partir de animações originalmente feitas para o vídeo 0002, esse também é baseado no texto Estala Coração de Vidro Pintado, de Fernanda Young. Executado através do processo de rotoscopia, que consiste em redesenhar, quadro a quadro, um vídeo já existente, nesse caso, videos retirados da internet. Sendo deles a maioria de animais, relacionando assim a personagem principal do texto com um pássaro, que se encontra preso dentro de sua gaiola. Trilha sonora, Feito pra Acabar de Marcelo Jeneci.




Kim Geraissate (Penapolis, 93). Radicado na cidade de Sao Paulo, formou-se recentemente em Design Gráfico pela Fundação Armando Alvares Penteado. Já trabalhou na área de produção gráfica, mesmo se interessando mais por fotografia, pintura e gravura. Considera que só estudou seriamente a arte a partir de seus 14 anos, quando passou a estudá-la com a artista Renata Cruz, mesmo que tenha se envolvido em diversos cursos de pintura antes disso

PEQUENA CONJURA DE ANO NOVO, POR JUCA FILHO

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jamais te cegue a vaidade
e não te iluda a verdade,
feita de vã atitude.

não te emascule a virtude,
jamais te cegue o que ilude,
confia na tua falange,
firma teu dom na vontade.

chama, que nunca é tarde
a quem teu destino rege,
pede que não te pegue
mal, violência e sangue
e que a fome das estradas
de teu corpo passe longe.

chama quem te protege,
firma, que a vida urge
zela, se o tempo ruge
e diante do medo, lute.

nega a quem te conturbe,
clama a quem te sossegue,
ama tudo o que te ergue
para além do tempo rude.

vive, que a vida segue,
jamais deseje o que não mude.





Foto: Bahia, Capoeira, Marcel Gautherot
Acervo Instituto Moreira Salles 


*    *    *



foto: Francileide Saraiva



Juca Filho, 57, é poeta, instrumentista, arranjador, compositor, professor, fotógrafo e roteirista da Rede Globo desde 1996.




















"TRUGANINI", VIA "KALAHARI", POR LUÍS SERGUILHA

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LIBECCIO


Fístulas competidoras da estação ferroviária a tatuarem os iscos dos catálogos-bestiários: fecundidades dos comboios-de-luzes-polarizadas, os caçadores de laranjas-insufláveis-das-relojoarias exercitam as óperas das premonições, urgência das estufas submarinas que afortunam os segundos-charcos das nossas confidências: as conciliações dos fluxos transitórios desembaraçam o acendimento das foices-dos-dilúvios interrompidas/amamentadas sobre as infinitas enfermidades das residências (simulações das escápulas bravias até à vida da vida_____enumerar desmedidas incisões dos planaltos como a exaustão progressiva dos utensílios): as cerejas das válvulas empurram as informações intermitentes do ar até ao desmanche das traqueias-dos-silêncios (ferro eruptivo nas pontuações ocasionais dos subúrbios zoológicos): a cavalgada confiante dos dedos das tecedeiras eleva-se na breve luz das árvores-prismáticas_____a ordem dos golpes inteligentes incendeia os gritos das carpideiras entre os enxames-das-embocaduras-em-prestidigitação:

os textos da atracção dos insectos infiltram-se numa encruzilhada anatómica de luminosidades (bailarina uterina de IMHOTEP), as breves conveniências dos pedais da adivinhação sufocam as redes dos mapas nas polpas da gravidade, os regaços resplandecentes das lajes pronunciam as profusões dos criadores-POLISSÍLABOS e os pontos cardeais denunciam os ferrolhos graníticos na ressuscitação das escadarias das metamorfoses, ABISMÁTICAS jubas nos órgãos baptismais da claridade (vendedores de espelhos e de medronhos segredam as respirações dos insectos): um enxame argiloso-impenetrável corre para o EXILIUM da verticalidade da vidraça onde as coberturas dos aerólitos recebem os vestígios espasmódicos dos dialectos-dos-lances-das-ruas, as fragatas-artérias soletram as células das catástrofes, a cabeceira vibrante do fruto-das-escarpas estende-se nas janelas-das-imprevisibilidades: jazz da cegueira da translacção dos diafragmas-jardinais, Alan Davie nas corporalidades sígnicas das tribos (mandrágoras antropomórficas a permutarem os pilares das incinerações do paisagismo): indesvendáveis cineastas a reencontrarem as fracções-dos-cristais num campo de lavas incestuosas e os arroios alucinados insistem na fidelidade cósmica-das-borboletas procurando as nesgas inconscientes das vulvas: bocas delinquentes a envenenarem-se nas aspirações das molduras dos astros: um elevador de substâncias-menstruais está debruçado na tracção triunfante das casas-das-vertigens-centrípetas: (sopranos esotéricos a aglutinarem as estirpes divinatórias: composições arborícolas a fosforescerem nos hiatos dos dicionários onomásticos: esta louca estatuária das transferências dos iluminadores de calamidades)

as ressacas das peregrinações fecham o glossário das bússolas e  os espelhos-dos-pastos são tacteados pela seiva das garatujas dos caixeiros-viajantes (hibernação dos anfiteatros onde rebentam os périplos-LENDÁRIOS-da-fecundidade: chaminés de areia a levitarem entre rosas-génesis): as travessias das alucinações de Max Ernst infiltram-se nas esquadrinhaduras persistentes das ressacas (salivas cíclicas dos répteis) e os defensores do revestimento-dos-ecos-solares escorregam nas falas dos arquipélagos como modulações imperceptíveis, as penugens finalistas das abóboras contrabandeiam o arqueamento atmosférico das aves sem reino: os somatórios dos batimentos da Rapina, do seu pedestal, revelam as aflorações soporíferas do abismo e as descendências dos caminheiros das colheitas-dos-protoplasmas: santuário dos voos relampagueantes: com a sabedoria das línguas-das-montanhas Han Shan assobia na elaboração mais interior do vento que trespassa os candelabros das jangadas-dos-GIGANTESCOS-acenos: perscrutações dos vocábulos posteriores das cabotagens, as medulas insubstituíveis do esplendor de Matsuo Bashô herdam os latejos dissipadores das rochas prenhes de interstícios das cigarras (eis…o início das distorções do lastro solar)

Encontrar as fossilizações dos ofícios no interior das galerias das cobras-em-transmutação: o salto do corpo-dos-portos convoca os incêndios ancorados nos códices de outras criaturas-diamantes: cilada-centelha nas acelerações dos telheiros (termiteiras), as cadências dos brônquios abotoam as engenharias celulares da soletração meteorológica, as ramas-em-combustão-dos-leitores espalham as fendas dos projectores nas cisternas infatigáveis e os relâmpagos da pedra batem nas veias angulosas dos pórticos-das-ínsulas: ROLDANAS de bolor nas mãos fotográficas onde os bichos-da-seda se encortiçam azuladamente: a fervura ascende nos nervos dos estúdios vegetais, as manobras das espáduas oferecem-se ciclicamente à exegese dos batedores-de-câmaras-de-quartzo que defrontam o aleitamento da rotação do húmus: INCÊNDIO vertebral a consagrar o julgamento das metáforas na venosa cabeleira da paisagem e os flancos do arado relincham nas amarrações voluptuosas dos minérios:

os caroços das luzes masturbam-se demoradamente nas súplicas dos répteis  como uma nervura da rosa antropofágica a estender-se na apoteose dos remos cegos e ocos, uma cratera de guilhotinas/trampolins vem das hesitações-da-fatalidade para desabotoar um pássaro-reflector na expressão mais íntima das vertentes e as mandíbulas dos túmulos-das-ondas amortecessem as bridas carregadas de abdómenes sobre as entranhas negras-sarnentas das ilha-tardias (rugas na alacridade dos capitólios): aterragens estridentes dos pulmões nas velocidades maternais e a planura solar escapa-se sobre a coagulação dos estames para enevoar sensorialmente os gumes oscilantes dos dedos e uma língua seguríssima é idealizada pelos inventários dos archeiros: mergulho do animal na trincheira inflamável das criptas: partilhar a envergadura do sacrifício nas iluminuras das cortinas-magnólias (batida obsessionante e incomensurável), uma minúscula comporta a estribar-se no cálice espasmódico da ameixa-do-cometa_____navegam portões de terra nas aprendizagens dos viajantes que escapam milagrosamente às litanias incessantes dos penhascosonde Sísifo transitacurvado pela rocha da repetição entre as sombras-dos-cataclismos de Tânatos: tudo é pesquisado nas hierarquias do terreiro azul-das-combustões, as lantejoulas instantâneas dos pássaros ambicionam explicar o desdobramento das campainhas-das-estacas: têmporas a envolverem-se nas rãs das lunações, centrífuga-energia-venosa sob um organismo regulador dos beiços solares, tecido análgico das crinas a amarrar-se ao aluimento do pólen-de-agulha, dardos das monarquias fracturados pelos respiradouros infinitamente sanguíneos de Hermann Nitsch.

as câmaras esfíngicas transbordam no auxílio das translações das faíscas-do-chão, o duelo é latente nas ramagens planetárias, a curva das lentes aquáticas afundam-se nas congeminações dasgigantescas harmónicas deVilla-Lobos: autópsias dos epicentros vegetais que emaranham obscuramente as estâncias dos nódulos-fósseis-tropicais: penitências glandulares desdobram as diástoles dos charcos: as simbologias invasoras balouçam nas atmosferas do dilúvio (morcegos-radiais nas transfigurações arquitectónicas), mandíbulas-das-cores sob os predadores das pulsações dos idiomas: um canto de ninhos-vertiginosos atinge a sentença-das-crisálidas entre as campânulas pantanosas da geografia e os casulos de Esparta, o vestíbulo dos caçadores de húmus multiplica-se no traçado-dos-simulacros: as ventilações das candeias cercam as sombras genitais da eternidade (estonteante medianeiro do esquecimento): vozes atribuídas às serenatas do estômago-relampagueante-brevíssimo dos touros: as vozes encarcerem-se na calamidade implantando vocações):
(brasas das memórias desorbitadas ou lanternas-das-plataformas em peregrinação) as agulhas das víboras-dos-lenhadores-nocturnos são adoradoras de inevitabilidades, luas de sôfregos queimados a escoarem-se nas ampolas de flanela-das-esquinas-outonais, hastes-das-sentinelas que empurram as gotas-dos-arrepios das parturientes sobre as bifurcações das frestas da obscuridade debruçada na circulação da linguagem: violenta montaria do corpo, na boca o gosto do ferro lembra sangue e lembra terra, o contrátil coração do mundo pulsa vazio, hemoglobinas de ar, lentamente no salitre das veias como andarilhos no deserto: lampadário da caminhada dos actores-de-ângulos que desdobram os torrões irresistíveis do fogo e o cheiro dos vestígios: a declinação dos séculos alimenta um instrumento de líquenes-viscerais de Gus Van Sant: cabeças-virilhas-faúlhas dos bichos a narrarem as sonoridades, as imperfeições tenebrosas, nevoeiros de Alain Resnais a incendiarem as pegadas subterrâneas do pomar-dos-ofícios (gravador trémulo dos olhares)

O morro inaudível dos bisontes plasma-se nas poças-da-penumbra e as ossadas-da-erva ligam-se ao alfabeto torcedor das ruminações das trevas, navegação doutro corpo-de-gritos-universais: Pieter Brueghel, êxtase a ressoar nos alimentos da mestiçagem das povoações, precipícios glaciares-vulcânicos a hipnotizarem as lavras-dos-olhares como bagos-fotográficos cinzelados pelas mulheres-corvinas: crispar as afluências das germinações-das-serpentes com as frestas das uvas das últimas embarcações ou das últimas lanceiras-dos-rios (ALAGARÇA-das parábolas) para transpor o predador da desova_____círculos do sinistro-silêncio-da-aranha-nocturna: cítara-de-espinhos-exaltados na revelação das fêmeas-intraduzíveis sobre as campânulas cavernosas das fronteiras: as conchas-devoradoras-de-espelhos desencadeiam uma seda primitiva-insondável sobre o estremeção dos insectos-das-jangadas: um lanho impresso nos derrames das candeias: as ovulações dos gritos interpretam os acessos dos rumores dos polvos-da-câmara-sanguínea_____escritas-de-gelo a ornamentarem as badanas das perfurações com os plasmas da fatalidade e num estendedouro de patologias surge o esgotamento-aberto-a-outros-diafragmas, a outras roupagens-do-suicídio que lavam/fragmentam os ensinamentos intemporais do chão (gumes a esboçarem berlindes na voragem metereológica): a fertilidade da pedra isola o andamento espiralado do veador de loucuras: delinear uma bandeira de reminiscências com a eloquência secular dos ombros das sombras e as assimetrias das cédulas do sangue infiltram-se nas rebentações-libidinais regenerando as catástrofes das caleiras astrais: ferraduras dos polvos a menstruarem a agilidade dos mapas-dos-leitores e as redes das colmeias-dos-arcos-da-ciscagem pululam assiduamente entre os pássaros reféns dos mágicos faróis-dos-rosais: as vibrações das incógnitas são perseguidas pelos ciclos das desgraças-das-estátuas-de-mariposas (travessias oxidadas pelas quilhas vertiginosas ou pela desolação dos epicentros do albatroz):

AREAL impenetrável: poros-espontâneos-dos-quadris-do-monstro-implicado-nas-escalas-ácidas-das-dunas-do-desassossego: os pomos dos calendários-das-sombras despenham-se na manifestação apaziguadora do linho-curativo deslocado pelas cantarias-das-meretrizes: desfocar os hábitos nómadas sobre as profecias embrionárias onde tombam as caudas resplandecentes da inconstância: cruzar os seios-exploradores-de-cassiopeias e as saias voláteis dos desastres alcançam-se entre os espelhos seminais: um penteado-de-raios-buscadores-de-tigres electrocuta a respiração envelhecida da espada que escorre consolidada na noctívaga curva da púbis-enevoada-de-imobilidades: a circulação-das-inflorescências desperta os ricochetes dos betumes-entreabertos-dos-naufragantes e as escarpas da vegetação são reminiscências das perspectivas das aves, o oxigénio orienta o espanto na sonoridade do gelo: reconhecimento da vibração das embocaduras a purificar o choque da linfa no incestuoso sol-dos-refúgios, cadernos de lumes impregnados nos fluxos dos cenários-dos-delírios: a inclinação avançada do dilúvio funda a metáfora-do-assombro no lustre da soberba fronteira das composições de Wagner, intrusos êmbolos dos aracnídeos. SARAIVADA dominadora dos pastos das faíscas e as deslocações das espécies escalpelizam os hinos-ceramistas da metempsicose





TEXTO do LIVRO KALAHARI
( OFÍCIO DAS PALAVRAS EDITORA e ESTÚDIO LITERÁRIO)


Imagem: Pintura de Maria Teresa Crawford Cabral 



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Luis Serguilha: Poeta, Ensaísta. Autor de várias obras de poesia e ensaio. Participou em encontros internacionais de arte e literatura. Alguns dos seus livros: Embarcações (2004); A singradura do capinador (2005); Hangares do vendaval (2007); As processionárias (2008); Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica; no êxtase místico e na violent...a condição humana (2008); KORSO (2010); KOA’E (2011); Khamsin-Morteratsch( 2011); KALAHARI( 2013) estes seis últimos em edições brasileiras. Possui textos publicados em diversas revistas de literatura e arte. Seus textos foram traduzidos para várias línguas. Criador da estética do LAHARSISMO e responsável por uma colecção de poesia contemporânea brasileira na Editora Cosmorama. Pesquisador da Poesia Brasileira Actual. Foi um dos Curadores do Encontro Internacional de Literatura e Arte: Portuguesia. Curador do RAIAS-POÉTICAS: Afluentes IBERO-AFRO-AMERICANOS de ARTE e PENSAMENTO.


ITINERÁRIO DO SOL ||| SELEÇÃO DE POETAS CAPIXABAS [PARTE 1]

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ITINERÁRIO DO SOL

introdução e seleção por Jorge Elias Neto


O Espírito Santo sempre foi um Estado sui generis. Visto como Estado de “passagem” para o Nordeste e de parada para abastecimento para os turistas oriundos dos grandes Estados da região Sudeste, em viagem para o litoral baiano. Um Estado quase sem sotaque, um misto de mineiro desconfiado com a malemolência baiana.
Essa característica de relativo isolamento tem razões históricas, e fez com que todos os movimentos literários que correram o mundo, principalmente a partir do século XIX, tardassem por aqui chegar e, quando chegavam, tardassem em partir.
Para um autor capixaba, a divulgação de seus textos, de suas idéias, sempre passou pela necessidade de mudança do endereço de residência. E assim o fizeram, entre outros, os escritores capixabas Rubem Braga e José Carlos Oliveira.
Hoje, embora ainda de maneira muito incipiente, alguns autores conseguem ter acesso ao mercado editorial: um exemplo é o excelente romance de Reinaldo Santos Neves, “A longa história”, publicado pela Bertrand do Brasil.
Mas as oportunidades continuam muito poucas.
De modo que a ampla função que estabelece as hipermídias resulte em expoente para a divulgação da cultura capixaba.
Pensando em mostrar algo além da já famosa (e saborosa) moqueca capixaba e do tão comentado petróleo, é que trazemos um pouco da poesia atualmente produzidas no Espírito Santo.

Adendo: Sobre a identidade cultural capixaba recomendo o ensaio produzido por Adilson Vilaça. http://www.tertulia.art.br/arquivo/avilaca_identidade_capixaba.htm


*    *    *



2 POEMAS DE
BERREDO DE MENEZES




Ferdinand Berredo de Menezes (1929) nasceu em Caxias, no Estado do Maranhão, em 30/04/1929 e vive em Vitória onde fez sua carreira como poeta, contista, advogado, professor universitário e político. Vencedor de vários prêmios Nacionais e Internacionais. Ocupa a cadeira n.01 da Academia Espírito-santense de Letras. Possui mais de 20 livros publicados.




POEMA XIII



Agora,
na tarde dos homens.
onde resisto
ao velho som das formas,
o espaço é cor
e tempo em meu vazio;
e as flores,
acesas,
o meu ludibrio;
e o suicídio das frutas,
neste chão que eu piso como uma fera,
a festa
de minha morte.
Sou, em suma,
um vôo cego
e feliz.




AUTO-RETRATO POÉTICO


Doido é quem sabe ver, além do arco-íris,
as cores do silêncio ouvindo o escuro.

Doido é não ter o luar como suporte
e acreditar-se sol no olhar dos anjos

Doido é negar silêncio ao pôr-do-sol,
tocando sinos de quem ouve a aurora.

Doido é inventar a luz do esquecimento
como asas de flanar a escuridão.

Doido é remanejar, na dor do escuro,
silêncios que as lembranças já não sofrem.

Doido é enfeitar de rosas uma praia,
pensando perfumar a dor da espuma.

Doido é guardar espinhos, de lembrança,
na esperança de ouvir a dor das rosas.

Doido é se perfumar em brisa surda,
esperando embriagar a solidão.

Doido é esconder-se ao luar, numa jangada,
perdendo o leme de amansar os ventos.

Doido é fingir que a dor do pôr-do-sol
é anestesiada à luz dos epitáfios.

Doido é esse canto que faz pouso em mim
como sobra semântica de um eco.

Doido é saber ouvir o luar nas pedras
e fiar com surdo brilho a luz do orvalho.

Doido é beber o orvalho de uma rosa,
tentando ouvir a dor que há nos espinhos.

Doido é sofrer o escuro como um grito,
sem ter onde chorar o seu silêncio.





*    *    *



16 POEMAS DE
MIGUEL MARVILLA



Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira (29-09-1959 à 10-10-2009), nasceu no município de Marataízes, no Estado do Espírito Santo. Poeta e contista, teve breve e, segundo suas próprias palavras, irremissível experiência como ator e diretor de teatro. Graduado em Letras - Inglês pela UFES, foi editor da revista Você da Secretaria de Cultura daquela universidade e da Flor&Cultura Editores, da qual é um dos fundadores. Mestre em História Antiga pela UFES. Membro da Academia Espírito-santense de Letras, é detentor de vários prêmios literários estaduais e nacionais além de menção honrosa no III Concurso Literário Internacional, realizado na Áustria, em 1996; Bibliografia: "De amor à política", "A fuga e o vento", "Sonetos da despaixão", "Tanto amar", "Dédalo", "Lição de labirinto" (poemas), "Os mortos estão no living" (contos), "O império Romano e o Reino dos Céus" (história).




ORDEM NATURAL DAS COISAS


Murchas
as rosas já não surtem
seus efeitos de rosas

tudo tem seu tempo de florescer
as revoluções
os poemas
as palavras
e as crianças

tudo tem seu tempo de apodrecer




OFÍCIO


Não posso prescindir da janela
é meu ofício pretender a lua




POEMA DE(S)ESPERANÇA


deus e o germe
é fato que se multiplicam
criaturas plenas

(hermanas creaturas
Debajo del jardin
Crescen muertas)

e são minha mano izquierda
y mi mão direita
e resto del cuerpo

difusos e opacos
deus e o germe
na obscuridade se multiplicam

pero muertos




LÁPIDE


se há de chover, que chova.
a chuva
lava
a palavra
respaldo do germe.

se há de saber, que haja.
defronte mesmo à parede,
o caos não se repensa.

se há de consentir, que forje.
os mitos
não se permitem
ousar mais: são mitos.

se há de louvar, que duvide.
os pães
e os ladrões
não dormem na mesma mão.

se há de negar, que conheça.
(é preciso aço e membrana.)

se há de fluir, que aconchegue.
(é preciso sangue e nácar.)

se há de haver, que nasça.
excessos
e encéfalos
fazem
a
massa
da
vida.


(se há de morrer, que anoiteça.)




SILÊNCIO


os ratos roem meu corpo
por que ninguém chora (?)

os ratos roem meu corpo

ah meu deus se alguém chorasse
talvez eu soubesse de pronto
que estou vivo

talvez até gritasse




ELEGIA


pedaço de metafísica
a tua boca é uma emoção
acomodada sobre a geografia dos dentes

gramática e cor
compondo os sintomas do riso

paisagem edificada
             sobre
           suavitez
a primavera em cabelos
reforça o arco-íris
             teus olhos

(policromia é uma falta de escuro
na noite que te comporta)

alva e repleta
tua pele se aperfeiçoa
bela e gentil
para o seio patente
em minhas muitas mãos
que jamais te tocaram

e a noite com seus etéreos
permanece estéril
enquanto teu olhar floresce manhãs

(guardarei meu beijo para o teu conhecimento
e meu corpo para o teu silêncio
que o futuro ainda não foi muito longe)




HORA MORTA


São teus seios que me cobram este instante
em que as horas já são mortas, sem estrelas,
logo a mim, que ainda não sou largo o bastante
para alcançá-las. Que direi quanto à sabe-las?

Que são frias? Toda hora em mim é gelo.
Todo espaço e toda dor não me comovem.
Não me movo a qualquer coisa. Não me atrevo
à loucura, nem sequer se o mundo dorme.

Mas, se queres, me violento e, consoante
ao teu beijo e teu desejo, me encarrego
de levar-te a uma outra hora mais distante.

Menos fria, menos densa, é bem verdade,
mas tão curta! Cada vez mais adiante,
todo tempo – imensamente – é sempre tarde.







Deus! Ó, Deus! Sou eu... Este aqui, ó, 
Que acaba de perder o prumo
E veio tateando no escuro
Cada palavra do caminho.
Sou este ser de pó, aquele amigo
Do efeito lateral das sombras.
Não tenho nome, mas retiro
Dos sons a minha substância homem.

Venho desdizer o que não disse:
Que você não existia e, se existisse,
Não se importava comigo, o errante.
Este soneto acaba já, mas antes:
Eu sei, você existe e, com certeza,
Também ama comida japonesa.




FACAS


Passávamos, eu e ela,
por futuros nunca iguais.
Meus passos, os passos dela,
paralelos, ai! paralelas
- nunca mais.

Andávamos, eu e ela,
por amanhãs sem jamais.
As facas de nossos beijos,
as facas, ai! que não cortam
- não cortam mais.




A PALAVRA POESIA, POR EXEMPLO


A palavra poesia, por exemplo,
roubada à sua forma dicionária,
não pode vigorar mais que um momento
se não se refletir no olhar de Mária.
E Mária, que se esquece, por completo
descuido ou prazer (quem tem certeza?)
De levar-se ao deixar as redondezas,
aos poucos, dando motes ao desejo,
recobre a superfície do planeta.
Por muito repetir-se em aquarelas,
vitrais, pessoas, gestos, sons e ruas,
sua forma sendo tantas, coisa alguma
a retém. Ela não cabe de uma vez
na memória e ainda há mais Mária out of space.




TODAS AS COISAS DIFÍCEIS


Ninguém pensa impunemente
numa escrita permanente
da vida que se levou.
Há sempre sob o lençol
um corpo irreconhecível
em seu próprio imaginário:
um aquário cheio de bile,
peixes nadando ao contrário.




ULISSÉIA


Tem tanto a ver, tem tanto a ver, patrícia,
o Atlântico e os teus olhos mareados;
tem tanto de naufrágio e descobertas,
futuros ampliados, "terra à vista";
tem tanto de sargaço no teu nome;
de riscos nos teus ritos, de romances
na aurora inospita e noturna
do teu púbis, que eu, o navegante,
já de retorno à Ítaca brasilis
(mas dentro de outra história), eu sou Ulisses: 
meu porto são as ilhas dos teus olhos
-e o vero perigo é quando ancoro. 




Quem é esta mulher, pulsando à espera
de um que lhe descubra seus mistérios
e em cuja pele clara seja breve
mas, sendo breve, ao fim lhe seja eterno?

E, ex-sucutâneos, seus desejos,
tão antes resguardados, ei-los. Ei-los,
à tona da manhã, enfim despidos
(a inumerável teia de delícias

do mundo protegida), os nunca vistos
enigmas de ouro, sem disfarce
(que ela nunca pensaria haver por te-los),

porque, à espera de alguém que a investigasse
e lhe fosse com calma até o sim,
achou foi de perder-se com si mesma.




PEIXAMENTOS

Para Gilberto Mendonça Teles


Amar os peixes
e todas as coisas que nadam
– algas,
medusas,
hipocampos,
mergulhadores da Marinha –
e as que só flutuam,
como pensamentos embaçados em tardes de chuva.

Amar os pensamentos e as palavras.
E os contornos delas. As palavras
e a ação latente sob o som enclausurado,
o som nunca dito,
que poderia ter provocado uma cantata
ou um conflito.

Amar os peixes, que vão como pensamentos
em direção às profundezas da alma,
rápidos e líquidos:
a própria natureza de que são feitos
peixes e pensamentos,
pensamentos e peixes.

Amar as palavras
todas as faíscas
de sua calma
improvável, imprecisa.




HECATOMBE


O som do sino se desfaz da igreja,
a tarde em si despeja um sol mortiço
por entre nebulosas de mosquitos.
A moça está sentada e, sem que veja,

a praça,o mundo, ao seu redor, desabam,
enquanto ela retoca a maquilagem.
Dos olhos dela, certo espanto escapa
e adere ao que ainda resta da cidade.

Mas ela nem aí para as desgraças:
em meio ao caos, no espaço de um átimo,
alheia à hecatombe, a qualquer som,

sua miséria se resume aos lábios,
sua tragédia é uma questão de tom:
comprou a cor errada do batom.

(poema inédito)




A AUSÊNCIA DELA


A ausência dela se abate sobre a cidade,
como as estações do ano ou uma chuva impiedosa e constante.

É um tempo, este, de funcionários e galochas.

No átrio da catedral gótica das lembranças,
o nome dela erige-se em espelhos
e se repete, ad infinitum,
pousado sobre um futuro de pó e nunca mais.

Algumas vezes o esquecimento se esquece de quem é
e pensa recolher em outra um gesto de folhear livro,
uma forma de olhar para o dia com embriaguez,
o ouro das palavras — que eram atributo e privilégio dela.

Mas não.
Tudo que há é uma hora abandonada
a um canto do silêncio.
Tudo que há é a impossibilidade,
uns ermos de chumbo,
encimando a constância irremovível do vazio.

Anda-se lentamente.
Voa-se lentamente.
Morre-se lentamente.
Até os acasos ocorrem lentamente.

Não é à toa:
a presença dela fazia a vida vertiginosa,
a presença dela não se atravessava a pé,
a presença dela estilhaçava o normal e o cotidiano,
a presença dela era teatro de uma guerra
feita com espadas de olhares 
e armaduras de algodão.

Mas se estabeleceu um momento em que todas as coisas
são a ausência dela.

A ausência dela se alastra, incontida, pelo planeta.

Eu preciso aprender a ser outro
para suportar.








Foto: Vagner Simplicio, Lagoa Juparanã, ES



*    *    *






Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR AQUI







DOIS CONTOS DE NARA VIDAL

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A NOTÍCIA

3:45 da tarde. Os olhos tentavam, no meio de buzinas, risos, xingamentos, bancas de jornal, achar uma ilha deserta. Precisava saber antes das quatro. Todo mundo passava por ela e ninguém sabia o medo que carregava na bolsa.
O couro marron já desbotado tinha nas alças fiapos de linhas se soltando. Precisava de uma bolsa nova. De uma bolsa nova seria bom precisar. Daria tudo para precisar mesmo de uma bolsa nova. Bolsa ordinária, barata. Lá dentro dela, outro caminho: algo extraordinário dobrado quatro vezes em papel A4, no envelope lacrado. Andava com a impressão de ter ali dentro um bicho vivo. E não deixava de ser. Titubeou por mais alguns passos. Os olhos já vidrados desesperavam-se por um canto quieto. Tentou a praia. Era janeiro. Não ia dar certo. No parque, talvez. O cheiro de xixi embrulhou-lhe o estômago. Mal sabia ela o que estava embrulhado no envelope.
Em volta dela, um homem sem as pernas. Uma criança suja chorando. Cheiro de sangue. Um parque sem passarinho algum. Sentou-se num banco, com nojo e desespero. Precisava abrir aquela bolsa. Faltavam dois minutos pras quatro. Traçou pra si mesma o plano de coragem: até antes das quatro saberia a notícia, qualquer que fosse.
Um homem passou pedindo dinheiro. Insistiu. Precisou sair dali. O relógio da Siqueira Campos ria dela. Perdera a vez. 4:02. Aquilo só poderia ser má notícia.
Tentou um café. Cheio. Garçon que não deixava ninguém em paz. Se fosse pra casa talvez nunca mais saísse de lá. Pensou no pai da amiga que recebeu no ponto de ônibus a notícia da morte ma mulher. O pobre rodopiou zonzo e ninguém viu o que era só dele, lá dentro da cabeça daquele homem sem sorte.
Ela queria o mesmo. O que quer que fosse no envelope, ela precisava se passar por nada, anônima. Tinha que saber que o mundo não ligava. O que estivesse escrito naquela folha era só dela.
Amou tanto durante a vida. Poderia até amar mais. Sabe-se lá!
Desistiu do café. Caminhou até o forte no fim de Copacabana. Pelo menos tinha vento lá. Em coração de tambor, a bolsa aberta. As mãos passam desinteressadas pelo resultado do exame que trouxe boas notícias. Abraça com os dedos apertados e trêmulos o evelope branco.
Gira os dedos pelo tamanho do papel e abre, rasgando as pontas. No canto do olho já salgado de ansiedade, confere: 4:48.
Suspira e abre os olhos. Não sabe se foi o sol ou o que estava escrito. Ficou cega.
  



VIDA DE ESCRITOR

Colocaria os pingos nos IS, não fosse a falta de palavras pelas quais tanto procurava.
Tinha obsessão por elas. Mas não as encontrava em abundância ou ao acaso. Garimpava cada uma com suor e sangue para que fosse estirada ao sol, secando, quarando, arejando.
Era a única pessoa no mundo que tinha um dicionário na mesa de cabeceira. Lia a Bíblia, menos por oração, mais pelo encontro de palavras inusitadas.
A vulgaridade atrapalhava o brilho do vocábulo, já tão penoso de encontrar.
Não tinha outra saída: seria escritor. Era velho e aquilo lhe caía bem. Já não tinha ambição de viver de escrita e recebia pontualmente, no dia dez, sua aposentadoria. Era pequena, era curta, exatamente feito as pernas da mentira que o patrão lhe pregara por todos aqueles anos na mesma firma. Possibilidades de crescer na empresa. Cresceu. Ganhou doze quilos no período de vinte anos. Ana Cristina, a mulher inconformada com a situação modesta, mesmo que honesta, do marido, pensou em divórcio. Desistiu vendo que sairia caro demais e o marido não poderia pagar-lhe nem uma mísera pensão. Viajavam para Caxambu ou Araxá todo ano, desde que se casaram e Ana Cristina bebeu da fonte da fertilidade. Nunca tiveram filhos. Ana Cristina nunca tinha saído do Brasil e se envergonhava entre as amigas que contavam vantagens e paisagens vistas lá fora do seu limite. O marido gostava da beleza sorridente das cidades mineiras.
E agora o caldo entornaria de vez: escritor. Que ideia mal arrumada era aquela de ser escritor? Por que não pensava o marido em trabalhar como gerente de alguma coisa que rendesse um salário suficiente pra parcelarem uma viagem estrangeira? Escritor vive de quê? Deve ser de brisa, de ideia, de palavra, porque não conhecia um que colocasse feijão com arroz na mesa, quanto mais uma brochura da Europa!
Mas José Antônio não desistiu. Sua paixão por palavras complicadas e escolhidas resultou num livro de crônicas. Já às vésperas de fazer setenta e nove anos, José Antônio que havia esperando dois anos e recebera todas as recusas de cada editora da sua lista, decidiu bancar o que tanto queria dizer. Aquelas palavras ao sol, mesmo que já desbotadas, estavam agora, transparentes, mesmo que só pra ele. Fez tudo escondido da Ana Cristina, já que as prestações da publicação do livro, poderiam ter levado os dois até a Argentina. (Se tivesse escolhido capa de quatro cores, poderiam ter ido ao Chile!)
No dia do lançamento, na livraria de maior movimento da cidade, Ana Cristina, com escova no cabelo e certa amargura no peito, fez a foto:
O marido com a caneta Bic suada. Em volta, dois vizinhos e uns primos. Três amigas da Ana Cristina e os dois camaradas do xadrez da pracinha.
José Antônio, com sorriso e página aberta, orgulhava-se da primeira crônica que abria sua obra assim:
“O ósculo do rapaz pacóvio, porém loquaz, fez rubicunda a mocinha fiel. O namorado, ínvido, resolveu prescrutar o fato.”
Não foi um sucesso não, aquela coleção rara. Mas vendeu: quatro exemplares. Dez ele deu pra amigos querido que não apareceram no lançamento. O resto continua no canto da sala, aguardando esperança e atrapalhando a faxina da Ana Cristina.


Foto: escultura "A FELIZ CEGUEIRA", Sergio Bustamante

*    *    *

Nara Vidal, mineira de Guarani, formou-se em Letras pela UFRJ e tem Mestrado em Artes pela London Met University. Há 13 anos mora na Europa, Nara escreve para jornais e revistas diversos. É autora dos infantis e juvenis "Arco-íris em preto e branco", "Pindorama de Sucupira", "A menina e os relógios" e "O doce plano das galinhas". Ganhou em 2014, pela segunda vez consecutiva, o prêmio Brazilian Press Awards em Londres, pelo seu destaque em Literatura. Foi também ganhadora do último Prêmio Maximiano Campos de Literatura. Neste ano Nara lança vários infantis e seu primeiro adulto, que será publicado pela Kazuá.






6 POEMAS DE VOLMAR CAMARGO JUNIOR


"SEM SER SOM", POEMA DE ROBERTO DUTRA JR.

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naquela manhã

— eu assim lembro —

irrompeu em meu peito
o silêncio que encobria meu nome
nunca pronunciado,
nunca tornado voz

ser sem som
ou ar
ou tom

ausência em cravos sentida
espanto de lágrimas
canto sem vida
duas partes
sem sonhos
hiatos no ainda

ao mesmo tempo
distante partida
enquanto sempre
encravada ferida

fronteira e profundeza atadas
na insípida barreira
lembrando sempre:
em mim vive o avesso
a palidez escarlate
perfeito inverso
seda calada
e sem efeito

todo esse silêncio no peito.




Foto: Misha Gordin



*    *    *




Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.







MALLARMARGENS REPUDIA TERROR CONTRA CHARLIE HEBDO COM POEMA DE JORGE ELIAS NETO

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O risco


O risco era solto.

Vivia sem Pai,
sem Pátria.

Indecifrável,
esperneava ao mínimo
indício de caligrafia.

Ricocheteava nos lajedos,
saía chamuscado das rusgas,
mas sem resquícios de letras.

O risco não sabia,
mas era um hedonista.

Usava a camuflagem
dos desentendidos.

Serelepe,
causava seus descaminhos.

O risco, ora era frouxo,
ora era tenso;
seguia desmoldando intenções.

Era corisco,
não se deixava
ferrar com palavras.

Incorrigível,
só tinha um temor:
a descontinuidade.

Criava-se no silêncio,
não deixava rastros.

Optou pela clandestinidade
ao abandonar o traço.





*    *    *






Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


7 poemas de Líria Porto

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Ilustração: Paul Klee


pálpebras

de manhã abro a janela
e deixo o sol penetrar
no corpo da casa

à noite fecho-a de novo
(estrelas ficam lá fora)
eu durmo dentro
do ovo

na lua cheia
não tenho
regras



coleção

quero espero
flagrar o amanhecer
e num gesto súbito
guardar o lusco-fusco
no bolso

(quem precisar de lilases
de azuis prematuros
tenho infinidades)



arabesca

a lua é a pupila
do olho azul do infinito

desde que o mundo é mundo
ela nos vê a tudo assiste
(o que é feio o que é bonito)
registra os fatos e repassa-os
para o gestor dos destinos

é ele quem faz (in)justiça



à espera dos pirilampos

eu vejo um mar de janelas
e detrás de um tanto delas
olhos acesos

será que alguém me vê
ou se põe a imaginar
que aqui tem gente?

bastava um aceno



roça

noite de céu arado
nenhuma moita de nuvem
nenhum torrão de lua
tão somente estrelas
semeadas



adiamentos

a lua esperava o sol
redonda um talismã
quando ela se despiu
ficou de manhã

o sol lambia a lua
o meio o lado as beiras
lamberia a face oculta
a nuvem veio

só amanhã



insônia

a boca escancarada da noite
os urros do silêncio
as teclas mudas

não tilintam os cristais
não estilhaçam a vidraça
amantes não sussurram
não há sinos de igreja
o mundo acabou
o relógio dorme
o tempo não passa

onde estão os latidos
os galos os gritos
os olhos do sol?

na cama
o corpo exausto
o vazio da tua ausência
e os mil anos desta noite
que nos engole
que nos vomita



Líria Porto - professora, poeta, natural de araguari – mg – autora dos livros borboleta desfolhada de lua, publicados em portugal – 2009 – e garimpo asa de passarinho, publicados no brasil pela editora lê – 2014.



O que não for poema, é quase - De Eder Asa

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demorei pois as paredes denunciaram umidade
e tratei de recolher roupas brancas enquanto pensava em suas feridas.

por algum momento parecia que as manchavam de vermelho
as mãos excitantes
rubro rei midas

performer entre os varais
contemporâneo nisso de sempre
substituir pele por lençóis

a última festa me machucou muito


***


das mulheres da minha família sou a sem dente, demente que dá sem pedir. das mulheres da minha família sou a mula, três cabeças, mãe, filha e aborto. a que não existe e, portanto, santa. das mulheres da minha família sou a que mareja, prima

bastarda que nunca casou, seis seios, vinte ventres e o dom de parir. das mulheres da minha família sou a tireoide, almofada que sufoca desdemona muito mais que a mão

do mouro. a guerreira que enfia a lança na boceta, empalada, e brinca com a úvula.

bailarina leprosa, geni coprofágica, a

bosta. sou todas, a que já foi ovelha negra e hoje é coiote. pagu sem tribuna, das mulheres da minha família. a unha inexistente do dedinho

de minha mãe. das mulheres da minha família sou a real, de carne-osso & falo. o nódulo na mama e o nódulo

na oração. a boca que regurgita vergonhas e boqueteia o tio paralítico. maria, chica da silva, a ninguém. das mulheres da minha família sou a

morta. o álbum e as fotografias na parede. das mulheres de minha família sou a que sabe ser mulher e a que sabe não ser da família.


***


o santo baixô. capeta, pomba-gira ou qualquer outro troço que compreenda seu sincretismo. rodopiô doidivanas três vezes. três foi igual os clarão, tupã e ira, haicai prosopopéia. quem viu sabia que não era humano. instinto doente, veado que corre pra boca do lobo. deu três passos e encharcou-se. o pano era fino e as tetas despontaram. teta que aponta pro norte. teta-bússula. convulsiva, babava abundância. oi que chama. chama, chama. chama forte. azul-vermeia feito butijão. ria-cadela, mordia. os boca-aberta que via expunha uma uvula estarrecida. um pé pra frente, castraram. deixa, deixa. deixa que nem padre resolve. clarão em cima do jatobá, os gai retorcia. bruxelava. bruxa, bruxa. retorcia e lambia a própria buceta. caiu e ficô. num teve mais constância de gente. virou enxurrada. suja, suja. diz que corre até hoje.



buquê de aberrações

um anjo debochado de aleijadinho torto por ser barroco,
a mãe dedicada que masturba o filho sem braço.

um ascendente de morte
na mesma casa de meu signo.

o cigarro de uma bailarina litúrgica,
a bulímica cristã que vomita a hóstia
e seu vômito furta-cor.

aquele retrato em sépia
que sorri enquanto rejuvenesce.

wilde, lorca, kahlo,
você





biografia
Eder Asa é mineiro, ator e tem 20 anos. Não concluiu as graduações que começou nem publicou os livros que idealizou. Também não encontrou um grande amor. Escreve poemas, frases fritas e Kartas para C. 

Imagem de Ilustração: Romeo Zanchett

os alísios

6 poemas de Bruno Latorre

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Ilustração: White gause, Robert Mappletorpe



AS PESSOAS QUE NÃO ENTENDEM DE SEXO

as pessoas que não entendem de sexo
e suas categorias:
trepar
fuder
meter
fazer amor
é que são vadias

as pessoas que não entendem de sexo
e suas peculiaridades
e seus múltiplos lugares
é que são vulgares

as pessoas que não entendem de sexo
que não é de 50 tons de cinza
mas das prosas
e das poesias
de Hilda
é que são vazias

as pessoas que não entendem de sexo
que não é só papai-mamãe
mas também papai-mamãe-vizinhas
um chefe e dois garotos, talvez aquela sua tia
é que são mesquinhas

as pessoas que não entendem de sexo
não veem que o nexo
do eixo entre o céu e a terra
é este seio
de palavras
para chupar
que deixo

pois

a poesia que não fode e
não goza 

não rima
toda palavra que pode

já a poesia que fode
num gozo profundo
que não é só vida
- espermatozoide - 
encontra sentido
neste mundo
invertido



FAMÍLIA CLASSE C

A família classe C
está sempre ocupada
mais que a classe média
que contrata encanadores
A família classe C
delega ocupações
à mãe toda a limpeza
ao pai os consertos rústicos
ao filho os aparelhos tecnológicos
à filha as brigas com a mãe
Passam o dia todo ocupados
com a casa que um dia vai ser bonita
O filho lava o carro
do pai
A filha passa esmalte
em casa
A mãe vai ao salão
da esquina
E o pai toma Skol
aos sábados

E lá no quarto mais escondido da casa
o filho caçula
ovelha negra da família
escreve poemas urgentes
Entrementes,
querendo ser gente



Ilustração: Nan Goldin



ANTIPOEMA

quero um poema vulgar
sem ser sexy
um poema de mau gosto
avesso ao cânone
um poema de todos
e de ninguém
um poema sem metafísica
sem transcendência
um poema que não aspire à lua
e sim à picas e xotas
um poema sem seriedade
que brinque apenas
sem rima sem métrica
sem ritmo sem teoria
um poema que não queira
ser poema
um poema que não fale verdade
e não invente mentiras
um poema que tire a roupa
me beija na boca
me ama no chão



POEMA ALMOÇO

o meu avô dizia que a poesia
na roça
era coisa de bicha
a minha avó sim
era transgressora
escrevia um poema
no lugar da louça
e eu que sou do novo século
assalariado mal pago
escrevo poemas no almoço
do chefe
e assim me vingo
à noite
dedicando o poema
a um moço


Ilustração: Duane Michals


QUERIDA AMIGA

(inspirado no poema “querida angelica” de Angélica Freitas)

querida amiga não pude ir a sua festa
meu cabelo ficou preso ao secador
estou nu com os bombeiros
tentando resolver a situação

querida amiga não pude ir a sua festa
o ex-namorado do meu ex-namorado
me ligou e estamos 
na Associação de Ex-Namorados Anônimos
fazendo testes de livre-associação

querida amiga não pude ir a sua festa
me apaixonei por um ativista
estamos resgatando Beagles
num instituto de pesquisa
me procure amanhã nos jornais

querida amiga não pude ir a sua festa
fui sequestrado para o tráfico sexual europeu
estou digitando este e-mail
às margens do rio Sena
acho que quero ficar

querida amiga não pude ir a sua festa
na verdade estou sem dinheiro
o Santander me comeu até os joelhos
por amizade deposite na minha conta
se puder



POETA É A PUTA QUE O PARIU

sou poeta de quinta categoria
não fiquei no claustro
limando a escrita
fiz minha poesia nas esquinas
vendo as putas sendo pagas
por homens sem amor
minha poesia não tem rima
é a vida torta
um horror




Bruno Latorre, 25 anos, mora em Votuporanga, interior de São Paulo, e escreve poemas, contos e crônicas. Tem trabalhos publicados na revista eletrônica Germina, no complemento online do jornal Opção, no projeto Escritoras Suicidas, participou da antologia poética sobre as manifestações ocorridas no Brasil chamada “Vinagre – uma antologia de poetas neobarracos”. Além de ficção, também escreve resenhas de livros para revistas e artigos de opinião para jornais locais de sua cidade.

E-mail para contato: brunolatorre89@gmail.com

5 poemas de Juliana Meira

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Ilustração: Christian Schloe



todas as palavras
com suas mutações
contagiam meu corpo

por isso sofro
desde a sombra
até o osso



*
por ser palavra
pugna a página

por ser palavra
perpassa o achaque

assume o sumo
invade



*
tento pintar
a memória

revisito traços
jogo tanta tinta fora

sustento ideias que
estão só na minha

fundo cor de gelo
faço cor de pérola

talvez mais
carvão

vou tingir de chão
toda atmosfera



*
sol rompendo nevoeiro
paisagem que conheço

sueño


.
preciso das noites
porque sangro
estrelas



Juliana Meira nasceu em Carazinho/RS. Morou em Porto Alegre/RS e atualmente reside em Curitiba/PR.É poeta e advogada. Autora de poema dilema, pela Editora Porto Poesia, 2009; o segundo livro não leva título e integra o Projeto Instante Estante de incentivo à leitura, pelo selo Castelinho Edições, 2012. Recentemente foi publicado poema pássaro, pela Editora Patuá, 2015. Assina o blog tempoema em: http://juliana-meira.blogspot.com

 Fotografia de Juliana Meira: Rafael Missio

Epifania das asas - Lucas Puntel Carrasco

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caminho, tempo, fé


Ilustração: Mathilddedn


Quem teceu minhas asas foi Finória
Uma velha fiandeira lá de trás
Com rosário na mão, fiava em paz
No sopro duma aragem, foi embora

Era noite prateada igual agora
Os anjinhos do céu cantando atrás
A velha me estendeu caraminguás
Eu me acheguei da minha trajetória

Seu chão brotava um brejo de memória
Cada ruga um sem fim de funerais
Mãos trêmulas mas inda assim capaz
Olhos vivos de gente que não chora

Finória me piscou, toda simplória
E logo me mostrou suas credenciais
Farejou minha alma de ancestrais
Como se fosse agora a minha hora

Então misericórdia, ouça esta história
Que conto a Deus e conto a Satanás
Os anjos prateados são corais
Que conduzem na glória essa oratória

*  *  *

E é hora de mudar pra outra cadência
que o tempo já me puxa o pé pra dança
A velha fiandeira canta e entrança
um fio, só um... e reza uma incelência

Fia, Finória, a minha existência
Desliza a linha longe onde ela alcança
Cobre um manto em meu cesto de criança
Me faz velhice, faz minha inocência

Em silêncio ela toma minha essência
e a conserva no vão de uma cabaça
Pisca pros anjos, quietos na fumaça
Envergados no chão da reverência

E eu ali, penitente na obediência
Uma encomenda feita na confiança
De garantia, um fio que sempre avança
E a fé na sua ignorância, sua ciência

Indo foi na firmeza da experiência
E Finória já finda o nó da trança
que arrasta minha asa na lembrança
daquela noite agora em sua ausência

*  *  *

Numa asa a saudade, na outra o sonho
tecido com retalhos do infinito
De repente o silêncio solta um grito
A hora grande chega ao redemoinho

É pra momentos desse, eu suponho
Que o homem inventou sagrado rito
Pra chegar de chapéu, muito distinto
De palavra na mão, seu patrimônio

E ele diz: “Não sou santo nem demônio
Só mais um mensageiro do bendito
Ou quem faz o grotesco ser bonito
Tornando familiar o que era estranho”

Quando ele olha pro céu, meio risonho
Dedo benzido em sangue de cabrito
Risca no ar um símbolo esquisito
Que representa tudo o que eu disponho

Vejo a Lua girando igual engenho
Pro ralo da noite a alma vai se esvaindo
Finória então me entrega o meu pedido:
Um par de asas boas que arrepanho

*  *  *

É quando o homem some na fumaça
Muitos brejos nos dedos, foi com pressa
A velha fiandeira cruza a reza
e me sopra na cara uma cachaça

Livre para queimar a própria brasa
ou ter fé no cumprir de uma promessa
O anjo balança e pesa essa leveza
e diz que o meu caminho é a fé que traça

Encho a mão com palavras, ergo a taça
para beber a todos nessa mesa
Surge um raio de sol, que me atravessa
transparecendo tudo igual vidraça

Só me resta aceitar a luz da graça
Aceitar minha própria natureza
Sumir no rodopio da correnteza
e me entregar ao tempo, o fio que vaza

Bem mais leve que as penas desta asa
Eu perco meus pés, braços e cabeça
Minha alma ajoelha e se confessa
Bate as asas pro céu, sua nova casa




Autor dos livros Ensaio do esquecimento (Patuá, 2014) e Coisa-feita (Patuá, 2012), Lucas Puntel Carrasco nasceu em Rio Claro (SP), no Natal de 1979. Cresceu no interior, entre Campinas, Ribeirão Preto e sua cidade natal. Vive em São Paulo. Premiado no concurso de haicais da Companhia das Letras em 2013, também lançou os infanto juvenis Ingoma, o menino e o tambor: a tradição do batuque de umbigada (2010) e Pindá, a menina do mar: sonetos para 1 infância caiçara (prêmio ProAC 2007). Editor e pesquisador de PretoBrás: canções e histórias de Itamar Assumpção (2006), o autor também colabora nas revistas Germina Literatura, Cinema Caipira, Revista do Arquivo e no Jornal Cidade.

O PERCURSO LACANIANO DO DESEJO AO GOZO

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                                                                                                                 Renata Wirthmann G. Ferreira


Quando se fala de um percurso lacaniano do desejo ao Gozo não se trata de um desaparecimento do primeiro, mas de uma prevalência do segundo. Lacan elabora os conceitos de desejo e de gozo para tentar dar conta do conceito Freudiano de pulsão, entretanto em sua primeira tentativa, com o desejo, ele acaba negligenciando o conceito freudiano e, por isso, continua seu percurso a traz de um modo que seja possível falar de algo que não diz nada, da silenciosa pulsão. 

O desejo é estruturante do ser humano. Mas o que é o desejo? Podemos tomar o desejo como sinônimo da falta. O desejo é algo que se coloca para o sujeito sempre como uma condição absoluta e infinita, sempre insatisfeito e inatingível. “É na medida em que a demanda está para além e para aquém de si mesma, que, ao se articular com o significante, ela demanda sempre outra coisa” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 353). O desejo se encontra em uma cadeia metonímica que se relaciona sempre com algo para além da demanda.

Essa característica do desejo como ilimitado se deve a sua própria origem, que ocorre no estágio do espelho. Ou seja, o desejo nasce no período em que se verifica na vida da criança uma identificação com a figura paterna ou materna e, portanto, com a figura de um outro. Tudo começa, então, naquele estágio em que a criança faz sua primeira identificação mediada pela imagem de um outro. Sob o signo da mediação os desejos se corporificam tal como o desejo de ter o próprio desejo reconhecido. Exatamente por isso, desde o início, “o desejo do homem se aliena no desejo do outro” (Lacan, 1998, p.345). Cada um de nossos desejos se transporta para o desejo do outro, e esse transporte, que busca, no outro, o reconhecimento do próprio desejo, passa a ser mais importante do que aquilo que é desejado, mais importante do que o objeto do desejo. 

Um amor ilimitado, possessivo e exigente, como é o amor infantil, da criança por sua mãe, tem a característica de um dom, ou seja, tem o registro de uma relação amorosa marcada pela gratuidade. “O que faz dom é que um sujeito dá alguma coisa de maneira gratuita; na medida em que, por detrás do que ele dá, existe tudo o que lhe falta, é o que o sujeito sacrifica para além daquilo que tem” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 143). É um amor que espera nada em troca, apesar de ter como único objetivo amoroso o amor do objeto amado. Mas poderá o amor ser possessivo e gratuito ao mesmo tempo?

Lacan (1956-1957/1995) introduz o dom como “fórmula da pura gratuidade” (p.143) no sentido de que o que se quer não é um bem possível, mas algo que só tenha valor como um signo de amor, ou seja, algo que ultrapassa o possível de ser dado, o nada, pois isso não se tem. Lacan diz, portanto, que amar não é dar o que se tem, mas sempre dar o que não se tem (p.153). Adverte: “nada por nada é o princípio da troca” (p. 143). Então, sob tal perspectiva, o que a mãe dá para a criança, durante o primeiro tempo do Édipo, é considerado um objeto de dom, ou seja, aquilo que se dá de forma gratuita, na medida em que, por detrás do que se dá, existe tudo o que lhe falta, “é o que o sujeito sacrifica para além de tudo que tem” (p.143). 

Temos, portanto, que considerar a existência de uma relação entre o amor ilimitado e o dom, um signo de amor. O amor é uma demanda de nada, ou seja, é uma demanda de algo que só tem valor como signo. Ocorre que se, por um lado, o amor da criança por sua mãe, enquanto objeto, é ilimitado, por outro, ele exige tudo. E não há demanda maior de amor do que a que exige, a que demanda algo que ultrapasse os limites do objeto amado. Exige-se algo para além do objeto amado, deseja-se não tudo o que aquele objeto tem, mas tudo o que ele não tem. “Não existe maior dom possível, maior signo de amor que o dom daquilo que não se tem” (Lacan, 1956-1957/1995, p.142).

O desejo não pode ser dito, não pode ser jamais nomeado, pois não se deseja ter algo, mas ser. “O desejo é uma relação de ser com falta” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 280).  A falta, assim como o desejo, é, portanto, constitutivo do ser humano: não é possível nomeá-la ou apresentá-la, a não ser como refletida num véu.

O véu é algo que se localiza sempre entre o sujeito e o objeto. Não é sobre o véu que repousa o desejo, mas em algo que está para além deste véu. O véu tem sua importância pois tende a realizar como imagem aquilo que ele vela. Ao olhar-se para o véu, não é o véu que interessa, e sim aquilo que o véu cobre, sempre parcialmente. Quando se olha nessa direção, o que é visto não é nem o véu nem o objeto por detrás do véu, porém uma outra coisa, coisa imaginada. O objeto velado não é o objeto em si, é um objeto ilusório, valorizado justamente por ser ilusório. Ele é aquilo que se imagina do objeto na medida em que o objeto está parcialmente encoberto e não pode ser plenamente visto.

“Sobre o véu pinta-se a ausência” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 158). O véu vela a ausência e pode ser, ele mesmo, o lugar dessa ausência. Ou melhor: lugar do desejo, lugar em que se pode estampar essa imagem capturada – o véu torna-se tela ao pintar-se nele a ausência. O véu é de tal importância para o sujeito, que Lacan questiona: “Por que o véu é mais precioso para o homem que a realidade?” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 160). Ora, essa imagem pintada sobre o véu é uma parada na cadeia metonímica do desejo. À medida que se consegue pintar essa imagem, ela não é mais a imagem desejada e a cadeia continua parando, vez ou outra, em imagens. Cada imagem representada é vista, por um breve momento, como realidade para o sujeito. Porém nunca há satisfação completa, o desejo nunca pode ser satisfeito, ele desliza por entre as mãos e a busca recomeça. Para que o sujeito não se canse de buscar, ele recebe, a cada imagem, uma pequena dose de satisfação, mas nunca toda a satisfação que procura. 

Do véu à tela, da tela à máscara. Se o véu recobre parcialmente o objeto desejado, possibilitando a imagem, isto é, fazendo tela, podemos pensar que a tela é uma máscara do desejo, uma forma de representá-lo, de possibilitar o seu reconhecimento. 

O que o desejo busca é o reconhecimento e existem várias vias para esse reconhecimento: o sintoma, os sonhos, ou seja, formas nas quais o desejo se reveste com a máscara. O desejo fala através dessa máscara, ao mesmo tempo, a máscara, a imagem, não se sustenta sozinha em si mesma, é necessário que ela seja apresentada como significante para que represente algo. É assim que percebemos que o desejo é articulado, “ligado à presença do significante no homem” (Lacan, 1957-1958/ 1999, p. 341), mas ele não pode ser completamente articulável, ele escapa a qualquer articulação significante, é irredutível e informulável, pois está “para-além do verbo” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 341). O desejo é inapreensível e irredutível pois ele é metonímico, quando parece estar próximo de atingir o seu alvo, ele já se modificou, deslizou, já é desejo de uma outra coisa. Por isso podemos dizer que, no desejo, o importante não é aquilo que se deseja, mas o próprio desejo enquanto desejo de ser reconhecido.

“As pulsões são estruturadas pelo desejo de reconhecimento e deixam apenas um resíduo no imaginário” (Miller, 2005, p. 207). Nesse momento, até o seminário 5, há a redução da pulsão ao plano simbólico. No Seminário 4 o falo está no lugar da pulsão freudiana, visto que a pulsão se localiza na junção do imaginário com o simbólico. Pode-se dizer que, nesse período, o desejo eclipsa a pulsão e o operador do eclipse é o falo.

Qual relação que Lacan estabelece entre desejo e pulsão? Para falar disso é necessário tratar da trilogia: necessidade, demanda e pulsão. Entende-se por necessidade o elemento bruto da pulsão, que impões à experiência. Demanda, por sua vez, é o que, da pulsão, consegue passar à fala, anulando, convertendo nela o bruto da necessidade. É impossível que toda necessidade se transforme em demanda, a diferença entre as duas (D/N), o resto, é o desejo. O desejo é, portanto, a diferença inevitável, impossível de ser suprimida, que faz sempre existir um significado a mais (pois assim como o significado o desejo fica debaixo da barra S/s).

O problema desse trio é que ele não esgota o que há para se dizer sobre a pulsão. Pretendendo traduzir a pulsão freudiana como silenciosa, que não diz nada, mas está sempre ali, Lacan inventa escrever S barrado, punção D (Demanda). Essa fórmula ainda não é sufuciente.

Paralelamente Lacan formulava o conceito de objeto a que vem para traduzir a pulsão Freudiana e toma o lugar de destaque que fora, até então, dado ao falo e ao desejo.

No seminário 7 Lacan vai desenvolver que a satisfação buscada pela pulsão é a possibilidade de uma constância, sendo que essa busca só existe por que há, no aparelho psíquico, uma força que age no sentido oposto. Dessa forma não há possibilidade de gozo sem interdição, são necessárias essas duas forças contrárias, “uma transgressão é necessária para ascender a esse gozo e é muito precisamente para isso que serve a lei” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 217). Essa força contrária ao gozo é o que impede que o homem se enforque na corda do seu próprio desejo, é o que faz com que no lugar da morte advenha uma rotina de satisfação limitada, curta.

Nesse momento há o que podemos chamar de “gozo da transgressão”, ou seja, um gozo que aparece essencialmente ligado ao excesso. Esse modo de gozo se dá como tentativa de satisfação da pulsão.
Em A Ética da Psicanálise, ligar o gozo ao excesso pressupõe que a ordem simbólica, o significante, possa moderar o gozo, domesticá-lo, reduzi-lo, encadeá-lo e regula-lo precisamente pelo viés de sua representação significante, ou seja, pelo falo como representação significante da pulsão. Embora, por um lado, o gozo consinta, há, contudo, um resto dele que não se deixa temperar pela representação significante (Miller, 2005, p. 122).

Gozo, na acepção comum da língua refere-se a fruição e está ligado ao verbo usufruir e, consequentemente, se liga a um objeto, pois quem usufrui, usufrui de algo. Está ligado também a uma sensação, pois essa fruição é acompanhada de prazer e satisfação. No seminário 7 o verbo se mantém, trata-se ali de usufruir de um bem. O objeto que se trata de usufruir, entretanto, vai apontando um diferencial em relação ao uso comum, pois não se trata de um objeto de uma necessidade, de algo útil, mas do objeto da pulsão, que, no seminário 7, Lacan nomeia de das Ding. 

Das Ding, a Coisa, é o objeto perdido desde sempre, que se quer reencontrar e que jamais poderá ser encontrado. Daí decorre uma identificação entre das Ding e a tendência de reencontrar esse objeto, algo que Freud coloca como fundamental para a orientação do sujeito, mas que nem por isso é possível de ser dito, pois se trata de um objeto sequer perdido, uma vez que nunca foi possuído. Configura-se assim, no registro da pulsão de morte, uma busca pela satisfação plena que só seria possível no reencontro com o objeto perdido. E, nessa relação do homem com o significante, esse mesmo significante manipulado pelo homem, também o coloca em relação com o objeto que representa a Coisa. 

Qualquer objeto pode ser elevado à dignidade de Coisa a partir da sublimação e, nessa condição, tal objeto está sempre relacionado com o desejo, cujo determinante é o vazio. Assim, o vaso, por exemplo, é um objeto que permite representar a Coisa/vazio, pois se constitui em torno dele, em torno da coisa. “É justamente esse vazio que ele [o vaso] cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 152). Afinal, não é possível representar o vazio em si. Somente é possível contorná-lo tal como o barro do vaso faz e tal como a obra de arte faz. Tudo o que escapa de qualquer definição materializada pode ser dita por meio da forma evanescente que das Ding possui.

No Seminário 11 o verbo do gozo passa de usufruir para fazer-se usufruir. A pulsão trata-se, aqui, deste fazer-se: fazer-se bater, fazer-se ver, fazer-se ouvir, etc. A diferença entre o gozo do seminário 7 e do 11 é que no Seminário 11 o sujeito tem acesso ao gozo em relação ao gozo de um outro, deste modo o gozo passa da posse de um bem a estar no lugar de um bem a ser usufruído por outro.
No seminário 11 o objeto da pulsão não é mais a Coisa, mas o objeto a. Lacan introduz o conceito de objeto pequeno a no nível do objeto parcial, um objeto metonímico que sempre afirma: Não é isso! Esse objeto a foi chamado, por Lacan, de objeto causa do desejo e pode se apresentar como o objeto da sucção, da excreção, ou ainda, o olhar e a voz. Portanto, esses quatro objetos são tomados pelo sujeito como substitutos do Outro e são sobre esses objetos que o sujeito afirma seu saber, que, na verdade, não passa de correlato de objetos a, “correlatos de fala que goza enquanto gozo de fala” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 171).

A partir desse momento acompanhamos, na obra lacaniana, uma desvalorização do significante fálico e, consequentemente, uma valorização o objeto a. O gozo passa a ser tratado pelo viés do objeto a. O excesso de gozo que antes fora tomado como transgressão passa a ser chamado de objeto a, como “mais-de-gozar” (A/G = a , Outro sobre gozo é igual a objeto a).
No seminário 17 a noção de gozo é similiar com a do seminário 11, entretanto a partir desse seminário Lacan tenta evidenciar o caráter primário do gozo, sendo que o próprio sujeito surgiria da relação do significante com o gozo. 

No Seminário 20 Lacan traz uma última reformulação sobre o gozo em que ele conceitua o gozo como uma instância negativa – “O gozo é aquilo que não serve para nada” – mas que temos o direito de usá-lo, abusá-lo – mas não muito – não que isso tenha alguma utilidade, mas temos que usá-lo. Aparentemente, nada parece obrigar o sujeito a gozar, mas o gozo se manifesta, efetivamente, sob a forma de um imperativo, já que todo significante é, de saída, imperativo, superegóico, temos, então, o imperativo do gozo: Goza! (Lacan, 1972-1973/1985, p. 11).

Num primeiro momento, no seu seminário 20, Lacan fala de um gozo ligado a um desejo, à uma possibilidade de satisfação, esse gozo de que se trata é um gozo sexual, fálico, um gozo que é não-todo, de um ser falante cujas necessidades estão sempre implicadas numa outra satisfação inconsciente, a satisfação da fala, que pode ser ou não ser dita.
Esse gozo sexual parte da falta-a-ser e se situa fora do corpo, mas ligado ao corpo pela representação simbólica deste, pela fala. Esse gozo busca nas palavras a possibilidade de satisfação de um desejo, satisfação essa que nunca é encontrada, ou melhor, reencontrada já que se trata de um objeto perdido, sendo que o que constitui o objeto como perdido é a nossa procura. 

O gozo fálico é um gozo da falta e o que o constitui assim é também a procura, a procura do sujeito por satisfação. Dessa forma, temos que o gozo sexual, gozo da castração, não pára nunca de demandar, ele está dentro de uma cadeia impossível de não parar nunca: o gozo sexual ‘não pára de se escrever’. Isso que ele não pára de se escrever é o desejo identificado ao objeto a.

Para além desse modo de gozo, Laca fala de um Outro gozo, um gozo do corpo, do ser, um gozo do Outro. Se no primeiro, há a busca de um gozo sexual, fálico, neste segundo temos um gozo do corpo como tal e não do que se diz sobre o corpo. Trata-se de um corpo assexuado, pois o que faz de um corpo, sexuado, é a linguagem, pela nomeação e significação das partes do corpo. “É claro que o que aparece nos corpos, com essas formas enigmáticas que são os caracteres sexuais – que são apenas secundários – faz o ser sexuado. Sem dúvida. Mas, o ser, é o gozo do corpo como tal, quer dizer, como assexuado (...)” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 15). 

O gozo do ser é um gozo fora-da-linguagem, que suporta o corpo como tal e não o corpo mortificado pela linguagem. Do lado desse gozo está o gozo feminino, um gozo que, assim como o gozo do corpo é inacessível, por não corresponder a nenhum desejo e, portanto, não poder ser de forma alguma apreendido ou significantizado.

O corpo de que se goza é o corpo do Outro, o que aponta um dos motivos para a inexistência da relação sexual. “Não há relação sexual porque o gozo do Outro, tomado como corpo, é sempre inadequado – perverso de um lado, no que o Outro se reduz ao objeto a – e do outro, eu direi louco, enigmático” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 197). Perverso, pois ao emprestar uma parte do corpo para que o sujeito goze, quem goza é o Outro e há algo de sádico nisso, o que faz com que o gozo se manifeste para o sujeito, na maior parte do tempo, sob aspecto de sofrimento. Enigmático, pois o gozo faz barreiras ao saber, funda no sujeito um ‘não quero saber disso’, que nos leva a questionar se existe, na verdade, algum saber possível sobre o gozo, já que não se pode dizer uma única palavra sobre ele.

Esse gozo, mesmo que dele não se saiba nada, é experimentado pelo sujeito e o reporta ao Outro. Mas quem é o Outro? O Outro não é o lugar de toda a verdade ou onde se possa articular todos os significantes. O Outro não é um lugar em que haja todos os significantes, sempre faltará ao menos um, que faz o Outro não-todo. Portanto toda a verdade não existe nem no Outro. E é a relação da mulher com o Outro que vem apontar essa falta. A mulher tem relação com o significante ausente do Outro, significante que barra o Outro – S(A). “Nada se pode dizer da mulher. (...)A mulher tem relação com S(A), e já é nisso que ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com M” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 109). A mulher tem, portanto, essa dupla relação, com o Outro e com o falo, sempre não-toda.

Esse é o gozo da mulher – S(A), um gozo Outro que não o gozo fálico e que se inscreve na função de ser. O gozo feminino não está ocupado com o homem, mas quer saber o que ele sabe. A questão que se coloca aí é que no inconsciente o sujeito sabe sempre mais, porém isso não é aceito, pois é necessário que esse saber seja articulado num discurso. Mas e a mulher, o que ela sabe sobre o gozo? “É nisso que ela é ela própria sujeita ao Outro, tanto quanto o homem“ (Lacan, 1972-1973/1985, p. 119-120). Não se sabe se a mulher tem saber algum sobre esse termo – Outro – de que ela goza. 
Para esse gozo a mulher é não-toda, mas a escrita desse gozo, se fosse possível escrevê-lo, buscaria uma suplência desse não-todo. Lacan aponta que só há uma forma da mulher mostrar suplência do não-todo do gozo feminino: ocupando esse lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, como mãe, e mais do que isso, ela só tamponaria esse vazio colocando seu filho como objeto a (Lacan, 1972-1973/1985, p.49). Fazendo essa suplência, a mulher entraria em função na relação sexual enquanto mãe e o homem enquanto castrado, mas, na verdade, a relação sexual não poderia jamais ser escrita, assim como o gozo feminino jamais deixaria de ser não-todo.

A descoberta do inconsciente trouxe a concepção de que nem todo saber se sabe, mas que se há um lugar para o saber esse lugar é o Outro, pois é justamente onde o significante se coloca, é em referência ao Outro, ao que vem dele, que o sujeito formula o seu discurso, é de lá que o sujeito busca apreender seu saber. Frente a esse saber o sujeito não terá somente dificuldade de adquiri-lo, mas terá dificuldade maior ainda de conseguir gozar desse saber, mas é justamente essa dificuldade que renova a sua conquista, que leva o sujeito a querer mais. Mas o que se busca saber? A verdade, que nada mais é do que a impossibilidade de se dizer toda verdade. “É o que só se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só se fazer semi-dizê-la” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 124). Não se pode levar a verdade até o fim, pois o gozo também não vai até aí, ele é um limite que se elabora por um semblante, ele vai só até essa aparência que é tomada como um suposto gozo, mas que não chegará jamais a gozo. Lacan (1972-1973/1985, p. 146) descreve a dimensão da verdade como a possibilidade de “enfiar a realidade na fantasia”, esse é o meio pelo qual a verdade encontra para funcionar ao menos pela metade.

O motivo maior para o saber-não-tudo é o Outro. “É o Outro que faz o não-tudo, justamente no que ele é a parte que de-todo-não-sabe nesse não-tudo” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 133). O sujeito não sabe muito do Outro e o que ele sabe é semblante de saber já que não há nenhum desses saberes que seja pleno, sendo assim é o próprio saber sobre o Outro que faz com que todo saber não se complete jamais.





REFERÊNCIAS

ANDRÉ, S. (1998). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. (1956-1957/1995), O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. (1957-1958/1999), O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. (1959-1960/1988), O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. O Seminário, livro 17:o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. (1972-1973/1985), O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MILLER (2005), Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Em que lugar da casa você daria um tiro na cabeça

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Em que lugar da casa você daria um tiro na cabeça
em que ponto turístico da casa
em que rua da cidade
de pé
em ruínas
sentado em que móvel
ou automóvel
deitado em que tecido
de que cor
a cor que faz lembrar de alguma coisa antiga
de um projeto futuro
futuro promissor
o tecido macio
você desliza a mão
não é a pele que está ali
é a pele da casa
você está cercado pela pele da casa
que o envolve feito carapaça
a pele áspera da cozinha com tanto café
xícaras que conversaram
em que lugar da mesa você se senta
você tem lugar marcado
na cama tem lugar marcado
o seu travesseiro preferido
o braço dolorido onde apoia o peso do corpo
o ouvido que não encosta no travesseiro
porque não quer ouvir o pulso do coração
você vai poupar o coração
a cabeça foi declarada culpada
com dados viciados
não cabe recurso
em que lugar da cabeça
você é canhoto
não falo dos motivos
falo da mecânica
em que posição da cabeça
tombada
queixo erguido
ou vai mergulhar de cabeça 
do alto de uma cachoeira
mergulhar em areia movediça
você turvará a mente dentro da cabeça
com alguma droga artificial
ou a bílis será a sua bebida
escreverá um bilhete de cara limpa
não há mais papel em sua casa eletrônica
de pele áspera
vai escrever no papel do cigarro
você não fuma
na bula do remédio
sim, na bula
você não quer deixar bilhete algum
tem uma ponte há quarenta quilômetros daqui
com que tipo de arma de fogo
reluzente
escura
vai mirar o ouvido
a têmpora
a cara a boca a nuca
tem um banco no jardim
a casa está em silêncio
os passarinhos comem na sua mão
o pensamento são fardos de algodão
o sol já vai se pôr
então não existe disco voador
você é o holandês do navio-fantasma
aquela prece não sai da sua cabeça
o banheiro está limpo
você borrifa um perfume cítrico atrás da orelha
penteia o cabelo
a lua cheia
maré alta
que coisa barroca dar um tiro na cabeça
descasco uma banana
ponho canela e acendo o forno


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(imagem: Manoel Guimarães)



Um conto de Roberto Menezes

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Gritos pela Janela

Virtudes mora no andar de cima. Escondida dentro de si. Raramente ouvi a voz dessa moça. De quando em quando a encontro no elevador. Apesar de ela me olhar de uma maneira simpática e apresentável, quando ela me dá as costas, o espelho denuncia que nada está bem. 
Nas vezes raras em que ouvi falar de Virtudes, foi através de seu marido, que ao contrário dela, sobe os oitenta e cinco andares do elevador todo falador. Diz ele que sua família saiu de um estado deplorável de pobreza e vivem agora felizes a menos de dois andares da cobertura. Nunca perguntei a ele seu nome, não me interessa. Quando os dois andam juntos, ele a abraça ou a pega na mão de um jeito que me deixa confuso. É patente sua paixão por ela, mas não está clara a dela por ele. Tem vez que eu acho que sim, tem vez que eu acho que não. Assim como ela tenta ou não deixar transparecer, também cultivo uma espécie de admiração, inveja e ódio por aquele homem.
Ontem acordei ao belo som de porcelana quebrando. Era madrugada ainda, o sol espantado amanhecia, e Virtudes, na sua milésima noite mal dormida, transfigurava seu descontentamento com violência sobre os objetos inanimados. Que voz linda tem Virtudes! Fiz meu café e imaginei o que ocorria na insurreição matutina. 
Naquela hora, nem por um minuto procurei saber a razão de ela estar fazendo aquele ato. Não demonizei o marido que tanto admiro, invejo e odeio. Não salguei com meus pontos de vistas a reação de Virturdes. Virtudes reagia. E regia o quebra-quebra primorosamente. Fechei os olhos. A acústica midiática do meu prédio fomentou minha imaginação. 
Nunca saberei o que aconteceu de verdade no apartamento sobre o meu. Imaginei Virtudes transvestida em dançarina, arremessando tudo na parede. Uma gota d’água se descobre bailarina ao cair na chapa quente. Virtudes almejava o caos. Por aquele momento, o caos deveria ser a única coisa que ela desejava urdir. 
E realmente não fui o único a ouvir. O prédio espalhou o grito da moça por andares, do subterrâneo às piscinas da cobertura, tal qual pétalas, violando os ouvidos. E de todos os andares, brotaram gritos tão similares e tão diferentes. Dolores ecoou suas dores. Prazeres acusou que nada estava bem. Luz começou a piscar as luzes do seu closet. Esperanza e Constanza cantaram juntas.
A gritaria avançou pela tarde. E quando a noite chegou, Virtudes liderou o arremesso de coisas pela janela. Tristes e patéticos objetos inanimados, frutos de frustrações furtadas com algum dinheiro. Dinheiro vai, dinheiro cai. Cadernos, roupas, sonhos rasgados voando e transmutando-se em mera alegoria; que mesmo assim, eu, homem burro, não consegui entender.
Ardia meu prédio de um calor que não era fogo, que não sei se serviu ou se foi vão. Os gritos cansaram, os braços desistiram de arremessar de cada quarto o que lhes incomodava. Todos então dormimos, elas nas suas fronteiras, sarjetas devastadas; eu, no meu mesmo lugar de sempre. 
Torço pra que hoje elas repitam suas gritarias. Que sejam mais exageradas do que ontem. Talvez eu tenha coragem e pule junto com esses sonhos a se esfarelar.     



Roberto Menezes é paraibano nascido em 1978. Doutor em Física e professor da Universidade Federal da Paraíba. Faz parte do Clube do Conto da Paraíba e foi membro fundador do Núcleo Literário Caixa Baixa. Tem quatro livros publicados: Pirilampos Cegos (romance), O Gosto Amargo de Qualquer Coisa (romance), Despoemas (contos) e Palavras que devoram lágrimas (romance). Foi vencedor das duas edições do Edital Novos Escritos da Prefeitura Municipal de João Pessoa (2007 e 2008) e do Prêmio José Lins do Rego da Funesc do Governo do Estado da Paraíba (2011).

Ilustração: Mulher em vermelhor, Di Cavalcanti

A POESIA DE ISABEL MENDES FERREIRA [PARTE DOIS]

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SELETA DE




1.

ensaio-me. para que a morte me seja ao som dos pés o som das uvas esmagadas com o sangue de todas as rosas que não vieram ser-me lençol. uma porta de chumbo a ser livro raso a ser abate e abro-te a boca para te ser luz que não sombra. em resgate.___________________________________________________
e se o eterno mais não fosse que este único momento de trigo incerto? dirias que um pássaro me dividiu o corpo ou antes que o fundo do abismo seria mais alto? como vês nada sabemos da extrema solidão. fonte ou harpa seremos sempre a metade de um livro alegórico.

 
 
 
2.


o tempo é mesmo só renda.
que a saudade essa sim é plana rasa e arrasa. desfaz o peito. curva o corpo. destroça a raiz. estala a pele._________________ macerada de luas que arderam aos teus pés. concebo-te estio. sempre. mesmo na linha espumosa deste inverno. onde me expurgo escorrente escorraçada estéril e efémera. o tempo que me é mísero e antigo e indócil na despropositada gramática do mal haver e mal adivinhar onde se nasce e onde se morre insepulta além das colinas debaixo do sal. são inúmeras as mãos que me desprendem e vários os dias bárbaros. o tempo é uma honra que se desfaz.



________________a linha quebrada é a linha de passagem que força o espírito a ser resistente. mea anima magnificat na crispação serena que o pensamento exclama e o dia remurmura. interrompo a chama pouso todos os ecos resta-me um adeus redondíssimo na casa das substâncias em que a língua deixa de ser a grande sedutora. mais tarde o tempo faz de grande mestre. e todas as linhas serão faces. límpidas. ressalvo a hora do meio justo e a clemência como chave____________________inclemente o limbo.





9.

em silêncio o som é  um lugar de estranhamentos. como referência temporal de um concerto de vozes interiores. verso e excerto onde se nasce e morre. por uma palavra que seja identificável. ária ou cantar de aves marinhas no alto da tua boca em falésia ou em nuvem ao longe que o perto é intocável. o som do teu silêncio é tão redondo e oxímoro como o som de uma epífora onde o eu é redundante. sinal de mais por menos que a metade onde te vi partir. em barca sem porto onde voltar. envolto de música e nu de paraíso. que o sonho te é ninguém. efémero como grainha és porém o âmbar e a câmara o refúgio e o vento. tudo numa ilha. silenciosamente centrífuga. ao som do teu silêncio.




17.

à hora absurda em que te escrevo não passo de um projecto excluído uma lança exclusiva na margem física do papel iconográfico onde não resiste a tinta nem a pele que já me foi língua. é a hora dos santos mais tristes. aqueles que perderam a manifestação e a pomba redentora. são tão estranhos estes sinais de remorso e de rigor. como se a vida estivesse cada vez mais perto de ser inhumana e gélida e morgue e mútuo consentimento do selo final. hora de chorar os vivos que ainda me são prado e preciosa submissão ao corpo cercado. de ritmos e de espasmos servos do medo. a esta hora em que adormeces o único filho conflituoso da linguagem escrevo-te vigília e poente. eutanásia dos amantes.




27.

em queda. de úlceras ubíquas. em falsa unicidade. como se o teu torpor me fosse valsa de veludos que não amaciam. varrem o ar como distância inverosímil reduzindo a versão dos anjos ao vaticínio das veias que tutelam a intransigência de um movimento apenas teórico. em queda é que te alcanço. 




29.

se um dia regressar será em sangue e em transição do esquecimento. despida de qualquer evocação do que foi explícito sono lágrimas e desistência. que o corpo me é inmedida e hóspede da solidão. já não me espero no outro lado e não te dou o rosto no pano de linho onde me desenhei a ponto de prisão. já não me sou a coragem nem o desafio nem a cura de um bem em desalinho constante. colho o desperdício e o esquecimento e desfaço as pétalas as cartas a música até o próprio cansaço e telegrafo-te um testamento de espelhos sem recados nem agravos.
recolho o que não fui rente ao peito magro que a vida des.sublima. sem pena. sem apelos. sem a pele aconchegante das noites que me foram séculos.
se um dia regressar o seguinte já será a repetição do vazio. e desisti. apago o registo o eco o livro o resgate impossível. escrava de um destino invisível saio de frente e cravo-me nas tuas costas feridas de vogais ásperas inférteis lúcidas e imperdoáveis. __________________________o tempo foi tudo o que não cingi na presença de um mal brando e persistente. morro. como morrem os animais feridos de um tiro incerteiro. espero que seja breve. e para nunca o regresso.




137. 
 
acasulo-me de água para te ser o dom e a origem o bafo e os nós dos dedos em distância de seda. a mesma que nos é medida sem caos nem idade nem desatenções. escrita de mármore e sono extasial. um indestrutível absoluto que se glosa a si mesmo no ventre profundo onde nada é desistência e tudo se oculta. acasulo-me em faúlhas e sal grosso para melhor tecer o poderoso fio que nos é lume e afluente do rigor e da lucidez. árdua e espinhosa. íngreme e cerrada. como tudo afinal que nos é vedado e logo oscilante ao primeiro sinal de vertigem. coso ao coração o centro da terra. lacerada. e em choques límpidos que são fendas e depois respiração. a música fulgura e o silêncio é um recado passivo que não morre. acendo a noite para que possas ser-me dia neste sobressalto que nos assalta. anda. que o deserto é uma chaga e o mar a depuração. parcimonioso declínio das abóbadas estranhas à razão. decalca-me este casulo de patas rendidas ao testemunho do sonho. somos a nenhuma súplica e toda a rendição.




139.

vim do mar. da mesa do mar. que dizia pálidos os vestidos lançados ao chão. em vagas ou implantes dos teus dentes como verdades. e da lã das tuas mãos como cordeiros mansos trouxe a penitência ascendida da boca dos animais mais ternos. vim do mar que hoje estava de oliveiras e de fragmentos territoriais. os mesmos quando fomos transeuntes álgidos e ardis sem envelopes fechados. as tuas mãos como andas andaram nas minhas como se asas também fossem. e os peixes abrigaram-se nos teus pés. cruzados. relutantes no meio da sala fulgurosa. e um anjo absurdamente coloquial dizia das assimetrias do teu sorriso e do meu silêncio carnoso. ocupaste o lugar de todos os ofícios como se ocupa a lâmina e o fio. ao longe o futuro aquecia o vinho da despedida em lugar do transe ou da melancolia. e floriu-se o anjo de beijos primitivos. fez-se espelho e pedra e lágrima e perfume e cabeça em desmaio. trago do mar uma foice. latejante o mistério ávido em que te anuncio nunca mais outra vez. a maré alta como advérbio mortífero. água em calafrio e deus cheio de vestidos lançados ao chão. e tu ao largo. sempre ao largo. cada vez mais véu. o meu.




213.

o tempo. enigma em extensão. a origem de toda a diferença onde ser outra vez é rasgar a dúvida e propor um novo e genesíaco parêntese. parar o impossível em território de promessas. umas misericordiantes outras apenas apóstolas das mãos vazias.____________o tempo de esventrar a luz e noivar o silêncio.




219. 

e a palavra veio depois. sentados frente a frente a inominável e o olhar inconfidenciavam-se. ela de branco vestalíssima ele de névoa como filamento miraculoso. a morte serena e o adeus crescente. vestidos de vibrações. perdidos no universo de uma estação qualquer. sentados no ar como nascituros antes do tempo. não somos infinitos. roemos o tempo e concebemos a idade como um gelado a derreter debaixo da língua. mudam-se as esperas e as vésperas. somos de silêncios excrementícios. e a palavra veio depois. séria triste conformada carta de despedida. sabemos o excesso de milhões de perguntas e não sabemos que já é tarde para emoldurar a imagem dos cânticos arbustivos onde fomos a montanha e o deserto de todas as bem-aventuranças. são sete os nomes do medo e outros tantos os do vento que nos lançou ao mar.
veio muito e muito tempo depois a palavra. portentosa face desanimada. texto e pele como testemunhas do silêncio. sabemos que o futuro já é desistente. não me digas memória. a inominável está aqui. a respirar-nos.




318.

a segunda memória é de aço. suporta e entra por um labirinto incondenável mas tortuoso. arranha e reduz a metáfora que sem ser fascinante fascina e se faz ilha. é uma dor temporária a convocar passados recentes observadores errantes como aves e sós como nós. a primeira memória é um hálito. apenas. um arquipélago cartografado com minúcia de ourives e pasto espumoso. amanhã parto.___________________________(espera-me nenhum barco. ambicioso regresso aos hieróglifos submersos)




325.

já há muito me tivera calado se algo equivalente ao silêncio me fosse lençol de chamas entre as chamas indissolúveis e impuras que desarmam e passam a linguagem de símbolos e de espinhos como antas como títulos como sinais escritos a ossos e a lanças erguidas. já seria a lógica de uma história sem rumo nem epílogo nem escamas nem pausas felinas nem cristais como parágrafos. desde que o tempo não é soneto nem absoluto nem póstumo verbo como dístico que me calo e rendo ao oculto fragmento que é apenas chão. apenas lento encontro ao encontro do perigo. tudo o que destrói é cúmulo incandescente é abismo e rebanho de ais no meio dos cardos ao lado do rio no ventre da montanha no olho de gás das estrelas. e cai. comovidamente. rente à pele ferida de explosões. fúria de ordens várias. indigentes. majestosamente cruas. como corpos insurrectos navegantes sobre um mar de fundo raso onde mora o monstro maior da crueldade. já há muito me serias o silêncio se incerto me fosse o dia de partir. e é deste espanto soberano de ainda ser fala que falo acima das chamas para imitar a cintilação e desconstruir a muralha.




344.

é da casa dos afectos que ela chegou. a palavra. em cantilena de soluços como renda antiga ou talvez apenas das muitas viagens pelo vento quente da terra solitária porém solidária em sulcos de sede e de secas. travessia feita fonte ou dom. graça escrevente e fruto das mãos em cacho. que do resto a carta é mapa e registo das horas em vigília e dos santos terrenos que nos esperam como hóstias. _________________________é da casa dos afectos e das perguntas em espiral que me vens dizer o agora como se antes o futuro fosse breve constante e aberto às horas. sendo que a raiz do pensar cresce cada vez mais para dentro das ruínas e dos fossos e passa a poeira e passa a traço inchado de obscuridades. nada é desenvolto e textual nem grácil nem presença essencial. apenas ar. aragem apenas. apenas uma fascinante imobilidade de semideus à roda da roda do tempo. como filamentos ou pés de barro crucificas-me os nervos a voz a pele o silêncio e depressa o secreto é margem devassada e nada nada cruza este mar parado que tudo desbrava como lança afiada. amorável é o amor de uma carta de saudade reservada à estrada e ao voo expiatório. que vem da casa dos afectos um terrível lapso e um doce fragmento de vidro.

_________________________________sei que se é nu diante da ceifa. e que o luto é uma complicadíssima teia de folhas mortas.




*    *    *






Isabel Mendes Ferreira (1954- ) é escritora, poetisa e pintora, natural do Montijo. Publicou os livros de poemas "Sobre as Ervas um corpo de Junho" (1982), "Um Nocturno de Bach e um Relâmpago no Olhar" (1983), “Um Corpo (sub) Exposto” (1983), "A Pele", “Ponto Final”, “Cantochão” e “Vermelho Doce” (todos de 1990), "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar" (2010) e "Tempo É Renda" (2014). Foi cronista no "O Jornal", no "Diário de Notícias", no “Diário de Lisboa" e nas revistas "Guia", "Activa" e "Tomorrow" e ainda Copy Writer nas Agências de Publicidade, Sistema, Ogilvy, Cinevoz, Boom and Bates, entre outras. Na Pintura, expôs na Galeria Altamira em 1985 e em 1987, no Clube 50/Espaço. Ainda nesta galeria e no mesmo ano participou numa colectiva. Em 1988 esteve presente na "80 Anos de Arte Moderna Portuguesa", na Galeria São Bento e numa individual na Galeria Interni. Isabel Mendes Ferreira está representada em colecções particulares em Espanha, França, Estados Unidos da América e Brasil. E em Portugal.  Ainda são seus os textos do Livro “IMAGENS”, de Dina Aguiar e as ilustrações do “À Mesa do Amor”, de Joaquim Pessoa.




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