Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live

Trato do Levante - XIII - Junior Bellé

$
0
0
Fotografia: Aline Lata 


XIII.

[o tempo é um velocista
e hoje me sinto velho demais para acelerar a vida
ou exceder a morte
cronometrando-me neste tiquetaquear
e por alguns benditos e rápidos segundos
vencer os ponteiros da história

tudo que preciso neste momento
é lamber a boceta de valentina
e com seu gozo úmido e doce
já na ponta de minha língua
selar o último baseado
no salmo noventa e um
e enrolar este agora no versículo sete

enfim acender os céus na lonjura restante
que incendeia com a labareda fugaz
da nossa juventude passageira
ardeu-nos pelas lembranças desfeitas
até finalmente apagar-nos
no jamais

valentina estava calada
quase imóvel
mas ofegante com aqueles ondados e suados
cabelos negros
esparramados em meu peito
ainda mais ofegante

em breve o sol virá
esbofetear-nos a cara
sabemos que não haverá chance
será o mundo inteiro contra dois
por isso, a sós
nas sombras de lençóis tão conhecidos
até o impossível
escondíamo-nos dele

puxei na primeira névoa do baseado
o poente orgasmo de valentina
queimava entre pele e unha
a densa neblina
ao redor da língua ia dentro de mim
assim como há pouco fui
dentro dela

lá fora tudo é a mesma segunda-feira
a mesma queixa berrada
por ais sem paixão
mas não aqui
não debaixo dos cachos de Valentina
não enquanto o relógio arma em silêncio
seu bote infeliz em nosso silêncio

sussurrei com a brisa entre os alvéolos
“meu amor”
e passei depois do segundo pega
como acordamos há tempos
em nosso trato
de enredadeiras sílabas
 mas com o baseado ainda entre meus dedos
o enlaçou com os lábios
e pitou chorando, mansa
valentina

é duro resignar os planos
à triste ciranda capitalista
mas juramos nunca nos ajoelharmos
diante da vida
nem com a vida adiante
nem mesmo quando ela reacender
outra e outra vez
os motores sanguinários
 de sua imparável máquina
de moer sonhos

pois quero acreditar que ela também acredita
que aqui
em nossa utopia
de alguma forma
encontraremos o caminho certo juntos
e parecia segura disso
quando tragou com voracidade
uma lufada de esperança
e segurou meu rosto próximo ao seu
para cochichar das negras tormentas
e assoprar para longe as nuvens escuras
que nos impedem de ver
a fumaça bailar a poesia da revolução
até minha boca
de barricadas

o relógio, de repente, gritou tão desesperado
que lhe rompi as horas
despedaçadas na parede
por onde os primeiros raios avançavam
indiferentes
pelos desprotegidos flancos do quarto
a fim de cercar-nos à ribeira da cama

valentina aconchega-se em meu pescoço
e os observa sem medo
do alto do nosso fronte
morde, delicada, meu queixo
respira, sem pressa, e pergunta:
“o que você faria
por cinco minutos mais
de eternidade?”



Poema de Trato do Levante (Editora Patuá, 2014).



Nascido no sudoeste do Paraná, Bellé Junior  publicou em 2010, de maneira independente, “O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas”, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Seu segundo livro, “Trato de Levante” foi publicado pela editora Patuá em 2014. Boa parte da obra foi escrita em 2013, durante duas residências artísticas em Yaddo Artists Colony e Art Farm Nebraska. Se você procurar bem, ainda acha o “Balaclavas & Os Profetas do Caos”, sua primeira obra, um livro reportagem publicado pela Livro Novo também em 2010. 

4 poemas de André Trevisan

$
0
0





- amor wittgensteiniano

Tudo ocorre como se X estivesse
constantemente aí para Y, porém,
o oposto nem sempre é verdadeiro.
I.é, a presença de Z, impede que Y
corresponda as expectativas de X,
logo, podemos concluir que, assim 
como o acaso rege a matemática, Z
subtrai-me propositadamente de ti.
Equacionai o valor desta expressão,
pois, tal como vige poesia na lógica,
existe contradição em meu coração.






- multitask

Tanto fala,
menos faz

Quanto pensa,
mas se mente

Tanto vês,
menos toca

Tanto tem,
mais se quer

Quanto quer,
menos és

Ladra, mas 
não morde.





- alvorecer

Velha ave,
ontem alva,
tuas penas,
invejadas,
foram montes

hoje, nua,
entorna asas,
repousa e pena,
já sem pluma

amanhã alveja
os teus alvos
novos, anseie,
e alce voo,
pleno voo.




- mais valia

Numa jornada
ab sorve tua
vida, feito
máquina de
moer gente!

É relativa,
tuas horas
produzidas
jamais valia
duras penas

É absoluta
e intensa,
tua fadiga,
não valia,
um poema!”



André Trevisan nasceu em Santo André (SP) aos dezoito de março de mil novecentos e oitenta e hum; (de)formado em História e Filosofia, foi membro do conselho consultivo da Verinotio: revista online de filosofia e ciências humanas. Atua como professor na rede pública e particular de ensino. Procura pela poesia como aquele velho monstro que ao estranhar seu reflexo no espelho d’água, busca na arte poética o cultivo do olhar e da beleza perdida, seja “Tricotando neurônios, costurando ciladas, bordando poesia ou palavras-cruzadas?“, como disse ainda em um de seus recentes haikais, armazenados em seu blog www.humanissimo.webnode.com

Para o ladrão de Flores - Jane Sprenger Bodnar

$
0
0
Ilustração: deviantART



gotas de chuva 
arpoam a calçada 
e morrem. verão.




Passeio


afogar-se com grata aceitação 
sacudir os cabelos 
e o que é exterior secará ao vento

fica o salgado, o doce, o fim da tarde 
o sol se afoga no fim da tarde




para o ladrão de flores


pé ante pétala
ilusão de besouros na noite
iluminar o jardim com margaridas
para acelerar a primavera




*
lua
ver-se do céu
ilhada em poça

poço
ver do fundo
a luz do que posso


Jane Sprenger Bodnar

Mateus

$
0
0



Eu queria viver como Marguerite Gautier e morrer como Anna Karenina. Eu tinha só 13 anos e ele 19. Viver entre lenços ensanguentados um amor proibido, uma amizade muito particular, não publicada, porque todo amor vivido às claras é igual. Saber que as rodas de ferro que haveriam de me matar já estavam prontas, azeitadas e rolando de uma cidade a outra. Talvez eu tenha levado os romances trágicos muito a sério. O sangue derramado. Talvez porque meu nome seja Mateus. Quando eu amo, entro no meu quarto e fecho a porta. Amo em segredo, num lugar oculto. Eu e ele. Não nos amávamos de pé nas sinagogas, no pátio do colégio, ou nas esquinas das ruas para que todos vissem. Em público era um olhar rápido. Uma troca de sorrisos respeitosos entre desconhecidos. O perfume do corpo bastava quando ele passava por mim. Suas camisas com cheiro das manhãs. Suas mãos estendendo uma esmola, virando uma página, acendendo o cigarro. Os lábios tristes tocando o copo de vinho para não gritar ou ranger os dentes. No escuro, após o gozo, decidíamos o destino das nações posicionando exércitos num mapa invisível sem sairmos do nosso terreno baldio. Os generais do terreno baldio. Entre nós o amor não era vivo, dormia. Numa cidade de ouro e prata. E só nós dois sabíamos, não as pessoas da casa, nem os campos de trigo, céus ou árvores. Desertos que vão e vêm. O amor proibido é uma espécie de doutrina surdo-muda. Uma menina sozinha deitada na cama que das migalhas faz sete pães. Eu poderia lhe dizer muito mais, meu filho, embora eu mesmo não saiba bem o quê. Ser pai ou mãe de família é uma notícia que se espalha e contamos uns aos outros sem entender bem o que significa. Quando acabamos de ler um romance, não sabemos o que vem depois. Não saberíamos escrever este depois. O ponto final é o cansaço do autor. E não espero o seu ponto final à minha história. Não espero o seu perdão. O seu amor às claras. O meu peso na sua balança. Um filho é como olhar para o interior de uma casa pela janela. Como um barco à deriva no meio do lago. Você acha que vai resgatá-lo, mergulha, mas vê que a água é feita de tinta. Funda. O barco, uma imagem. O lago, a moldura. Você está preso até à garganta. A deriva foi mera ilusão de ótica. Você não precisa mais se preocupar com o seu pai. Para onde estou remando os meus ossos. O meu repouso de chumbo. Leia esta carta e depois disso me ame como puder. Como quem escuta atrás das portas. Um amor que sei não será mais vivo como antes, nem morto. Adormecido. É o que me basta.







Três Poemas de Caio Cardoso Tardelli

$
0
0
Anoitece. Sobre as sombras calmas
Ainda a luz perdura docemente...
Encantamento... qual num espelho fundo,
O céu é igual ao profundo das almas...
Dir-se-ia o universo um confidente,
Um poema que, enfim, cantou ao mundo.


-

As almas, nenúfares do céu
Pelo poente estendidos,
Trazem consigo os sonhos idos
Para a eterna unção dos olhos tristes...

-

Perguntareis, talvez, qual o oculto azo
Para que algo floresça nesta vida
E outra semente, em um viver raso,
Nunca prove da primaveril lida...

E qual o misterioso caminho
Que as almas seguem sem saber, embora
Saibam que não é do mundo o vinho
Que aprofunda e enebria essa hora...

Perguntareis, talvez, numa prece,
O que nos coloca à mercê do inverso
E à mercê da impossível messe...

Mas, ao olhardes a abóbada incerta,
Sentireis – somente - que do universo
Vem essa Luz que vos guia e deserta...


CONTO DE VIVIAN PIZZINGA + LANÇAMENTO DO ZINE JOIA [SEXTA, 12/12, RJ]

$
0
0






objeto interno


o que ele tinha? um objeto interno de quatro patas, talvez seis. um objeto interno feroz, desses que saliva muito e não cochila. um enredo particular, desagradável. uma partitura de música ausente.
ele tinha uma dor que não se esvaía, e volúvel. uma espécie de panóptico íntimo que o perseguia desde dentro.

ele tinha aquela angústia estriada, rugosa, áspera. umas bolhas prontas pra estourar, todas ao pé do ouvido, tímpano frágil, esguio. um barulho dentro das bolhas, a certeza do colapso.
o que ele tinha era uma unha cortante, enorme (centímetros), apontada pra garganta. uma incapacidade de dormir. dificuldade em acordar.

o que ele tinha era uma tragédia polissêmica assentada no chão do quarto. um horror sem nome encostado nas paredes. um medo terrível, a cada dia renovado.




Ilustração: Alexandre Guarnieri


*    *    *







*    *    *



Vivian Pizzingaé psicóloga, escritora, lançou "Dias Roucos e Vontades Absurdas" (2013) e escreve um pouco mais no blog vaga noite.







[as guerras búdicas: cena 5] por alexandre guarnieri - parte 10

$
0
0





[a passagem do tempo é indicada com a luz que se apaga e se acende entre os diálogos...
pela potência dos diálogos, se percebe o avanço dos dias, ou meses...]

[há uma silhueta vaga avistada por 2 sentinelas numa torre, a aparição gera certa confusão,
eles se trombam, olham de novo, afinal, qualquer presença desconhecida pode ser a de um batedor
inimigo, reconhecendo o terreno para chamar um ataque por ar ou terra... eles se agitam,
até que um deles recorre aos binóculos... a visão o atordoa...

Sentinela 1 - o que é!? quem é!? fala logo! eu dou o sinal??!! aviso nossas defesas!? rápido!!!

[o outro faz sinal que se acalme, mas continua seguindo a silhueta ao longe, que, aos poucos,
revela a imagem de um monge, que caminha, resistente contra a aridez e a ventania,
descendo uma trilha na montanha, seu manto tem algo familiar, mas... ]

Sentinela 2 - é um monge!

S1 - tem certeza? só um louco ou um suicida andaria por essas bandas? ou um espião disfarçado de monge!

S2 - e se ele se perdeu?

S1 - será?! [visivelmente nervoso] duvido! esse povo sagrado sempre conheceu demais
essas montanhas! sabem muito bem por onde andam... duvido que um deles viesse por aqui
à toa, eles sabem muito bem o que fazem! de aldeia em aldeia, as notícias da guerra
são levadas com a ventania!

[o monge vem se aproximando, mas ainda está muito longe,
a esta altura percebe-se que ele vem sozinho]

S2 - você conhece as histórias dos homens de fumaça??

[o manto do monge revela, mesmo ao longe, um símbolo, que o sentinela reconhece,
ele se agita, nervoso, ele retira os binóculos, aperta as vistas, mas recoloca as lentes nos olhos,
incapaz de enxergar sem elas]

S1 - claro! mas oq...? [se agita, assustado com a pergunta]

S2 - pois justamente! eu acabei de ver! ele tem o símbolo de Taksang nas vestes!

S1 - Taksang??? o mosteiro de perto da nossa aldeia??!!
minha mãe contava, quando a guerra parecia apenas uma história pra dormir,
que esses santos cruzavam os campos no meio do fogo cruzado e nada os atingia!
alguns soldados os seguiam e esses sim, caíam mortos na hora...
eram muito tatuados os monges... e tinham o corpo fechado!

S2 - "eram de fumaça", minha avó dizia... e era muito raro que saíssem de lá de cima!

[o sentinela pega uma sineta e toca algumas vezes para uma torre próxima (um código),
e os sentinelas daquela torre por sua vez tocam para outra adiante, além do contorno
da montanha]

S1 - ele pode ter notícias de nossos pais, de nossas vilas! vamos falar com ele!

S2 - calma, homem, calma! não sabemos o que ele vem fazer aqui... isso não faz sentido!
deve haver algo errado com ele... acho que você precisará escoltá-lo até o próximo ponto!
não podemos deixá-lo ir sozinho!

S1 - eu?? mas é um homem de fumaça, lembra?! ...do que eles são capazes...

S2 - bobagem, são as crendices dos nossos avós, só isso! não dê uma de bobo! aproveite
e saiba se ele tem alguma notícia da nossa região! [diz quase gargalhando:]
afinal, vai perder a chance de estar frente a frente com um monge santo de fumaça!

[o monge aparece em carne e osso a alguns metros da torre, como se tivesse cruzado um quilômetro
em apenas alguns segundos, mas talvez a noção de tempo por aquelas bandas seja mesmo
embaralhada pela monotonia da aridez, pelos estrondos de bombas ao longe, no front]

s2 - [grita] alto lá! identifique-se! [e fala baixo para o outro:] vamos! desça lá!
diga que ele não poderá seguir sozinho... anda logo! não esqueça de me trazer as notícias!

[o outro, antes amedrontado, se recompõe endurecendo o corpo, querendo provar alguma
bravura no meio do nada, e começa a descer escada abaixo, para encontrar o estranho, que
parado lá embaixo, o aguarda com as mãos escondidas dentro do manto... há uma tatuagem
serpenteando pescoço acima (oculta pelo tecido) e outra visível, no topo da cabeça...]

 



















ACOMPANHE A SÉRIE!


PARTE 1

PARTE 2









*    *    *



Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial de mallarmargens e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ), de 2011, é seu livro de estreia e está disponível aqui. Seu próximo livro, "Corpo de Festim" (Confraria do Vento), será lançado em 2014. Email.


DESENHOS DE PILLAR BELLARDI

$
0
0





























*    *    *



Pillar Bellardié estudante de história e pedagogia, feminista interseccional e ilustra sua militância e cultura pop na página do facebbok Wonderful World of Alpaca. Email.



Ecumênico - Cel Bentin

$
0
0
Ilustração: Julie de Waroquier



Escuna
adentro,

a pedraria
de um mar
à paisana

(búzios agrestes
d’avesso d’água):

as luas silentes
dos olhos dela.


E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembrança de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.
cecília meireles

MAR À PAISANA




Fardo imperdoável atado azul e impossível,
não se dobra ou se curva à ordem alguma;

(Prefere se deitar abraçado a desenhos dos que o leem em braile
a transar a fidelidade pobre de sentidos no escritor que dorme só.)

Cio que desobedece à cerca do engenho
do senhor que fez nascer quando criado,
poema é amorigami a penas desdobrável;

também sou.


PAPEL ENTREGUE
para Adélia Prado


Ilustração: Julie de Waroquier


Entre o que não se nota
e aquilo que se esconde
entre a chaga da pétala
e a palha das máscaras
pipoca a face de Omolu.

Homem nenhum
sabe o que nela
se leva e guarda.

Sequer imagina,
a sabe, sufoca
ou compreende;

(é tão sonhada
quanto inédita
a sua beleza.)

& só a vive
quem diante
de si, dentro,
a comunga:

(inquieta,
revela-se
tal quem
descobre.)



INQUIETO CHIAROSCURO [ou PALAVRA-OBALUAÊ]



Não, não pergunte da minha alma.

Sou ainda mais as que me apuram e tocam,
e que assim me mantêm recém-inventado:

daquilo que pelejam
– e cumpliciam;

do que se desafiam
– e compadecem;

do que resmungam sorrindo.

Disso é feito aquilo que
me guarda, compreende,
desorganiza & denuncia.

(Nunca me reconheço
ou manifesto sozinho.)

Desvendamos
um aos outros.

Todos os dias.


Perguntou quantas almas haveria de ter.
michelle portugal

ECUMÊNICO




Não as letras em fila indiana;
mas o caos erguendo visitas.

Não só o que o texto aponta;
mais o que olhar descortina.

Dona
é Poesia:
Letrenfeitiça.


MANDINGUEIRA



A lua, quando sua, alua;
o exercício do amor,
idêntico.


COLMEIA, APURO & EXÍLIO 



Cel Bentin é paulistano. Acredita que palavra é bicho mais denso do que as gramáticas pregam e a tabela periódica imagina. Segredaria é seu livro de estreia (editado pela Editora Patuá, 2014, via Edital ProAc 2012).

4 POEMAS DE ADELE WEBER

$
0
0






O cubo


A viagem não é vã
sente o estrangeiro que há em todo homem.

Em cada canto do mundo
alguém sempre percorre um quarto
sangrando gota a gota
o ato de preencher o cubo
com o seu tamanho.




Janelas


Encostei a testa
no lado seco do vidro molhado.
Olhei.

Solidão fria a vida inteira
às experiências de novas dores.

Tapete velho muda de lugar
mas resiste aos passos descuidados.
Tão banal.

Ainda choro com a chuva
através de qualquer janela.




Chartreuse


Monges inaudíveis desertam
e esquecem abertas as portas da Cartuxa.
Penetro no úmido limite da solidão.

Procuradas para entendimento
desconhecidas dores
pesadelo insolúvel, a depressão
é vomitada, uma serpente inesgotável.

Meus pés pesquisam liberdade
patinam o cristal do piso gelado
quebram-no
e feliz me afogo...




Fogo sem chamas


Os juncos estreitaram o rio,
– o aluvião nos meandros – 
moldaram novas superfícies
a caminho do lodo.

Raízes se insinuam nas ruínas,
sorriem flores entre as pedras.
No semicírculo da encosta
degraus gastos se equilibram.

Sento ao sol
lambuzo o olhar atônito
na beleza do trabalho consumido,
nas gerações ausentes,
no mel de fogo sem chamas
do tempo vertido em pó.






Imagem: arte de Luís Sarmento



*    *    *




ADELE WEBER nasceu em Santos, SP, em 1929. Atuou durante vários anos como arquiteta. Participou da antologia "Caixa de Prismas" (1992). Em 1993, publicou pela UERJ seu primeiro livro individual, "Aço e Osso". Em 1994 recebeu o Prêmio Stanislaw e, em 1995 a menção honrosa especial na mesma Premiação. Um ano depois publicou o segundo livro, "Cordas de amarrar o tempo". Em 1998 e em 2006 teve poemas publicados nos números 9 e 24 da revista "Poesia sempre" (FBN). Lançou em 2003, "Tipos de rua e alguns recados" participando do grupo de poesia Letra Itinerante. Lançou em 2005, "Fragmentos de Eliot", seu quarto livro e em 2010, "Inversão íntima".




CRÍTICA E VALOR | LANÇAMENTO [ 15/12 | 17H | RJ ]

5 poemas de Ellen Maria Vasconcellos

$
0
0
Ilustração : Anja/deviantART




Frasco de segredos.


Depois de um dia de muito calor, antes de tomar banho, passo o dedo indicador direito no meio dos seios, a palma da mão esquerda no pescoço, e coço o couro cabeludo com todas as unhas. E no nariz, quando levadas as extremidades dos membros superiores até ele, fica uma mescla de vários cheiros bons, e meus. Depois ela desaparece e quando saio da ducha, dentro do banheiro só sobra vapor. E intimidade.




Bestiária

É noite
se enterra o silêncio

Minha cabeça cansada
não sabe escolher o lado onde repousar
no travesseiro
cruza o quarto
vai a janela
e vê voar uma bandeira
solitariamente sentimental
que lentamente
também vai
ao encontro
do chão

Assim morre um pássaro
ou sonho?

É noite
se enterra o silêncio

Assim morre o pássaro
ou um sonho?




Em punho

Sempre saio
com um apito no bolso
um canivete na bolsa
dinheiro no tênis
rg na calcinha
são tantas as mensagens pra mim mesma

e o medo de olharem pra mim
o medo de me notaram sempre
que passo por alguém
que me assusta
faço cara de dor
e falo sozinha

passos rápidos
procurando um ansiolítico
na mochila das formigas

a velha calça cargo
com seis bolsos
pra levar o aluguel
a imobiliária não entende
quando saco duzentos reais de cada tênis
cem de cada bolso
ninguém entende
são as doze quadras mais longas da cidade
caminho com meu punho
fechado
fazendo força

Todo sigilo é pouco
eu sei
todo homem é louco
eu também sou
homem digo
e fico pensando em cada coisa

só o homem sentado na calçada
me dá
o olhar que dou
para aqueles que não me passam medo

não quero ficar louca
não quero ficar louca
não quero ficar na rua
lá vai outra louca na rua
repito
tantas vezes até voltar pra casa
com os pés quentes
e as notas
e o rg molhado

estará o perigo acontecendo agora?
estará o perigo
acontecendo onde?
pergunto enquanto
em punho
ainda ando.




Ser neta

Nunca pude saber
se seu pai quis ser meu avô
porque seu filho nunca quis ser
meu pai.




Classificados: Massa insurgente busca vanguarda revolucionária.

Requisitos obrigatórios:
Liderança, espírito de equipe, lista ativa de contatos com variados grupos oprimidos, autonomia e dinamismo. Fundamental saberes na área de gestão de pessoas e experiência com gerenciamento de conflitos. Excelente dicção, fluência em 3 línguas, capacidade de trabalhar sob pressão. Disponibilidade para viajar.

Conhecimentos indicados:
Retórica, história geral, educomunicação, principais correntes críticas filosóficas e sociológicas, literatura universal, geopolítica atual, manejo de armas. Desejável especialização em revolução russa e movimentos proletários.

Documentos necessários:
Um manifesto coerente e perspicaz que dialogue com a conjuntura da América Latina.
Carta de propostas a curto e largo prazo.
Curriculum com indicação.
CNH.

Funções:
Responsável por transmitir informação de maneira objetiva para as delegações, liderar o comitê executivo.
Coordenar as reuniões com as diversas áreas (recursos humanos, relações públicas, tesouraria, meios de comunicação, limpeza, alimentação, cuidados médicos, fabricação e armazenamento de armas, tecnologia), assegurar que o trabalho intelectual siga em confluência com o trabalho manual.
Fiscalizar diariamente as ações das equipes de estratégia política e resolução de problemas imediatos, fornecer e coletar ideias criativas para o seguimento da revolução.
Gerenciar a desestruturação das instituições coercitivas legitimadas pelo sistema capitalista, garantir o bom andamento da luta de classes.

Benefícios:
Desenvolvimento pessoal e profissional.
Pacote salarial atrativo.
Inclui três refeições diárias, moradia no local de trabalho, assistência médica.

Outras informações:
Trabalho de dedicação integral.
Não é necessária experiência anterior neste cargo.
Contratação imediata devido à proximidade com o colapso do capitalismo.

Interessados nesta vaga e que se encaixam no perfil, entrar em contato urgente com movimentos sociais, organizações políticas, mediadores de assembleias locais, líderes de ações populares, resistentes da causa operária e editores-chefes da imprensa de esquerda.






Ellen Maria Martins de Vasconcellos tem 27 anos. Nasceu em Santos, mas é corinthiana, formada em Letras na USP, cursa o mestrado em literatura argentina contemporânea, mistura cinema e televisão. Atua como revisora, preparadora e tradutora de textos. Já vendeu livros e foi professora de espanhol e português para estrangeiros. É aspirante (e inspirante) a poeta. Publicou poemas nas antologias Vide VersoRetratos UrbanosSentido Inverso Palavras Veladas (pela Andross Editora), em Ávida Espingarda e Aos pés das letras (pelo Selo [e] da Annablume), e este ano em Anamorfoses (Editora Annablume). Acredita em fantasmas e desconfia dos vivos. Se divide entre um prédio alto na cidade de São Paulo e um prédio médio na Cidade do México, mas não tem o coração de pedra.

5 poemas de Isabela Romeiro Vannucchi

$
0
0
Ilustração: Anka Zuravlena



Epitáfio da esperança


Não há nada mais coeso na humanidade
do que ter ramelas
na janela da alma.




Mordaça


Ela tinha um amor grave.

Um amor
no qual não se podia lavar as mãos:
suágua arrancava as digitais,
e sobrava só uma impressão
do que éramos antes do banho.
Um desidentidade
que amanhece sem
sono
e
sem ter dormido.

Eu alertei.
Há mares que vem para o bem,
e
há mares que morrem de tanto sal.




Paulina


Membranas inter calam as falanges-
minhas mãos são leques de tez,
para que nada me fuja pelos vãos.

Não há chão
porque
não me abaixo para
recolher o que caiu,
nem ajoelho na maciez do pecado amadeirado.

Não acham
rombos no conopeu,
por isso
deleito-me no âmbar que me cobre,
e sintonizo a desgraça de estar a me vizinhar.

Perfuro as elipses da retidão:
Hei de lamentar a livre queda,
mas nunca o descuido.

A carta na janta:
em minha mosquitez pagã,
pronau é um orifício.



Ilustração: Anka Zuravlena



Mansão


A mansão destilava lascas de tábuas,
como se um incêndio a dilacerasse
silenciosamente.

Ele cuidava dos seus aposentos,
da sua mansidão
como se recebesse visita.

Colocava os amores ensacados para fora
e as poeiras para dentro.

Os cupins
roeram as lembranças.
E
do amor,
sobrou
ele.

Contemplava o desmorono da casa,
consanguineamente.
Como se fosse uma aparição
do seu destino.
Como
quem se reconhece no fim que vê.

As paredes
afinaram-se ao corpo,
e sumiram:
no silencio só,
não é preciso paredes.
não há quem ouça atrás da porta.
E também não há portas,
Porque nada estará ocupado.

A não ser com o corpo dele,
que ocupa pouco.
Que não conta.

Ele era um cômodo
vazio
em que
não cabe nada.

.




Algo dão


A noite ainda janta,
e a mulher
acorda o sol com o suor
de quem sua negro.

O amanhecer é cerimônia
demasiado burocrática
para quem tem
carma e carnê.

Antecipa-o:
o portão desencadeia na madrugada ,
e
só nela volta a encadear.

Ela chega:
trabalhou para ganhar o céu,
mas só conseguiu
o dia seguinte.



Isabela Romeiro Vannucchi é natural de Dourado- SP e atualmente vive no Rio de Janeiro, cidade na qual cursa Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É tão adoradora das artes quanto dos artistas. Já se aventurou pela fotografia, com a exposição AdverCidades, em 2012, porém a literatura é seu destino inevitável.  Aos vinte anos, “ A Terça Fresta” é seu livro de estreia, que será lançado no início de 2015, pela Editora Patuá.

A poesia de André Ricardo Aguiar

$
0
0


Loa para um gato

O gato, ele é todo uma antena,
um clérigo de patas, uma ponte
qualquer para atingir o nunca
de esquivez - todo ele, mil gatos.

Todo ele parte de si e nenhuma,
fácil de perder-se na sombra,
mover-se felinamente para o mistério
do quarto, que mal respiramos.

Não consigo sequer tocá-lo,
inútil é a ilha do seu nome.
Sua filosofia jamais suportaria
os gestos bruscos, as fomes.

Não o temos. Um gato tem-nos.
E sua leitura é sermos lidos
por ele, sermos menos que uma
idéia felina, um chamado.

O acento interrogativo do rabo
diz que o bicho é uma pergunta
que não quer resposta. Seus olhos
de desdém são segundas garras.

Deixá-lo ser. Respira-se melhor o ar
volátil, enquanto a lenda estremece.
Nem roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se aqui um gato.


Poética

Diáfano,
o ar áspero que monto o poema
com um tripé,

é - não é - é

um deserto que aos poucos
só habita
o que o suporta:

o tempo de atravessá-lo.


Sensitivo

E tem isso: uma idéia,
uma bolha onde ter que pegar
e chamamos realidade

ou coisa que o valha, susto
do meio-dia, desnorte.

E tem você: camada de si
mesmo, a esmo, fingindo
viver o que já é a vida.

E algo mais – resíduo
abaixo de zero e as coisas
findas, mais frágeis

que a bolha. Ainda.


Gestos

Anterior ao sim, à concha,
os amantes se despiram
com um véu de fim de tarde
e um lance de escadas.

Um lance ambíguo: nenhuma
palavra a mais acrescentava
um menos de esperança
e acesa madrugada.

Foram se distanciando
no mesmo espaço breve
e peninsular de um gesto
só perceptível se susto.

Estamos quites, disseram
às suas almas embrulhadas
em perdizes: voaram baixo
para respectivas casas.

Amar, às vezes, é pisar
em asas.


Dicionário

Vou ao verbete: sua boca
indefinida planície de la mañana,
haste de rubros invernos

depois folheio e me vem
tua palavra bêbada de enciclopédias:
janeiros, vespas, uma língua
doce

depois voam os significados
e uma revoada de músculos

que relaxam.


Os argonautas

Os mortos com seus sapatos ébrios.
Quem os detém? Beberam os licores
da perda e andam por corredores
com suas certezas de pó, desafagos,
suas bíblias da inércia.
Parecem dizer algo, anúncio de verme.
Às vezes, cismam e por instantes
folheiam o vento, habitam
uma fotografia, pesam uma lágrima. 
Não os tivessem tocado, e o batismo
geral  ou a relva inconcebível
voltariam a arquivá-los
numa lua de esquecimento.


Colheita

Palavra como um grão
- o debulhar, campina
ciente do geógrafo

em pleno estio, súbita
seara – maré movendo
o convés da lua.

Assim o poeta
- fauno entre riscos -
e estreito como um beco

volta ao início
das coisas
que se ferem

e pica a agulha
o seu palheiro:

toda palavra é cicatriz.




André Ricardo Aguiar, autor do livro A idade das chuvas, nasceu em Itabaiana, Paraíba, em 1969. Publicou, entre outros, os livros de poemas A Flor em Construção (Editora Ideia, 1992) e Alvenaria (Editora Universitária/UFPB, 1997). Também é autor de diversos livros infantis e de crônicas. Participou de revistas, suplementos e antologias, como Correio das Artes, Jornal Rascunho, Poesia Sempre, Ficções(Portugal) e em revistas eletrônicas como Zunái, Cronópios, Blecaute e Musa Rara

Ilustração: fotografia de Tom Storm

MAÍRA ESPÍNDOLA - 8 POEMAS

$
0
0
Maíra Espíndola - Mandratana



1

Maíra foi vista chorando em ruas movimentadas e desertas,
em monumentos, escadas rolantes, metrôs e elevadores.

Julgava que era necessário pra sua cura.

Agia com precisão deixando todo seu corpo doer.
Permitindo sentir toda a culpa pra então se redimir.
Perdoar-se por não ter conseguido suportar.
E suportou.

Então Maíra foi vista dançando e rindo em ruas movimentadas e desertas,
em monumentos, escadas rolantes, metrôs e elevadores.

Julgava que isso era necessário pra cura do mundo.

Agia com precisão deixando todo seu corpo mover o éter, deslizar.
Sentindo toda a ternura que emana de fora pra dentro, de dentro pra fora.
Transbordando de amor por tudo de maneira contínua.

Ininterrupta.



 Maíra Espíndola - Sem título



2

Depois de tomar inúmeros comprimidos pra dormir,
entre lágrimas, risadas, filmes ruins e roteiros que não saem de 3 páginas,
shows grudentos, amanhecer na rua sozinha, visitas inesperadas e assustadoras,
sonhos lúcidos, santo daime, alucinações com meu erê
que chamo pela delicada alcunha de pequena tartaruga,
mudanças intempestivas, dor e prazer, acidentes e objetos cortantes,
viagens curtas e sem sentido, euforia, exorcismo de fantasmas,
tinta óleo e pernas sujas, paixões eruptivas, amor extremo, novos amigos,
bate-boca e abraço coletivo na família, estou de volta.

Foi rápido, porém doloroso
como whisky ruim e brincadeiras com armas de pressão.
Uma cigarra que sai depois de 17 anos da terra, grita um dia inteiro e morre.

Câmbio
Na escuta





Maíra Espíndola - Caá Abequar



3

Creio na matemática, resultado único,
fórmula errática da duração do tempo.
Em um Uno que consente a Soma,
Dois corpos que habitam todas as moradas.
Retos, côncavos, indecentes.
Foram carregados por partículas atômicas,
estuprados, desmembrados.
Puseram-se a reter líquido para vingar a sede.
E no traseiro tatuaram: - Te quiero!
Números sublimes, rendidos na divina conta.
Creio na máscara,
Na força do acaso,
Na pele e no sol,
Em báskara,
Em boca de piranha e dedo no chão,
na morte
e na vida eterna.
Por que não?



 Maíra Espíndola - Sem título



4

Senão na boca em qualquer parte da pele.
Ele chegou a beijar meu joelho.
E nem te digo em que lugar nos espremíamos.
Ele chegou a beijar meu coração, meio sem saber onde colocava os lábios.
Deixava-me toda disponível pra ele.
Tudo em mim florescia na direção daquele falo.
Pingava umidade pelos poros.
Feromônios e saliva.
Na cabeça um sonho de princesa exilada,
sentada na janela do castelo, esperando
uma nave espacial, um príncipe, um unicórnio, um beijo, um telefonema.



 Maíra Espíndola – Sem título



5

Atrás do quadro, no quarto 202 do Hotel Internacional,
está escrito: Júlia calculou os dias.

Os anos empunham escudos de bronze.

Perguntou pro tarô se obteria seu celular de volta ainda naquele dia.
O i ching foi mais preciso ao responder com linhas que diziam ser A ESPERA.

O tempo não se calcula.
O tempo exorbita em nossas cabeças.
Passa por nossos corpos, celulares. Passa por tudo. Atravessa.

O tarô e o i ching estão cansados de saber.



 Maíra Espíndola - Sem título



6

A esta hora inútil da vida eu deveria ter superado o ego e prestado mais favores a mim mesma.
Mas vá lá que nossos tempos andam loucos e ainda é permitido amar os covardes
ou fingir que todos são por pura complacência.

Digo isso de coração aberto, pois quem vem atrás tem o pau ereto
e provavelmente vai me foder na fila.
Ficar me presenteando com autoaplausos só me coloca mesmo numa posição difícil.
Principalmente com Narciso, aquele sacana.

O amar covardes faz parte do riscado. Afinal, cada qual com suas pedras.

Seguiria também dizendo dos tapinhas nas costas, mas já ando com a paciência em linha.

Provavelmente todos nós aqui (sem exceção) mimamos as escolhas, toleramos
os fetiches da personalidade e (repito: sem exceção) transigimos
do excesso para um exuberante egoísmo, para uma psique vazia e permissiva.

Chacoalha, indolente! Deixemos cair os objetos pontiagudos.
Não dá mais pra fingir que estamos desavisados nesse baile de máscaras.





Maíra Espíndola - Amerê Nitió



7

Indo de encontro a um instinto de sobrevivência atávico
o homem perde a capacidade de se reproduzir.
Talvez até como resultado de princípios lançados pela própria terra.
E em suas verduras o homem vai ingerir seu castro.
Eu não sei se é possível. O que precisaria acontecer pra ser possível?
O louco é ser concretizável.
Nesse mundo projetado eu nem consigo usar meus olhos, pensar direito.
Plantar sementes no oco do planeta, mijar e marcar territórios na História? Se multiplicar?
Seria como se o suicídio, que é exceção, fosse a regra.
Uma regra impingida pelas nossas células cansadas desse pastiche.
E o nascimento - objeto de tanta adoração –
perderia sua motivação e não existiria mais.
Nunca mais.





Maíra Espíndola -  Nheengatu Y



8

Um tímido comunicado roía aquela sala.
Embrulhado em silêncio de celofane mudo.
Eu não podia falar mais palavra.

Já esgotara o ouvido e humor alheio na tentativa desesperada de comunicar meu amor.
Obviamente equivocada.
Talvez triplamente. Sendo que:

1) o amor não se comunica com o verbo;
2) o receptor mal conhece do assunto;
3) imagino que seja cedo demais pra abordar a essência absoluta da existência.

Só tomávamos um café.
Mocaccino além das expectativas. Fazia o silêncio derreter nossas línguas.

Claro como um fruto do cacau
derramando sementes cheiíssimas de tegumento: não era nada recíproco.
Nem o tempo, nem o amor, nem o mocaccino.

Sendo que:

1) mocaccinoé feito com café na mesma proporção que o leite espumante, chocolate ou calda de chocolate, e eventualmente coberto com canela;
2) o receptor mal conhece do assunto;
3) creio que seja tarde demais pra abordar as delicadezas do pensamento de uma cozinheira.

Só silenciávamos sobre o amor.






Maíra Espíndola
- Graduada em Rádio e Tv e pós-graduada em Imagem e Som, trabalha na área de criação e produção cultural desde 2000, utilizando diversas técnicas e matérias. Compôs equipes de produção de curtas metragens, programas de tv, assinou design's, publicou zines e textos, poemas e  prosas, produziu cenografias de shows, espetáculos de teatro e dança, projetos de iluminação, performances e exposições. Tudo isso ainda com o microfone nas mãos no palco da banda Dimitri Pellz, rock sujo e vermelho produzido em Campo Grande/MS. Realizou sua primeira exposição solo como artista plástica em 2010: Queime o castelo! Contos de fadas reeleitos e colagens digitais, no MARCO (Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul). Em agosto de 2011, a segunda exposição solo: 10 mandamentos, que foi montada no SESC horto, também na cidade de Campo Grande/MS. Assinou a cenografia do espetáculo de dança Me=morar (2009), contemplado com o prêmio Klaus Viana, e do espetáculo dirigido por Nill Amaral: A serpente (2010), que circulou pelo SESC Amazonas das Artes em 2012. Em 2013 morou na cidade de Belém no Pará e lá encapsulou ideias que geraram mais uma exposição: OM - obra colética, assinada em conjunto com mais 4 artistas de distintas áreas de atuação. Como inquieta mente pensante nunca para de criar e num futuro próximo pretende ser astronauta.

Site: http://www.mairaespindola.com/.



ROBERTO BOLAÑO POR NATHAN SOUSA

$
0
0







ROBERTO BOLAÑO E O IMAGINÁRIO DO ASSOMBRO



Quando todos pensavam que o boom da literatura hispano-americana, com o seu realismo fantástico, teria chegado ao ápice através da consagração de autores como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, e, consequentemente, que esta riqueza literária contornaria sua rota em direção ao declínio, surgiu a figura de um escritor e poeta chileno, que morreria precocemente aos 50 anos de idade, ganhador dos prêmios Herralre e Rómulo Gallegos, que deixaria uma obra decisiva para a ficção do século XXI: Roberto Bolaño (1953-2003).
Seus livros são marcados pela consciência de que o mote do que se escreve serve apenas como instrumento mediador para que se possa encontrar o não aparente.  O tudo e o nada formam um amálgama constante nas narrativas do autor de Estrela Distante (1996), Detetives Selvagens (1998), Noturno do Chile (2000) e Putas Assassinas (2001 e 2666 (2004), para citar aqui algumas das suas obras mais conhecidas. A constante relação entre poesia e conflagração, o cenário violento, a ditadura em seu país de origem, o exílio, o amor pelos livros, a ironia e a tragédia da guerra urbana e social, a princípio, podem parecer elementos utilizados sem métodos adequados para formar a tessitura de cada história.
O autor faz uso do ‘falso fim’ para envolver o leitor na trama de cada uma de suas novelas. Trata-se de uma caçada a si mesmo, já que a memória nunca vem com a mesma amplitude e com a mesma nitidez com que se forma em nossas mentes.
Bolaño viveu toda a sua vida com sérias dificuldades de ordem material: foi preso pelo regime opressor de Pinochet, refugiou-se no México, vegetou, morou e morreu em Barcelona.  Provavelmente, na obra deste escritor, o leitor mais atento poderá observar uma questão crucial: saber onde está localizado o limite entre os gêneros. Outro limite exige definição: o ponto de distinção do que é ficção e o que é admissão do vivido.
Aqui, é preciso ter uma noção mais profunda do conceito de contemporaneidade. Procurar saber se o tempo atual está diretamente relacionado às condições sociais e históricas, ou se esta relação se dá em face da forma com que cada um consegue ver a si mesmo diante do outro. E, no caso do artífice da palavra, como ele consegue transpor esta percepção/sensação para o papel. Como ensinou George Lukás: “A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida”.
O autor seguiu à risca o caminho dos exilados borgianos. Aqueles que encontram refúgio entre as estantes das muitas bibliotecas espalhadas pelos países de língua espanhola. Bolaño não dispensou o caráter tradicional na feitura de sua obra em prol de uma tentativa desesperada de atingir a vanguarda. A leitura das primeiras páginas, de qualquer um dos seus livros, projeta o leitor para um mundo marcado pela forma incomum e jocosa com que o autor encarava sua realidade. Os recortes bruscos no texto, para serem retomados em momentos bem distantes, são outra característica comum em sua escrita. Inquietações, dúvidas e vazios são inseridos constantemente. Ele solta e controla as rédeas com total domínio. É autobiográfico em todos os momentos, sem medo ou culpa. Mas deixa bem claro que ninguém consegue ser totalmente sincero.



*     *    *

  





Nathan Sousa (Teresina, 1973) é escritor, poeta e letrista. Autor dos livros O Percurso das Horas (Edição do Autor, 2012), No Limiar do Absurdo (LiteraCidade, 2013), Sobre a Transcendência do Silêncio (LiteraCidade, 2014) e Um Esboço de Nudez (Penalux, 2014). É vencedor de vários prêmios literários, dentre eles o 2º Prêmio de Literatura da UFES e o 4º Prêmio Poesia Urbana-SC.







JORGE ELIAS NETO EM FRANCÊS POR FRANCIS JUIF

$
0
0









Brouillons de l'absurde (une sélection)

Rascunhos do absurdo ( uma seleção)

                                                              
Tradução : Francis Juif
Poemas de Jorge Elias Neto



Singulier

Au dernier moment,
celui de l'indéfinissable dernier geste,
le vieux poète relut ses vers.

Il comprit alors
qu'il avait manqué d'esprit.

Il n'avait couché sur les pages
aucune phrase inédite ;
pas même des brouillons d'hallucinations.

Mais,
à l'instant pérenne
où l'on fermait ses paupières,
se dessina un horizon
entrecoupé d'une
ligne de pierres brisées.

Une succession sans fin de regards désintéressés
bordait le chemin incertain.

Le poète dit alors :
J'en suis certain...

Je le sentis ensuite.
De moi restera... le regard.




Singular

 No derradeiro momento,
quando da indefinição do último gesto,
o velho poeta releu seus versos.

Compreendeu então
ter carecido de deslumbramento.

Não deixou no leito das páginas
palavras não ditas;
nem ao menos rascunhos de alucinações.

Mas,
no perene instante
em que se lhe cerravam as pálpebras,
delimitou-se um horizonte
entrecortado por uma
trilha de pedras marroadas.

Margeava o descaminho
um sem-fim de olhares desinteressados.

Disse então o poeta:
– Tenho certo...

Senti adiante.
Ficará de mim... o olhar.




Ventre vide

Le rejeton de l'autre côté de la rivière.

Et la rivière ferma ses chemins.

Certes les fanaux des étoiles
et le sifflement de la brise rasante,
dédaignaient la nuit,
faisant apparaître le gravier de la rive.

Mais c'était tout.

Au loin,
s'entendait le pleur s'essayant à un épilogue.

L'odeur du lange
fit accoucher la folie.

Il s'élança, mal à propos,
dans le courant.
C´était au tour de l'instinct.
Il savait que les eaux ne s'ouvrent
que dans les Écritures.

Le ventre vide
n'a pas de sexe.

Le lait perlant
au coin des lèvres affamées...

Mais la vérité labyrinthique
flottait dans la tension du vide.

Poète –
ventre à louer.



  
Ventre vazio

 O rebento do outro lado do rio.

E o rio calou seus caminhos.

Tudo bem que os archotes das estrelas
e o silvo da brisa rasteira
desdenharam da noite
assoalhando o cascalho da margem.

Mas era só.
Ao longe,
seguia o choro ensaiando epílogo.

O cheiro do cueiro
fez parir a loucura.

Lançou-se, num destempero,
sobre o caudal.

Era a vez do instinto.

Sabia que as águas só se abrem
nas Escrituras.

O ventre vazio
não tem sexo.

O leite esburrando
da boca faminta...

Mas a verdade labiríntica
pairava na tensão do vácuo.

Poeta –
barriga de aluguel.
  


  
La douleur de la coupure
  
J'ai violé le tombeau de ma mère
avant sa mort.

J'ai dilapidé ce qui était déjà décombres.

J'ai exigé d'elle les mots
avec lesquels je me lavais les cheveux.

Le mot « vérité » – par exemple.




A dor do corte

 Violei o túmulo de minha mãe
antes da sua morte.

Dilapidei o que já eram escombros.

Cobrei dela as palavras
com que me lavava os cabelos.

A palavra “verdade” – por exemplo.




Au sel

Le dernier pas – celui de l'aller.
Et il devrait toujours en être ainsi pour tout.

Les amarres restèrent tendues,
comme si elles ignoraient leur inutilité.

Le dernier espace resta suspendu
dans un lambeau de temps,

le doute du retour.
Et alors passa le terme,

et la jetée s'effondra, à genoux,
sur la vieille mer.



  
Ao sal
  
O último passo – o de ida.

E assim devia ser para todo o sempre.

As amarras permaneceram tensas,
como se desconhecessem sua inutilidade.

O último espaço ficou suspenso.

Num retalho de tempo,
a dúvida da volta.

E então passou o prazo,
e tombou o píer, de joelhos,
sobre o velho mar.



Imagem: colagem de Marcel Duchamp



 *    *    *




Francis Juif, executivo do setor das telecomunicações hoje aposentado, escritor de poemas e contos,  ex-cronicista literário de uma rádio parisiense, tradutor, mora atualmente em Vitória.



















Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR
                                               AQUI









'STIMPÂNQUE REMÍQSE / steampunk remix / por alexandre guarnieri

$
0
0






"I don't try to describe the future. I try to prevent it."
Ray Bradbury



uma caldeira multitubular - o discóbolo - cujos arremessos [Júlio Verne e Kraftwerk] buscariam o mais imenso rendimento [Fritz Lang e Daft Punk] da sua própria energia centrípeta [Georges Meliès e Thom Yorke do Radiohead]/ é movida a tantos pistões e vapores [Bjork e Prodigy] quanto um polvo mecatrônico administraria seus muitíssimos tentáculos de maquinário pesado [Moby, Babbage e Asimov]/ tornando o ar aquecido a mil centígrados [Robert Heinlein, Skrillex e Ridley Scott]/ há pura matéria elétrica/ agora desentenebrecida uma metrópole inteira/ por única obra deste parque de usinas sibilinas [Philip Dick e David Lynch]/ conglomerando aos milhões/ seus salões subterrâneos/ sobre os quais as únicas pistas são seus silvos que assustam [H.G. Wells, Hugo Gernsback e David Cronenberg]/ seus jardins de draconígenas chaminés brotando do solo/ em campos outrora agrícolas/ repisados por tantas máquinas calmas e nostálgicas sob o eterno céu cinza chumbo [Franklin J. Schaffner e os irmãos Wachowski]/ surgisse alguém, entre relojoeiro, disc jockey e operador de caldeira/ propusesse misturar as obras/ os mais sonoros nomes destes mestres-bruxos/ magos cujos trabalhos são o maná/ o elã/ o gás/ domesticasse geisers com hipotéticas válvulas basálticas/ misturasse o velho ao novo/ juntasse tudo e vice-versa/ na centrífuga/ no mais incrível mix do Pós-futurismo à Era Vitoriana (aqui&agora/ retrô&avant-garde) [da Belle Époque ao Apocalypse Now] fosse algum produto tido como original/ da fumaça emanada há séculos [Otomo, Shirow e Endo] surgissem processos modernos na fabricação das idéias [da trilogia Matrix à Odisséia de Homero]/ se finalmente publicassem o último poema épico de uma raça extraterrestre/ em clima de catástrofe sci-fi/ porque lido na língua dos deuses-astronautas [Eminem e Erich von Däniken]/ de seus ouvintes lhes explodiria os tímpanos ["Marte Ataca!", "War of the worlds" ou "The Day the Earth Stood Still" para Orson Welles]/ ah esse sim, dá asas à ficção especulativa!/ mas seria realmente o melhor clímax/ no caso, quase inextricável/ deste steampunk remix?









Imagens: máquina à vapor de Corliss, 1876



*     *    *





Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.

6 POEMAS DE STEFANO CALGARO

$
0
0






infância nua. fora de satã

quem escondeu os apócrifos
p/ que os vivos deixem
o saloonà nada mais que amantes
olhando a ambulância,
os dedos de Lino, convertidos
e feitos uma vez mais p/ caricias
q/ servem para adormecer
torpedos e pescoços,
lino sabe beijar – e dar através
do beijo a epilepsia –, ler o relógio
dos ponteiros e talvez
uma marchinha na ponta
da língua, q/ seu avô queima
no rádio aos melhores homens
desta cidade, aos homens antigos,
os detestáveis homens antigos
c/ cachorros s/ gargalheiras
e trampolim de pigarros
q/ só não são mais detestáveis
q/ os homens de agora
em tom de suspeita pela rua
descendo os últimos dias
nos chacos
onde alguém re
suscita
ensinando os mais novos
à jogar boliche e dar funções
aos dedos(,) c/ a dáctila,
as colheres, os apontadores,
as baganas emprestadas,
os apócrifos
e talvez algum tempinho
p/ acariciar marchinhas
de docas invadindo o
rio.




por muito tempo, ilustração

como rindo e como essa valsa
te coloca uma exaustão como se
colocasse um vestido e como se o vestido
fosse apertado e apertando os joelhos
daqueles que fazem cocegas atrás
dos joelhos
e bem na partezinha de cima
da panturrilha
e só há você e uma valsa
e essa exaustão risonha
daquelas que dizem como se feliz
como se fingindo
e como stanislavski diz aos seus alunos
para assumirem que como se estivessem
sorrindo pelo vento provocado
por uma queda de avião
do seu quarto
na sala de estar.




Cacos, essas formas de não

cacos ,essas formas de não,
as mãos se engolfando e se alando
quase querendo elas formar desenhos
de sombras, Amélia, grita e já vai longe
,morta, deixando os bens e as matronas
gritando, formando uma fogueira
no quarto do palácio, essas formas de não,
marcam uma nova era, era tudo que você
queria ver se formar, v e r s (e) o quebrando
ainda fura a mesa, ainda fura as gengivas
de um grito se formando,
rachando a cabeça dela, ela tinha,
ela tem fé de mais, ela(,) te tinha,
ele que ria a ma(-)la, não a boca dela
que ficou pra trás
ela ficou pra trás
formando desenhos de sombras
com a lanterna
(na terra
onde abunda
a pita)




manuel ribera retorna à ilha argentina para (tentar) se tornar seu suserano

oscilações ou notas breves
quicam
é tarde começar um diário?
rosto gasto e alguém vem limpar
esta casa-
o belo rumor florestal ou o perfume de cebola
você despertou bestialidades ancestrais
em cada um de nós, (e) suscitou monstros
te detalho um plano
que supõe espinhas
, talvez,
mandei à ilha Lin um ruminador
para sondar quanto de nós
ainda havia nos pedregulhos
à impedir que um barco
ancorasse.




Mudança

(I)

Estamos pensando se você realmente pensou primeiro
que o estaleiro pousou a carga no móvel aqui pensado

se eu terei coragem em afirmar com os dois dentes
se você contribuirá com todos os amigos dele
se ele roubou todos os nossos amigos em uma parada e
se os nossos amigos realmente tinham estrutura para serem amigos de alguém ou não

agora até mesmo pensamos
e se pudéssemos usar os amigos no genitivo

(II)

o nosso umbigo era sujo e não era dos mais bonitos
acho até mesmo que um piercing infeccionaria
e seria indecente

(III)

uma tatuagem seria indecente agora

(IV)

não ter dinheiro era indecente mas só agora

(IV)

estamos pensando agora em como eu tenho ficado corcunda
tenho ficado miúdo? tenho surtido algum efeito refratal?
-antes era em como eu tinha ficado muito magro
e ossudo                                                               -
mais tarde nossos amigos inclinam feito uma ponte
não nos esqueçamos de pegar as últimas notícias
as últimas notícias
para enrolar as louças

(V)

a mudança vem no feriado


(VI)

o feriado é bem possível que caia numa segunda
e seja sustado

(VI)

se possível eles vão quebrar toda esta sala
sem mover
um músculo

(VII)

a única certeza é
nos embalar feito a louça
nas ultimas notícias




tuckoo

coriza linda, nome de programa
ao ar às 9, buscaremos adentro
das caves míticas as dúvidas,
os amores, o primeiro livro dos
amores, e tudo que te fez empacar
palavras o gaguejar adentro em nível
de solucionadores de aritmética
,o que nos importa
de capote e colarinho,
são as dúvidas que te emplacaram
na faringe e ficaram retidas
com a mucosa, numa pasta
grudenta de hesitações
que ligariam nomes às ações
na praia: Stephen jogado no lago
à buscar bacalhau e a beleza, sonhando com
a morte e a família na morte,
queremos achar na tua mucosa
as sementes pensadas da morte.






Imagem: colagem de Mariana Liberali 



*    *    *





Stefano Calgaro nasceu em Porto Alegre (1991) e mora em São Paulo (pode-se considerar radicado em). Escreve no lerfamu e colabora esporadicamente na revista posfácio.










A POESIA DE ISABEL MENDES FERREIRA [PARTE HUM]

$
0
0



SELETA DE







e volto. com outro silêncio mais loba mais árabe menos faca antes farpa outro vestido a mesma capa. fui ao deserto. nasceu-me um filho. da terra vermelha. da terra sanguínea. da pele vestal sou agora outra muralha desabituei-me da planície. fiz-me à montanha. galopei-me. voltei. mais secreta. menos incerta. menos asa. mais de areia. menos perguntas. menos respostas. de esporas. quero menos. quero agora. só agora voltei. muitas mortes muitas viagens depois. para lembrar o que não esqueço. tudo o que trago nos traços da pele. lama. perfume. finitude que me cega claridades de cal. e me afoga todos os afagos e cala as palavras e descola os gritos. como placenta como raiz. voltei para acordar do automatismo. do esboço. do risco. do retrato. do adjectivo.
voltei. estou aqui. igual. diferente. menos macia. mais árida. menos ávida. como se ao contrário. redonda. aguda. crua. menos gata mais gasta bruta dupla contra o vento. metade dionisíaca. metade socrática. e volto.




*




elegia _____________________

sempre que regressam as dúvidas são sempre outras. irrepetíveis e moldáveis pela diferente respiração de outro momento e ainda outro. mesmo que no mesmo instante. somos tão pouco no diário da vida fruída.

por isso me aguardo na ilusão do inverno que é prisma e drama estalactite e agonia. dissonância quase amável de todos os contrastes.

__________________"É-me interdito conjugar todos os verbos."________________




*




da viagem secreta ao fundo do coração trouxe um sono vertiginosamente profundo. a água e o ópio a ausência e o ritual a epígrafe e o punhal a prece e a pressa de partir. amadureço este inverno que é segredo. e o óbvio é uma oração em rodapé.




*




há em cada pastor a influência do deslumbre do pasto . como se o encanto fosse a flor e o rio um afluente a correr ao contrário da sede que é sempre mais seda que o fio que nos estala.

somos de tanta água que te faço fonte para sempre. acolhe-me. escolhe.me. resguardo-te. sem a alquimia dos milagres. com a prata que é o meu sangue..




*




pode o excesso ser belo na cegueira da luz perguntava o pastor ao rio que não corria. e das sementes pascoalinas apenas um grito. que não.
nada do que é infinito se fica pela esfera que sendo centro é variação em linha recta. também._____________parábola das assimetrias convergentes apenas por um golpe de ouro.
somos peregrinos de um refúgio. tatuamos a água no dorso.

e o pastor seguiu pela estrada do mar. divinamente cego.




*




a sombra é a pedra fosforescente. única e visível parte de um todo que relevo.
como jóia ou substância.
papel de veludo.
a desnudar o invisível.
são de claros e escuros os teus olhos. declaro.
para amanhã ser. amanhecendo-te um ser liso e vegetal.
segredo côncavo. na planura da lucidez. alimento feroz de todos os silêncios. pedra. e terra. nascentes curvas. que te esgrimo. na candura dos dias. em desordem.
e

/um sulco. um nome e um adeus/
assim . em fundo. ao fundo.
uma frágil navalha. a colher a saliva. a mudar os cantos da melancolia.
/não de fera/________. chaga ou escama
um sulco. mordente. mordaz.
_________________________ouço o respirar!




*




barco dos milagres. explícito nas perguntas. remos que à proa de mim não são farpas antes a hora da sombra. claríssimo brilho do passo certo.
a música é a planície a casa a fonte o mar a chegada.
chego.nos. devota de Joyce.
caligraficamente vazia.
na metade do dia. do amor.




*




daqui não partem. antes chegam navios como braços.
amarrados a um destino de névoas e de lâminas. como fado
ou luminoso adeus adentro da música..
aqui só o silêncio indígeno que prende a alma ao corpo e este à sombra.
____________________embate de universos dentro de pequenos barcos. como estrelas ou antúrios.
__________________trânsito cego no mar amoroso que sangrante e febril é alegria e cartilagem de ave.
daqui não partem. aterram ossos.
ascendem anjos. mudos. falsos navios no olhar. narrativas de escarpas .
muros que não desvendo.




*




nada ressuscitará. nem a montanha. apenas um breve
desmaio. de minúsculas ervas. de poeiras. sem espelho.
e tudo se liga tudo se completa. em múltiplas gradações de uma geografia labiríntica. que não decifro. antes crio.
re.crio. re.inicio. como se sibila fosse não sendo rosto nem ruga nem mapa de areia. as coisas estranhas estranham-se pela metade visível. breve asa de búzio amazónico.




*




emagrecer o movimento que enche de surpresa as mãos cheias. de fascínios e desígnios. desenhar um caos ao mesmo tempo dócil e desamparado. encostar a porta ao espelho das águas. silenciar a tua mão no meu peito e depois lançar um pássaro de ópio à terra. não querer voltar a ser outro porto. perder todas as chaves. e deixar o riso ladrar como animal. fome de folhas. feroz fulgor dos contrários.
_________________._______________________
(em desfeito pano de sons e poeiras. pontos redondos na anca do sono. onde a natureza é cometa e declive.) e o contrário continua a ser
uma frase de entendimento. aberta à essência dos conflitos.




*




na terra da harmonia essa a que te rendes como pátria solitária apátrida de in.chegadas. dizias narrando-te o céu em paralelo de oitavas baixas e davas-me assim a mão por entre a ramagem de um adeus. com palavras de ferro e olhos frágeis. vão sendo dispersas as cintilações do sono e escassas as linhas cintilantes. o perdão é uma aresta do tamanho de uma carta onde me rasgas letra a letra que se fazem de fumo. entranhas-me a lisura de uma cicatriz sem cura. e o perdão fica em queda livre. para que amanhã seja síntese e resistência. ou apenas música.




*




há uma criança profunda e implacável sempre que as fibras do teu corpo de areia se desenrolam em nascentes sibilas e tristes. como a floresta em dias de bruma e em noites de colher pérolas índicas. tudo se abre e fecha como elemento supremo das marés. é a velocidade da vida. poderosa e absolutamente mínima. há uma criança veloz dentro dos teus olhos de monge. predominância do fogo.___________desmesura de naufrágios em cada partitura.




*




sob esta luz dulcíssima do dia que é luz de planos inclinados coisa de antanho como ouro ou fogo estou. em livro de excessos e fonemas de sombra estilhaçada. é uma reconstrução dura árctica às vezes metálica e altiva mas tão só de parecer. nada me é mais provisório que a estrada. e nem a música das imagens faz de espelho. estou de cal. e sublinho-te. em marca de hóstia. qualquer agonia é mais que a mimética dispersão do devir.




*




fosse este mar capaz de te ser ilharga continente mapa sem naufrágios. água da minha sede. sede de uma só morada. nudez nupcial e núcleo e passagem. este mar de rompante a ser penugem e nome de oásis. olfacto oleoso doce e pacífico no entanto a norte do meu olhar. nascente e morrente prolixo e pretexto de chover no teu peito em pigmentos de luz e sombra . fosse este mar o único pormenor persistente e personagem da ida sem volta das voltas sem prazo. e eu barco. e eu perpendicular no pino de um pretérito sempre presente. sem correntes nem ressonâncias. apenas renascença. deste mar.






*    *    *






Isabel Mendes Ferreira (1954- ) é escritora, poetisa e pintora, natural do Montijo. Publicou os livros de poemas "Sobre as Ervas um corpo de Junho" (1982), "Um Nocturno de Bach e um Relâmpago no Olhar" (1983), “Um Corpo (sub) Exposto” (1983), "A Pele", “Ponto Final”, “Cantochão” e “Vermelho Doce” (todos de 1990), "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar" (2010) e "Tempo É Renda" (2014). Foi cronista no "O Jornal", no "Diário de Notícias", no “Diário de Lisboa" e nas revistas "Guia", "Activa" e "Tomorrow" e ainda Copy Writer nas Agências de Publicidade, Sistema, Ogilvy, Cinevoz, Boom and Bates, entre outras. Na Pintura, expôs na Galeria Altamira em 1985 e em 1987, no Clube 50/Espaço. Ainda nesta galeria e no mesmo ano participou numa colectiva. Em 1988 esteve presente na "80 Anos de Arte Moderna Portuguesa", na Galeria São Bento e numa individual na Galeria Interni. Isabel Mendes Ferreira está representada em colecções particulares em Espanha, França, Estados Unidos da América e Brasil. E em Portugal.  Ainda são seus os textos do Livro “IMAGENS”, de Dina Aguiar e as ilustrações do “À Mesa do Amor”, de Joaquim Pessoa.



Viewing all 5548 articles
Browse latest View live