Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live

Com Ana. C. - Davi Kinski

$
0
0
Ilustração: Gilad Benari


Hoje chorei
Até o que
O jazz
Não contou
Nem senti
O cheiro
Do Intimo
Dos dias
No desfolhar
Dessa estação
No delírio
Desse momento
No desaguar
Desse instante
Vou soando
Esnobando
Teu balangandã
Touchscreen
Que de sensível
Não tem nada
E vou
Entonando
Desbravando
Vou safando
Me esfregando
Uma dia me
Safarei
Um dia
Serei um safari
E seduzirei
O desejo
Como um toureiro
Em Sevilla
Com as facadas
Dos dias
E sangue
No vento  
Fincados 
Nos olhos
Da Guanarbara
Do you understend, my friend?
Diário
Não desgastado
Confessionário
Selvagem anuário
Do silêncio
Engolido
Atrás do armário
E mergulho
Em todos
Os becos
Do espanto
Sempre atrás
De você
Sempre por trás
Do verso


Davi Kinski



Poema de Delírios Atlânticos, inédito.

Poema de Diego Fracari

$
0
0
Robert Mapplethorpe, Self-portrait 


quando uma pessoa morre 


quando uma pessoa morre
que não pensam seus pares?
o caixão fecha e vão-se
todas as certezas
à boca dos vermes e das cobras
e baratas e flores
carnívoras

o sol brilha lá fora
entre as montanhas
no alto das montanhas
e, à noite, esconde-se
na eternidade do amanhã

sopra uma brisa entre os convivas
entre os convidados
uma mulher chora?
deixaste uma mãe?
cavalheiro
abotoado em teu terno
tua barriga roncará as
tuas crenças todas
na cama
ao ouvido dos que ficam

dormes um sono sem vestígios
campos repletos de papoulas ou de
nada
é o que sonhaste enquanto os ciprestes
foram chapéu de outros

hoje não sonhas
hoje o que se volatiliza no
íntimo de seu ser
são os gases com que um homem
                        morto 
 chamado Dante Alighieri descreveu o Inferno

o que fica e sempre ficará
é um relicário de sobrenomes
                    de tentativas
de beijar o imortal com graça
                   de meras vanidades
e de objetos cujo destino
         desfila
mais tempo que ti com os de cá

ouves os risos?







te enganas
as pás golpeiam junto aos pés
dos que ainda andam

que farás agora?

quando uma pessoa morre
o caixão fecha e enterram-se os anéis
e os dedos
e os atos das mãos
desfilam
como objetos pertencentes a outros, cujo destino
não dura mais tempo que o teu

que faremos agora?
em sendo que uma pessoa morre
                 e quando?

visitamos o mistério
e o honramos
dia após dia
noite após noite
e a lua consola-nos e muitas vezes
tira-nos para dançar

quando uma pessoa morre
que não pensa esta pessoa?
no seu jeito subterrâneo
tardio
inexistente
infinito de pensar



Diego Fracari é poeta e vive na cidade de São Paulo, onde cursa Letras (Português-Russo) na USP. 

Diego é meu amigo. 




MAÍRA FERREIRA POR GERMANO XAVIER

$
0
0






Os versos grávidos de Maíra Ferreira
“os velhos que um dia
seremos estão pedindo
perdão”

Excerto do poema face a face, de Maíra Ferreira

Maíra Ferreira é o nome da poetisa que estreia sua inaugural fatalidade no mundo das palavras impressas. A PRIMEIRA MORTE é o nome do livro da poetisa e é também o nome do poema que abre seu livro de poemas: “quando era criança tinha um medo/de borboletas como quem não suporta/tamanha delicadeza desde sempre”. Poema-fala de uma grandiosidade perigosa gerada a partir do que é sutil e mantido entre ternuras.

Figuras infantis brincando de ofuscar nossas fatigadas vistas são encontradas nas ladeiras que as estrofes não ousam subir nem descer, como em “entre os instantes e eu vejo pensando que é tudo/na verdade simples e o mundo é no fundo/isso mesmo só isso tudo isso”.Melhor deixar tudo intacto no meio do percurso. Esplendores alheios fazem o papel dos arruaceiros derrotadores de silêncios e iconoclastas.

Cantos de erros em datas importantes que maculam as imensidões, tal qual no trote “e logo é tarde e já se perdeu tudo/o que nunca se teve”. Parece poesia feita em rota marginal, apesar da nítida presença dos saberes universais de ordem. A veia de Maíra discute a pressa das horas sem construção, a vida gasta sem ter motivo real. E pede autorização para romper cada vez mais.

Poema lindo é “pequena princesa”, versos com sal. Referências depostas e provadas no abrir das rimas inexistentes, o livro de Maíra é um exemplo de paraíso caótico. Cada poema é uma viagem, cada um é uma chegada e cada qual uma partida. Somos atingidos. A poesia vence no final da escaramuça, eis a única certeza que o desavisado leitor tem logo no passeio das páginas primeiras.

A palavra como artefato. Arma para dizer, mesmo que nada se compreenda ou mesmo que nada sofra incorporações. A PRIMEIRA MORTE dá vida a uma voz nova que tem vez no singular mundinho das frases quebradas com sanha que todos os poetas inventam de inventar. Outra coisa: poesia que debocha e quem ri não é o leitor. O leitor antes sofre sabendo-se infame e partícipe de todas as peripécias devotadas. O leitor dessas primeiras mortes de Maíra é parte do cortejo. O funeral é de espantos.

Assim: “quando me perguntarem vou ser/completamente aberta/horrivelmente honesta/e por isso aviso/nenhuma verdade vai sair/de mim”. Maíra Ferreira, pois, é o nome da poesia que tem autoridade para ser inaugural, não decepcionar e, ainda mais, para ser horizonte no universo das palavras que mancham papéis de preto em tipos misturados. Falseia tudo cobrindo os equadores (centro) das coisas com o limão das bocas em ira. Palavras grávidas: logo nascerão outras de seu ventre. Favor, não duvidar. Favor, desejar.



Imagem: pintura de Margaret Sarah Carpenter (1793-1872) 



[resenha publicada inicialmente aqui]


*     *    *




Maíra Ferreira (carioca de 1990) é formada em Letras pela UFRJ. Já colaborou com diversas revistas literárias (Portal Cronópios, Plástico Bolha, Polichinello, Parênteses, etc). Vez ou outra, posta em maira não mora mais aqui. A primeira morte é sua estreia em livro.

LEIA MAIS POEMAS DA AUTORA









Germano Viana Xavier, 30, é mestrando em Letras pela Universidade de Pernambuco - UPE e pós-graduando em Ensino da Língua Portuguesa pela FAFICA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru - PE. Possui graduação em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB e em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco - UPE.Blog do autor.

6 poemas de Paulo Bentancur

$
0
0

Ilustração: Konstantin Karrr



A MORTE DO ÚLTIMO ANJO


O rosnado vem do céu
fustigado pelo vento
e a ameaçadora
queda da água: cachoeira
nada natural, represa
rebentada nas comportas.
As calçadas feito um Hades,
os fios de alta tensão
indo ao chão como as árvores.
Voa o lixo, voa à frente
a roupa dos naufragados,
esse voo diferente
de formas que se dispersam,
imersas no alagado.
Em penumbra apagado,
o sol já nunca mais quente.
Todos surdos, todos cegos,
fortes, fracos, essa gente.
Na igreja resta um padre
– vinte rezas, uma vela.
A hecatombe a chutar
nas vielas a paz, um cão
que agora uiva, ulula

trêmulo na tempestade.




A CABEÇA ABAIXO DAS NUVENS


Claro que não ando com a cabeça nas nuvens
Nem raspo o rosto ao rés do chão.
Subo escadas, desço até o porão,
Nada que gere vertigens nem me soterre.

Minha ossatura experimenta o equilíbrio
Permitido pelo que é natural, nada de
Corda-bamba que não nasci para equilibrista.
Andar sem o bambo ritmo dos bêbados,
Avançar à frente na certeza de não tropeçar.

Que mais eu quereria, numa hora em que espocam
Carnavais, torcidas organizadas e sua violência como uma efígie,
O trânsito de carros alarmado em suas buzinas, o de gente
Se debatendo nas feiras de liquidação?

Não. Não ando com a cabeça nas nuvens. Cada passo
Merece de mim o atento olhar antes de mover-me. Assim,
Não caio do prédio. Tão simples como o vento da primavera,
Conquisto metro a metro, vida a vida, esse tempo que é meu.




URBANO


A cidade abre-se em luz,
fecha-se na sombra
reduz meu olhar
se não a ouço.
Mas seu tráfego grita.
Sua gente agitada
imita o tempo sem música
e eu escorro lentamente
na direção desse mar.
Sou um afluente
que a avenida recebe,
incorpora em seu leito
e nas tardes de um sol poeirento
escorro no fluxo do cimento.
Da Zona Norte ao Centro
são trinta quilômetros.
A cidade é grande.
Sou um homem que a leva no bolso
sob a forma de um endereço.



Ilustração: Konstantin Karrr



A CASA


Ela nos expõe a si mesma
Nos esconde do mundo
Se vives numa casa, encolhido dentro dela

A casa são paredes, tijolos, cimento,
São ferros, vidros, fios elétricos
Sem cheiro de terra, sem as nuvens

Nela entra um pássaro e fere-se
Contra a vidraça. A grande gaiola que te protege
De ti mesmo.

Lá fora o mundo, feito de milhares de formas,
Incontáveis seres, mergulhado no voo da beleza
Cresce cada vez mais.




SAPATOS


Há vidas inteiras sem
Que caiba uma só imagem
E alguém se exige o desenho
Por se desejar homem inteiro

Devoram-se os anos e nem
Dão-se conta as súbitas décadas
Tombadas feito esse pó
Tão plácido sobre a cadeira

Eu que vi inumeráveis bichos
Plantas de que nem sei o nome
Eventos como tempestades
Tive orgasmos, esperanças, fome

Eu que pressenti a vinda
De coisas com que se brinda
Qualquer instante, por supremo
Não sabia do encontro

Pensava estar ainda
Despido dessa espécie
Rara de acontecimento
Que me revelasse um fato

Dei-me de repente em pé
Sabendo até que era assim
Que de mim brotava, sendo,
Só vestido de sapatos

Os pés magros, destemidos,
Urgentes porque pedidos
Atenderam todo ato
(Bastou calçar meus sapatos)

Então me vejo enfim feito
Dessa floração. Me ergo,
Coroo os dias, corro matos
E singro bairros sem-fim

É só calçar meus sapatos.




DESTINATÁRIO


Só eu me escrevo. Nunca
sairão do papel as palavras
que ali se inquietam
e me ajeitam sem gravata.
Só eu me creio.

Envio e-mails a dez por cento
do que recebo, e é muito.
Floresce no poema, erva daninha,
a linha de que me esquivei.
Só eu me crio.

Crivo de cravos as mãos
de um não-Cristo disposto
a carregar a pesada obra, e então cobrar
copirraite de mim mesmo. Afinal,
só eu me leio.





Paulo Bentancur nasceu em Santana do Livramento, RS, em 1957 e mora em Porto Alegre. Tem diversos livros publicados em vários gêneros, destacando-se em poesia com Bodas de Osso (Bertrand Brasil, 2005), Prêmio Açorianos de Poesia de 2005; contos para adultos em A Solidão do Diabo (Bertrand Brasil, 2006), e infantojuvenil com Três Pais (Saraiva, 2009, 5ª edição), Prêmio Açorianos de Infantojuvenil 2010. Foi jurado do Jabuti em 2004 e do Portugal Telecom em 2012. Ministra oficinas de criação literária 
site: artistasgauchos.com.br/paulob

13 poemas de Carla Diacov

$
0
0



vi a maçã caída na barra do vestido da menina
a coisa ao meio
era amor e era terror
e era sarcasmo infantil
o domador e o leão
abobalhados
a menina ao meio
chorosa
ao meio
sorria
não poderia ser e era
como da primeira vez
da primeira divisão
da primeira noção de espaçamento
e era
era de ver
as sementes todas estavam e estarão

era de ver
e era do amor





uma metade disfarçada da outra
a cicatriz tomando horas
a meia-vida de uma ordem toda
os meios
os meios e a chaleira gritando as honras

há uns dois ou três torrões eu não choro





insistem essas boas lições a se tirar de tudo quanto é 
jarro 
chegar ao fundo da coisa 
esvaziar-se 
conter 
tolerar 
senão 
a última gota 
derramar e derramar-se 
enfeitar, fazer as funções de vaso 
e 
enfeitar 
fazendo as funções de vaso perdidamente restaurado







o ajuizamento do sal entre os dedos dos teus pés
e cascas de moluscos desistidos
os ombros e os braços de uma baleia morta
inédita descabida
assoviada inédita renascida mentira
como uma mentira inédita
delicadamente colocada a ser um chapéu bonito
um polvo na cabeça da menina
EU DESEJO SER HOJE
TUDO QUE FIQUEI DEVENDO ÀS MINHAS UNHAS
mentira
mentira





manter sobre a cama
um bocado de alpiste
também um tanto no chão
e desenhar a propósito do mundo que tanto se fode
carecer de orelhas
até cansar os lóbulos
evitar as janelas nos dias santos
procurar por penas atrás dos móveis
manter sobre a cama
a radiação da cidade





um mamute retorna de seu trabalho
mapear um intervalo de poeiras
dirá
das dificuldades em manter uma linha aqui e outra ali
deitará sua massa no mato com baunilhas
sentirá esse sono que todo homem sente: um mamute retorna de sua era.





tira dos cabelos a folha seca que 
se manifestaria
delicadamente
és um cavalo selvagem dentro dum vestido arrendado





teria a apagado dos olhos
coubesse a casa vermelha 
sem os meus azuis
era diabólico
o vaso deixando transbordar a planta
a varanda da casa vermelha
uma só telha 
desafinada de tudo o que era a casa 
teria pagado com os olhos
seria a casa vermelha
sem meus azuis
faríamos anos
faríamos nós
seríamos bois





de ocupares vazios
que os pés e línguas das gentes desamparam
porque aí
e pôr sem cessar
te vestes e avista ao que te vestes
como o escultor que obreia o barro ou a pedra sob o oleado
choras
choras todas as tuas misérias e aflitas fortunas
o que faz de ti
adorável chorona que lacrimeja verdes biografias onde não haveria ao que. onde nunca.

e as gentes ainda a comungar o pão.







O próprio sortilégio já pousa o farfalhar da coisa: 
Digo que digo aos estímulos mais eróticos que isso é uma asa capada do corvo, mas esse tom de animal algum, esse de fêmea acidental, tons, escapam-me à pena máxima: 
Vê? Digo: 
Vê. E digo: 
Negro Pouso de quem vê.





após o aluvião da cor machodominante
marmorizou o plano
mais tolher que impregnar 
mais tolher que impregnar que
e em não caber dos tantos ao quê tolher da pele os óleos
tolher da pele os óleos tolher
ajeitou a franja
desencaixou da mudez 
os olhos
pousou-os 
flácida
ao colo do pano
cobriu um, sufocou o outro
vedando assim, os próprios reprochados ângulos e desenganos.





fecha-se a porta o comportamento da porta
quem vê não olha deste lado bufa e vê
baça é a maneira de ralhar com
as fibras da porta
uma mulher uma leoa uma gestante
a gestora das sombras das piadas amanhecidas
daqui até ali parando e bufando até aqui rindo
na rua bufam passantes e o vendedor de espelhos
ela bufa
uns gestos conseguem atravessar a barreira
bufa
barreira bufando até aqui e chora
atravessam e aqui estão
uns bibelôs baratos
uma barata de vidro um camponês depravado
uma lâmpada com uma barquinho dentro 
bufa um novo continente orquídeas carnívoras
e agora sim
fecha-se 
janelas 
o comportamento delas
chove muito e a mulher sente o vendedor de espelhos
tão colado à porta quanto ela
bufam corações do mesmo hálito gregoriano
um dos espelhos sugere uma consternação mais capacitada
e um cachorro deitado abaixo do primeiro 
degrau de azulejos escorregadios





quando palha
palha de aço
e ser o homem esfregando uma minha ideia
vestida de homem
com um lápis mole entre as pernas:
tenho o dom da palavra quando cheiro os teus dedos
tenho o dom da palavra quando cheiro os teus dedos
tenho o dom da casaca


Ilustrações: Renée Hoekzema 




soucarladiacov. de qualquer forma. não me importa tanto ser. e também vou e volto e babo durante. nasci em São Bernardo do Campo (09/04/1975) e moro em Itanhaém e brinquei na praça-dos-meninos em S.B.C.. morei em Londrina e ela em mim. fiz teatro e me desfiz. então escrevo e sei que vou, mas volto. de qualquer forma. e gosto tanto de pão de fôrma com amendocrem. de qualquer forma, que é como eu sou, mas volto. babando. agora dei de bulir com as plásticas também. e elas comigo. sei que vou. sei que volto. sei de mim, parada, medindo os dedos, os meus e os dos outros.
(neste endereço, todos os links para as gavetas da cômoda:  http://nichosdamortaquasemenoria.blogspot.com.br/ )

"MAYA", POEMA DE JULIANA HOLLANDA

$
0
0





a ilusão é uma fada caduca
falsa diva hollywoodiana despencada
musa desgrenhada
sem inspiração
e é cruel, a danada: 
brinca com fogo,
acende fagulhas apagadas
e deixa a gente se queimar sozinho
na fogueira das inquisições,
um calvário de dúvidas roxas gritando na cabeça
auto-terrorismo bem planejado,
talco cheiroso inflamável
e a gente se manda e não tem jeito:


quando se manca 


é quase tarde demais



[2006]




Imagem: colagem de Mariana Liberali 



*    *    *





Carioca de 1978, Juliana Hollanda atua na poesia desde 2005 (CEP 20.000, Ponte de Versos e etc). Além de fazer parte do trio de poetas "Madame Kaos" (com Beatriz Provasi e Marcela Gianini), também compõe a dupla "Ju & Juju" (com Justo D'Avila). Possui três livros publicados: "Acordei num Iceberg" (Ibis Libris, 2008), "Entre sem bater" (2010) e "Vertentes" (2012), os dois últimos, independentes, editados por Tavinho Paes para a coleção Heart.Action. Atualmente trabalha em “Juju in the Box” (a ser lançado em 2014), também em parceria com Tavinho Paes.






3 POEMAS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

$
0
0




celebrar a vida


acordo, vou ao banheiro. olho meu rosto no espelho, me assusto: estou inchado, os olhos injetados, pareço Muamar Kadafi, estou com a cara de Muamar Kadafi, e não é o Kadafi jovem, confiante, cercado por um batalhão de seguranças altas, belas e búlgaras, mas aquele do fim, que apareceu na TV, perseguido, assustado, capturado num buraco de esgoto e linchado sem piedade. é este Kadafi que o espelho me mostra hoje.

vou para a rua, vou celebrar a vida. agora estou neste lugar, e meu carrinho prateado brilhante trisca o piso brilhante, avança, corre, derrapa nas curvas. as prateleiras brilham e eu celebro a vida. café do ponto a 9,99. antigamente batia um cheiro gostoso de pó de café quando eu passava por aqui, não mais, agora eles embalam a vácuo. não posso me esquecer do requeijão, do detergente de pia. oferta: camarão congelado a 39,49; isto é oferta? as prateleiras brilham. um casal de velhinhos presta muita atenção nos preços e discute sobre cada produto. será que a vida toda, deles, foi assim? oferta: azeitona verde fatiada 155 gramas a 6,99. sou feliz. esqueço minha cara de Kadafi. oferta: papel higiênico neve, pacote com doze unidades, pague onze, por 14,39. água de coco, vinho, achocolatados. oferta: cerveja importada irlandesa a 9,50. fico tentado mas não levo. ofertas: pão integral light, macarrão italiano de grão duro, abóbora japonesa descascada. sinto, em minhas entranhas, o privilégio de estar vivo. a música me embala e me conduz. eu derrapo nas curvas, eu batuco no carrinho prateado. Chico Buarque manda que o irmão pegue o avião, Bob Marley manda que eu me levante e me erga.




p/b


será por causa das fotos, que as memórias da infância às vezes vêm
em preto e branco?
que me vem em preto e branco o mundo que eu via, da janela do banco de trás
do Gordini marrom, que numa longínqua tarde de domingo subia resfolegante a Anchieta, na volta de Santos?
que me vêm em preto e branco: o cheiro de queimado, o motor fervendo, a fumaça, o carro parado no acostamento, e
eu sentado, ali, numa pedra, olhando, pensando, esperando o tempo passar,
enquanto meu pai, gringo, alto, de bermuda cáqui e camisa xadrez, abria a tampa do motor, do qual ele nada entendia, e coçava a cabeça, enquanto a mulher dele, de vestido florido, óculos escuros e lenço na cabeça, lamentava aquilo tudo?
daquele domingo não restaram fotos. por que será que estas imagens vêm para mim, agora, em preto e branco?



  
conversa


da maneira como eu me lembro, a estrada seguia numa quase reta, orientada suavemente à esquerda, para depois, uns mil metros adiante, fazer uma curva à direita e, em seguida, serpentear, serra acima, numa sucessão de curvas, deixando entrever, por vezes, as altas torres com as hélices das usinas eólicas, do lado esquerdo, e o paredão da montanha, do lado direito, repleto de pedras brancas, banhadas pela luz do sol do fim de tarde, quase ofuscando a vista.
e eu, da maneira como me lembro, dirigindo, com cheiro de laranja nas mãos meio meladas (das laranjas consumidas na última parada).
e nós, eu me pergunto: o que será de nós? agora que esta conversa se prolonga, e seus olhos transmitem raiva, e dor, e rancor? e não é voluntário, eu apenas não posso evitar que, enquanto sua voz se eleva, insistente, à quase estridência, eu viaje e me veja, e nos veja, novamente, naquela estrada, serpenteando serra acima, olhando ora para as hélices da usina eólica, ora para as pedras brancas e ofuscantes da encosta da montanha, e as mãos grudentas cheirando a laranja.






Imagem: Kadafi em ilustração de Gian Paolo La Barbera



*    *    *





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Há pouco tempo decidiu que já estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí.




Um poema de HQ

$
0
0


O buraco é mais em cima


Este choro de mulher despida
Este choro de mulher falida
Este choro
De água com sal sobre lanho
Esta armadura
De heroína de HQ
Desprotegida
Este seio
Este grito
Esta virilha
Ela submersa
Que voz atravessa
A escotilha?





 
Adriane Garcia, nascida em Belo Horizonte/MG, em 1973. Historiadora, funcionária pública, arte-educadora, atriz. Escreve poesia, infanto-juvenis, contos e dramaturgia. Venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Paraná, Helena Kolody, com o livro de poesia Fábulas para adulto perder o sono. Integra o site Escritoras suicidas e escreve aqui em Mallarmargens. Tem poemas publicados em Germina, Eutomia e na antologia Hiperconexões, realidade expandida, organizada por Luiz Braz.
Ilustração: imagem de HQ Marvel, Thor feminina.

POEMA DE RUY VENTURA

$
0
0

DETERGENTE [FRAGMENTO]



Imagem de Niki Feijen


Nascem no mesmo dia a força
E a pobreza. A casa está cheia
De entulho e as ruas não permitem
A circulação. Vivemos entre escombros,
Já muitos o disseram. Por isso paro.
Vivo? Sobrevivo? Existimos. Pro-
Curo-me no lixo e não me encontro.
Perco-me e assim quebro, parto, a
Madeira da vivenda que deixou de ser
Habitação. Queimo e guardo a cinza
Para espalhar na terra antes de regar,
Ainda que seja de ossos e de carne.
Tenho assim espaço para tornar
Mais leve esta imagem. Só assim
Conseguirei transportá-la, enquanto
Toco a essa porta, chamando aqueles
Que me constroem, puxando quanto
Valho com a roldana, até chegar
À platibanda do edifício. Recolho,
Gravo, a voz do mundo. Apenas
Um carvalho — e nós que nunca
Desatarei — poderá oferecer-me
O vazio de que preciso para conservar
As paredes da derrota, protegendo
Desse modo lugares nunca habitados.
Devolvo ao abismo as escamas que
Um dia pisei, quando encontrei
Na caverna algo bem diferente
De uma sombra, sem revestimento,
Sem rito, tendo ao centro a escassez
Que esboroa as ondas e atira os navios
Contra o risco, transportando-os depois,
Sem podridão, até ao fundo do leito
Onde os ossos seguram esse cais
Sem sono, aos rebentos dessa árvore —
Adormecendo, seca, exceto no ramo
Que a forca reverdeceu, à espera
De semear verbos sem trânsito,
Nomes sem raiz, círculos sem espiral,
Sem hélice, impedidos de voar e de
Trazer à nascente essa mão que
Colhe num rio o esquecimento
E a força das origens. Há frutos caindo
E apodrecendo, apesar da fome,
Mesas e cadeiras flutuando, pontes
Sem movimento e ameaçando
Derrocada, excrementos cobrindo-os
Como estátuas sem nome, tintas
Ocultando a morte para dissolver
A vida, telhas acamadas na margem
Da ribeira, à espera que a foz nos leve
Ao aterro — mas a campa continua
A ouvir-se nas mãos duma mulher,
A palavra continua a escutar-se en-
Quanto a força regressa à enxada
E a voz confere, deixa cicatrizes,
Apesar da surdez sem alimento.
Guardo a imagem entre as páginas.
Bem poderia ler a legenda e decifrar
As escadas. Tenho contudo uma língua
Pobre, vocabulário com limites — e não
Sei traduzir os versos que a passagem
Vai abrindo antes dos corvos comerem
Quanto resta. Poderia multiplicar as
Fotografias e, assim, acalmar a escassez
Da nascente. Caminho e vou encontrando
No enxurro os dedos que perdi e, perto
Deles, ânforas e transístores, circuitos
Desintegrados que nenhuma sinapse
Poderá devolver à voz ou à melodia.
[...]






Ruy Ventura
é um poeta português nascido em 1973, em Portalegre. Vive e trabalha perto de Lisboa. Publicou os livros Arquitectura do Silêncio(2000), Sete capítulos do mundo(2003), Assim se deixa uma casa (2003), Chave de ignição (2009), Instrumentos de sopro (2010) e Contramina (2012). Neste ano de 2014, foi lançada no Brasil uma antologia da sua obra: Rua da Outra Rua (Lumme Editor, São Paulo). Seus poemas estão traduzidos em alemão, francês, inglês e espanhol.

10 POEMAS DE "29", DE MARCOS MESSERSCHMIDT

$
0
0









perdão aos acadêmicos -
a rua canta
chamados irresistíveis


§


encontro a forma -
nem redonda
tampouco enquadrada


§


embaixo
da única goteira -
imobilizado


§


eco -
grafia
do silêncio


§


horror da noite
inútil dia
trêmula cicuta


§


pensei
que fosse morrer -
era só a vida


§


frida chora
a flor azul
do deserto mexicano


§


guarda a chuva
feito vela
em pleno mar


§


não traduzo termos -
sou um estranho
em minha própria casa


   

da capo


nesta cidade baixa
ensaio o voo torto
em direção ao que me importa.

saúdo Walt Whitman
na tabacaria,
encontro Ginsberg
deliciando-se com algas,
pessoas entre esquinas
do poema.

trinta e quatro dias
numa clínica,
quarenta dias
nos bosques do Japão,
onze meses sem beber.

vinte e nove anos
enterrado em mim.

Ouso sair
nos últimos
três versos.

logo volto
a mim mesmo.

movo meu corpo
a todos os cantos:
meu espírito segue
à terra agarrado.





 *    *    *





Marcos Messerschmidt nasceu em Porto Alegre/ RS em 1984. Foi um dos fundadores da Editora Bipolar. É poeta e “29”, seu primeiro livro, foi escrito ao longo de 40 dias na primavera de 2014.
















12 POEMAS DE "GLACIAL", DE JORGE ELIAS NETO

$
0
0






Compondo o sitio arqueológico


A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ‒ gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.

E, no silêncio,
no cu
desse branco profundo,
aguarda,
e se expande,
e fulgura,
o jardim das epifanias.




Primeiro movimento


Afora a vastidão branca,
nada mais resta
a ser perseguido.
O fogo — extinto.
Saber-se
            de partida.
Seguir o caminho do vau congelado.
Segurar-se cego
nas alvas tranças
que pendem
no absurdo.




Da construção de cidades e sentenças
  

Gélidos desfiladeiros
ladeando avenidas...
Estruturas metálicas
        — andaimes —
espinha dorsal
de enormes geleiras
que sentenciam à morte
os que ignoram a cronologia
do desespero.




Insignificância



                                                          Em que pese aos malefícios para o corpo,
                                        devemos arrastar a consciência de nossa insignificância
                                                                          Jorge Elias Neto


O azul se dissipa
em tons de desespero.

Os segundos corrompem
nossos sonhos,
e a eternidade
      consome toda inocência.

O céu conspira
dentro de mim,
ponto
sujo no útero
da neve.




A ordem natural
  

Vida,
esse distúrbio das moléculas
que se agrupam
e se toleram;
que despertam assombradas
e se espantam no turbilhão do útero;
que choram pela primeira vez,
e se expandem à busca
de esperanças;
que se esquecem da inexistência
de possibilidades
e se acasalam;
que se transformam em autômatos
e digladiam com seus iguais,
e se espantam,
pela derradeira vez;
que cambaleiam e tombam,
e que não ouvem mais
o desespero das carpideiras,
quando, já inconscientes
e verdadeiras,
              retornam
ao estado natural de fonte
energética do Universo.




Discurso para o cadáver


Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
                ― do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
                 do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                 pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
                inútil
a  última centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                despeja
                       suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas  perante o choro
                humano).




Máscara mortuária

  
Guardei meu último gesto.
Será um movimento
exato da mão
a cortar pelo talo
a palavra
       definitiva.

Dirão as carpideiras:

Reparem
no riso e todos
esses dentes;
a frouxidão da boca
cansada de gargalhadas
e asneiras.

O cúmplice
me encontrará sem palavras
e gelado
como a verdade.




Inércia

                                                          O que há de injusto na estupidez?

O gelo conservou os corpos.
Os gestos
    —  consumidos pelo desespero —
permaneceram.

(Sentia-se a sanha
do exercício diário
                  de embrutecer.)

O Ídolo
restava de pé.

Onisciente —
aguardava o resgate.




Um resto de sol no desalento

  
Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida ...
Mas não nessa noite gelada
em que persisto centelha.
Eis a última pele ― a palavra ―
que se desgarra inapta
a prosseguir
afirmando
o esplendor da verdade.




Fração do indizível

  
O branco desse gelo
é todo poema ―
         verdade possível.

Entre o amor,
e outras alucinações,
o inefável me acena
caridoso.

(A grande face
e sua biografia
         de renúncias
e equívocos.)

Minha distância
não é exercício de retórica,
apontamento
de  um ególatra,
tons pastel despejados
na boca de lobo.

Não há indiferença
quando parto
e retribuo
o aceno.




Os raios oblíquos da manhã


                                                                        Poesia
                                                                         não é encosto,
                                                                          não é escora.


Na primeira manhã
foi um entregar-se à dádiva
da escolha.
Passam os dias,
e as encostas
escorrem sob o peso
do que se repete.




A simetria do caos

                                     Há simetrias
                                            nas reentrâncias do caos.
                                 Jorge Elias Neto

Desandada
         tristeza
dizer: ― sim ―
me desespero.

Descobrir o que
         ― enfim ―
conta:

a boca larga
da sombra
onde

cada um é igual
à quinta
         parte
do que lhe resta
como consolo.



Foto: Alexandre Deschaumes


*    *    *





*    *    *





Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR




4 poemas de Bárbara Lia

$
0
0




O homem de Aran


deus e o mar de aran
branco raivoso - ireland’s tides
indomável deus rebeldia bruta
que açoita rochas e crianças

deus tem um elemento de amor
este elemento raro
fecundado em chão de algas
clama sóis e estações gentis
e paciência e força

na terra onde cadáveres repousam
não nasce amor
esta matéria ignorada
necessita oceanos montes e atrito

amor é semente de angústia
que floresce em estrelas
– de céu mar e pedra -
centelha de cassiopeia


**


Não me emociona a crisálida
Não creio em ressurreições
Não anseio passagens
Creio no homem roto
O homem - quase fera -
Primata sempre à espera
Da primavera em Pasárgada
Não me emociona o Cisne
Dei para amar os corvos
É mais sublime o feio
O triste
Bem mais belo Quasimodo
E seu enlouquecido sino
Que todos os véus
Das bailarinas de Degas

**


Pois ele se alimentou do mel da eternidade
E bebeu o leite do Paraíso.
Samuel Taylor Coleridge


enquanto a aurora não te deposita ao meu lado
minha roupa um xador
tecido além-mar
espera pelo dia
em que cruzaremos os portais de xanadu
o palácio de verão de kubla khan
como quem adentra um poema de Coleridge
e mergulha em perfume exótico
de árvores de incenso
e florestas líricas
xador da cor dos teus olhos
e espera da cor da tua pele
apenas isto me abraça
enquanto sonho
as estradas descortinadas
onde
“as damas com saltérios
e domos ensolarados feitos de gelo
anunciam nosso novo éden
e teu beijo e corpo trarão as delicias
– “mel da eternidade e leite do paraíso”


**


Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos
Emily Dickinson


Não nasci para resfriar o mundo
Neste lerdo cortejo de omissões
Estas palavras interditas
Suspensas

Não vim quebrar as pernas do sol
Silenciar cada bemol
Não vim para arrebentar o anzol
Do velho de Hemingway

Sou mar e trovão no coração
Nasci para amar sem lastro
Para dançar no pátio
It is my way


**


Imagem do documentário de Robert J. Flaherty. – O homem de Aran – do site Sela de Prata.






Bárbara Lia (Assaí, Brasil, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa - 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas - Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.  

2 poemas de Dhenifer Rocha

$
0
0
Ilustração: deviantART



Não há vagas


As promessas
Ficaram caídas
Ao chão do quarto
Lembranças
Espalhadas
Pela sala
Sentimentos
Guardados no
Armário da cozinha
Lágrimas
Impregnadas
No travesseiro
A saudade
Perdeu-se
Embaixo da cama
O orgulho
Tornou-se
O dono da casa
E o amor?
***
Ah, em meio a tantos
Hóspedes
Não sobrou espaço
Para
ele.




Melancolia vulcânica


Aquela luz entra pelas frestas
Da janela e iluminam meu corpo que está ali
parado naquela posição
Nu marcado alanceado
E essas marcas são reflexos de minha alma que se
Perdeu em meio a tanta dor e angústia
Essa luz é a única que vem me visitar desde então
É fraca mas ilumina meu corpo e minha alma
E é apenas ela que vejo neste quarto escuro
Meu corpo está imóvel
Vazio de mim
E cheio de ti
Meu único companheiro é o silêncio
Às vezes converso com ele
Mas não sou correspondida
Na verdade esse é o seu papel
Apenas nos ouvir
E não nos aconselhar
Sou prisioneira das lembranças
E teu cheiro é o que mais me tortura e me amordaça
Para que eu não grite com a dor da saudade
Já não ouço meu coração palpitar
Escuto apenas gritos
Que parecem sair de dentro de mim
Ouço passos
Passos do amor que tivemos
E que continuam a assombrar-me
Não sei se estou morta ou viva
Só sei que minha alma está sufocada e presa
Com tantas marcas que você deixou

Tudo que havia de bom em mim morreu
Junto com esse inútil amor
Que ascuou tanto tempo em meu peito





Dhenifer Rocha é uma jovem poetisa, de 17 anos. Nascida em 1997 na cidade de Porto Velho (RO). Recentemente concluiu o ensino médio e pretende cursar direito e letras. Canta na igreja e em coral, é apaixonada pela leitura. Em breve pretende publicar seu primeiro livro de poesias. Possui um blog onde compartilha alguns de seus poemas. Dhenifermirele.blogspot.com2 poemas de Dhenifer Rocha

Dia de morte - Cinthia Kriemler

$
0
0


Olho o cão aos meus pés e me apercebo de como são iguais os sinais em nossas vidas. Os pelos brancos, o arquejar que vem do coração que falha, o corpo lento que ora cambaleia ao andar, ora recolhe pelas frestas da janela um pouco de sol para dar alento aos ossos. Tem sido sempre assim, desde que nos acompanhamos um ao outro. 
Tento refazer o passado, retocando-lhe os traços com o lápis da memória, mas, a despeito do esforço, não consigo ser, ao mesmo tempo, personagem e narrador. E a intenção se esvai num pedaço de bolo que me distrai o paladar. Não preciso de lembranças. Não as desejo. Faz um bocado que perdi de mim a menina que declamava poemas e deslizava ao piano dedos de Bach e de Chopin. Que se foi de mim a moça que sorria com os olhos e não queria dormir para se aproveitar das horas. No ontem, havia a certeza de um tempo para errar. E havia sussurros nos ouvidos, sexo com nome de amor, possibilidades. Havia até sonhos. E a sensação de que nenhum deles precisava ter sentido. 
Lembranças são mentiras que se fincam na existência como alfinetes perdidos sobre a cama, espetando de surpresa. Essas mentiras me levaram tudo, num sangradouro maldito. Ou quase tudo. Deixaram-me os lençóis sem marcas, as feridas que nunca se fecham, e um desejo de saber como eu teria sido se pudesse ser feliz. 
O meu suicídio não é planejado. Não terei sobre seu desfecho qualquer controle. Pode ser que se dê pelas artérias, que cansarão de ser entupidas por mim, ou pelo açúcar que me amputará um a um os membros, ou talvez por aquela doença maldita que já levou tanta gente e que eu alimento de tabaco tantas vezes ao dia. Talvez, se dê pelo cansaço. Ou pela solidão.
Mas se antes essa lenta imprecisão me era indiferente, agora, não é mais assim. Não depois que Beatriz surgiu na minha vida conformada. 
— Dia ruim? — interrompe-me sua voz carregada de acentos.
É sempre igual este começo. Ela toma sem permissão o meu espaço e me obriga a respostas que eu preferia calar. 
— Nem ruim, nem bom. Nada de novo. Mas você está feliz. Dá pra ver no seu rosto — digo, tentando mudar de assunto.
Não sou eu quem me interessa. De mim sei as falas de cor; conheço as máscaras que os anos me trouxeram. 
— Você é impossível mesmo! Só de olhar pra mim já sabe como eu estou! — ela responde, com uma gargalhada presunçosa.
Engraçado... Eu costumava dizer o mesmo à minha mãe, que media meus humores pelo jeito dos meus passos. Mas Beatriz não é minha filha e não há entre nós nenhuma gota de sangue que nos leve a tal afinidade. A cria que pari se desfez de mim assim que me tornei amarga. Não conseguiu transpor a armadura que ajustei ao meu redor para afastar o mundo. Sentiu-se rechaçada. Foi-se embora. Mas não sem antes me dizer o que pensava de mim. E de levar consigo um resto de fé na qual eu enterrava as garras já tão cheias de sangue. Ela não teve culpa. Não tem. Não pediu para nascer de mim. Soltei os dedos da crença quando ela se foi, e nunca mais nos vimos ou nos falamos para mais insultos.
Beatriz não é minha amante, não é minha amiga. Não é sequer dessas almas que distribuem bondades por pura caridade ou mesmo pela vaidade de serem elogiadas. Beatriz é apenas alguém que permito ao meu vazio. Quando eu a conheci, nem gostei dela. Tive medo da sua intensidade, da sua mania de me arrastar para a luz. Mas agora aquela morte a conta-gotas se esqueceu de mim. E é Beatriz quem lhe ordena esquecimento.
— ... numa exposição de artes. — ela está dizendo algo, indo em meio a algum assunto que me arranca das reflexões. — Ele só foi lá por acaso, você acredita? Para fazer companhia à filha recém-separada. E a gente se conheceu. 
— Vocês já saíram juntos? — tento acompanhar a história.
— Você não está me escutando, está? Faz mais de dois meses que estamos saindo. No último fim de semana, nós fomos para a serra. Com este frio, imagina como foi bom! Lareira, vinho... Um tapete tão alto, mas tão alto que dava para afundar as mãos. E os corpos, também. — acrescenta com malícia. 
— Vocês estão dormindo juntos desde quando?
— Desde o segundo encontro — responde, indiferente. 
É assim que me fala da sua intimidade, como se tudo fosse normal e esperado.
— Lá na serra, transamos o tempo todo. Pela manhã, à tarde e à noite, embaixo de um cobertor elétrico. Eu não deixei que ela percebesse, mas eu estava morrendo de medo daquilo me eletrocutar. Já imaginou morrer assim? Fazendo amor? 
__Não, não me imagino mais fazendo amor. É doloroso. Mas consigo imaginar a morte. E, por isso, surpreende-me que também Beatriz tenha pensado nela, dessemelhantes que somos. Temos a mesma idade, entretanto, nossas diferenças me envelhecem. Ela não caminha pelas noites insones, pelos dias sem viço, pela vida sem nuanças. Não tem medos, não descarta vontades, não se conforma com restos.
Quando se convidou para morar comigo, simplesmente avisou: "A partir de amanhã venho morar aqui. Ando preocupada com essa sua cara de nada. De perto, cuido de você melhor”. Mas chegou naquela mesma noite, trazendo um champanha que me relaxou as fibras do corpo, como um instrumento que finalmente se desentesa. E eu deixei que falasse, e falasse, e falasse, até que me veio um sono sem remédios. 
Agora, preciso que Beatriz me deixe. Que me devolva o silêncio da casa e a escuridão da minha vida oca. Porque começo a ter inveja dela. Inveja dos homens com quem sai e se deita, das flores que esparrama sem respeito pelos meus móveis, das suas gargalhadas que me inibem a tristeza, da sua pele sem mágoas que afronta os sulcos do meu rosto.
Eu lhe peço que se cale um pouco. Mas ela não se cala. Não tem pressentimentos. Obriga-me os ouvidos ao que não tive, não tenho. E ainda me convida a viver. Tenta-me com lugares e pessoas que eu gostaria de rever, com ofertas que me parecem possíveis. E quase me alcança. 
Por isso, hoje, eu vou matá-la. Antes que ela alcance a porta, rasgarei todos os papéis sobre a escrivaninha. E jogarei fora as canetas, e desligarei os computadores aos quais me reconduzo sempre a imaginar para ela enredos e capítulos. Ela tentará implorar, como já fez de outras vezes em que se sentiu ameaçada. Vai usar dos artifícios que conheço para me encher os olhos de lágrimas e comandar meus dedos novamente às folhas e aos enredos e ao teclado. Não cederei.
Hoje, não. Hoje, cessarei Beatriz. Depois que ela se for, vou sentar-me com o cão aos meus pés. E seguiremos desalterados em nossa morte.


Cinthia Kriemler


Extraído de  "Sob os escombros", Editora Patuá.

5 POEMAS DE "BIFURCAÇÕES", DE DEMETRIOS GALVÃO

$
0
0








o que tatuo na pele
é louvação à carne.


vetor que rompe a derme
e afoga os poros.


estampa relíquias que altera
um relevo original.


corpo que se refaz
em emoções agudas.
  



  

bifurcações
ao som de the doors

os animais do inverno hoje são luas.
rubens zárate


bifurcar-se é inventar
um outro, outros...
figuras derivadas de uma cosmologia sem vértebras:
caçada com lança e espinhos
pescaria em céu domesticado.

           
a escritura diz:

desvendar o alimento que as águas oferecem
dominar o feitiço que existe no útero da lâmina.


estranha fibra que brota das rochas e se irmana nos tendões
luz da manhã amadurecida no pulmão-estufa
experiência selvagem de animal paterno.

bifurcar-se é multiplicar imagem no espelho opaco
exercício em águas inéditas
digestão de raízes lancinantes:
o olhar semiárido vislumbrou uma nova especiaria
fármaco e veneno extraídos da  febre de árvores púrpuras.


a voz aconselha:

arremesse as sementes da fé no leito orbital
no planeta maior mesopotâmico
na imensidão garganta da serpente luminosa.


o céu fecundo reproduz pássaros límpidos
o diafragma revela-se uma península de algaravias
estruturas semânticas cavalgam os pontos cardeais:
o verbo-candelabro cega quando pronunciado no escuro.

bifurcar-se é contorcer os ossos
duplicar as artérias no inconfessável
estender a musculatura na dobra sonante
equilibrar-se em movimentos de rotação e translação.


a experiência ensina:

o viveiro de moinhos potencializa o corpo oblíquo
o sangue caudaloso transborda o contorno original
e inunda o outro, no milagre da enchente,
na abundância mar da imaginação líquida.


útero incandescente banhado em larvas
a ternura amolece os pés:
continente que improvisa um arquipélago
na dispersão do zênite que se desfaz.


bifurcar-se é quando um filho inventa um pai.






 palavra-mágica


quando os pés adoecem
e esquecem os caminhos
o corpo precisa inventar voos.

os peixes nadam na profundidade da costela direita
na obscuridade do entre-ossos
migrando para o aconchego do litoral carnudo. 

(a língua quando bem plantada
atinge veios profundos
manancial voluptuoso de fabulações)

busco então, a sobrenatural beleza:
as ancas africanas, a envergadura monárquica,
a anatomia incendiária.

me visto de asas e de lâmpadas
e vou ao teu encontro
com uma palavra-mágica adornando os olhos.






 para uma criatura encantada vol. 7


não viveu na companhia de uma única pessoa
tinha uma movimentação instável.
seus meridianos quase sempre desalinhados
não favoreciam um mapa astral seguro, solar.

de personalidade selvagem, demonstrava uma simpatia sussurrada
frequentou uma escola nômade-heterodoxa
colecionava sermões do sub-mundo e liturgias marginais
quase nunca tinha bagagem e nem falava de sua família.

só teve lares de fantasia e uma casa que existia em sonho,
que lhe visitava com frequência, aquecendo sua esperança.
exibia um olhar ansioso e uma tristeza erosiva
se gabava das cicatrizes eloquentes.

em conversas, pronunciava sons graves, dissonantes.
nem sempre tinha razão
sabia quase nada de poesia, era displicente com as palavras
não se interessava pelas intimidades desbotadas dos outros
vivia a ambiguidade de um passado caótico e de um presente incerto.

foi a festas que tocavam david bowie, lou read e se embriagou
sua gentileza insólita era uma marca latente
carregava um fogo indolente como amuleto protetor
nunca foi a um médico. tratava suas dores com solidão-analgésico.


antes de desaparecer, comentou que a saudade é
privilégio dos que amam.






 ecos de uma luz distante


herdei um feudo obsoleto e
seu testamento ruidoso.

– um cabedal ralo:
tratado de honra, lar efêmero...

uma terra fatiada
que se divorciou do matrimônio das águas
para o plantio de flor-de-pedra.

– recanto de voz metálica
que abriga assombros.

insônia perpétua que viaja sem descanso
ignorando as gerações em ritmo bárbaro.

– ecos de uma luz distante)))))))

por muito tempo
elaborei madrugadas em lábios rugosos
montei estandartes e
confeccionei máscaras para afogados.

o que herdei não se decifra
            – não há ganho –
se aposta diante do espelho.




Imagem: capa do livro "bifurcações" (2014, Patuá)


 *    *     *







Demetrios Galvãoé habitante da província de Teresina (PI) é historiador e poeta. Publicou os livros cavalo de tróia (2001), fractais semióticos (2005), insólito (2011), bifurcações (2014). Tem poemas publicados nas antologias massanova literatura (2007),  poematologia – os melhores novos poetas do brasil (2012) e em diversos portais e revistas. Atualmente é um dos editores da revista acrobata. 















3 POEMAS DE ALBERTO BRESCIANI

$
0
0





COBAIAS


Quem se importa
com os sentimentos
desses roedores
amontoados
em recipientes
assépticos
onde recebem
serragem água ração
e medo?
Por um segundo
os olhos do doutor
percebem o brilho
alguma doçura
nos olhos do camundongo
tremendo na caixa
Mas não
: são só cobaias





REBOOT


Deletados arquivos
It's hard not to wear
anything

na pele
na tela vazia
Nada soft
nada sobra
perdidos links

Turn on this heart
quebrado
em mil defeitos
de fábrica
Search
:
uma voz
um corpo
Quando
,
Deus
ex machina
?




DEUSES APRENDIZES


Era preciso que o ar
fugisse por dentro do corpo
pelo mais fundo
A pele
esquecida
de respirar
Era preciso uma concha
protegendo contra
emboscadas cordas
aparando flechas
atiradas contra a máscara
torta e imberbe
Era preciso
acordar e acordar
Cumprir os treze trabalhos
engolir as pedras
Do alto de seu trono
Zeus tem seus prediletos
Deuses meninos
sangram
Não duram para sempre



Imagem: do filme "O incrível homem que encolheu" (1957)


*    *    *







Alberto Bresciani é escritor. Nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. Autor de “Incompleto movimento” (Editora José Olympio, 2011), escreve em Nóstres e na zona da palavra. Integra a antologia Hiperconexões - realidade expandida(Patuá, 2014).




POEMA DE ANA MARTINS MARQUES

$
0
0







Televisão


Às vezes
à noite
me sento
sozinha
passo horas vendo
as pequenas luzes
que se acendem
no prédio em frente
encenando
as estrelas

Penso então
em como cada pessoa
se consome
em seu pequeno
incêndio





Poema publicado em "Arquitetura de interiores + 2",
pela coleção "leve um livro", baixável aqui


Visite o site da coleção aqui



*    *    *





Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte, onde mora. Graduada em Letras, tem mestrado em literatura brasileira pela UFMG. Trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É autora também de A vida submarina (2009), publicado pela editora Scriptum. Ganhou também o Prêmio Alphonsus de Guimaraens (FBN), pelo seu segundo livro, Da arte das armadilhas (2011), também finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2012).




4 POEMAS DE ANDRÉ LUIZ PINTO

$
0
0





O método de Sócrates
  
para Alberto Bresciani

   
Foi
Numa festa
Um amigo disse
Cuidado
Essa raiva
Acaba te impedindo
De escrever
Voltei pra casa
Pensei
Que resposta darei?
Agora
Sei




Agnes


Se Deus fosse como a gente
Com contas pra pagar
Dificuldade de emagrecer
Certamente
Desceria do pedestal
Diria
Deixa pra lá
Consigo nem imaginar
Uma única frase de efeito para ele!




Adorno


Adoro esses saraus
Em que as pessoas insistem
Em ler os poemas
De Drummond
Nem parece
Que falam de um poeta
Não é a marca de um relógio?




Césio 
  
para Alexandre Guarnieri


césio
azul radioativo
porém não menos romântico
acho lindo caixão de chumbo eros & tanatos se
combinam





 Pintura: "A Morte de Sócrates", por Jacques-Louis David (1787)




*     *     *





André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007) e "Terno novo" (2012). Leia outros poemas do autor aqui e aqui.












5 poemas de Norma de Souza Lopes

$
0
0


outra estação

no guichê
em letras garrafais
lê-se
ESTAÇÃO DA POESIA PÓS-MODERNA
a moça atrás do vidro anuncia
está atrasada,
senhora
sem bilhete,
não pode embarcar

perco o trem

parada na plataforma
o corpo trepida
o som das rodas
atritadas nos trilhos
afasta-se
ecoa entre o olho
e o artelho
signos tremem

em casa
aves noturnas
palavras
não me deixam dormir
na sala
um tear
fios de insônia
bilros para bordar
nova condução
outra estação
para lugar nenhum



mamãe trazia lixo na bolsa


às quatro e meia ela chegava
era gari
se a casa não estivesse limpa
apanhávamos

trazia lixo na bolsa
comida revista livro
se achasse cigarros fumava
se achasse terço rezava

mamãe foi a primeira ambientalista que conheci




a vida

não fosse esse péssimo hábito
certamente inventado por barbados
de pensar que para mulher perdida
só homens são lugar
eu bem que queria
ser mulher da vida



deusa de festim


ando cansada de ser mater dolorosa
uma miríade de deusas da fertilidade
só para a gente padecer no paraíso

que falta me faz uma deusa de festim

na próxima maternidade juro que perco o juízo
e trato de parir um tamborim




moscas de bar não batem ponto


vem do cativeiro
beco da manhã
a voz solene
venda-se

ao sonho do sucesso







Norma de Souza Lopes,  autora do livro de poemas Borda (Patuá, 2014) , mineira, de Belo Horizonte/MG, 1971,  é Poeta e Professora. "Escrever é essa costura cotidiana quando posso tecer e juntar as pontas soltas da memória." Escreve no blogue Norma Din: 
http://normadaeducacao.blogspot.com.br/

Ilustração: fotografia de Mariana Botelho, da série Em verdade vos digo!                                                                                                            

5 POEMAS DE ALEXANDRE MORAES

$
0
0
                                        Alexandre Moraes - Sem título, 2006, técnica mista sobre tela.




[movimentos de instalação sobre fibras]

saio por todos os lados voando palavras
gestos e fagulhas para músculos em quebra

trafego esta cidade entre reclusão
            sangue e mar
como quem sabe onde está

ou longe
quilômetros ao norte
de lugar qualquer

pequeno
            mínimo
no mesmo mar
inventando fibras
e palavras sem som




[uma linha]

a materialidade
extrema do corpo
(o pensamento).

             a materialidade
             exata do tempo
(os corpos).

             o tempo é a
             materialidade
             de todas as coisas

                          e esta consistência,
             não
uma metáfora,
mas uma linha
             sem tradução
             em língua,
signo,
flor ou fluxo:
o limite.

             apenas nisto:
             materialidade.




[grita todo para dentro dos dias]

aqui na cidade      um corpo digita os dias
            sentindo sob os dedos a imensidão
            esbarra nos sentidos perdidos
            no instante
                        nos estrondos das balas
            que procuram recolocar os objetos
            e os lábios sob direções intensas

                                    aqui na cidade      
um corpo nunca está diante
das ruas
                dentro da casa
grita     grita todo para dentro dos dias
abre janelas     insere a noite
como que a perguntar
o movimento do silêncio
            como nome originário
de todas as coisas
            escreve incessante sobre a dor
                        porque a dor inaugura
a cidade     digita os corpos
no movimento maior
de todos os instantes
das superfícies
de acontecimentos
em cada corpo
            diante dos estrondos
            das nuvens
das teorias desfeitas
            reinscritas
            sobre o dia




[para ler no Smart Phone e ouvir em silêncio]

            era preciso sair
                        colocar
            em movimento
            pernas braços dedos
                        como índios
                        (queimados)
            aumentar os passos
            (ao redor do nada)
                                                sair

            uma voz em meia tonalidade
                        responde com
            os movimentos moídos e soltos

                        uma voz nos diz rosas
            outra voz diz dia
                        outra voz nos diz
parar
                                    comprar
regular
                                                entrar
                                    ficar

                                        (igual?)

                                        desistir

era preciso
                                    sentir o relógio
esquartejando
                                                o dia




[sampleado]

             vou me samplear
             com todos os ruídos

                        colocar
             num vídeo inteiro

             assim vou repartindo
             dividindo pães
             tempo e sons

sampleado
serei outro do outro
             com todos os arranhões
             e quedas

para copiar-se
(ou diluir-se na água)
             é preciso ter escorrido
             lentamente ao dia
movimento mais banal pela casa
                                    pelas ruas
ouvir uma voz sampleada de si
e gritar para a história da literatura
             um retumbante
             ululante
             desgrenhado
             escrever de asas

entrar
na casa
        e sampleado

        conversar

soltar os ícones pop de dentro dos quadros
ignorar a angústia de escorrer dia a dia
             para dentro de um pacote






Alexandre Moraesé poeta e ensaísta. Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Vive e trabalha em Vitória (ES). Publicou os livros Pintura para primeiros barcos (2014), Preparação para o exercício da chuva (2010), A sequência de todos os passos (2009), Paisagem sobre corpo em silêncio (2008), Coisas quebradas (2005), Pequenos filmes sobre o corpo (1997) e Objetos com nomes (1995).
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live