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Delírios Atlânticos II - Davi kinski

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Ilustração: Gilad Benari



Eu, que ando vivendo pequenas revoluções
Tatuando tessituras
Despetalando paisagens
Para comer a imensidão
Dos ares

Eu, que tenho costurado poesia na pele
Que tenho almoçado gritos no apartamento
Amanhecido vasto
Como um furacão
Essa indigestão... 

Eu, que ando diluindo morros
Vestindo tempestades
Evaporando estradas
Para navegar
Mais nada

Hoje, acordei atlântico
Para desaguar no mundo
O que não cabe em mim




Meio Bossa-nova


É o vento que derruba os muros
A poesia que se faz mais calma
Dentro

Nem sempre é possível ser caos
Nem sempre solidão
Acompanhada

É a chuva que escorrega
Os nossos sonhos fatigados
De vontades pregadas nos pelos
Os dias carregados nas linhas indecisas das mãos

Nem sempre é possível ser montanha isolada
Nem sempre atlântico
Um salto voraz aos teus dramas
Selvagens
Quietos, dentro do apartamento.
Da cidade gaveta

Nem sempre manso ou feroz
Mas brando no peito
Dourado, como paisagem da terra santa.

Nem sempre é possível calar a poesia
Que nasce na região côncava
Dos desejos libidinosos

Nem sempre esse grito estilhaçado no asfalto
Nem sempre esse silêncio virado no álcool

Atiro para o alto
uma inconstância vadia, como a brisa
Na beira dos nossos sonhos




Depois de Hiroshima


Fecho os olhos
Para varrer
As ausências
Colhidas
Nos silêncios
Atlânticos
Dos Budas
Que ditam
A paz
Que não temos
Delírios atômicos
Espatifados
Nos partos
Sem mães
Vou limpando
A retina
Sem a vaselina
Dos domingos
À tarde
Da violência
Sem gozo
Quero o grito
Do que não
Tem chão
Na curva
Do abandono
Vou fazer um
Arranjo
Para enfeitar
Com decepção
Esse verão
Que nunca

Chega 




Davi Kinski (SP, 88) é ator, produtor e cineasta. Participou do filme “Nome Próprio”, de Murilo Salles, que lhe rendeu a indicação de melhor ator no Festival de Gramado (2008). Em 2011 encenou seu primeiro monólogo, "Lixo e Purpurina", baseado em textos de Caio Fernando Abreu, cumprindo uma temporada de grande êxito no Sesc Pompéia. Escreve poesia desde os 15 anos de idade. Lançou, em 2014, o seu primeiro livro de poemas, "Corpo Partido", pela editora Patuá. Os poemas acima fazem parte de "Delírios Atlânticos" ainda inédito.

8 POEMAS DE AUGUSTO SÉRGIO BASTOS

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Composição


o prato
a faca e o prato
o prato e a faca
a faca
o garfo e a faca
a faca e o garfo
o garfo
o prato e o garfo
o garfo e o prato


a mesa posta



Sedução


Na sala vazia
penduro a parede nos quadros.
A mesa sobre a toalha
espera as frutas e o vinho.

Por baixo do abajur (lilás)
o retrato envolvendo a moldura.
Estão para cima os pés das cadeiras.

A porta estreita
abre-se no teto
rente ao rodapé.
Pelo chão espalham-se as janelas.

Alguma coisa permanece no lugar:
meus sapatos junto ao beija-flor
e o batom nos olhos da mulher. 


CONCRETISMO


E de concreto
resta o poema
de pedra cimento e cal




Eu e a mosca


A folha, antes em branco,
mal recebe estas poucas palavras.
Ao toque do grafite
resiste e leva-me ao risco.
Rabisco, insisto
e nenhuma ideia fixa.

No entanto,
a folha aceita
a ponderação desta mosca,
que pousa silenciosa.
Voa ao meu espanto.
Volta.
Caminha como se fosse bem-vinda.
Esfrega as patinhas
como esfreguei as mãos
ao iniciar meu texto.

(Sigo-a no silêncio das entrelinhas
onde tudo se cria
e aos poucos se transforma.)

Enxoto-a.
Ela retorna.
E assim, entre mim e a mosca,
vai-se fazendo o poema.




Duas leituras

                                 A Leminski

Nem toda obra é prima
nem toda prima é obra.
Uma noite entre duas leituras
faz seu poema ser vil:
ir do céu de Pasárgada
ao chão da Central do Brasil.




 Pseudopsicologia da composição
                                                

                                                          A João Cabral

Espero meu poema
com as mãos lavadas.
A folha em branco,
sem máculas e pudica,
é berço de palavras,
solo fértil para poesia.
Nela não há o amanhã
nem as incontáveis vésperas.

Em breve o texto se revelará.
Faço um pedido:
seja mineral
o papel onde o verso se inscreve,
seja mineral o próprio verso.
Mas que eu possa debulhar as palavras,
recolher as sílabas
e fecundar o poema. 



O sonho com Bandeira



Primeiro dia de aula,
expulso de sala.
Era aluno de Manuel Bandeira.
Ouvi a sentença, olho no olho,
delicado, mas incisivo:
‒ O Senhor que está de conversa,
peço que se retire.
Não estava. Recitava baixinho
para o colega ao lado um poema do mestre:
“Irene no céu”, o único que sabia de cor
e 50 anos depois ainda sei.
         
          (Irene preta
           Irene boa
           Irene sempre de bom humor.

           Imagino Irene entrando no céu:...)  

O colega conta ao professor:
apenas declamou um poema
para uma tal de Irene.
Mal-entendido desfeito,
o poeta agradeceu e mais não disse.

Dia seguinte,
deparo com ele à porta da sala,
como se me esperasse.
Eu peço:
‒ Licença, meu mestre!
E Bandeira bonachão:
‒ Entra, menino. Você não precisa pedir licença.




A estátua

                                            No mar estava escrita uma cidade.

                                               Carlos Drummond de Andrade


Ser estátua
não é pedido que se faça.
E ele nem pediu.

No banco de pedra, de costas pro mar,
pensa a cidade.
Acolhe pombos e aves agourentas.

No meio-dia branco de luz,
o menino permanece sozinho.
O homem atrás dos óculos
quer a sombra de amendoeiras.
Tem oitenta por cento de ferro na alma.
Cem por cento de bronze na eternidade.

Alguns anos viveu no Rio de Janeiro,
serviu à cidade
que agora de nada lhe serve.

Ao povo sem memória,
a história mais bonita,
comprida história que não acaba mais.





Foto: Moa Butayban




*    *    *




Augusto Sérgio Bastos nasceu no Rio de Janeiro. Membro das comissões editoriais dos jornais de literatura Poesia Viva e Panorama(RJ). Coordenador da Oficina de Poesia da Casa das Palmeiras (RJ). Publicou: os livros de poemas O brancoimprovável (2002) e À luz da estante (2010) pela Editora UAPÊ (RJ); Melhores crônicas de Ferreira Gullar(organização, seleção e prefácio)  ‒ Global Editora (SP – 2004); Poesia completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (em colaboração com o organizador geral Antonio Carlos Secchin) – Nova Aguilar (RJ – 2008); Raimundo Correia (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2010); Luís Carlos (biografia) ‒ Academia Brasileira de Letras (RJ ‒ 2013). Seus poemas, contos e ensaios figuram em 70 coletâneas. 







Três poemas de Roberto Bozzetti

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Ilustração de Talarico




O CAÇADOR
 

Não o movimento ágil rente
ao vento,
                  grácil  de asa fácil,
irmã do ar em movimento,
que o olho leve conduz
            diletante ao encantamento
mas o ímã
            o lento móvel
peso
não do que é plumagem
                                   (esse não-peso)
e sim,  carne. Carne
         - este isto
                      é o pássaro para o caçador

(que se pergunte ao cão
ao espreitar  um galinheiro
ou ao gato medusado por uma gaiola
o dia inteiro).

Asa não
veia sangue artérias carne
vento nada
olfato.

 

COM O CURDO EM KOBANE

No cybercafé a menina de olhos de led.
Na sala de aula o garoto que ama outro
e na carteira desenha um coração
e sofre, mas enxerga um caminho.
Os gordinhos com seus cereais açucarados
e seus mangás, aliás, também
os magrinhos.  Na cantina
o balconista quase dorme mas entre
um cachorro quente e um cheese com coca
lembra da prova logo mais à noite
e não sabe se vai ter tempo de rever a  matéria.
O professor a discorrer sobre a importância
do plâncton , do poeta, de Pitágoras
do sêmen

sem sequer desconfiar todos
trazem em arrefecida mas viva memória
os assombrados brados de
            vitória  - resiste! -
                                          de
                                                     Stalingrado

 
Em Kobane resiste sitiada
na  surda  desmemória
na túrgida anemia
na indiferença asséptica do ocidente
a heróica muralha
dos curdos.

Vamos
com o curdo em Berlim
Istambul Londres
Roma  Caracas
Nova Iorque               Rio
                        Damasco
                        Havana
Tóquio Praga México



ESPERANÇA

Não alimentar Deus parece missão à altura
para a qual nos chamamos.

Que não fique à míngua, pelos restos
da comiseração a que nos habituamos.

Vamos deixar que o fastio cuide desse Deus
que o fastio nos mostre se faz algum
sentido.

4 POEMAS DE "CORPO ARQUIVO", DE PAULO ANDRADE

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Corpo, linguagem

  
Teu corpo é um poema

mais que Euterpe, Calíope,
Clio é só linguagem
esse corpo miragem
tão perto tão longe,
paisagem oásis esfinge


Leio com a língua as linhas e dobras
(são tantos enigmas o teu corpo)
enquanto das pétalas vermelhas
aromas baunilhas exalam e
minha língua como se olhos fosse
procura a luz no fim do túnel


A lança - punhal cego - deseja transpassar
entranhar-se curva adentro-fora:
conhecer cada relevo pêlo poro


as metáforas do teu corpo.

  

  
Visões de lautréamont


Não fosse o fogo por aqui ardendo
e este cenário, deverias, filho,
mais ligeiro do que eles ir correndo
(Dante, Inferno. Canto XVI)


entre cálices de absinto e ópio
lautréamont
desce ao sétimo círculo

virgílio, no limbo,
se recusa a acompanhá-lo
as harpias incendiando o céu com labaredas
apontam-lhe o percurso

seus cantos –
elixir de enxofre
mandrágora e mescalina –
entorpecem os jardins das delícias
seus pecados:
alquimia do verbo
corrosão da sintaxe
subversão de versos
fratura e sutura de textos

trêmulo e atônito,
entre troncos e correntes,
no bosque dos suicidas,
nenhuma beatriz vem salvá-lo
  



Respondendo a uma pergunta


Não, não pertenço e
nunca me ouvirá bater à sua porta
migalhas de pão sobre a mesa
não interessam a ninguém
e decididamente é menos
orgulho que vingança

nestes troncos truncados
rios não se deitam
em afluentes disléxicos.

É da aridez do interior
que gesta a poética da falta e, de fato,
Platão erra, pois o amor não é
aquilo que é.

São sucessivos acidentes
(acertam os sofistas)
edificados tijolo a tijolo
desde sua fundação

mas chaves e cadeados
impedem a transfusão e sabe-se
em oculto que o cálice do sangue dos avós
nunca é ofertado aos herdeiros

quem se fortalece quando
se nega o pertencimento?
  



 Sem-abrigo

“eu caminho sem calcular onde possa dar,
o meu destino é andar,
cumpro o meu como vocês os seus”
(A Fúria do Corpo, João Gilberto Noll)


I

O vento corta a madrugada
como navalha ao olho
(um chien andalou).

A cachaça acorda
a serpente em bote
nas trevas do ventre

farto dos artifícios da urbe
(se reluz à noite é
pedra ou ponta de faca)

tropeça a fruta podre
nem sente o peso
do corpo piloto
automático que tomba

Qual vazio seu olhar
desfocado
afaimado
absorto
sôfrego
procura
no adro do hades?




Sem-abrigo

II


A cada tragada
da pedra
sente-se
eterno
entretanto
nem existe mais

aquele corpo
carcomido
chagado
chapado
disforme
funciona
(mal) para
alimentar
a fera voraz
que o devora

por quinze minutos
acende-se o clarão
ascende às
culminâncias
da iluminação.

e volta a tombar
no inferno o
acorrentado
prometeu

 

  

*    *    *





Paulo Andrade nasceu em Boa Nova (BA), município incrustado entre a caatinga e a mata atlântica. Estudou Letras na Universidade Federal de Viçosa (MG). Iniciou sua carreira profissional como repórter e redator. Fez Mestrado e Doutorado em Estudos Literários na UNESP/Araraquara, onde atualmente é professor de Teoria da Literatura. É autor de Torquato Neto: uma poética de estilhaços, (Annablume/ Fapesp) e de vários ensaios em livros e revistas. Os poemas da presente seleta integram seu mais recente livro (de poemas) "CORPO arquivo" (Patuá, 2014).





O amor na poesia de Diego Moraes - 10 poemas

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1



Agora não adianta ofender
arranhar a pele
quebrar os discos do beck

agora não adianta escrever
pregar bilhetes na porta da geladeira
agora não adianta pegar leve na cocaína
agora não adianta falar em rehab

agora não adianta chorar
sentado na sarjeta do meu bar
predileto

agora não adianta dedicar poemas
agora não adianta jogar as cinzas do Marbolro no ralo da pia

agora não adianta comprar a obra completa de Walt Whitman
para ler nas férias
abraçado contigo no sítio dos meus pais

agora não adianta obturar os dentes
agora não adianta prometer
coisas que só o amor promete.


2



Atrás de uma mulher que me faça escalar um prédio de 20 andares só para pichar o poema mais bonito da minha plantação de ternuras.



3


Acaba o amor/as roupas alargam/os sapatos furam atrás da estante carregada com livros de poesia que liamos juntos no sábado antes de tocar a vinheta do supercine/acaba o amor/elefantes pesam no peito/acaba o amor/rugas aparecem no rosto/acaba o amor/tudo fica com gosto de comida sem sal.


4


Meu cão sem pedigree recusando a nova ração
Meus primeiros fios de cabelo branco
Minha mãe reclamando por não ter netos
As camisetas M que ficaram curtas
A lista de legumes da dieta
Meus novos amigos desconhecidos no facebook
Minha ex-namorada que perdeu a perna num acidente de motocicleta.


5


Lutamos contra a insônia
Fechamos livros de poetas que morreram de fome na Somália
Arrumamos a casa às 5 da manhã como se estivéssemos na paranoia de uma droga nova no mercado e arrastamos móveis
Na tentativa que as coisas voltem a ser como antes
Mas a poeira não acaba
O silêncio parece ser a retórica do amor perdido.


6


Remontar os pedaços da mulher que saiu de você como quem sai de uma festa sem protocolar a despedida/realinhar os silêncios ferinos – que corta e arde feito punhal/a reprodução dos abraços que traçamos num papel calmo como um rio – nossas bonitas dores que os peritos chamam de lirismo.


7


Agora não me resta quase nada
Só este copo com sonrisal efervescendo
No balcão do bar mais sujo de Moema.
Agora não me resta quase nada
Só lembranças mágicas
Você deitada na beira do Rio Amazonas
Abrindo sorrisos que atraem arraias e botos
Para beira do flutuante
No amarelo quase sangrando às 5 da tarde
Você quase me implorando pra virar poema
Enquanto tento curar a gastrite avançada.
Agora só me restam mágoas
E lembranças que seus abraços
Poderiam ter criado raízes
De samambaias no portão
De nossa casa imaginária cheia de cães e filhos
Com nomes bíblicos.


8


Não importa

Cedo ou tarde você sentirá uma angústia de tarde de domingo em plena manhã de sexta-feira.

Cedo ou tarde você sentará num banco de praça e achará a vida triste como uma música do Roberto Carlos tocando no rádio de pilha de uma dona de casa traída.

São angústias

Angústias que poetas passam horas tentando decodificar

Angústias que romancistas passam décadas procurando respostas escrevendo livros com mais de 500 páginas.


9


Pai, eu não ligo para que as pessoas digam ao seu respeito
Você é branco
Eu sou índio meio negro
Você nunca precisou provar nada
Foi legal aquela vez que você socou o cara que chamou a mãe de puta no barzinho da esquina e disse que eu não era seu filho
Eu fiz figa quando você capotou num Fiat Tempra na estrada de boa vista e chorei quando plantaram 20 quilos de cocaína no seu voo retornando da Bolívia
A gente fica um tempo sem se falar, mas basta um olhar pra saber que o seu sangue corre nas minhas veias
Desculpa não ter desejado feliz aniversário em 1999
E valeu por ter levado o novo testamento e um maço de cigarro Carlton quando cumpri pena por assalto à mão armada
Enfim, essa é a forma de dizer que te amo.


10


Já se passaram dez anos
Acabou a bateria do relógio que você me presenteou no natal que seu tio ficou bêbado de vinho dom bosco e disse na frente dos filhos e da esposa que era gay e viveria com um travesti búlgaro em Londres
Já se passaram dez anos
Os poemas que escrevi quando gozava nos teus peitos de atriz da nouvelle vague incorporada de pomba-gira amarelaram como sífilis na fruteira
Já se passaram dez anos
A dona Gerusa que te vendia maconha morreu de AIDS na penitenciária e o cachorro sem nome que adotamos morreu atropelado por um táxi
Já se passaram dez anos
Hebe morreu. Michael Jackson Morreu. Roberto Piva morreu. James Gandolfini morreu. Manoel de Barros morreu.
Já se passaram dez anos
Mas o cheiro da sua boceta ainda está impregnado no quarto, no guarda-roupa, na cozinha, na varanda, nas estrelas.


Diego Moraes nasceu em Manaus - Amazonas. É autor dos livros “A fotografia do meu antigo amor dançando tango” e “A solidão é um deus bêbado dando ré num trator”, Editora Bartlebee.
Foto de ilustração: Bobby Fabisak/JC Imagem, detalhe de monumento a Joaquim Nabuco, no Recife, após depredação.



4 poemas de Sônia Barros

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Ilustração: deviantART



Fios do ofício

à força de fomes e febres, veias escrevem
ora cavando vorazes, ora colhendo
espinhos com falsa suavidade: pétalas
impossíveis num pântano de arame farpado
e raízes – raramente o inefável.

pós-podridão de veias e pulso,
o desejo desafio desatino de que fique,
além de ossos e espinhos,
algum perfume.



A vida examinada

Que sejam duas
ou múltiplas – amálgama
de escolhas e procuras:

a solitária, despida
de qualquer vestígio de luz,
fria antecâmara
do real;

a inventada, com fios
do acaso construída,
escrita in loco

sem relógio.




Sem lugar
                                            (a partir do poema “vida minúscula” de Donizete Galvão)

para quem nasceu destinado
não à enxada
mas a trabalhar em casa
alheia, repetindo
a lida materna,
o desejo do voo
– mesmo rasteiro –
fazendo da palavra
seu meio de vida
é quase uma afronta
ao imutável destino:
casulo-mordaça
sempre a lembrar
o devido lugar

da menina lagarta.




Mahler monumental

Ouvir com todos
os sentidos:
espírito absorto
peito a expandir-se
paz e desconforto
nostalgia e angústia
na mais profunda, nua
solidão.
Desintegrar-se
ao som de sopros, sonhos,
saltos por entre escombros
de vidro e veludo:
espírito partido
disforme
sempre suspenso
sobrevoando pântanos
e colinas à exaustão
– sôfrego percurso
de toda a humanidade num só homem
perdido em céus

de impossível redenção.



Poemas de fios, Prêmio Paraná de Literatura/Poesia 2014



Sônia Barros nasceu em 24 de agosto de 1968 em Monte Mor (SP), e desde a infância mora em Santa Bárbara d´Oeste (SP). Formada em Letras pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep. Fez teatro, dança e canto. Além de mezzo voo, publicou 17 obras para o público infanto juvenil, dentre eles: Coisa boa (Moderna); O gato que comia couve-flor (Saraiva), Asas de dentro (Scipione), Ciranda mágica e outros poemas (Positivo), A coragem de Leo (FTD). Seu segundo livro de poemas para o público adulto, fios, foi o vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2014 na categoria poesia.

Havah - Adriana Griner

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Theodoro de Bry. Adão e Eva. Admiranda Narratio. Gravura, 1590.


Daí a muitos anos dirão que fora criada à imagem do senhor. Outros dirão que de uma costela de adão. Tudo dependerá de quem diz, o que diz, como diz. Mas ela sabia que nem uma nem outra. Ela fora criada e só. Sem imagem, sem artifício. Apenas assim, como se cria uma história que não tem fim ou começo, que vem dar voz ao inenarrável, que vem pôr em palavras o que não é, a ordem no caos, a arrumação no infinito. Assim ela também fora criada, uma história em meio à barbárie do informe, nem costela nem imagem.
E a vida era boa, e era ela e a serpente, e rodavam e andavam e serpenteavam pela mata como velhas amigas, e era bom. Era bom ver o junco junto ao rio, era bom comer do figo e das uvas, e sentir a água correndo e limpando o mundo. O mundo rasteiro como a erva que crescia e simples como o horizonte que se divisava da quase ilha em que moravam. O gado pastava solto e o leite quente que bebiam enchia a alma e era bom, e as frutas colhidas aos montes das árvores manchavam as mãos e o corpo e era bom.
Correr pelo campo aberto também era bom e o vento levava os corpos e empurrava as pernas, e elas corriam até mais não poder, e se deixavam cair já sem forças, arquejando e felizes, a canseira gostosa de quem se cansa por querer e rindo das coisas bobas que se diziam e esqueciam.
E por vezes as coisas bobas se faziam menos bobas, e ela e a serpente se punham a imaginar outros mundos e outras histórias, e como seria se. E foi assim que um dia a serpente não se aguentou e disse: há outros mundos possíveis. Há outras histórias. Ela não prestou muita atenção, mas uns dias depois quis saber melhor. E a serpente contou. Que prestara atenção no que outros falavam. Que entreouvira. Que era possível que elas não de tudo soubessem. Que havia um meio. Que as árvores guardavam segredos, e que uma delas em especial trazia em si os frutos do conhecimento, e que sabendo do bem e do mal a vida seria outra.
E elas ponderavam. Continuar a mesma vida? Saber de outras vidas, de outras verdades? Descobrir era bom? Ficar no desconhecimento era bom? Dias e noites de conversas jogadas fora, o supremo prazer de falar e falar, de estar junto e se saber querida, o supremo amor. O tempo que não passava era um tempo de amor sublime, mas havia sim algo a saber, algo a descobrir. E havia ainda deus, e a certeza de que algo tinha sido ocultado delas, algo escondido e solene, algo que não se falava e não se ouvia, e elas queriam e não queriam saber. O tranquilo lugar do desconhecimento estava rachado, e a certeza de que algo tinha sido por certo dissimulado as faziam sonhar com o além do rio e além das águas e além das terras.

E havia adão. Adão para quem deus era bom e correto, deus era apenas alguém a quem se agradecer e não duvidar. Não, não era possível falar com ele. O mundo era branco e preto para adão, e ela sabia que assim não seria jamais o mundo, não o mundo que ela e a serpente habitavam, não o mundo que elas sonhavam que habitavam e faziam que habitavam. Não, o mundo seria sempre outro para elas, e então diante dele ela se calava e era apenas quando se encontrava a sós com a serpente que ela ousava falar e ouvir.


E então a serpente trouxe uma novidade. Não era apenas uma árvore. Eram muitas. Uma árvore traria o conhecimento, diria do bem e do mal. Outra seria a árvore da vida, e elas viveriam eternamente, eternamente correndo nos campos, comendo dos frutos, nadando nos rios. Outra ainda as levaria a outros mundos, para além desse mundo, para um mundo que elas nem sequer compreenderiam. Outra as fariam ser também a fonte da criação, e as formas criadas seriam infinitas, infinitas como a imaginação do ser criador. E ainda outras.
No início tudo parecia muito irreal. Como assim, um outro mundo? Como assim, criar outros mundos? E qual o sentido do bem e do mal, elas que viam que o mundo era bom? E elas já viviam eternamente, ali, entre o rio que serpenteava e circunavegava.
E muitas falas e muitas conversas até o dia em que resolveram que deveriam provar de uma das árvores. Só provar, para sentir o gosto e o aroma, o jeito e a fala, mas elas não sabiam de qual das árvores deviam de provar. Criar um novo mundo era tentador, conhecer um novo mundo também. Mas viver eternamente parecia demais, algum dia se cansaria e ainda teria de viver para sempre, e não lhe parecia justo jamais poder descansar, estar viva para o todo o sempre era por demais. Havia também a árvore do bem e do mal, mas essa lhe parecia inútil, a ela lhe bastava o conhecimento dos frutos e das árvores, da água e do leite e do mel.
A serpente tampouco sabia. Parecia-lhe bem o mundo tal qual era, o vento nas costas largas e o deixar-se estar. Tinha curiosidade de provar de todos os frutos, isso sim, os gostos lhe sabiam bem, conhecer de cada um deles e penetrar seus mistérios, o sabor se espalhando em sua boca e em seus instintos, sim, de todos eles ela provaria um dia. Mas um dia. Por enquanto, bastavam-lhe os sabores existentes.
Foi adão que começou com a conversa. E se provássemos de todos eles? E se soubéssemos o que é o bem e o mal, e com isso criássemos um novo mundo, e viajássemos entre nosso mundo e os outros, e...? Elas se riam dele, a ingenuidade de quem nunca pensara nisso antes, a animação contente de menino mimado, elas que sabiam que sua coragem acabava no temor a deus, no medo de dar um passo maior que as pernas, de percorrer o desconhecido e o inefável.
E eram conversas intermináveis, plenas de e se, e se, e que terminavam em um mergulho no rio e no lavar da alma, as palavras esquecidas e levadas pelas águas.


Até o dia em que. Adão se chegara de mansinho, e disse que ficara pensando que criar um novo mundo seria a suprema aventura, e a serpente dissera que ele nada sabia, e então ele disse que então que comessem todos da árvore do bem e do mal, que assim eles de tudo saberiam, e sem nem perceber a serpente foi concordando e pegando do fruto da árvore, e provando e passando para ela, que comeu com gosto e passou para adão, que ainda olhou perplexo para ambas e também comeu. E eles se entreolharam e viram que estavam nus, mas para a cobra isso nada quis dizer, ela que sabia que o mal não morava fora do corpo. Mas ela e adão correram a se trançar as folhas e vestir roupas, e ficou claro que o bem e o mal guardavam muitos significados, e para cada um queria dizer algo distinto, e cada um de seu lado foi mastigando o conhecimento, sentindo seu gosto azedinho e percebendo as nuances que se espraiavam pela boca e pelas narinas, e iam percorrendo seus corpos já vestidos e separados.
Foi então que deus se apercebeu do que acontecia. E se eles detêm o conhecimento, não vão tardar a provar do fruto da eternidade. E daí é só um passo para provar do próximo fruto e criar seus mundos. E a criatura se tornará o criador, não, os criadores, e eu serei apenas mais um criador, mais um ser em um mundo. E doeu. Ser apenas mais um era o terror do pequeno deus, ele que se queria único e absoluto. E então a solução veio rápida e pronta. Expulsá-los do paraíso. Antes que comessem de outro fruto. Antes que comessem de outra árvore. Antes que.
E perguntou deus ao homem por que comera da árvore do bem e do mal, e o homem disse que a mulher o tentara, e que à mulher tentara a serpente. E a deus não havia tempo de desfazer traições e diz-que-diz, pois que o tempo urgia. E expulsou a todos do paraíso, e tratou de espalhar a dor enquanto ainda havia tempo.
E a ela separou da serpente, elas tão amigas se deixariam levar por medos ancestrais e se odiariam e se matariam por todo o sempre, esquecidas de seus tempos comuns, de seus amores e carinhos.

E ela esqueceria de sua força, concentrada que estaria de sofrer a dor maior, e gerar os filhos e multiplicar as gerações e a terra seria maldita e traria a dor, os espinhos e cardos a cortar a pele e o suor a ceifar a vida e os anos de adão.


E o rancor duraria séculos e séculos, e assim seria até o final dos tempos. Não fosse um encontro casual. Ia ela passeando pelos campos, vestida e asseada, plena do conhecimento, e esquecida já do que se passara, e que houvera um tempo em que estiveram todos nus e no paraíso, quando ao passar por uma flor de cardo algo a fez parar. Era um dia quente, e o suor corria por seu rosto, e o campo se fazia de ouro do trigo que eles cultivavam, e um raio de sol cortou o roxo da flor do cardo. Assim, simplesmente. E a flor cortou sua pele, e o sangue brotou e tingiu o chão e um quase círculo se fez ao seu redor. E então ela viu. Lá estava a serpente. Um primeiro impulso a fez buscar um toco de madeira, um ramo qualquer, mas seus olhos cruzaram os olhos da serpente e as duas ficaram ali, imobilizadas. O tempo parou, só o vento assoviando e levando as folhas. E as duas mantiveram o olhar, e a compreensão se fez imediata, e as duas então já sabiam o que fazer, e correram lépidas até o fim dos tempos, e correram e tropeçaram e correram e serpentearam até o fim do mundo, e ultrapassaram o rio e as águas, e juntas colheram o fruto e lambuzaram-se no sumo vermelho e quente e riam-se de novo juntas, de novo ela e a serpente, e agora os mundos se misturavam e se entrecruzavam, e elas ali, só rindo e gozando o prazer de criar e recriar, de trazer de volta e deixar, de inventar e desinventar, e os mundos só se sucedendo e se entretecendo, elas, as criadoras, rindo do deusinho pequenino e insosso, elas que sabiam do sabor dos mundos.



Conto de No  Início, Prêmio Paraná de Literatura/Contos 2014. 




Adriana Griner  nasceu em 1962, no Rio de Janeiro (RJ), onde mora atualmente - depois de temporadas em Brasília (DF), Campinas (SP) e Israel. Formada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já foi bancária e hoje atua como do Instituto Tecnológico ORT, escola sem fins lucrativos de origem judaica. No Início é seu livro de estréia na literatura

CRÍTICA E VALOR | LANÇAMENTO [ 15/12 | 17H | RJ ]


"ELEVADOR" EM RESENHA | GABRIEL RESENDE SANTOS & ROBERTO DUTRA JR.

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Elevador, o livro de estreia de Gabriel Resende Santos, deixou-me boa impressão logo nas primeiras páginas pela sua organização. Dividido em seis seções, Terraço, Realidade, Fantasia, Play, Térreo e Poço, como no painel do elevador eu posso escolher em qual andar eu gostaria de ir. Entretanto não é um manual de máquina, é poesia vertendo e há realidade e fantasia no caminho que antecede o térreo. Aos que quiserem ir mais adiante, o caminho é vertical e ainda assim, não acaba no poema final.
O traço mais marcante dos poemas do Elevador é seu elemento urbano. Veja bem, não há trocadilho intencional aqui, o traço urbano e contemporâneo de qualquer elemento de arte engloba necessariamente o cotidiano. Assim sendo, nem o autor ou leitor escapam dos pontos altos e baixos do cotidiano civilizado de uma cidade grande. Tudo é maçante, tudo recomeça, tudo é humano e incrivelmente atravessado dessa humanidade que por fim é o elemento essencial da literatura. Os versos de Gabriel Resende em Elevador estão impregnados de tal forma que a cidade vaza por todas as entrelinhas. Numa primeira leitura, é o autor, mas também sou eu, você e qualquer um que esteja em uma fila de cinema, buscando entretenimento, sentido, ou observar de um ângulo melhor o que a vida, sempre passando, coloca diante de todos. Chama a atenção o poema inicial, único da seção Terraço, "Guia completo do homicídio prático": "É preciso matar a memória /.../ É preciso que tudo volte a ser como era: / Uma folha em branco / E nela o Futuro se acomodando / Na sala de espera." Faça reset na repetição, e depois preencha a folha em branco. Dessa forma, passe pra Realidade, que é o segundo pavimento no curso descendente do Elevador.
Os poemas que compõem o pavimento (adotando aqui a metáfora do elevador) designado como Realidade apresentam amor, espera, expectativa, decepção, e uma constante pincelada de algum elemento do cinema. Todos de uma certa  crueza, vontade de arrefecer as próprias expectativas, que pode muito bem ser sintetizado no trecho:"...mandam aceitar que o exército não te escuta / os amigos te excluem as ruas te excluem a cidade está mais preocupada / com as obras do condomínio as pedras do texto no máximo são as pedras / da vesícula...", do poema “Para Yukio Mishima”. Ainda nessa seção, os poemas “Há” e “Pétalas” relacionam o elemento urbano com a extrapolação poética nas suas imagens. Se aqui o autor usa a imagem da pétala para referir ao poema, sua metalinguagem é certeira: “a pétala / só precisa de si mesma. quedando / pétala”. Sobressaem também nesse andar o “Poema de amor” e “Gente iluminada”. O primeiro, claro, tema velho, clichê gasto, do modo como diversas coisas na literatura o são, enquanto coloca luz sobre detalhes que se sedimentam na nossa compreensão do amor, também anuncia, isento e cru: “já as cartinhas fantasmagóricas, além de mais / influentes, possuem um incontestável valor histórico.” Já o segundo, reafirma a repetição cotidiana da vida, que acredito ser o fio condutor do livro de Gabriel Resende, tudo igual, todos os dias, mas sempre diferente.
            O pavimento da Fantasia prolonga as ligeiras referências cinematográficas de modo talvez a causar prazer a cinéfilos, mas quase me fazendo questionar o título do livro. Entretanto, não dá pra deixar de ler duas vezes o poema “Cinzas”, em que a visão distópica do carnaval carioca, ilustra um lado menos iluminado sem perder o ritmo. Não menos surpreendente o poema [quase em prosa] “Guardo”, que com dedicatória e tudo lança uma incomum “cartinha fantasmagórica” a uma menina melancólica. Não se enganem, paradoxo nenhum. Puro cotidiano, como disse acima tudo igual, mas diferente.
            No Play o autor cai no jogo literário e nos oferece um soneto, um haikai, enjambements, prosa poética, fluxo de consciência, e poemas em versos livres e com elementos híbridos. Um pavimento que busca um diálogo com a própria literatura, provavelmente o conjunto de textos que demonstra os tipos de poema que influenciaram o autor. “Oldboy” e “ This must be the place”, se destacam, apesar do título em inglês, pela concisão e força de suas imagens.
            Os pavimentos finais Térreo e Poço mantém a coerência da voz lírica de Gabriel Resende Santos, um poeta urbano com fôlego de flanneur e muito influenciado por uma cinematografia contemporânea. Seu Elevador tem um pouco de toda a cidade e de cada experiência rotineira que deixou no poeta uma marca que agora foi convertida em verso ou prosa, igualmente relevantes, balanceados, e reveadores do olhar do autor.  A organização de Elevador, apesar de demonstrar um cuidadoso planejamento, e como disse acima, não é manual de máquina, é poesia urbana que urge ser arriscada na página e a nós, leitores, acessar todos os pavimentos e descer ao poço. Lá, saberemos que “Ainda não acabou” [título do poema final]: “não acabou mesmo, a palavra / que palavreada exclama: uma interrogação /corta o verso antes de outro ponto final, a rima /vindo não rima a rima evapora, calmamente?” Cotidiano e urbano e literatura, tudo se repete, sempre o mesmo, mas sempre diferente.


LEIA POEMAS DO LIVRO







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Autor do livro Elevador (Patuá, 2014), Gabriel Resende Santos é mallarmago e nasceu no Rio de Janeiro em maio de 1994. Acredita em Rimbaud e Whitman, mesmo sem assumir religião. Já apareceu em antologias e revistas, mas ninguém o reconhece na rua por isso. Escreve no blog Occam, big bangs & outras explosões. Traduz de vez em quando.












Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.



[as guerras búdicas: o sutra dos copos descartáveis] por alexandre guarnieri - parte 11

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entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ a facilidade de acesso/ a oferta/ os repositórios ao alcance das mãos de todos aqueles que tem sede/ a consciência do desapego/ entoemos o novo mantra: "foda-se este corpo descartável"/ entre tantos outros propósitos, que nós/ enquanto objetos/ evocamos/ a cadeia de desdobramentos que provocamos// façamos do uso dos copos descartáveis algo há muito buscado ou elevado à sabedoria universal/ do conhecimento tradicional ao industrializado/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ um hino ao aprendizado da finitude/ depois do uso/ apenas o descarte/ simples/ íntimo/ não há porque guardá-lo/ entoemos o novo mantra: "foda-se este corpo descartável"/ nada se exige dele senão arremessá-lo sem culpa e sem apego/ aguardemos para logo o nirvana de milhares/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ serão tantos os novos iluminados depois de seus cafezinhos despreocupados/ de suas doses de água regradas a recomendações contra a desidratação generalizada decorrente do verão avassalador/ entoemos o novo mantra: "foda-se este corpo descartável"/ tão logo consumido o líquido/ o arremesso do copo/ para longe/ para fora da própria órbita/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ foi importante tê-lo/ cumprido o imprescindível papel do abastecimento de pequenas doses/ tão logo cessa a relação/ ahhhhh o prazer de jogá-lo fora/ entoemos o novo mantra: "foda-se este corpo descartável"/ na mais absoluta contra-mão do gesto ecologicamente correto/ entretanto a mais libertadora disponibilidade para o desapego do último século/ a oportunidade de ouro/ a chance daquele clique legítimo/ pela janela do carro/ nas auto-estradas/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ pelas ruas e vielas/ no asfalto/ quando ninguém está olhando/ é quando a prática adquire sua eficácia/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ algo entre intimidade extrema e consciência plena/ "foda-se este corpo descartável"/ alguém ganhou muito dinheiro fabricando-o/ para que alguém ganhasse muito mais vendendo-o/ para que alguém o catasse fazendo da reciclagem um negócio de milhões/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ para que o planeta se foda cada vez mais/ eis a beleza do ciclo/ eis o aprendizado do transitório/ eis o budismo possível/ aquele que o capital permite/ entoemos o novo mantra: "foda-se este copo descartável"/ para que os mortais possam atingir a iluminação por intermédio desse reles gesto/ para todo o sempre/ agora e na hora de vosso descarte, amém: "foda-se este co(r)po descartável"...  





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PARTE 1

PARTE 2











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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.




5 poemas de Leopoldo Comitti

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Ilustração: Erlondeiel



Cena do Crime


O vermelho vivo da rosa
adormecida torna-se negro
sangue coagulado, como
poça fresca de um crime
antigo. Na escuridão,
parece farol de carne branca.




Entre Rosas e Baratas


1.
Desculpe-me, Clarice,
nunca devorei uma barata.
Não por nojo físico
ou metafísico desprazer.

Compreendo-as,
em seu fugir pelos cantos.
Conheço-as todas,
e divido com elas,
companheiras insones,
as noites do não-dormir.

Amo-as em seu aspecto imundo,
e na imundície delas
me encontro como no espelho.


2.
Às rosas, prefiro as baratas,
em seu diligente caminhar
sorrateiro e obscuro, pois
obscuras são elas, e delas
encontro o rumo da fresta
onde a luz nunca chega.
Ou então, onde ainda não há.

Rosas exigem vasos.
Não os tenho, assim como
também não compartilho
da loucura sagrada de quem
as têm, e os têm e despede-se
delas em busca de um vazio
que se espraia sobre a mesa.


3.
A sós, bichinhos nojentos,
dividimos o mesmo quarto
escuro e exíguo; o espaço
minúsculo que nos resta,
antes e depois da ironia
alegre que cortejamos:
sempre surdos e irônicos,
frente a repugnância breve,
mas funda, dos passantes
fúteis e desapercebidos.

Comer baratas?
Comer-me-ia eu mesmo.




Banal


Um cigarro queima.
Banal. um cigarro queima
no cinzeiro. Onde mais?
Banal. Mas neste exato
momento, exatamente agora,
quero ser banal. Muito banal.

A brasa está quase extinta.
Apenas eu mantenho a luz
que insiste. Também banalmente
se apaga. Acendo outra banalidade
que há de queimar como a primeira.
Sinto-a em mim e me aqueço,
mesmo sabendo da sutil
inutilidade de trocar um mísero,
fino e fraco cigarro
no mesmo cinzeiro sujo
de todos os dias. Banais.

Dentro de alguns minutos,
todos puros e recentes,
tudo transbordará. Cigarros,
cinzas, papéis, o que resta
  

ainda do mundo (pelo menos
do meu) irá diligentemente
para a lixeira, também já
e sempre transbordante.

Eis o lugar dos restos macerados
da noite (da minha).
Não haverá incêndio.
Os lixeiros farão seu trabalho
e tudo ficará como antes:
asséptico, e novamente,
e tristemente... banal.



Ilustração: Erlondeiel



Moldura


As vertentes das enxurradas de maio
criam sombras úmidas pelas paredes.
São sombras tão esguias que se esvaem
pelas frestas dos muros e galpões.

Às vezes, olham-me, absurdas,
pelos vãos dos armários semiabertos.

Só as vejo, e se as vejo, deve-se ao fato
de tê-las criado sobre a superfície
espelhada de uma tela branca. Em efígie
as espanto. Vão-se como se não existissem.
Ou melhor, porque nunca existiram.

Sei que se proliferam. Não sei onde.
Talvez por trás da moldura de um quadro,
entre as montanhas altas, sólidas, áridas
e negras que jamais pintei. Ou pintarei.




Perfume


Os espinhos da meia-noite
machucam as carnes
das flores noturnas.
Delas exala um cheiro
de morte ou de vida,
tanto faz.





Leopoldo Comitti nasceu em Rio Negro – PR, em 03 de abril de 1956. Cursou Letras (UFPR), Especialização em Literatura Brasileira (UFPR), Mestrado em Literatura Brasileira (UFMG), Doutorado em Literatura Comparada (UFMG) e Pós-Doutorado em Comparada (UFF). Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada(contos), e As manhas da Filó (Infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, onde, além das atividades de ensino e pesquisa, também se dedicava formal e informalmente a oficinas de criação poética. Lá publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma Bolsa de Escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no IV Festival universitário de Literatura, com Jardim Inóspito. Em 2012, publicou O Menino Debaixo da Mesa (poemas), e Natureza Morta (romance). Lançou em 2014  o livro de poemas A Mordida do Cordeiro, pela Editora Patuá.

6 poemas de Carmen Silvia Presotto

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Ilustração: deviantART



O POEMA NU


O
poema
nu

sem
ritmo
nem
sumo

cedeuao
susto
por
consumo

se fez
semhora
grave de
espera

varreu
olhares
vestiu
espantos

fez-
se no
pranto

perdeu
sua
esfera

caiu
no face
entre pixels,
mil cores

vestiu-
se em
tempo
ao contra
tempo,

andou
vagou
voltou

refez-
se carne,
comrisco
sombra
eroupa
devento

sentido
farto,
ganhou
espelho
pele
contorno

nexo

e o que era
branco
anexo
di verso
aqualquer
sexo

poemou…




O POEMA VESTIDO


O
poema
vestido

defatos
fotos
afetos

fez-se
moderno

suou a mão
buscourazão

ganhousentido,
desimaginou-se…

acabou
numlivro.




AMOR


Pouso em teus cabelos
exorcizo o vento
eu confesso...
me enquadro em teus versos.


Bailo...



Ilustração: deviantART




LIVRO ABERTO


Ela amava ele
ele quase amava ela

ela a poesia lia
dele, o lance
era o romance

um dia, ela deu
a ele um poema

dele, nasceu setas
seiva,  letras,  o desejo
seresta e este  teorema...

era tão  uma vez...

Ele virou poeta
e ela?

 -  o seu  infinito alcance.




O amor que do amor ama


ilumina
inflama
encana

o ar
o verso
o mar

atravessa o plano
curva o vento
escora o tempo

por ser do amado  o passo
seta o coração ao compasso

o amor que do amor ama

faz dobradiça do medo
da incerteza , o seu leito
não  diz do sentir que arde
mas dele faz sua a verdade

mesmo que seja em segredo

o amor que do amor ama, conclama
... poema.





SUDÁRIO


A vida
é lance
encaixe
alcance

A vida
é rumo
trama
sumo

A vida
por certeza,
e sorte
é  o  atalho
da morte...

... meta concreta.




Carmen Silvia Presotto é poeta, contista, editora, produtora cultural, incentivadora da leitura nas redes sociais (Projeto Cultural Vidráguas) e, acima de tudo, amante da poesia. Seus primeiros passos entre as palavras foram dados como professora de literatura na rede pública de ensino.Publicou, dentre outros, Dobras do Tempo (2001), Encaixes (2006), Postigos (2010). Integra a Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. Foi organizadora do FESTIVAL de Poesia AEDO, promovido pelo MINC. Conheçam mais da Obra da autora nos site Vidráguas. (www.vidraguas.com.br)




O MAR

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/Helena Figueiredo/

O MAR não tem cor
não suporta amarras
é um lobo feroz lambendo
a brisa, antes de atacar.
Seduz-nos na calma
potro luminoso
inconstante e louco
para os altos céus se deixa arrastar.
Desdobra-se em nomes
chuva, poça, rio
parece perdido em leitos e lodos
mas eis que regressa
e veste apressado, o manto salgado.
O mar não respeita, réis ou divindades
despreza a memória, dizem que é ateu
vive com sereias
de si, tem saudades
e escreve nos astros, toda a sua história.
Como o mar _______ és tu.
Como o mar ___________ sou eu.
.
Pintura de Van Renselar

Entre arranhões e lambidas - Alvaro Posselt

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Ilustração: Fefê Torquato



Entre arranhões e lambidas
para cuidar de tanto gato
precisarei de sete vidas



*
É hora do banho
De lambida em lambida
o gato dobra de tamanho 



*
Faz um calorão
Sem eixo rola igual seixo
o gato no chão



*
Quem eu sou de fato?
Meu bicho de estimação
diria o meu gato



*
Além da linha inimiga
o gato passeia pelo canil
o cachorro já nem liga




Alvaro Posselt nasceu em Curitiba no dia 02/12/1971, é professor de português e poeta. Publicou Tão breve quanto o agora (2012), Um lugar chamado instante (2013) e Entre arranhões e lambidas - haicais & gatos (2014).

O OBJETO TRANSFORMADO EM OBRA

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http://1.bp.blogspot.com/_MHFHb7j_0l8/THPX6P073EI/AAAAAAAAEec/fyxfOJfajeY/s1600/elsuicidiodedorothyhale.gif
“O suicídio de Dorothy Hale” de 1938/39 (Frida Kahlo)

Renata Wirthmann

É próprio da obra de arte se constituir dentro-fora do tempo. Como resultado dessa dualidade temporal, tem-se um produto: uma obra é constituida a partir de elementos pertencentes a um lugar e uma época, trancedendo-os.
       
Como exemplo desse produto de arte gosto de fazer referência ao artista plástico holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Em pleno século XVI Bosch já pintava o surrealismo do século XX. Mas Bosch não estava completamente fora de seu tempo, os elementos que compõe seus quadros são representativos da idade média (religião, céu, purgatório e inferno, torturas, etc.), representativos de seu tempo, entretanto a organização desses elementos faz da obra de Bosch uma obra que pertence, simultaneamente, ao século XVI e ao século XX.
       
Entretanto, mesmo as obras regularmente localizadas no seu tempo histórico nos surpreendem com o modo de lida com os objetos. Observamos, ao longo da história da arte, que esta se compõe a partir da produção de um objeto novo partindo de um objeto que nos é dado pela natureza. É o que observamos nas pinturas renascentistas, que não pintam uma mera cópia do que é observado, mas uma outra coisa. Podemos ver na Última Ceia que Leonardo Da Vinci toma como ponto central, de onde parte toda sua perspectiva, o Cristo. Essa não é a imagem que seria capturada por uma fotografia, mas uma outra imagem que transforma, combina e repensa os dados as experiência sensível.
       
Nesse jogo de reorganizar objetos cotidianos podemos dar um salto ao Surrealismo, ao séc. XX, com a artista plástica mexicana Frida Kahlo. A obra de Frida é composta por diversos objetos deslocados, cenários imprevistos, fusões entre a cultura mexicana, mitologias, fatos, sonhos, razão e fantasia. Há ainda uma forte ênfase na dor e no erotismo através dos fragmentos de corpos humanos, das aberturas em seu corpo e amputações.

Para falar do modo de organizar os objetos na obra de Frida precisamos antes falar de das Ding. De acordo com Lacan, o objeto contorna a Coisa produzindo arte. Lacan fala também da obra de arte como um modo de organização em torno de um vazio, em torno da Coisa, das Ding. Há sempre algo de intangível na obra de arte, algo de certa forma mítico, impossível, assim como na Coisa, das Ding.
       
O vaso, por exemplo, é um objeto que permite representar a Coisa/vazio, pois o vaso se constitui em torno dele, do vazio, em torno da coisa. “É justamente esse vazio que ele [o vaso] cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 152). Afinal, não é possível representar o vazio em si. Somente é possível contorná-lo tal como o barro do vaso faz e tal como a obra de arte faz, a arte contorna um sentido, sem nunca se restringir completamente a esse único sentido.

Nas telas de Frida Kahlo podemos observar esse mais além produzido pela arte. Na obra de Kahlo, as molduras contornam e são, elas mesmas, telas. A moldura valoriza e tenta comportar a tela, entretanto, por mais que a moldura de um quadro tente contê-lo, contorná-lo, para que tenhamos a ilusão de que sabemos onde ele começa e termina, ela falha, pois o quadro tem sempre algo de inapreensível, algo de seu sentido desliza e ele jamais pode ser completamente dito, assim como das Ding, a Coisa.

Quando Kahlo joga com as molduras é como se ela sublinhasse essa característica da obra de arte, é como se ela dissesse que a obra de arte não pode ser concebida de forma limitada demonstrando essa não-limitação através do (des)limite do próprio quadro que se utiliza também da moldura.

No quadro “O suicídio de Dorothy Hale” de 1938/39 a moldura é apresentada como extensão da tela. Esta obra é um retrato feito em homenagem a atriz Dorothy Hale. O quadro foi encomendado por Clare Boothe Luce a fim de dá-lo à mãe da atriz que havia se suicidado em outubro de 1938. O quadro quase foi destruído por Clare Boothe Luce, que o achou de péssimo gosto. Ela não o destruiu, mas repintou a parte de cima do quadro, onde se via um anjo com uma bandeira escrita em espanhol: “O suicídio de Dorothy Hale, pintado a pedido de Clare Boothe Luce, para a mãe de Dorothy” (Kettenmann, 2004, p. 51).

Nesse quadro, a moldura continua parcialmente a tela; vemos as nuvens que, na tela, se limitam ao chão, na moldura, ultrapassarem esse limite. Na parte inferior da moldura, o sangue de Dorothy escorre como se ele não fosse mais parar, como se ele fosse escorrer para além da tela, para além da moldura, pela parede onde o quadro fosse um dia pendurado, pelo chão, infinitamente.

Neste quadro, a moldura começa a passar para dentro da tela e não só a tela para a moldura. As inscrições que Kahlo faz compõem, ao mesmo tempo, a tela e a moldura. A sombra do pé de Dorothy é projetada na faixa que não é a continuação do chão onde ela se encontra. As inscrições são feitas com seu sangue, que escorre no chão e continua na faixa e também na moldura. Na faixa, a seguinte inscrição: “Na cidade de Nova York no dia 21 de outubro de 1938, as seis da manhã, se suicidou a senhora Dorothy Hale atirando-se de uma janela muito alta do edifício Hampshire House. Em sua memória este quadro foi executado por Frida Kahlo” (quadro, tradução nossa).

Em muitos quadros de Kahlo, podemos ver inscrições que parecem descrever o quadro, que dizem o que está ali representado, mas essas inscrições, assim como as molduras, são colocadas na sua obra como uma forma de dizer: Isso que está escrito, isso que está na tela, é o óbvio, mas não se enganem achando que é tudo. É um jogo que Kahlo faz a partir da obra com a própria obra, dizendo que o quadro está para além do quadro, que aí reside um excesso de sentido, que faz com que um mesmo quadro possa ser visto e descrito milhares de vezes, e que isso nunca será suficiente.


REAQUECIDO

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REAQUECIDO

O sol rústico, fosco
Colore seus cabelos,
Caídos no encosto
De um móvel
Mais rústico que o sol.
Seus cabelos e o móvel
Me fizeram olhar
Para a janela
E reaquecer
Aquela palavra antiga:
Arrebol.

[Foto retirada do Google]

RITUAL

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RITUAL

Como uma sereia
Nadando no poema.
Séria, sedutora.
Nadando na linguagem,
Sorrateira, promissora
De que seduzirá
O leitor, o poeta
E o próprio poema.
Seduzirá com o canto,
Com a textura,
Com a versura
De cada coreografia
De nado sua.
Mutando na linguagem,
A sereia será logo ninfa
Nesta linfa.
E chegará o momento
(Sempre chegará)
Em que será Cila.
Cila da leitura
Que em ciclo oscila:
O poema é um ritual.

[Foto retirada do Google] 

7 poemas de Fabíola Mazzini Leone

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De fato, detesto poesia
com pensamentos levados pelo vento
a poesia tem de ficar
e encarar
a miséria, a pilhéria, o mau tempo
e eu



Erro de cálculo

quis explodir
o lado esquerdo do peito
deu errado
ficaram minúsculos buraquinhos
escaninhos de dor
por onde vaza seu desalinho
e entram dejetos dos outros
devagarinho o tempo todo



de brisa

ela anda pela rua como se não fosse
tempo de dedos crispados
ela em pausa:
bêbados ficam lindos
se sozinhos com o copo
há um som eterno de vidro transparente
ela é tão visível ao sol:
díspar da silhueta, ossos rijos
a vida encontrando consistência
mas eu busco:
mais do que o aspecto sadio
um vazio em seus olhos
como a metade consumida do copo 
disso eu retiro meu torpor:
seres humanos se resumem a quem tem ou não
joelhos para se deslocar
sorrio



Historinha de coração desenganado de fato

O fato está na entrelinha
No meio de uma frase
Na vírgula
No jeito de buscar o ar
O fato é furtivo ao olhar
Nele não há consolo
Só meios-termos
Partindo nossa história
Ao meio



Sub real

a vida é trem no trilho
da fome do maquinista
e da mulher dele arisca
como um cão a esmo

a vida é rio no sol
da nuca do garoto
e da garota dele morta
como um peixe no Tietê

a vida é luxo no arrebol
da glória do dinheiro
e do dono dele ileso
como um herói de TV

a vida é água no olho
de gente como eu ou você
e das mucosas nossas doridas
como um canto de memória

água peixe olho trem
Buñuel pisava na estação
e sabia palpitar seu fim
como os olhos de um cão

devia saber da gente
e sabia regiamente do peixe
sob o travesseiro do enredo
despiste do dia-a-dia

nesta cidade passada pela água
cidade passado de 34 quadros
nos segundos do relógio na
parede dali



Livramento

Hoje me livro da pele
Essa armadura atávica
Hoje me livro da fala
Essa moeda de troca
Hoje me livro do medo
Essa guilhotina das ideias
Pensava ela
Enquanto rodava em círculos
No próprio quarto
Depois de socar almofadas
E ler aquele bestseller que ensina tudo sobre amor próprio



***

Em meu corpo se fez manhã
Decifrando amarelos e azuis
Abrindo as janelas ao sol
Nenhum silêncio
Nenhum e-mail 
Nenhum amor me aniquilará
Estou deitada na pedra ancestral
Quarando a alma 





Fabíola Mazzini Leone
Sou uma pessoa comum, ilhada em Vitória/ES, esta cidade que tem mar, porto e muitas histórias. Escrevo por necessidade absoluta de estar inteira aqui e no mundo, junto das outras pessoas, razão de ser de toda arte.


Ilustração: desenho de Admilson Silva

De Cinema & Poesia: Um filme que precisa ser redescoberto

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Trata-se de Daniel, o capanga de Deus, de João Reimão, filme inspirado em seu romance e realizado em 1977 com Arduino Colasanti, Paulo Cesar Pereio e Regina  Duarte. Primeiro e infelizmente único longa-metragem realizado pelo poeta, escultor e publicitário João Baptista Reimão. Um drama místico que não é diluído pelo contorno sociológico ou pelo pensamento dualista, mas centra seu enredo na busca metafísica de um homem em conflito com a chamada civilização cristã-ocidental. Depois de se encontrar com uma mulher e com seu duplo  (Sandra e Beatriz, ambas  vividas por Regina Duarte) Daniel, o protagonista, tem uma visão e engendra uma viagem por dentro de si mesmo na direção de um lugar mítico que é, ao mesmo tempo, interior e exterior: a Clareira. Este enredo é trabalhado pelo diretor como uma espécie de poema em diálogos. Um filme ousado que remete aos trabalhos de Alejandro Jodorowski e enfatiza o universo dos conflitos amorosos que se desdobram em metafísicos, tal como ocorria na obra do subestimado Walter Hugo Khouri, que desenvolveu essa espécie de tessitura filmica, no caso de João Reimão, costurada com profunda inteligência e sensibilidade. Na história do cinema, existem poucos casos de realizadores de apenas um ou dois filmes que colaboraram de algum modo para o avanço da arte  do cinematógrafo, como observamos acontecer em Victor Sjostrom, autor do faroeste metafísico O vento e emCharles Laughton de O mensageiro do diabo. É nesse contexto que podemos inserir Daniel, o capanga de Deus, isto é, o contexto dos filmes que foram criados por uma forte questão pessoal e existencial, e encontram vazão mediante uma poética crivada por uma camada de transcendência. Justamente por este motivo, é lamentável que o filme de João ainda não tenha sido exibido pelo Canal Brasil, nem tenha sido lançado em DVD. Alô,Cinemateca  Brasileira!  Alô, Museu da Imagem e do Som de São Paulo!  Alô,Sesc!  O Brasil está nos subterrâneos. , é no fundo que estão as águas mais limpas, onde poderemos ver nossos rostos refletidos nos céus. Este é o paradoxo: a lama e o esgoto estão no alto dos arranha-céus e as fontes estão enterradas, as flores mais belas florescem debaixo da terra! Este filme é uma flor no meio do caos de cacofonias do cinema brasileiro dos dias de hoje e, sim, pode iluminar, conforme indica o nome da produtora (clareira...). Foi realizado sem patrocínio, ok, João era um publicitário altamente reconhecido, mas quantos publicitários são poetas capazes de realizar um filme como este? Existe ainda uma belíssima correspondência entre Daniel... e a vida de seu realizador, paralelismo sobre o qual tratarei em outro ensaio de maior fôlego. João vive hoje em Piraju com a família e lançou quatro livros:  Tessitura de violeta,  contos de 1962, Daniel, o capanga de Deus , romance de 1977, 69, Poemas de 2009 e Lendário da Estância, crônicas de 2012.

Marcelo Ariel com a colaboração de Ana Cristina Joaquim ( Revisão)

5 poemas de Camillo José

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Ilustração: Orestes Buzon



“you’re the first and last of your kind” *


virá como a paz vem do pus, como o mel vem
da vespa, como a manga vem do fiapo, como um
deus vem do barro, como uma mãe vem de outra
mãe. virá de além-mar para sabe-se lá onde, do caos
para o cais, de antártida para atlântida, de hiroshima
para o himalaia, de babel para a babilônia, do hall
para a rua, do samba para o blues. virá do antebraço
e da antimatéria, das ancas de eva e de letícia,
dos calendários de alceu e de caetano, do vermelho
e do vermute, do vento e do vulto, da aurora e da
arritmia. virá e terá asas policromáticas, lava
temperada entre as coxas, nadadeiras fabricadas
na zona franca de manaus, um pacto com cortázar,
um caso com o valete de ouros, círculos polares em torno
das feridas e arquipélagos na hipotenusa dos seios. virá
e dirá palavras abissais, tratados acerca da vida útil
dos minerais, cartas extraviadas para alzira, diários
de cisco e de susto. virá como vêm as coisas que aparam
pontas para amparar pontes, e pousará no meio do
meio do quintal de vovó graça, e eu outra vez calçarei
meus sapatos azul-madrugada - e lhe darei então
meus melhores brinquedos e minhas sementes de sol.




“the sound of someone you love who's going away and it doesn't matter” **


quando ela passa aço em brasa nas minhas
assaduras feito manteiga, quando seus cacos
grudam na nata da minha casca, quando topa
suas quinas no meu mindinho, quando seu
rabo-flor me beija as anteras, quando sua voz
de escaleta me vara os poros à vera, quando sem
pressa ela destampa minhas artérias de pressão,
quando o último domingo do ano vira sargaço
embaixo de suas unhas, quando amola os caninos
na pedra-pomes do meu desespero, quando suas
tetas me disparam jatos de ayahuasca, quando
enfia suas massas nos meus talheres, quando
alimenta meus prisioneiros de guerra, quando
leva meus fetiches pra passear, quando pede um
pedaço da minha hóstia, quando morre na minha
primeira página, quando engole meus elétrons,
quando confisca as fichas da minha jukebox,
quando me manda embora como se com as
próprias trompas costurasse a boca de um peixe.


  

“um caça norte-americano sobrevoando um canarinho” ***


afrodite dançando afrobeat nos terraços suspensos de el dorado
gangue de amazonas vegetarianas cavalgando búfalos e bicicletas
família de tartarugas alpinistas tatuadas no muro de berlim
coração de manga-espada bombeando néctar pelas torrentes do corpo
caroço de magma germinado no útero sonoro de todas as coisas
zarabatana solar disparando nuvens contra as vísceras do tempo
revolver apontado para a estátua estéril da monotonia
rocambole de ervas silvestres servido vivo nos ritos de passagem
lasanha de brócolis ao molho branco refogada à beira do etna
pena de pavão pousada na ponta do nariz da palavra equilíbrio
beija-flor colonizando flores de maracujá com cerveja artesanal
jardim de cactos infiltrado nos pulmões da mona lisa
floresta de cogumelos dourados bordada na jaqueta de kerouac
a origem das espécies em post-its na geladeira de charles darwin
antologia de haicais escritos na cúpula principal do taj mahal
astronautas traficando orquídeas na superfície de marte
escafandristas cultivando baobás no triângulo das bermudas
transeunte mascarado à espera do último trem para mais além
criança cigana dando corda no carrossel do planeta
concha fluorescente parindo um oceano no umbigo de buda
casulo latino-americano grávido de uma galáxia irregular




“eu vejo um museu de grandes novidades” ****


um piano de cauda em chamas entre os escombros do carandiru
sete canibais chupando as cartilagens de sete bonecas infláveis
um filhote de porco rezando o pai-nosso na fila do matadouro
uma mãe solteira amamentando num campo de concentração
penélope grudando chiclete de hortelã nos sapatos de ulisses
você de pijama novo passando as férias na minha visão periférica
nossos amigos caolhos assaltando puteiros com pistolas d’água
freud torturando pederastas nos calabouços da pirâmide de quéops
formigas promovendo orgias sobre a carcaça incorrupta de peter pan
um casal de idosos perdendo a virgindade na seção de enlatados
tua tia gozando em frente ao espelho ao som de house of the rising sun
tua cachorra morta por intoxicação alimentar ou depressão pós-parto
santos dumont aos dezessete anos brincando sozinho na gangorra
napoleão bonaparte chorando escondido no banheiro da escola
alguém prestes a tirar a roupa e transar com um desconhecido
alguém prestes a tirar a roupa e se afogar no rio capibaribe
gotas de mijo brotando da cueca de lorca minutos antes da morte 
pequenas manchas de milk shake na túnica de judas iscariotes
billie holiday vomitando a bile nos moicanos de uma roda punk
bukoswki se masturbando durante um espetáculo do cirque du soleil
uma perna mecânica omitida pelo vestido branco de marilyn monroe
um pedido de desculpas coletivo censurado no velho testamento
jesus cristo à paisana comprando analgésicos no sábado de aleluia
e nós dois beliscando o primeiro pedaço de bolo de um anjo suicida




doppelgänger


tu também beijaste aquela enfermeira nova-
iorquina em 14 de agosto de 1945 no meio da times square
tu também te achavas sozinha em casa quando
os telejornais anunciaram a queda de constantinopla
tu também apostavas nas relações poliamorosas
como o grande emblema da nossa geração
tu também planejas refazer a rota de forrest gump com o teu amigo beat
tu também anseias por ser o amigo beat de alguém
tu também eras sempre o Joaquim nas leituras d’os três mal-amados
tu também te iludes a dizer por aí que já não há mais coração
tu também tentaste mapear todos os parques e praias de tua infância
tu também acreditavas na origem lendária das baleias-jubarte
tu também brincavas de atravessar portais à sombra do jenipapeiro
tu também ficaste presa em mykonos naquele memorioso verão de 78
tu também lacrimejas ao ouvir solitude, mon petit & outras palavras azuis
tu também escreveste teu nome no cimento fresco da rodoviária de são brás
tu também abrirás uma confeitaria no próximo dia dos namorados
tu também estarás em stonehenge quando vier o vigésimo segundo sol
tu também terás cavalos-marinhos tatuados abaixo do peito esquerdo
tu também pousarás tua bike amarela sobre a cerca-viva do roseiral
tu também te deitarás sobre a relva do terceiro domingo de novembro
tu também desenharás elefantes brancos nos travesseiros de deus



* título retirado da música “every other freckle” da banda alt-j, álbum: “this is all yours” (2014)
** título retirado de música homônima da banda penguin cafe orchestra, álbum: music from the penguin cafe (1976)
***  título retirado do poema “poema sem título n°7” de biagio pecorelli, in: vários ovários – edith (2014)
**** título retirado da música “o tempo não pára” de cazuza, álbum: o tempo não pára (1988)





Camillo Joséda safra de 93, autor de chave de espadas (Ed. Patuá – 2013), reside na região metropolitana do Recife e é graduando do curso de letras da UFPE. participou da antologia “vinagre – uma antologia de poetas neobarracos”, já teve poemas publicados no jornal relevO, nos fanzines nauvoadora, telégrafo da noite e nas revistas virtuais mallarmargens, ellenismos e pluriversos.  é paranoico, gosta de brócolis, música experimental e nutre um curioso fascínio por palavras polissílabas, búfalos americanos e baleias jubarte.
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