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Clipe da canção "Quarenta e Cinco" (Grace Torres/Rodrigo Garcia Lopes), por Michelle Pucci


6 poemas de Guilherme Gontijo Flores

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Ilustração: arslanalp



não basta o rio     murmúrio
adocicado das águas
rumo certeiro transparência
do olho d’água
desaguar suave sua torrente
não adianta fonte pura
ou perpétuo devir dos rios
como se fosse foz
seu único destino

não basta o rio –
cruzar a vida como esquina
sem banzeiro que revire a via estreita
nem
sorrir pra cantilena ilusória do mar –

carece macaréu em barro & areia
arrancando as árvores revendo
o próprio rumo            estrondo só
sal revoluto
o corpo inteiro em pororoca



não se aprende a amar

o desamar sim
se desaprende

mesmo
aconchegado no extravio do silêncio
            sem palavras
sem consolo ou sentido    abraçado
pela profunda presença do fracasso

quando
melhor seria um trago

ou qualquer outro verso
que não seja este



encontrar na carcaça dum pássaro
destroçada por dois gatos bem nutridos

(gratuidade do ato
crueldade – palavra inventada
humana demais pra contar
esse ato – sem pecado
                        sem perdão)

encontrar nesse corpo espalhado pela casa
enquanto hesita entre uma pazinha
            ou um papel higiênico
enquanto lembra de pegar um saco plástico
                        não muito grande/não aquele azul
enquanto afasta os gatos que teimam em brincar
            com a comida – aliás
                                   nem comida
enquanto afasta os gatos que teimam em brincar
            (ponto)

encontrar uma réstia de vida
não no pássaro
            morto/destroçado/espalhado pela casa
nem nos gatos
que de bem nutridos
seguem a vida sem procuras

            uma réstia de vida
um soco na cara um beijo por detrás da orelha
uma réstia ainda & sempre por se
encontrar


  
metafísica sobre um tema de drummond

                                   
eu vejo no feitio de uma prece –
despetalando-se como um crisântemo
abandonado à beira do passeio –
sem encontrar nenhum pertencimento
na fúria intermitente da cidade
o breve desvelar da calmaria

contanto que no olhar da calmaria
no ritmo pausado dessa prece
na tímida brancura do crisântemo
a alma encontre em parte seu passeio
cuja carne contrai pertencimento
tornando-se janela na cidade

& cada ponto faça-se cidade
na improvisada paz da calmaria
ameaçada pelo fim da prece
que abala a primavera do crisântemo
& se arremessa ao olho do passeio –
a fúria enfim se faz pertencimento

porém se a flor forçar pertencimento
sem janelar-se inteira na cidade
se aquela improvisada calmaria
não tiver o sorriso de uma prece
acaba-se a ternura do crisântemo
que então se aquieta à sombra do passeio

carece a alma ter mais que um passeio
roubando ao corpo o seu pertencimento
embriagado nas luzes da cidade
para que a embriaguez & a calmaria
se encontrem contrastando numa prece
como o passeio encontra co’o crisântemo

no fim se a prece é pétala – crisântemo
unido em dissonância num passeio –
& o corpo é n’alma o seu pertencimento
a janela é maior do que a cidade
& o mar em fúria é plena calmaria
como a palavra proferida em prece

no breve desvelar da calmaria
na fúria intermitente da cidade
que vejo no feitio de uma prece


  
song of itself

polar bear track 5 diz o ipod enquanto estico o pé pra fora do ônibus & aponto para a borda do passeio público
senhoras junto ao lago espreguiçam seus braços nos modos do tai chi
apalpo o bolso pelo fumo insalubre que insisto em carregar nas manhãs
cachorros & madamas cruzam meu caminho sem pestanejar

de fumo em riste ensaio apertar um cigarro a passos largos
são truques estranhos que faço & me imagino caubói spaghetti montado em seu cavalo apertando o palhoso numa só mão
– seus olhos malignos & calmos seu fumo maligno & calmo a câmera em close ganha força pela trilha sonora –
& causo algum frisson em dois adolescentes
que neste instante me tomam por herói maconheiro em praça pública

eu sou o maconheiro em praça pública mesmo fumando tabaco
sou cadela sadia que conduz sua dona de casa ao passeio como variante do tédio diário
sou dois ou mais adolescentes em busca de crimes menores & heroicos do asfalto
sou mesmo o asfalto do passeio onde passo & que também me atravessa
(fiz um pacto contigo walt whitman
sou-te & deixo-te fora dos pedestais
entregue ao gosto dos pedestres)
& poderia comparar toda esta cena a um quadro de maliévitch ou às cores de godard
para assim dar mais gosto erudito a esta composição canhestra
delendum momentum penso que bem poderia ser a morte que espreita o cidadão mais gordo que sou & corro do outro lado deste parque num suor de bicas

a cocota sarada o estudante vadio o professor de latim nossas baratas metropolitanas nos bueiros as curvas suaves dos galhos do ipê sem flor
a próxima faixa deste ipod em minha mão que denuncia minha classe em modos neomarxistas
(também fiz pactos contigo fernando pessoa diversos
mas não pretendo cumpri-los todos & te estendo a mão como um amigo)
as cores de godard ou pinturas de mailévitch ou goya previamente não citado
um neomarxista de barba aparada com tênis allstar & calças milimetricamente surradas
o parque termina antes da música o poema nunca termina o passeio segue adiante



ametista

1 – o poema

instalada no estresse mecânico
da rocha
            purpurescente
em seu casulo
compósito de quartzo

a ametista desabrocha
seu veio
feito falha
que o olho logo acolhe
como se fosse ela a sua própria
rocha

incrustada na drusa
esdrúxula
no cerne do fracasso do granito
em seu enorme geodo
            joia parca
ela se despetala

flor na forma do cristal

  
2 – o problema

ametista
do sul – RS
a mão que se embrenha no breu da rocha
flor nunca colhe

procura nessa pedra o pão
nosso de cada dia
do peperito inala pouco
a pouco o pó
                        do peperito
& dele faz anelação

tateia por sobre o tempo da terra
escava o pão da sua cova
& ali se
enterra

  
3 – o negócio o esquema

polida incrustada
no anel agora (semi)
preciosa

ela se faz de pão a preço

o olho que o anela transforma a pedra
em gema que gera
            mais-valia
na boutique de pedras

 
4 – o metapoema

incrustada na página ela não
            passa de palavra
em que sequer se paga o pão
– convém aqui ao poetinha de província
citar

a man(who could not earn his bread
because he would not sell his head)

sem preço de mercado
que aqui se consome
seu protesto é menor do que o grito
da última flor do prado
            perdida
soterrada na geada

não cabe nas rodas literárias
nem pra pedra de cabral ela serve
não carrega no corpo a poeira do asfalto
            o concreto gelado no asfalto
retornada ao fracasso
é muito lírica
límpida estampada
            no preto

nem torre de marfim 

Poemas de Brasa enganosa (Editora Patuá,2013)
Foto de Guilherme : Nego Miranda



     

guilherme gontijo flores(brasília, 1984) é poeta, professor e tradutor. estreiou com os poemas de brasa enganosa (2013). publicou traduções deasjanelas, seguidas de poemas em prosa franceses, de rainer maria rilke (em parceria combruno d'abruzzo), e d'a anatomia da melancolia, de robert burton, em 4 volumes (prêmio apca de melhor tradução). neste momento prepara a tradução integral das elegiasde sexto propércio. participa do blog coletivoescamandro (www.escamandro.wordpress.com), que agora também é uma revista impressa.

Poemas de Ana Cristina Joaquim

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1.

Retratação pelas unhas dos
pés,
agora em sangue no açougue NUDE
baixo guia pelo meio
formas frias
estranha CINZA
polegares carne crua,
cruel.
Silêncio exibe pontas
noite do faquir disforme
 – não dorme, dorme –
o medo aflora ROXO
aromas, suores.
Repetida vida treme e
sangra pelos poros. 




 2.


Mulher brava os seios doem
sobrancelhas grossas os seios doem, sinalizam.
O chá estragado, essa unidade da dor
a mãe confunde: noite
hoje. Noite hoje de
sovacos e testas
essa unidade sem fim o corpo – o irmão
 o corpo dói.
Incomodava a noite a memória paralela
da dor, essa unidade da dor
 – não incide – grita esse
mote: MATE
morte sem fim.

Os cabelos são brancos e
caem. 

 3.
  
a pergunta hesitação demora a resposta grande
dispersa em branco mindinho sobre a pauta
fatia fracta das vias
como estão seus seios
sua palavra mãe 
sua forma insone
onde no seu movimento
dói
em que vago traço a existência
dos cacos
fere finos espaços
veias fluxo vago
você interrompe?
  


 4.


se dedo pequeno no
pé puder projetar
se no solo feito háluxsuperpoderoso.
um pote vazio cinzeiro fósforo
medula abismal encolha dos seios interrupção
verbete inóspito
túmulo
túmulo
túmulo.
momento a mão
olha
sem desatenção, atenta a mão olha.
osso a osso rarefeita.



 5.

acaricia enxofre a mão enorme
espeta insone miúdos fumos

ninguém amacia a
via daninha
dragões ou armaduras passos nem regressos.

ramifica a escuta o cabelo
eco
o cabelo enorme acelera os passos eco.

por aqui ninguém.



 6.

(O cordão do entendimento passava
necessariamente pelo
buraco da pia que breve, nas grandes cidades,
urgentes como são, daria no esgoto
centenário)



 7.

Cadaverizar o relógio de
pulso preso pelas cordas do
tempo, sucede.
Cronológico destino azeda,
investe contra o
que lia,
relia
no livro dos cruzados dias,
ásperos ares.
Antecede a rima. O metro
da medida morna
consola apressada
vidraria.
Submete a ira.
Ainda ontem –o ponteiro –
transparente guia.
Vagaroso engano,
o ruído mede o vate
verossímil.
Joga hoje
essa mortalha
herege
grita e principia.




 8.

Sob o altar obsceno
esconde o diâmetro do
esquema corporal.
Existência chaminé,
evidência própria, concêntrica.
Adesão móbile das dimensões
biológicas, Cogitosensório,
riso histérico.


 9.
No centro do precipício há um pêndulo hipnótico,
o seu rosto a fascinar os dias, movimento irregular,
gama de dedos a multiplicar o ventre.
No contorno do abismo,
distensão das horas máximas ultrapassadas pelo instante.
Permanece ave cintilante quando gaita do futuro,
incursões pelo destino de dois:
meu fundo,
seu dorso,
minha abertura angular.
Nossos traços flores abismais, peixe finíssimo das marés, vasos invencíveis,
nosso ciclo.
Apreciação dos cheiros, seu gesto inunda os meus espaços,
a loucura abocanha a noite, essa massa espessa que demarca o tempo.
Seu tom, seu dom, meu modo medo de espasmo lúbrico.
Hidrografia semeada na permuta: você, meu outro, ouro dos dias,
face incógnita do valor das horas.
Do outro lado de nós,
chumbo receio do falecimento permanece, minha
visão irremediável do que possa haver além,
sua morte anoitece os olhos, anuncia o incolor dos tempos,
dissipa.



 10.

as flores entremeiam gestos
anunciam cores agudas e,
revelando todos os segredos, súbitas somem.

suas formas de esconder-se, o esforço de ter de buscá-lo entre palavras.
êxtase perceptivo – seu estado de indeterminâncias, suas arestas irreparáveis, seu contorno amplo, brusco: ruído, cheiro, gosto.
indício elementar e já não está mais ali, fugaz a sua tara,
a desenvoltura do mote pelo o toque, o susto, vento violento,
lisura das escamas escorregam lancinantes.
a proximidade imperiosa acentua o trecho
o olho percorrendo breve.
 a pupila. o traçado circular
o único possível
desvenda o termo de todas as coisas e
permanece



 11.

Me consignei ao estômago
quando se tratava de fome.
Ao espaço faltavam pernas corrediças,
o anúncio da contagem das horas.
O meu lume.
A noite acende os tumores sem que
se possa saber 
do corpo
o mapa
a musculatura distendida
a ordem de disposição
a mancha verde no canto da perna
medo pulmonar preenchendo cinzeiros.
Dizendo que sim, a cabeça balança ávida
coleta de sangue
400 ml.



 12.

Detestamentário de uma tabagista
Quando eu morrer, joga minhas cinzas sobre o meu corpo



 12.

Sobre suas palavras em minha boca

Para Juliana Amato, a amiga.

Calada pensou que valeria, valia.
Retirava-se daquela bagunça toda                                                     
 – coisas dela – sobre o que decidira (e sem mais).                            
Diversidade de pessoas, de berros, pareciam animais.
No retorno
naquele dia roxo
nos milhares de nós que, obrigada a desatar,
desatou.
Vitupérios: vituperava, vituperava.
Todos os anos lhe valeram uma única porrada,
porradíssima na boca do estômago
bastaria.
O amor não vale nada
O amor não presta e fede
O amor é ordinário, vagabundo
O amor é uma coisa barata e nada a ver

O amor é uma balada pop.



 13.

inseto indagativo desorganiza a
melodia e
dança, calça suas patas
reúne aves peixes
mangagás insetos
adivinha bafos

jimbo pássaro se abre
jimbo concha se abre
transe erótico das tripas,
atravessa
avessa
magia inseta magia
alada mulher
(ataques fêmeos)
figa chave lesa fresta
brecha, brecha.

Ana Cristina Joaquim 

6 POEMAS DE CRISTINA DESOUZA

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TATUAGEM


o silêncio
engole o que escrevo

e é esta falta
esta vaga
este manso desespero
de quem quer mais
do que nunca teve

e o vazio infinito
da lembrança
do que não houve

esta tristeza branca
que corta
a pele desnuda
e macia

desvisto-me

observo o Tempo
que escorrega lentamente
por entre meus dedos
e retenho somente
esta vontade
do beijo não dado:

teu batom
tatua minha alma…




ECOS


escondo-me
azul que sou
na noite sem luar
prata dos teus olhos
manhã por vir

farto-me de estrelas

entre meus seios
um músculo vermelho
fibrila
sol nascente
bem te vi

canto estradas

e tudo é eco
e tudo é nada
na vaga imensa
meus dedos estéreis
salpicados de mar

afogo-me no seco

vão do tempo
vida clara
transforma tudo
em fuga rara
enquanto te perco
aos poucos…

sufoco em milhas de ar




CARVALHO


a sala entulhada
abarrotada de ilusão
da pele que já não toco
dos olhos que já não vejo
da voz que já não ouço

e fica assim
este silêncio retumbante
e não se passa
um instante
em que eu não pense em ti

móveis dançam
no assoalho gasto
minhas pernas já não me acompanham
bailam um tango quebrado

solidão
se perdendo no infinito
e nem meu sussurro
nem meu grito
desfazem o silêncio em mim

chove lá fora
aqui dentro
tua falta vaza do meu peito
transpira pelos meus poros

e aos poucos me torno árvore
meus  pés, raízes
meus braços, galhos
e meu corpo vira tronco
me aterro a tua saudade
gigante como um carvalho




FOME


devoro-me
nos dias sem fim

escondo-me
encolho-me

das noites pálidas
de lua cheia

estrelas salpicadas de céu
ofuscadas
pela claridade branca

ensurdeço
inaudíveis sons
da madrugada à espreita

cego-me
olhos escuros
da alvorada à espera

adormeço
costela sobre músculo
ressonando
no vão da Terra




FARPA


descubro-me
num verbo aberto
na farpa do mundo

traço meu rastro
no deserto mudo

cactos vermelhos
sol rude

cabelos misturados
à areia

mãos sujas

olhos suados
sal que escorre
dos poros
e das escleras

eterna espera
pelo que não vem

nunca vem

dias contados
rosto marcado
por rugas que não tenho

noite cadente
vida vertente

verdade
soslaio
e esta farpa
enterrando a esperança
na pele quente




SOTERRAMENTO


soterro a voz

aterro meu corpo
a um espírito
mudo

em tudo que escuto
só há silêncio

marcado
na ausência
na vaga

no luto
profundo
pelo morto
não morto

pela onda
não quebrada

por esta maré
vazante

onde me afogo
na terra
na areia
no nada



Foto: Ele Jin


*    *    *





Cristina DeSouzaé médica radicada nos Estados Unidos, é aprendiz de poeta. Também escreve contos e crônicas. Já teve textos publicados na Revista Macondo, em Vidráguas e no Projeto "Palavra-Porrada". Mantém o blog "mix-tura". Lançou pela Editora Vidráguas, “Uns Poucos Versos”, de 2011. Escreve também em inglês e foi aceita para fazer o "master of fine arts" em Poesia pelo Vermont College of Fine Arts, em Vermont, EUA (2014). Email.






A Poesia de José Severiano de Resende

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Quando se analisa o Simbolismo em Minas Gerais é inevitável que se lembre do grandioso Alphonsus de Guimaraens e, mais recentemente, de Edgar Mata, poeta que vem adquirindo um número mais condizente de leitores para a sua valiosa obra. Porém, um nome que atualmente está quase esquecido, mas que tinha um considerável vulto ao momento de maior produtividade do movimento simbolista, é o de José Severiano de Resende(1871-1931), autor de vida irregular, apesar de ter vivido sob a batina durante algum tempo. A sua obra poética, extremamente mística, é compilada em Mistérios, cuja primeira publicação se deu em 1920.
            A sua obra é típica de quem perambulou por todas as estéticas então atuantes na literatura nacional. Não se faziam raros os sonetos com musicalidades tradicionais, um tanto parnasianas (como em grande parte dos “Painéis Zoológicos”) ou, também sob essa mesma forma, uma tonalidade absolutamente simbolista (“O Hipogrifo”). Em suma, é um poeta que, com certas irregularidades, desenvolve-se para as suas grandes obras, em versos prolongados, polimétricos, aberrantes. Vejamos, porém, antes o exemplo mais interessante de seus sonetos:

O HIPOGRIFO (em Mistérios)

A José de Freitas Valle

Resfolega o hipogrifo, indômito, batendo
No asfalto as patas d'oiro, e os olhos de águia adusta
Sobre as nuvens e além dos sóis ovante erguendo,
Já no azul a cabeça em fogo barafusta.

O éter transpõe, afiando as asas, belo e horrendo,
E haurindo a Vida e a Graça e a Ideia eterna e augusta,
Oh! como eu nesse arroubo insofrido compreendo
Que ao estranho hipogrifo o gesto astral não custa.

No solo os áureos pés, no empíreo em glória a fronte,
Terras, mares e céus, de horizonte a horizonte,
Mede, calcando o pó, e os páramos transcende.

Brotam fráguas de luz na poeira dos seus rastros
E nas landas glaciais e tristes, ermas de astros,
Novas constelações o seu hálito acende.

            Ao contrário do tom comum à obra de Severiano, “O Hipogrifo” não contém referências à liturgia católica, nem ao combate do “Bem contra o Mal” (muitas vezes nas imagens de Lúcifer e Deus), fazendo-se dessa uma obra de singular presença na poesia do mineiro, inclusive por sua qualidade, se formos comparar com aquela caracterização mais parnasiana e truncada do restante dos “Painéis Zoológicos” dos Mistérios (sonetos sobre o cágado, rãs, jararacuçu, girafa, leão, hipopótamo, porco e o hipogrifo, único animal fabuloso da série). Mas sobre os outros, que se faça nota, há ainda um tom de fantasia intenso (“E o sapo, voluptuoso e pávido, a alma em pranto,/ vai lento e lento ansiando ao túrgido quebranto/ e desmaia a babar na goela da serpente.”), fazendo que até um Massaud Moisés denominasse tais trechos de “zoologia fantástica”.
José Severiano por Belmiro de Almeida
(Créditos: Sacrário das Plangências
            Como já citado, Severiano destacou-se em seus versos polimétricos, em que, não raramente, lançava mão do latim, do francês, e de palavras ou versos inteiramente em letras maiúsculas. É importante notar que o vocabulário litúrgico tornou-se comum ao Simbolismo brasileiro e português, chegando a virar certamente um tique a utilização das palavras comuns aos rituais católicos mesmo que o poeta não fosse, de fato, um religioso – é o símbolo per se. O mesmo fenômeno se notou na numerosa presença de poesias sobre a Virgem Maria. Com algumas exceções, principalmente a de Alphonsus de Guimaraens, de fato um crente e um estudioso da bíblia – mas, essencialmente, próximo da fé do povo, por isso a profundidade tão pungente de suas obras espirituais -, muitos, influenciados pelo soneto perfeito “À Virgem Santíssima” de Antero de Quental (Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, relata a gigantesca influência dessa obra entre os nossos simbolistas), mantendo a utilização dos símbolos tradicionais à liturgia católica, foram poetas mariais, independentemente de suas verdadeiras crenças.
            Vejamos, enfim, um poema de Severiano de Resende que revela a polimetria como uma das características mais interessante de sua obra:

BELLUA (em Mistérios)

Como, neste lagoal surdo, surde elétrica e lesta
A Fera? Como, sem que o passo em relvas resvalasse,
O monstro, que a campanha e a vila infesta,
Penetra o meu castelo e vem olhar-me face a face?

(Vejo-o surgir diante de mim no espelho
Ígneo e fosforescente
Todo tinto de verde e de vermelho,
E senta-se, sem que eu lhe diga que se sente.)

Mas sob o manto astral aos meus ombros esparso
A essência do meu ser recôndito eu disfarço.

Mira-me de alto a baixo e dos pés à cabeça
E da cabeça aos pés
E do meu corpo esfuracando a impermeável e espessa
Penumbra, arranca-me a alma (em vão!) e inquire-me: “Quem és?”

Como se este medonho híspido avejão de outro mundo
(E de outras eras)
Não temesse que do meu cérebro arguto e profundo
Me saísse em resposta esta outra pergunta: “Quem eras?”
Ou: “Quem foste?” porque, sem erro, algum, eu bem conheço

De onde este fantasma vem.
E preciso não é remontar ao começo
Do caos primevo, que os arcanos do cosmos contém,
Para desmascará-lo e conhecê-lo bem.

MAS DENTRO EM MIM RESPLANDE A ÁRVORE DO BEM.

            Trata-se de um poema espetacular – não somente pela temática acerca desse “monstro” (ballua) que toma características personalíssimas -, mas pela utilização de uma polimetria fluida, apesar de clássica. O último verso, completamente em maiúscula, soa-nos como um responso litúrgico, de uma entonação mais grave e forte do que o resto dos versos.
Vejamos outro poema de José Severiano que tem uma precioso esmero estético – não menos ousado do que o de “Bellua”:

OUTONAL (em Mistérios)


No amálgama, estas tintas revéis e estes tons
Suaves de incenso em torno de cibórios
FRÊMITOS FILTROS SONS...
Vagos, dispersos, aleatórios.

A paisagem do outono é bruma de oiro, e sol
Sonolento adormece-me os instintos
Como um longo bemol
Que eu bebesse na taça dos absintos.

Ou este realejo (oh! pobre velha!) ao longe a chiar
Me traz de novo estas lembranças idas
No mais antigo luar
Das minhas mágoas ermas e transidas.

Não, talvez o eco da harmonia universal
Venha de um sonho ou de um eflúvio ou de uma
Leitura de missal
Que as esperanças no âmago resuma.

É antes então alguma prece errante ao léu
Murmúrio aéreo e quase silencioso
Das coisas que há no céu
Dom entre os homens decerto o mais precioso.

Assim no claro tanque indo buscar o azul
No parque a fronde agita-se a farfalha
E vai pelo paul
Lançando as pétalas que o vento espalha.

E a água toda responde a essa orquestra que eflui
Dos sicômoros, freixos e ciprestes
E docemente ablui
O meu ideal da terra a alar-se prestes.

Todo o alvoroço enfim dos zéfiros me vem
Mesclar a este noturno as serenatas
Que modulam além
As árvores, os anjos e as cascatas.

E as rãs? Ah! como não sentir piedoso, ó rãs!
O vosso êxtase humilde e tributário,
Que vai pelas rechãs
Subindo até ao cérulo velário?

O cume da montanha pois eu galgarei
Para ir depositar na branca ermida
A dádiva que eu sei
Necessária nos átrios da outra vida;

Dom certo o mais precioso entre todos os dons
Vagos, dispersos, tênues, aleatórios
E o mais grato dos sons
Suave no incenso em torno dos cibórios.

            Péricles Eugênio da Silva Ramos cogita que esse poema possa ter sido escrito quando o poeta já estivesse na Europa, por consequência de seu colorido extremamente gris e pelas referências aos ciprestes, não presentes na flora brasileira. Mas essa suposição não necessariamente condiz à realidade, já que tanto a utilização de vocábulos referentes às condições climáticas das zonas temperadas (presentes no sul do Brasil) quanto a presença de palavras como “ciprestes” (típica de poemas com temáticas funestas, já que o termo simbolizara-se em luto, na própria morte espelhada) fizeram-se comuns no Simbolismo brasileiro, independentemente de que região o poeta viera.
Alguns outros interessantes exemplos de utilização do latim ou de uma interessante polimetria aparecem em alguns poemas de interessante valor, como em “Crepúsculo Macabro”:

(…)

Sons de exorcismos contra os lêmures aziagos,
Contra os sussurros lúbricos das furnas.
Bênçãos difusas no ar contra as sagas e os magos
E contra as sugestões diurnas e noturnas.

AVE-MARIA GRATIA PLENA! Sim, ao menos
Uma âncora no pélago se lança.
E, enquanto, lento, ó Sino, alongas os teus trenos,
Há fé, há caridade, há esperança.

(…)

Ou no longo poema “A Lúcifer”, em que a sua dicotomia “Bem versus Mal” fica clarividente:

(…)

E ouvirás em redor como o clamor das grandes águas,
Clamor que abafa e que destrói as grandes mágoas,
Clamor que é o Sangue mesmo de Cristo,
E sobre o lenho em que morreu Jesus para perdoar
Lerás, o joelho em terra e o olhar em pranto, este imprevisto
Ígneo letreiro dentro da luz enorme a irradiar:

SUPEREXALTAT AUTEM JUDICIUM MISERICORDIA

Enquanto na amplidão reboa a cítara heptacórdia.

            O trecho em latim (“a misericórdia eleva o julgamento”) evidencia o sentimento de redenção a qualquer custo que a religião tomou no espírito de Severiano de Resende. O poeta, mesmo depois de ter abandonado o sacerdócio, continuou inabalável em sua fé, sendo constantes ainda os vocábulos típicos do catolicismo, não constituindo-se, portanto, de mera pose, daquele “símbolo per se” referido anteriormente acerca de outros autores.


            José Severiano de Resende, apesar de estar longe de figurar entre os mais comentados simbolistas atualmente, foi um dos mais importantes para a primeira fase do movimento, e isso se deve não somente pelo fato dele ter sido um emérito amigo de Alphonsus de Guimaraens – incentivador de muitos aspectos espirituais do autor de Câmara-Ardente -, por ter obtido importante correspondência com José de Freitas Valle, dono da Villa Kyrial, mas, sobretudo, por ter ousado novos ritmos e metros, inclusive com a inclusão de línguas várias nos poemas (o que se tornaria um padrão, posteriormente, ao movimento) em uma fase na qual os simbolistas, à visão contemporânea, foram todos “ortodoxos” e esteticamente próximos ao Parnasianismo. Espera-se que, com o intermédio dos meios digitais, no tempo que a necessidade tomar, dê-se uma atenção mais justa à qualidade da poesia mística, não obstante livre, do autor de Mistérios.


Líricas: ao modo de exercício

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Pentesileia, uma das nove mulheres notáveis, anônimo, 1460.


cantiga d'algum amor

sobre o verde mar
de ver-te e navegar
meu corpo é barca
sob o azul da noite
de ver-te e revoar
meu corpo é asa
pela castanha terra
de ver-te e caminhar
meu corpo é


barcarola da gaivota sobrevoando o mar

sobre teus olhos de mar escuro
amigo
meu voo
assim transitório
[mas não me demoro].

sobre teus olhos de mar escuro
amigo
meu pouso
e é meu o teu território
[mas não me demoro].

sobre teus olhos de mar escuro
amigo
mil luzes acesas:
amar é contraditório
[mas, não, eu não me demoro]


incerteza e flutuação a mia senhor


fraca bem fraca sou
mia senhor
que se o vento bate
ou teu olhar desvia
se perde o fio
e o meu amor.

fraca bem fraca sou
mia senhor
que se me tens ao peito
ou entre as mãos
eu perco o prumo
e o meu penhor.

fraca bem fraca sou
mia senhor
sejas propício
ou matador
me dou à graça
ou quem sabe à dor.


alba

nem bondade
nem mistério
e nem amor
o que reflete nos meus olhos
mia senhor
é a alva
alvorada
sua luz e seu furor.
apressa-te, pois.


lírica

a primeira condição
para adentrar no mistério
não é , amigo,
tua lira nem teu verbo
tampouco tua capa
ou tua espada.
é o mapa, lembras?
o mapa que te dei.



Decalque duma mui antiga cantiga de Pêro Meogo


conta a mim, filha querida,
por que a demora na fonte fria?

-um amor eu tenho.

conta a mim, filha formosa,
por que na fonte tanta demora?

-um amor eu tenho.

tardei, mãezinha, na fonte fria,
suaçuetês a água turvavam: um amor eu trago.

tardei, mãezinha, na fria fonte,
suaçuetês turvavam a água: um amor eu trago.

mentir, minha filha, por teu amigo,
suaçuetês não perturbam o rio:
-um amor eu tenho.

mentir, filhinha, por teu amado,
suaçuetês não se banham em lago:
-um amor eu trago.


ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "CERCO", DE TAZIO ZAMBI

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            Pode já parecer velha a discussão sobre extinção do papel diante dos meios eletrônicos, mas para mim está longe de algo conclusivo. Quando entro numa livraria percebo que nunca se publicou tanto, e mais, nunca se republicou tanto. Digo isso por que pode parecer perfeitamente natural que em vias de meios infinitamente mais rápidos e eficazes que a impressão um autor prefira o meio digital para tornar concreta e viável a sua obra. Isso parece ainda mais evidente quando falamos de poesia. Um poema é uma forma artística rápida e aérea por natureza.  Acontece na leitura, sedimenta na memória, além da voz do leitor, exige pouco para ser uma obra de arte válida e durável. Quase sempre podemos levar nosso poema predileto na memória, salvo os longos épicos, claro. Por extensão, o livro parece aos olhos de todos, condenado a não vingar outro século. As mídias digitais somam técnicas e possibilidades que intimidam o papel impresso. Elas abriram definitivamente uma nova ramificação em termo de linguagem e possibilidade artística de expressão.




            Eu me aventurei no Cerco, de Tazio Zambi, e descobri um artista multimídia que criou uma obra em perfeita harmonia com as possibilidades de expressão contemporâneas.  Cerco, livro e instalação-web in progress, acontece em três diferentes linguagens. O maior mérito sendo sem dúvida, jamais deixar que a dimensão do poema e sua leitura sejam colocadas de lado. Uma harmonização rara e certeira nos desdobramentos de Cerco.
            Podemos nos aproximar da obra sob três formatos, sua realização em livro, físico, de papel; através da cópia empdf, disponível no site do autor; e finalmente pela instalação-web inprogress, também no site do autor. A cidade de Vitória é sempre o mapa de fundo. Os poemas ressoam nessa geografia e na instalação deslizamos sobre o mapa e a cada ponto temos um poema apresentado aos nossos olhos. A leitura, então, se segue. A ordem é determinada pelo trânsito do leitor no mapa, como o curso da memória, não escolhemos a ordem das experiências. A possibilidade de interagir diretamente com os poemas de Cercoé uma experiência efetiva na mídia eletrônica. Por outro lado, seu mérito absoluto para mim consiste em não retirar a experiência de leitura do espectador. Cada ponto abre-se em um texto e cabe ao leitor percorrer a experiência estético-temporal do poema. Não há subterfúgios visuais ou hiper-dimensões e desdobramentos que poderiam ser alcançados pela construção na web. Sobressai o texto. O que acontece no nosso monitor é o mesmo livro que temos nas mãos. Tazio Zambi fez um precioso trabalho quando concebeu a instalação-web in progress de Cerco. O que sobressai é o texto, e isso traduz um profundo respeito pela forma do livro e do poema. São três linguagens distintas, mas em nenhuma delas temos experiências que permitam ver além do conceito livro, composto por poemas que apenas pode acontecer mediante a leitura. Não me recordo de ter visto algo semelhante e tão perfeitamente situado em relação ao objeto físico e o objeto virtual. Isso faz de Tazio o primeiro web-poeta de que tenho ciência. Entendamos o nome com ênfase no atributo “poeta”, ele cria para que seja lido, como um poema deve ser, palavra após palavra, em qualquer mídia que se realize.
            Sobre o mapa memorial de Vitória os poemas de Cerco, o autor não se descuida em construir imagens que demonstram sua atenção ao fenômeno simples que transforma a linguagem em poema. Exemplo notável é o poema “Da janela”, que surge com um ritmo tranquilo de leitura e posiciona o leitor em um ponto de vista contemplativo único, em paralelo com a visão do autor: “tarde para que um lápis / a desenhe / tarde”. Seu momento contemplativo também pode ser observado em “Domingo” e “Depois”, poemas que também nos colocam em um ponto de análise e inércia tecidos liricamente com versos livres. Tempo de observação que sobressai por todos os poemas, mas vêm claramente à tona nos exemplos que citei e novamente em “Elegia”: “a tarde cansa / a aceno perto demais para constar na lembrança / a janela se insurge contra as evidências”.

            Tazio não deixa de lembrar com reverência suas boas influências no périplo de Cerco, os poemas “Dança”, que remete a Walt Whitman e “Bolero para Oswald”, entremeiam suas páginas que sempre parecem voltar ao relógio das horas. A tarde e a noite se alternam em poemas diversos o que nos permite observar Cerco com uma unidade interna que se mantém por todas as páginas. Como o lirismo, parece se sobrepor a memória e à geografia da cidade de Vitória, creio que eu seja tão certeiro quanto o autor em afirmar que sua criação sustenta-se nela própria, firme, múltipla na linguagem e na mira, como no poema “Aqui”: !Onde se escava a /escalavrada /palavra-nada”. Exatamente ali, acontece a criação, estamos todos no cerco.







Imagem: arte com mapas de Stefana McClure



*    *    *





Tazio Zambi (1985) nasceu em Vitória - ES, e vive atualmente em Maceió - AL. Publicou RETRÁTEIS (Edufal, 2009) e CERCO (Randomia, 2013) e poemas e narrativas em jornais, antologias e revistas de poesia. É doutorando no Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor da instalação web MAQUINAMENOS e da série conceitual ESPÓLIO. Os poemas ora selecionados pertencem ao livro CERCO, que está disponível integralmente aqui [PDF] e aqui [web]Tumblr do autor.








Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.










6 POEMAS DE "AS CINZAS AS PALAVRAS", DE ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

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então


em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa

quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce




as capas os discos


ontem eu vi o disco da vaca à venda na galeria
onde há muito naqueles campos estranhos me perdi
entre os riscos do vinil motocicleta e sinfonia

ontem eu vi um velho em um quadro carregando lenha
adornando em parede destroçada a capa de um álbum
e a iluminada escuridão de um dirigível de chumbo

ontem eu vi o álbum branco que depois de muitos anos
pude perceber as matizes dispersas de suas cores
e seu discreto nome de besouro impresso em relevo

mas há muito dispostos em silêncio seus sons evocam
sonora imagem retida na retina da memória




as tardes as manhãs


as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs
desprovidas de ânsias vãs seguem lentamente aos currais
como se guardassem mais que o passado dos dias de amanhã

e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
como noite de homem só como tempo que não se mede
agudo vento que segue sem rumo sem prumo sem voz

iguais a todas as outras se tramam em nós as marcas
em caminho aberto a faca como vento leva suas folhas
iguais a todas as horas na erma eternidade do nada

e perene a si tece a tarde disposta sobre nós
as tardes quentes e iguais a todas as outras as manhãs




os semáforos os centavos


assim estende o homem no asfalto seu pasto de esmolas
em segundos ao público entrega a dança dos centavos
e desarmado de adornos seu palco entre faixas se arma
  
um que nestas postiças pernas trôpegas se equilibra
um que entre as mãos lança em chamas de querosene seu risco
outro exposto em malposto corpo ensejo de compaixão

este escambo estas mãos este instante entre o tráfego parado
pelos vidros seus gestos estendidos em doação
outros absortos somente na luz indicando a espera

para passageiros e condutores que apenas aguardam
que o tempo ainda lhes conceda algum possível alento




dois rios


há em minha terra dois rios
silenciosos

um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto

outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face




as cinzas as palavras


pintada em verbo angústia nenhuma palavra incendeia
decantada a mesma iluminada metáfora escura
seguindo em eterna fuga do discurso que se perca

expressão que inexata deseja toda exatidão
envolta entre sim e não se refaz a dúbia certeza
exatidão toda inexata que deseja expressão

qual verbo abandonado por remota prosa incontida
qual chama irrestrita escrevendo seu ardor devastado
cinza palavra ao vento calado palavra descrita

como que semeando a si espalhando do vento ao gosto
as cinzas em torno de todas as obras a destruir  






*    *    *





Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, 1977. Assessor pedagógico da Editora Saraiva. Coeditor da revista eletrônica dEsEnrEdoS. Autor, dentre outros, de Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (poemas, 2005), Yone de Safo (poemas, 2007) e Os intrépidos andarilhos e outras margens(romance, 2012). A nova edição mantém o texto original da primeira edição de as cinzas as palavras, lançada em 2009 [do qual extraiu-se esta seleta] e que contou com uma tiragem limitada de apenas 80 exemplares. Site. Blog. Email

Corpo Partido - Davi Kinski

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 Algo morno morre dentro de mim....





Eu não sei se é a falência das coisas
O entortar das formas
O cansaço dos versos
O amolecimento das bases
Eu não sei se é o atravessar a rua
O maldizer dos tempos
A fraqueza das vozes

O que há de você em você mesmo?

Notícias mancham de luto os seus desejos
Eu não sei se é mau caminho
Se é mau agouro
Se não é do meu destino
Ou se não faz parte de mim
Eu não sei se é para viver de novo
Será que é para deixar levar?
Será que é para marcar encontro?
Se tem remédio que possa me curar...
Eu não sei se é o dissolver das coisas
O desaparecimento

No breu, eu sei que toca lento uma valsa medonha para se
bailar



*
Depois da meia-noite
A rosa dos ventos brotará em teus cabelos
Ela vai manchar sua pele de paixão cabreira
Virgem pronta para ser despedaçada
Por selvagem boca

Depois da meia-noite
Os passos já não tem fronteira
Onde a pele rasga toda estribeira
Forte soco vai manchar história inteira
Depois do gozo

Depois da meia-noite
O lodo engole colossal
Pedras são atiradas neste carnaval
Um momento exato de ser poesia
Ou uma ilha

Depois da meia-noite
Decido ou não se vou com roupa de bailado
Ou outro rosto neste meu noivado
Examinar toda minha vida, com despedida
Já sem saída nestes nossos olhos



Pronto-socorro

Ando cobrindo meu corpo
Rodeando seus olhos
Exibindo o vazio
Gritando injurias
Afastando promessas
Rezando baixinho
Para espatifar depois
Dois sorrisos
No céu
De sua boca

Quero deslizar um tanto quanto um tempo
Tanto, tanto...
Guardado no peito
Na fonte da pele
No cheiro mais dentro
Navego e quebro
O Pronto-socorro
De mim

Era para existir um cenário
Um camarim-vermelho
Na entrada do espelho
Ser feliz em fevereiro
Esperar o ano inteiro
Quero sim!
Um jeito gelado por dentro
Um encontro marcado no breu
Vou ser assim errado
Aquele doente
Todo seu
De novo
Pronto-socorro-de-mim



*
Por essa fresta de noite vejo ondas festeiras
Minhas asas estão cortadas
Não satisfeito procuro uma ronda
Atiro num corpo que não se entrega
Velejo um momento de fuga na veia
Cidade-vermelha
Varanda-ladeira
Descasco uma estrada
Como-orgia
Dos livros marotos
Bocage-diz
Que vai pintar
Brutais vagões de desejo
Sol de Lisboa nos dedos tecendo
Os nossos passos varados momentos
De rompimento, vou a outro país
No telefone sussurre comigo no ouvido
Aquele amor-meretriz



RÉQUIEM

Eu lhe falava que cada parte do quarto é preenchido
nos teus braços, teu lirismo.
E nada é vulgar já que nada faz sentido no seu mundo histérico.

Falava da vida assim como um corpo entregue ao nada

Falava de poesia como quem faz parte da historia contada.

De dias perdidos era feito o seu diário.
Nada transcreve esse estado de poesia plena
 no armário do teu corpo

Hoje nadando entre paulistanos percebi teu quadro de ausência.
Sei que tudo é palavra enquanto somos sozinhos nessa cidade
Mas não me deixe quando as horas voam em estados
menores de vida.

Um dia vou te pegar e não te deixar partir
Porque eu vou partir.
E as palavras não vão reconstruir os meus cacos
Eu vou partir

Era um dia púrpura que cobria meus cacos no asfalto
Era como se fosse domingo pela manhã.

Um dia vou voltar e dizer que agora tudo é vulgar
Um dia quem sabe você vai dizer que tudo o que resta é essa masturbação urbana de sexo, trabalho e consumismo.

Cantarei um réquiem capaz de calar minha ira.
No meio da Paulista serei feliz...
Como um brinde de champanhe fora de época.


Davi Kinski 

Poemas de Corpo Partido Editora Patuá, 2013)
Ilustração:Itamir Beserra Souza
 

Beringela com geada - Claudio Castoriadis

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Canção para um dia encaracolado

Se um dia flores a semente
Sol mente brota o amanhã
Pétalas pra que te quero?

Eu vejo azul
Você azuleja

Eles verão nossa roseira
Avoante decola arribada
No sopro leve faz acento
Onde baixa o passarinho
Trampolim gorjeia recital



Berinjela com geada

O floco dispara uma cor no meu quarto
No peito aberto um tiro congela roupa
Entre os dentes aparelhados sou hálito   
Tangido pela sede enfastiada em saliva.

Crianças ocupam o asfalto empoçado
O dia tem gosto de berinjela congelada

Observo coisas que ainda não existem
Assim picoto o tempo corado de neon
Salpicando os olhos na perfectibilidade
O inverno cospe uma geladeira por dia
E por dia bordo uma janela com geada  





Desbotado

Contrariado! Talvez desconte. Reflexivo
Desbotado do alto agora faço paisagem           
O berço se presta ao papel de invólucro
Protege, sustenta, conforta, transforma
Faço de uma tripa o coração da palavra
Tempestade é água arengada num copo
A vida desprende o perfume que alcança o som deslocado pela forma do conteúdo.
Encolhido, no colo de uma estrela pintada um brilho pula e desflora outro universo.



Borboleta de Alfazema
 
O amor grampeia as coisas
Chuva gruda com alfazema
O olho cola na vista melada
Aroma abotoa no perfume
Borboleta esfria na barriga
O casulo encena jasmineiro
Garoto se embrenha na rua
Texto crescido é testamento 
Beijo coloca cheiro no olho
Ternura despreguiça bocejo 


Claudio Castoriadis 

Ilustrações: Michael Cheval

Videoteca: "Um corpo Kai" de Dani Santos

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Kaique Augusto Batista dos Santos, 16 anos, caiu de um viaduto em 11 de janeiro de 2014, em São Paulo. Foi pela dor causada por essa morte brutal e por tantas outras que estão (ou não) nos noticiários que Dani Santos escreveu "Um corpo Kai". E pela revolta compartilhada com companheiros de movimentos culturais de São Paulo (Ademir Dema, Bruno César Lopes, Cristiane Rosa, Daniel Silva, Fernanda Nunes e Samuel Sasso) o vídeo foi criado.




Um corpo Kai” um videopoema para Kaique Augusto Batista dos Santos. Jovem, negro, homossexual. Suicídio. Suicídio? Quantos corpos mais cairão? Quantos mais serão jogados nos abismos do ódio, do preconceito, da violência gratuita? Vídeo-protesto, nossa forma de grito, nossa forma de oferecer a Kaique mais do que flores, mas nossa luta. #somostodoskaique "




* palavras de Dani Santos







Dani Santos (Danieli Aparecida dos Santos), 27 anos, poeta e psicóloga. Escreve poesias desde a infância, vivida no interior do Paraná. Atualmente reside no Rio de Janeiro, depois de ter passado alguns anos em São Paulo. Participa de saraus e movimentos culturais e desde 2008 publica seus registros poéticos no blog Retratos, Cores e Silêncios (http//:poemices.blogspot.com).



[as guerras búdicas: a prática matinal] por alexandre guarnieri - parte 1

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logo depois de despertar, nosso monge medita interno à bruma que envolve o templo no topo deste prédio eterno, na metrópole hiper-entrópica/ uma turva treva invertebrada nos abraça: a metrópole o prédio o templo o monge/ nosso monge medita ( semblante em pura austeridade atrás da máscara de gás que veste ) / medita entre estranhas antenas, de um círculo de escuridão onde, inexplicavelmente, persiste a luz de uma cintilação ininterrupta, úmida, fixada às nuvens escuras da mais pesada poluição urbana [um sinal de rádio captado por um dos seus implantes neurais detecta uma transmissão de rádio entre ruídos [ início do intervalo captado >> shshshshs "parece ser consenso shshshshs entre os metereo-rrrrrrrr-logistas tratar-se shshshshshs da tê-nnnnn-nue radiação rrrrrrrrrrrrrr da última chuva tóxica essa rrrrr luzzz zz z >> queda do sinal ] / nosso monge medita ao nada / vipássana / encontrando os vazios nas fraturas da cidade, sobre as fissuras e trincas do concreto incrementado à base daquela ponte abandonada que apodreceu ao sabor dos séculos/ também meditamos na decadência, expostos à fome da parte pobre d'algum subúrbio semi-destruído, aos crimes do último serial-killer, ao tráfico das novas drogas, às novas modas/ enquanto isso nosso monge pensa nas Ganguro Girls azuis, nos trans-punks, na post-human-musik, no genetic jazz/ nosso monge está loooonge / z zz zzzen / de tão sereno, apesar de não podermos vê-lo [ porque nos esconde a face ainda sob a mesma máscara de gás ], nosso monge é quase zero, impossível de tão lúcido e, no entanto, é nulo / e absoluto / eis o futuro intuído do mundo em estágio profundo : o único crepúsculo nuclear para túmulos humanos / em segundo plano outros ruídos constroem tamanha sinfonia eletro-acústica contra a qual nosso poder de concentração se intercala, ora claro, ora nublado, muito embora as novas tecnologias meditativas tenham aumentado o número de horas contabilizadas pelo grande meditatron central ( há sempre algum débito ) [...]






/ nosso templo /




/ nosso monge /




*    *    *







Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial de mallarmargens e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ), de 2011, é seu livro de estreia e está disponível aqui. Seu próximo livro, "Corpo de Festim", será lançado em 2014. Email.





Pow-emas de Edson Valente

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Ilustração: Vampire's Wine, deviantART

  

FUTURO DO PRETÉRITO


O band-aid no calcanhar
Mal se equilibra
Entre a pele de todo dia
E o sapato de festa
Soluços
Entre uns tantos copos d`água
Assimétrico
O sorriso aos poucos retorcido
No outro canto da boca
Incompatível
O que era para ter sido
E foi
Maquiagem escorrida no canto dos olhos
Limite do olhar
Encanto imperfeito
E na fotografia do momento
O futuro
Em pretérito guardado



 
DR


Prognósticos
Vestiram a nudez.
Os urubus perderam a cor
No argumento
(São os fantasmas da carniça).
As boas maneiras ficaram de gorjeta
Em um bar da esquina
Dos confins.
Atenuantes respeitaram o aviso de
Do not disturb
Enquanto os justos tomavam remédios para dormir.
A manhã empacotou as roupas íntimas
Da discórdia
Em malas que prendiam a porta
Do elevador.

  
 
NOVO TESTAMENTO


Não, não quero descer
Nem olhei tudo o que me foge do olhar
Quero ver a sombra das asas
Sumindo no chão
Ser chulo e sagrado
Caminhar em silêncio
Em um clipe do Joy Division ou
Cindido
Permanecer apenas
Abrir portas para desconhecidos
Coçar-me em pulgueiros
Voltar simplesmente
Comprar versões
E revendê-las no mercado livre
Lucrando algum
Pedir e dar trégua
Acordar três dias depois do boa-noite
Já cicatrizado
Com a sensatez em brasa
Catalogando arrependimentos vívidos
E lívidas lembranças.



SOLIDÃO


O boneco de posto
Ri de tudo
Para o nada.
Da velhinha que distribui folhetos
De apartamentos há muito vendidos
Os jornais de ontem
– afundamentos prescritos
que repetem o amanhã –
Radares desativados
Extratos da conta bancária
Que a família do morto não se deu ao trabalho de
Fechar
Policiais aposentados que
Teimam em andar de uniforme
O mendigo que perdeu com seu último dente também o juízo
Orfanatos penhorados por velhas crianças
Roleta russa sem bala
Casa de janelas cimentadas
Que ninguém quer comprar
Porque alguém se enforcou ali
E o corpo só foi descoberto
– lar putrefeito –
Três dias depois
Não por um parente ou amigo ou mesmo vizinho
Mas pelo funcionário da TV a cabo
Que havia marcado a troca do sistema
Por um de terceira geração.



CERIMÔNIAS


Os jasmins ainda frescos
Entre mãos que apodrecem
Molduras oxidadas
Aridez do que foi
Leito
Estacas da porteira
Fincadas como cruz num velho
Peito
Na condolência do coveiro
– o último dos santos –
O batismo
Do que ficou entre os sulcos
Latente
Remendo
De um vínculo quase
Perfeito.

Poemas dePow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014).




Autor do livro Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014), Edson Valente é jornalista e também autor do livro de contos Refluxos (Ateliê Editorial, 2010). Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.

Teoria do Movimento II - Jorge Vicente

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é porque o corpo
na sua luminosidade vegetal
abre um contínuo de formas e
crepúsculos,
 
é porque os dedos,
singrantes no desejo solar,
se abrem e se fecham
num ritmo de flores,
 
é porque braços, pernas,
sexo aberto ao mundo,
se despenham
numa fundura de versos,
 
é porque não há linguagem
e porque temos a voz
dos cometas
 
que nunca nada termina
 
[nem o corpo
no infausto desejo da nespereira].

Jorge Vicente


Poema de Teoria do Movimento, Edição do autor(Lisboa).
Ilustração: Paul Cézanne

LUNAGENS

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LUNAGENS




A lua é um D, você não vê?
Sobretudo quando míngua.
Ou quando enrola a língua,
E vira um cílio prata, um C,
Que no céu costuma se perder.
Mas, repare, como a mais antiga
TV, toda cheia de si, agora é um O.



LOPES, Rodrigo Garcia. Estúdio realidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013


submerso

Poslúdio - Benzaiten (por paulo guicheney)

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“In dämmrigen Grüften/ Träumte ich lang/ Von deinen Bäumen und blauen Lüften,/ Von deinen Duft und Vogelgesang.”
Herman Hesse



No Japão antigo um dragão habitava o mais profundo mar. Triste e sozinho, a besta sem nome abalava do escuro fundo apenas para despedaçar as crianças das vilas litorâneas. A carne doce dos pequenos fazia suas vísceras se  retorcerem de gozo.

Dor tornara-se o nome dos pais. Nada habitava os corações dos que perderam seus filhos.

Benzaiten, a deusa que tudo vê, apiedou-se do monstro e decidiu encontrá-lo. “Ele não sabe o que é o amor”, ela concluiu.

Desceu em direção à praia e gritou por ele. A besta, transtornando o mar, apareceu decidida a despedaçar tudo.

Benzaiten cantou.

E a cada nota, flores e verde – e um mundo inteiro com o qual o dragão nunca sonhou – o envolviam em um lento azul.

“Casa-te comigo. Serás a mais feliz das criaturas. Dar-te-ei uma prole. Desconhecerás a solidão e o escuro. Amo-te. Não percebes? Amo-te com toda minha alma. Serei tua e de ti cuidarei com todo o meu corpo. Com todo meu amor”, cantou a deusa.

Do rosto máquina caíram duas lágrimas. E o dragão subiu de mãos dadas com Benzaiten em direção ao alto céu.


A praia nunca mais chorou.



*trecho de “Homem trancado em quarto de hotel


3 poemas de Luiz de Aquino

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 Ilustração: Amaury Menezes

 
 Divagar na noite

A cidade traz vícios de vida.
Vicejam cores nos canteiros
mas as flores não cantam, Cartola!
E é noite.

A cidade tem traçado avançado,
femininas esquinas
de não se encontrarem as fêmeas:
preferem a paz
das paisagens nos bares.

A cidade congrega solidões.
Gente soturna
de música e ruídos nos bares noturnos.

A cidade preserva um princípio inusitado:
aqui
as paralelas se encontram.

— Goiânia é cheia de infinitos.

  
Revivência

Tenho tempo
pra reviver vivências.
Mona Lisa, moça livre,
noite insone (Cesinha viveu na zona!).

Um Anjo Azul
reina sobre o Lago
das Rosas,
a madrugada reinventa a vida.
Há poesia, inocência e boemia.

Goiânia dorme, espera:
adolescente renascente em gris,
cãs precoces, sonhos revividos.

Quero acordar outra vez
em plena Pedezesseis.

  
Cálidas Mineiras em Termas Goiás

Morenas mineiras,
serenas sereias
de tetas pequenas
e nádegas plenas
(abundantes).

Sóbrias maneiras
de moças faceiras,
saudáveis mineiras
de além horizontes
(visitantes).

Nos clubes, nas ruas,
nos lençóis, à lua,
vestidas ou nuas
— é comê-las cruas —
(são suas?).

Em termas piscinas
as vejo meninas;
mineiras maneiras,
morenas apenas,
sereias serenas
louras vindouras
(gatinhas. São minhas?).

Negras, castanhas,
castas, me assanham:
discretas, insinuantes
— prefiro as mineiras,
sereias morenas
de tetas parcas e nádegas fartas —
(abundantes).




Luiz de Aquino nasceu em Goiás (Caldas Novas, 15/9/1945), onde passou a infância; aos dez anos, mudou-se para a casa da avó Inês, no Rio de Janeiro (Marechal Hermes, o bairro mais bonito do subúrbio carioca)e  estuda no secular Colégio Pedro II. Desenvolveu, com sua mãe e seus tios, o gosto pela leitura; no ginásio, começou a escrever poemas; na faculdade, desenvolveu o conto e a crônica. Professor, jornalista, bancário e outras coisas mais ou menos parecidas formam o leque dos seus ofícios. Tem uns vinte livros publicados, está em dezenas de antologias de prosa e de poesia, presidiu a União Brasileira de Escritores de Goiás, é membro efetivo da Academia Goiana de Letras e de outras academias (de abrangência municipal). Mora em Goiânia desde 1963.

Beleza Emotiva - Jandira Zanchi

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Ilustração: deviantART



e o tempo corre escorre corrompe
 dissipa estripa mortifica
            deforma
e sempre informa
embora, categorias ímpias e vãs 
se desnudem em seu percurso,
esse monstro de mão única fecha e liberta
- ao fim de um tempo - de suas maiúsculas asas,
a compreensão , essa madona dos conceitos e preconceitos,
evaporada de um circuito de beleza emotiva

modulo com vagar
uma forma
sem heróis ou vestígios
enfeito-a de plumas
e deixo as arestas que
estrelas e estribilhos
cantarão.

3 contos de Ieda Magri

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Ilustração: O Enforcado, Diego El Khuouri



A árvore, o homem

Tomada 1
De cima, uma espécie de borrão maior, arredondado + um ponto quase insignificante que se move em direção a esse borrão maior, parado. Uma aproximação transforma o ponto quase insignificante em um homem e o outro em uma árvore frondosa que poderia ser bem verde se a cena não fosse em preto e branco. Zoom. A árvore é toda a cena e o que se move nela são as folhas e alguns galhos mais frágeis. Há um ninho de pássaros no lado esquerdo da copa e nele dois pássaros. Um deposita o alimento do bico no ninho e o outro o toma para alimentar um filhote ainda sem penas. À direita há um balão de vespas bem cachopado e algumas delas, bem pretinhas e pequenas, voam energicamente ao redor da casa. Fazem ronda, montam guarda. Brincam. Um galho reto, uma continuação do tronco, é bom até mesmo para um adulto dormir. Poderia ser pendurado ali um balanço para embalar uma criança no colo do pai ou da mãe. Se o balanço fosse grande o suficiente, o pai e mãe poderiam se sentar nele com a criança no meio. O tronco é alto, reto, comprido. Para subir, só colocando pedacinhos de madeira para apoiar o pé, e a árvore se tornaria escalada. São 2h da tarde, a mãe e criança estão dormindo a sesta.

Tomada 2
O homem se aproxima da árvore devagar, porém resoluto. Cabelos pretos, rosto arredondado e grande, testa larga cheia de minúsculas linhas de suor. Bem no meio dela, entre as duas rugas que marcam o início das sobrancelhas vai se juntando uma gota. Em breve ela cairá nariz abaixo e o homem terá que levantar o braço direito que vai pendido ao longo do corpo e com as costas da mão afastará o suor. Os olhos estão tomados por um ponto fixo a frente, as pupilas ligeiramente dilatadas inibem qualquer movimento. O homem não pisca. Tão pretos quanto os cabelos, frondosos como a copa da árvore, barba e bigode contornam a boca, de lábios grossos, ligeiramente avermelhados e úmidos. Ele é grande, pesado, com dentes um pouco amarelados de nicotina. Ele veste uma bermuda pálida e uma camiseta que poderia ser listrada de vermelho e branco se a cena não fosse em preto e branco. As havaianas estão finas no calcanhar, de tanto suportar seu peso. No caminho, elas amassam uma legião de formigas carregadas de pedaços de folhas, um resto de barata, folhas secas de vários tamanhos e formatos, gravetos, e mesmo uma flor tridimensional, que deveria, na cena da realidade, ser amarela e um pouco fechada em sua base, o que lhe dá uma visada arredondada e com profundidade quando recém caída, sem tempo de murchar. O pé está bem gordinho, um pouco inchado do calor, as pernas firmes têm pelos, também bem pretos, como é de se imaginar. Na mão esquerda, o homem leva uma corda.

Tomada 3
O homem se aproxima da árvore e não vê o tronco. Não estuda uma maneira de subir. Ele joga uma ponta da corda, resoluto, que abraça o galho. Ele toma a ponta jogada enquanto segura com a outra mão a ponta primeira e estuda o nó. Dá um nó duplo, tipo gravata e manda para cima a ponta amarrada. Agora ele tem uma corda bem presa a um galho com uma só ponta pendente. Ele segura essa ponta com as duas mãos e se suspende na corda, forçando seu peso, para saber se o nó está seguro. Sim, ele está satisfeito, a corda está bem presa. Mas ele olha ao redor em busca de alguma coisa, que não encontra. O homem se afasta, a corda balança presa ao galho com capacidade de tronco. O homem volta com um banquinho de madeira não tão grande que pudessem caber nele, sentados, a mãe, a criança e o pai, e uma faca. Ele corta um pedaço considerável da corda que, antes, batia no chão. Forma outra dobra que será um nó, também tipo gravata, capaz de suspender e manter firme um objeto, um dos lados do banco do balanço, por exemplo. O homem trabalha, sua, mede a força da corda, a segurança do nó. Não quer ser surpreendido por nenhum tipo de incidente. No chão, a faca imóvel e sem função.

Tomada 4
O homem se chama Antônio e há o espaço de um palmo entre seus pés e o banquinho caído. De verdade, há barulho de água no riacho que corre perto, canto de pássaros e o zunzum das vespas. Talvez um rádio ligado dentro da casa. Esta cena, porém, não tem som algum.



Caçando lebres, de noite

...claro está que não pude dormir. Seria ótimo se pudesse ter uma maquininha registradora dos sonhos, bem mais, dos murmúrios da noite toda. Me debati em várias aventuras, proferi frases perfeitas que encheriam de brilho meus próximos livros, segui e encontrei a mulher perfeita, fiz pactos, ofereci a alma, me tornei uma, todas as câmeras de TV da cidade voltaram-se pra mim e de minha boca saíam as frases mais engraçadas, todos a minha volta riam e aplaudiam e ficávamos satisfeitos. Mas aí o exemplar original voltava e exigia o que era seu, o que havia, dizia, me emprestado por poucas horas e como flores num vaso sem água, eu murchava, minha boca de repente não tinha nada, nada, nada pra dizer, aquela luz, não sei se luz, mas aquela claridade que estava a minha volta desaparecia por completo e tudo migrava pra ela, a luz, os holofotes, as câmeras de filmagem, e eu ficava sozinha, com as costas curvadas, um contraste de roupas pretas na pele branca, os cabelos ralos mostrando o descampado da cabeça, os braços como os dos bonecos que inflam com o vento em postos de combustíveis, mas sem vento, entregues a sua constante inércia. Não restava nada além de voltar sozinha daquele lugar e retomar o computador, a cadeira de madeira do escritório e voltar à falta de imaginação usual, mas me dei conta de que havia chegado a um lugar do qual não sabia mais voltar. Era uma praça imensa, redonda, que estranho, não conheço praças redondas na minha cidade, sem árvores, sem carros, só aquela gente e o deserto e de repente pelo menos oito vias que saíam da estranha praça redonda e eu sem possibilidade de escolha porque ali não tinha GPS, não tinha Ipod e ninguém pra me dar essa informação básica, simples, que caminho tomar pra voltar à vidinha medíocre, nem tinha pra quem perguntar pois todos, todas aquelas pessoas distintas, olhavam o único alvo possível, a bela mulher que dizia coisas inteligentíssimas, contava enredos originais e ligava-os aos livros lidos na infância só pra fazer a pergunta de como aqueles livros tinham se tornado importantes e depois responder com hilaridade que muitas daquelas tramas não seriam imagináveis hoje, todas resolvidas pelos avanços tecnológicos, mas que de alguma forma, e era essa coisa aí, ela dizia, a forma era capaz de torná-los definitivos e nunca ultrapassados, era a forma de colocar as questões do nosso tempo o que contava e as pessoas não riam mais, anotavam em seus caderninhos os nomes de filósofos que deveriam ler depois, as cenas impagáveis dos grandes filmes do século passado e que tinham uma chave pra decifrar o nosso tempo, tudo estava lá, bastava ler os sinais, se pedia tão pouco, só ler os sinais, só saber manter os olhos abertos quando todos pediam que fechássemos de cansaço, vencer o cansaço e ficar olhando, todas as cenas de horror tinham algo pra nos dizer, só pra nós, pra ninguém mais, os novos escritores, os artistas, os vagabundos desse mundo, os que não precisam trabalhar duro nem nos campos, nem nas fábricas, os que eram escravos libertos, só esses poderiam ver o que ninguém mais vê, os jornalistas, se mantivessem os olhos e os ouvidos abertos e se conseguissem todas as noites antes de deitar fazer uma limpeza no cérebro como fazemos nossa higiene bucal ou do nariz, dizia ela, quem não sabe que temos que lavar o nariz com soro e depois assoar com força, mas sem partir as minúsculas veias, um sopro na medida certa, sem agressão, mas sem titubeios, assim era com o cérebro das pessoas que estavam expostas à notícia, deveriam ser asseados diariamente pra que deixassem um pouco livre algum espaço diante dos olhos e dos ouvidos. Eu começava a querer fazer um pacto novo, qualquer um que pudesse apenas me indicar o caminho pra sair da praça, aquela redondez era incômoda e a precisão de decidir por onde criar um corredor pra volta era algo absolutamente maior que minhas possibilidades, nem falar em qualidades, tão mínimas, olhos tão míopes e ela falou, Aquela rua ali, por exemplo, qualquer um pode ver aonde leva, não precisa ser especial pra ver aonde levam cada uma dessas ruas, não precisa ser nenhum gênio, basta não ser estúpido e olhar bem, que se sabe muito bem, pelo exemplo do passado, aonde cada uma delas nos leva. O problema, dizia ela, enquanto eu tinha a impressão de me transformar em um montinho de merda, ou pior, porque merda fede, e eu me sentia ainda mais insignificante, talvez um pedacinho de chuchu insípido abandonado no meio de uma praça do futuro, um lugar que não me diz absolutamente nada, O problema, dizia ela, é ver além de onde esse caminho nos leva e abrir com as próprias mãos caminhos que ainda não existem, caminhos feitos de matéria não palpável, por favor, não sejam pequenos, eu não falo de abrir estradas, de construir novas rotas para os aviões, eu não falo de voltar às comunidades primitivas, eu falo de algo ainda não conhecido, eu não diria nunca progresso, eu diria uma neblina como nos dias sem sol, aquela cortina que se forma por cima dos mares e esconde os morros e muda a geografia. Quando as coisas perdem a fixidez, quando não tem mais contorno, nós, aí, sim, poderíamos fazer o caminho como quiséssemos. O caminho do sonho é maleável, a imaginação, aquela que se alcança só depois de escovar os cabelos tantas vezes que não há mais cabelos, não há mais o pente, aquele ler o que não está escrito, é só isso, é tão simples, é só ler o que não está escrito. Pra que mais o mundo? E a essas alturas ninguém mais sabia de si, as câmeras perderam todo o sentido, os microfones estavam virados pra baixo, as cadernetas fechadas e ninguém mais estava ouvindo, cada um achando a tarefa difícil demais, mas aí a mulher disse, Vou contar uma coisa pra vocês e todos se animaram de novo, fez-se um pequeno grupo mais à frente que redirecionou as câmeras, houve empurra-empurra, todos queriam estar mais perto daquilo que ela ia contar, todos queriam transmitir em primeiríssima mão, todos queriam ser os que possibilitaram ao mundo aquela narrativa que poderia conter uma informação muito, mas muito importante, e mais, urgente, e indispensável e era preciso que ficasse claro quem foi que conseguiu arrancar dela primeiro as importantes palavras e de quem eram os méritos de terem conseguido encontrar aquela mulher. E todos estavam fazendo tanto barulho que eu não conseguia escutar a história, que se tornou impossível, eu só podia alcançar os gestos mímicos daquela mulher e podia ver sua boca e além da sua boca grande, vermelha e bonita, cheia de coisas bonitas que saíam dela e seus braços que acompanhavam as palavras posicionados perto da boca como se fossem eles os portadores de palavras e não as vias que conhecemos, a voz saía da ponta dos dedos, do modo como estava posicionado o peito, a voz vinha e trazia as palavras de seu profundo desprezo mas também sua imensa generosidade, ela entendia, parecia, cada uma daquelas pessoas que arrumavam seus equipamentos que não eram apropriados para alcançar aquele novo tipo de fala, nada ficava registrado, mas Tudo bem, se pudessem ouvir sem gravar, disse uma delas que não se conformava em não ter o órgão certo pra ouvir aquela novidade, e já pensava em como contaria aquela história no seu jornal e estava até tentando escolher numa imensa, mas não inesgotável, lista de palavras e frases conhecidas, pensava em como seria brilhante e quanta honra pro seu jornal poder democratizar aquela informação tornando-a acessível a todos, todos os habitantes do país, e pensou que seu chefe ficaria muito feliz e talvez até conseguisse um contrato internacional e pela primeira vez ela veria sua fotografia na capa de um jornal importante, importante mesmo, de outro país, suas palavras seriam traduzidas para várias línguas e ela ficaria lembrada para todo o sempre como a repórter do interior, que começou do zero, que quase passou fome até, aquela que venceu todas as dificuldades e agora se colocava como a única interprete capaz de decifrar a notícia realmente importante para o mundo e viu com sua fotografia em vários jornais em cima da mesa do chefe, um cheque com muitos zeros à direita e ela pensou no carro novo, na casa de dois andares, na casa que daria pra sua mãe, lá no interior, para seus irmãos, nas festas para os amigos, nas férias merecidas, na viagem de volta ao mundo e sempre, por todos os lugares, muitos jornalistas, muitas câmeras fotográficas, várias entrevistas e de repente ela viu o palco da praça redonda e percebeu que não tinha palavra nenhuma. Eu tinha conseguido várias, mas não podia guardá-las, não tinha nenhuma bolsa comigo, como pude ir pra aquele lugar sem nada nas mãos, sem bolso, nada, nada onde pudesse guardar as palavras que se esfumavam e iam se dissipando uma a uma. Eu corria atrás de cada vestígio, de cada minúscula partícula da matéria da fumacinha e quando conseguia tê-la nas mãos via apenas seu desaparecimento e uma angústia grande foi crescendo e já era mais importante ter as palavras do que ter o caminho e vi que as palavras ao fugirem de minhas mãos e se encaminharem para o definitivo desaparecimento iam em uma direção, como as bolhas de sabão que vão com o vento, mas não tinha vento e as palavras-fumaça iam, assim mesmo, na direção esquerda da praça redonda e eu achei que elas estavam me indicando o caminho e fiquei feliz e fui, mas quando dei o passo, meus pés estavam muito pesados e era muito difícil arrastar minhas pernas, parecia que o melhor era cortá-las, e os braços, que também pesavam e as palavras-fumaça agora indicavam claramente o caminho e meu corpo me impedia de andar e comecei a vomitar meus órgãos e a ficar leve e me transformar em fumaça e já era possível ir atrás das palavras e desvendar seu significado, o caminho certo a seguir, e foi assim que no meio daquele caminho que todos podiam ver aonde ia chegar, menos eu, consegui entrar em contato com as palavras e desvendar a história inteira e fiquei feliz, feliz, pois já sabia como sair do sonho e escreveria uma história tão bonita que meu romance ganharia todos os prêmios e acordei balbuciando uma frase perfeita que esqueci ao abrir os olhos.

  

Emma e o touro (cena do romance Olhos de bicho)

Nessa calmaria, as três batidinhas na porta se fizeram ainda mais audíveis, como visível foi o susto de Emma. Pulou de corpo inteiro no sofá e agradeceu pelo silêncio da casa. Poderia ficar ali sem se mexer até a pessoa ir embora. Mas era R. e R. tinha a chave. Quando aquele rosto conhecido avançou pela sala, Emma se encolheu no sofá, abraçou a almofada que estava sob a cabeça com uma das mãos e foi subindo o corpo, meio de lado, até a mão direita alcançar a janela. Um aviso, Você avança e eu caio, mas R., sem alterar sua calma habitual, alcançou seu coração, pousou a cabeça ali e ficou dançando as mãos nas costas de Emma por um longo minuto, e mais um, até o coração se acalmar. Então se afastou um pouco do corpo já sem resistência e fixou seus olhos nos dela. Não disse nada audível, mas a pergunta era, O que está acontecendo? e não exigia nenhuma resposta. Depois vinha, Por que? e Emma não sabia responder. R. olhou em volta e achou que seria melhor recolher os pedaços da TV, um canto ou uma tampa estava embaixo da estante de livros, os livros rasgados espalhados pela sala inteira, o abajur virado, a mesinha de centro com uma perna quebrada. Perguntou de novo, O que se passa? e a resposta era dele, Emma você precisa de ajuda. Os olhos dela se ergueram e ela viu, então, a pequena mudança que ocorria em R.: dois caroços cresciam, um em cada lado de sua cabeça. Ela não se mexeu, mas jurou sentir uma protuberância, um rabo? grande e grosso descansando no sofá. Pediu água pra vê-lo de costas e quando ele se afastou um pouco ela correu e se trancou no quarto de Louis. R. voltou-se calmo e pediu que ela abrisse a porta, tomasse a água, conversassem um pouco e ele iria embora. R. ouvia barulhos tremendos, Emma quebrava os quadros que tinha esquecido nas paredes e gritava pra ele ir embora, Animal. E Emma lembrou-se do sonho e do que veio antes, da mulher do telefone. Compreendeu que pra se livrar do touro seria necessário voar. No voo não há cercas, arames farpados, fronteiras, voando se vai a Nova Iorque, a Paris, bois não voam e não alcançam quem voa, e Emma ficou ensaiando com um quadro da mãe nas mãos os voos rasos, experimentou subir, descer, fazer curvas, e ouviu as batidinhas irritantes na porta e a voz do animal que exigia, abrisse a porta, conversa, clínica. Uma fala macia que deixava um vidro de calmantes sobre a mesa da cozinha e pedia que tomasse um ou dois e não fizesse bobagem, ele voltaria com um médico, se quisesse, sim, podia até tomar o vidro inteiro ou se jogar pela janela, fizesse o que quisesse, a vida era dela, ele já estava de saco cheio dessa brincadeira, Por que você não acaba com isso de uma vez? E Emma sentiu crescer a vontade de voar e sentiu o bicho fustigando a porta, dizendo é sábado, já noite, Emma, vamos, abra essa porta, e ela viu que ele raspava a pata na terra e que saía uma baba escura da sua boca e que preparava os chifres pra investir contra ela, dava uma corrida pela sala e voltava a bater seus chifres contra a porta e dizia Já está amanhecendo, Emma, vamos, me enfrenta, balança esse seu pano vermelho, mostre-se, venha pra arena, e de novo a baba, as patas raspando a terra, a corrida em volta da sala, e Emma então abriu a porta, vestida de toureira e com asas, e dançou na sala vazia, toda arrumada, e via as pessoas sentadas nas arquibancadas em volta e pensou como seria bonito seu salto quando o touro investisse com toda determinação contra ela. Estavam um em cada lado da arena, ele próximo à porta de saída, os chifres enormes, afiados, reluzentes, o rabo balançando de um lado pro outro, tocando uma música furiosa, as patas, uma na frente da outra, prontas pra arrancada, ela, mais à direita, foi se movimentando calculadamente em direção ao centro e balançou sua bandeira da loucura tingida de vermelho, viu quando ele raspou pela última vez o chão e, com olhos bem abertos, embora baixos, avançou em sua direção. Ela deu um salto pra trás, equilibrou-se no sofá, enquanto ele parava e recalculava o ataque, e então ela avançou num salto definitivo, pra trás, e voou pela janela, enquanto os chifres enormes se mostravam já murchos.



Ieda Magrié doutora em literatura brasileira pela UFRJ e autora dos livros Tinha uma coisa aqui(7Letras, 2007) e Olhos de bicho(Rocco, 2013). “O homem, a árvore”, foi publicado na revista Pitomba; “Caçando lebres, de noite”, na revista Lado 7; e “Emma e o touro” é uma cena do romance Olhos de bicho. 

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