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Rosas em Ruínas II - Femme! - Bárbara Lia

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Sépia


Minha luxúria é sépia
Habita estúdios de 1930
Estouro de purpurina
A cada flash de prata
                                              
Minha luxúria - Polaroide antiga
Imprime postais esmaecidos
Sorrisos de conta-gotas

Minha luxúria lacrou
O livro do amor
- utopia dos desgarrados –

(Adeus suspiros de Monalisa
Carícias de carpideira
Despedidas na soleira)

Minha luxúria é parto à revelia
Quando chegas com fórceps
Quando chegas com toques
Quando tocas meu clitóris
Quando roças meus mamilos

Quando afogas o amor
No mar dos improváveis
E ressuscitas O Desejo

Retirando-me das entranhas de Eros
Pra me batizar com teu sêmen
Abençoado sêmen
Amém



Largo do Arouche


Nosso assombro
No assoalho de um Largo
Pleno de assovios e açucenas
Assomados de desejo
Esta soma de carne
Angústia
E êxtase



Ladainha


“Le jour de gloire est arrivé”
No elevador silencioso
“Le jour de gloire est arrivé”
Teu beijo Torre Eiffel
“Le jour de gloire est arrivé”
Teu andar águas do Sena
“Le jour de gloire est arrivé”
Teu olhar de cio fecundado
“Le jour de gloire est arrivé”
Pés descalços triturando o ar
“Le jour de gloire est arrivé”
Um personagem de filme Noir
“Le jour de gloire est arrivé”
Catedral branca teu corpo viril
“Le jour de gloire est arrivé”
E a dança de Eros no quarto gris
Le jour de gloire!



Umbrática nuvem


Tudo que me toca
Vira livro
Só você virou esfinge
(Miragem)

Tudo que me toca
Esfuma
Só você grudou
Água na pele
(Placenta de Eros, onde nado)

Tudo que me toca
Agride
Só você no quarto antigo
(Baque de algodão)

Tudo que me toca
Vira livro
Só você cruzou meu céu
- Umbrática nuvem –
Escreveu-me / Inscreveu-se

Bárbara Lia

Imagem: Lee Miller by Man Ray (do site dantebea.com)


 


Roberto Bozzetti: TREZE EXERCÍCIOS DE MAGISTÉRIO

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Ensino médio:

 

NORMA CULTA

ele não quer nada

é  filho da diretora

e ainda por cima é repetente?

está refazendo
a série

 


EDUCAÇÃO FÍSICA

eu não vou virar cambalhota

vai sim. isso aqui é uma aula
você vem pra escola pra quê?

pra estudar.  não é pra virar cambalhota

 

 
INTERTEXTUALIDADE

se pedagogo
vier aqui
com história
eu mato ele

 
 
 
 METODOLOGIA

meu livro do professor
ficou no armário
da outra escola
e agora?

 

ENTIDADE

vou te mandar para
a mulher do SOE

 

 
MORAL

saio de casa ainda escuro
vesti uma meia de cada
cor

como impor moral?

 

 
PCN

aqui diz que é pra dizer isso
mas o pastor diz que não

 

 

Ensino Superior:

 

PNE

aqui diz que é pra dizer isso
mas eu sou temente a Deus

 

 
ÉTICA

deixa eu falar mal dele
é tão bom

 

 
ABISMO
 
não sei o que fazer
eles nunca nem ouviram falar em Mallarmé

e se você falasse?

 

 
DA COORDENAÇÃO 
 
comam à vontade
só não broxem

 

 
LATTES

eles escrevem
eu assino junto
oriento

 

 
PAIDEUMA
 
sou claro como antonio candido
e denso como costa lima

só que derrideano

 

 

 


O Pintor - Evaldo Balbino

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 Ilustração: Katia Almeida



              É com palavras que faço pinturas. Desenho esboços para a eternidade. Não há nenhuma presunção no que digo. A eternidade de que falo é um flash dado por minhas mãos brancas e cansadas, porém retratistas. Coisas e cenas e pessoas são congeladas. Bichos também. E todos ficam entre palavras presos, mas para sempre cheios de vida. Pois terão novamente fôlego toda vez que um mortal como eu abrir uma página qualquer e acessar amorosamente essas palavras.
            A vida é leitura do que se pintou e se pinta. Nossos olhos têm o poder de ressuscitar mortos, de fazer renascerem constantemente passados. Perante os leitores nada sucumbe: o tempo e a morte perdem a sua força diante da fome de qualquer leitura.
            Desenho agora formigas caminhando em suas trilhas. Caminham porque uma força maior ou uma necessidade as move, e não porque as retrato assim. Sou apenas um desenhista. Caminham hoje como antes o faziam. O mundo muda, mas nem tanto. Nas transformações que se operam, continuamos como formigas em nossa faina. Continuamos como insetos alados, os que voam entre plantas e desejos. Ali e acolá plantas rasteiras, as que dominam em sua pequenez as majestades da vida. Cupinzeiros solenes, prédios de terra. Troncos de árvores verdes ou já mortos, quietos no chão. Tudo isso eu desenho.
            Na casinha ao lado, com tijolos à mostra, dona Esmeralda brilha sob a luz do sol, quarando roupas entre pedras de anil espalhadas. Seu filho, tão raquítico e feliz, serelepe formiguinha, bate algumas toalhas brancas na pedra ao lado do riachozinho. A cerca de arame farpado dança com o vento, em cores brancas e outras cores. Parece tudo uma multidão de dançarinos bailando o baile da vida.
            O riozinho corre, um ribeirozinho de nada, com lodo nas margens, serratucanos apetitosos, folhas diversas navegando sobre as águas poucas, tranquilas. Folhas que ainda não morreram. Águas sem raiva nenhuma, as do riozinho. Sua cólera é como a fúria dos xingamentos de mamãe, numa autoridade amorosa com os filhos.
            Quando criança eu gostava de ser esse menino. Gostava de fazer descerem sobre essas águas as cascas dos umbigos de banana. Dizíamos “imbigo”, e ficava tão bonito assim, desse modo sem escola: o imbigo era mais gostoso. Eram as côncavas proteções do miolo, apaixonadamente roxas, que singravam as águas. E os filamentozinhos brancos lá de dentro é que eu comia com boca boa. Mamãe os cortava em rodelas, esfregava-os com afinco e limão para que não escurecessem – o sempre medo do escuro. E depois os ferventava, buscando tirar-lhes o amargor que não presta. E assim lhes dava um tom rosáceo, um roxo claro, ainda sutilmente da cor da paixão.
            Assim como o menino bate a roupa na pedra, espumas coloridas tomando um banho de sol, desse mesmo modo eu fazia. Ajudava mamãe a torcer todos os panos, a desdobrar os tecidos que ela cosia, que ela nos fazia e com os quais agasalhava a todos nós. Ajudava a desdobrá-los com um imenso poder. Poder que ela tinha e que me transmitia. Dádiva que não se nega: a de desdobrar vidas.
            O que mais desdobro hoje em dia são palavras. Antes eu só as ruminava, comia-as como se fossem aqueles amendoins em casca que meu pai me levava nas noites do Ribeirão de Santo Antônio. Aqueles mesmos amendoins que depois ele ainda me levou algumas vezes, quando já morávamos na Várzea, periferia do centro de Resende Costa, entre terra vermelha e piteiras. É isto mesmo: à medida que eu ia crescendo, meu pai já não me levava mais amendoins em casca. Eu, um ser tão pequeno, um elefantizinho de nada, sendo desmamado aos poucos.
            As palavras eram comidas, ração de outro mundo para um menino que não as lia. Ração que aos poucos foi virando tão íntima, tão do garoto que as ruminava com sabor e medo. Eram saborosas a ponto de me viciar.
            Hoje, além de ruminar as palavras, também as distendo como se fossem lençóis de cores fartas. E abrir as palavras, quará-las ao sol com alegria e vontade, é como ver formiguinhas andando bem ao rés-do-chão, e ver nesse andar o que nós somos. É ver uma criança e sua mãe batendo roupa ao lado do riachozinho, como se estivéssemos vendo a nós mesmos batendo nossas vidas, quarando nossos desejos debaixo dum sol amorável.
            Escrever tudo isso é pintar com palavras. É um modo de não nos esquecermos e de firmarmos nossa pousada eterna entre as páginas de um livro. Um dia, mesmo amareladas, guardadas com esmero ou perdidas entre outras folhas sem importância nenhuma, essas páginas palpitarão, produzirão rumores de cores imorredouras.


Evaldo Balbino


5 poemas de Ana Elisa Ribeiro

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Ilustração: mystikrhythmz, deviantART


Eu não tenho a alma de um corrimão.
Eu sou mais do elo, da liga e do laço.
Respeito para mim é coisa fina,
assim como o abraço.

Mais do que as transas e os beijos,
as mãos dadas me parecem mais sinceras.

Tão ruins quanto as promessas
são as esperas.


O cão


Por onde anda aquela sua lima
de alisar meninas?
Tens mesmo um bico doce, querido.
Delicinhas te acompanham nos eventos
e pagas as contas dos restaurantes.
Pois agora vamos ver quem é mais Cão.


Afinal,
sobrou-me uma casa com livros.
Além disso, relva, vidros
e um cachorro de patas curtas.
Restou-me também um filho,
mas isso já é luxo.


Fico em pé
ali, entre suas
três ou quatro guitarras.
Quem sabe eu te toco?


Se eu chego antes,
te pego com respeitos demais;
Se eu chego atrasada,
te pego casado e pai;
Então eu chego agora,
pra ver se é boa hora.


Poemas de Anzol de pescar infernos (Patuá,2013).


Ana Elisa Ribeiroé mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. Tem publicações no Brasil e em Portugal. Escreve crônica, conto, infantil e poesia. É de 1997 seu Poesinha, pela coleção Poesia Orbital. Seguem-se a ele o Perversa (Ciência do Acidente, 2002), Fresta por onde olhar (InterDitado, 2008) e Anzol de pescar infernos (Patuá, 2013, semifinalista do prêmio Portugal Telecom 2014).



3 contos de Priscila Lopes

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Notas sobre um escândalo que não aconteceu
 
1,
Durante o teu nome eu era calada. Quase sempre chuva, quase sempre. O vento que me desnuda numa esquina diz mais sobre mim do que eu já ousei me expor em palavras. Estou sentada. Um sol de outono meio que me aquece enquanto recordo. Volto ao que era. Amarelada. Recordo a face recobrada de falta juízo, falta de senso, falta. Saudade de si, de cantar lá, de falsetes. Estou como que esquecida, sentada. Pedras me fazem viver. Terra molhada me deixa sem sono. Estou no incômodo estado de ser.

2,
Enquanto chorava no box esfregando calcinha cheguei a algumas dessas conclusões óbvias a que se chega quando se está no banho. A primeira delas é a de que, no ritmo com que estamos consumindo os recursos naturais, eu devia chegar mais rápido a conclusões óbvias e assim passar menos tempo no chuveiro. Outra foi de que talvez o fato dos clichês sempre me perseguirem se deva justamente a outro fato, o de eu não gostar de clichês nem um pouco. E, por último, embora outras mini conclusões tenham ocorrido sem que eu me desse conta, concluí que eu definitivamente preciso me desencaixar desse padrão de relacionamento monogâmico herdado pela sociedade, que, como naquela parábola dos macacos e a escada que dá pra bananeira, nem sabe por que o repercute se não faz bem nem para ela mesma.

3,
Eu vou morrer. Corro ao espelho e apalpo a face estarrecida. Estou absurda e desmemoriada. Quase excitada, a Morte, me espreita. Investigativa, a Morte, me assedia. Sou vulnerável e atrevida. Pode ser que me ocorra ainda hoje – embora ache pouco provável, sempre acho pouco provável morrer no dia de hoje – e pode ser que seja amanhã, ou daqui a alguns anos, em 2027. De pensar Nela quase choro. Porque não fiz por merecê-La. Seja por bonificação ou vingança, a Morte não me convém.

4,
Sou eu minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes embaçam. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando.

5,
Entrei em tal sintonia comigo que estou me adivinhando as vontades; me fazendo favores e me retribuindo. Eu penso em uma música, e me canto. Lembro-me de um filme, e me assisto. Estou até disposta a me levar para passear; aos poucos me abrindo, me sentindo à vontade. Parece que já me nos conhecíamos há anos, de outras vidas, só esperando. Noites dessas, eu estava em casa, era verão e o movimento na rua convidava, mas eu comigo esbarrava pelos cômodos, quase confessando que na verdade não me importavam as luzes lá fora; eu toparia ficar em casa aquela noite, desde que me fizesse companhia. E não foi preciso dizer nada.


Uns sorrisos, e depois


Então ela lhe deu o primeiro sorriso. Estavam a alguma distância, e podiam comparar-se a outras pessoas. Não que procurassem nelas uma coisa que não tivessem - para invejar - ou o contrário, lhes causar qualquer tipo de ciúmes. Era apenas questão de reconhecer diferenças e semelhanças, gostar da vida assim, sem retrucar. Todos podiam ser. Era branco, e às vezes mudava de cor. Como bancos de praça. Como decks sobre o mar. Poltronas acenando na varanda de uma casa cor de giz azul.  Parecia até um céu que lhes vestia. E ela lhe deu o segundo sorriso. Mais pontual, talvez dizendo. Não pedia nada ainda. Era o sorriso informante que vinha de algum vilarejo longínquo e pouco comentado, onde habitava a vida sem fazer alarde. Havia mais proximidade, e olhando em volta, podia-se notar um vaso de sete ervas encostado à porta da casa amarela; de resto, era só pensamento. Mas como um eco, aquilo se chegou assim sem encontrar nada, e aos poucos se foi. E ela lhe deu um terceiro sorriso. Cheio de possibilidades, lábios frágeis pedindo. Como um beija-flor que aparece à janela e para de súbito em frente à mulher que prepara o almoço. Sabia ela. Sempre soube, ali; agora um pouco mais. Almofadas forradas de um tecido verde cítrico e nuvens espalhadas pelo céu vão avisando, e ela aguarda. E depois, sobravam horas na tarde e dias no ano. Mas sempre havia aquele medo de acabar no fim - relógios de parede contemplam casas de família, até que morrem. E ela lhe deu um outro sorriso, e outro e outro e outro; e, desesperados, os sorrisos sobrepostos começaram a dançar, e a se propagar sem bloqueios até alcançar a multidão que até então apenas assistia, e todos começaram também a sorrir; um sorriso frenético que era riso só. E não explicava nem trazia nada. Então ela se pôs a chorar que não teve mais volta.   




Caixa de lembranças que eu não tive

Guardei um monte de coisa pra ver contigo, Meu Amor, olha aqui, você tem que ver, tem que se sentar aqui pra ver isso que eu achei nessas revistas de viagem, que eu guardei pra ver com o amor da minha vida quando aparecesse (sim, eu sei que já te falei do primeiro, mas me refiro a ele como meu grande amor, nunca falei que tivesse sido o amor da minha vida, que seria até muita hipocrisia da minha parte, não só por estar agora contigo, mas por ter estado com muitos outros depois daquele e antes de, enfim), eu guardei aqui, oh, essa CAIXA de lembranças que não tive; taquí escrito do lado DE fora, olha, prestatenção, tô te mostrando: LEMBRANÇAS QUE EU NÃO TIVE. Esperava encontrar com quem compartilhar. E eu até comecei esse projeto (que isso aqui é mais que um sonho, é um projeto de vida, tu tá me entendendo?) duas relações atrás eu iniciei esse projeto de vida, mas não deu certo porque eu mal planejei a relação. As duas coisas tem que andar juntas, né. Aí depois eu tive outro namorico, mas tinha uma vida sexual tão intensa que eu abandonei a poesia da vida (a poesia era eu gozando noite adentro! ßisto aqui eu pensei, não disse alto). E teve aquela minha namorada da faculdade, tu te lembras? Eu te apresentei! a gente se encontrou por acaso aquela vez que te convenci a entrar num pubzinho num rompante saudosista meu; a gente tava passando em frente, quase bêbados, que decidimos não pegar táxi e vínhamos andando de mãos dadas, daí entramos no tal pubzinho sem que eu te avisasse, nem você questionasse, que era GLS (hoje GLBTS, não: LGBT). A gente entrou e eu dei de cara com a Érica. Engraçado, agora me veio o nome assim, com os cabelos bem cacheados dela, aqueles cabelos bem loiros, os olhos castanhos acobreados, tu te lembras? Chegou a reparar? E ela sempre usou aqueles decotes que deixam as sardas do colo aparecendo, eu achava tão lindo isso. (AMOR, TU TÁ ME OUVINDO?) Engraçado, tô aqui pensando agora, eu não sei por que terminei com a Érica. Acho que só porque era mulher. Que tola eu naquela época, ã-ã! Tu acreditas? Tô agora aqui pensando, nem sei por que me lembrei dela, deve tá pensando em mim também... amada...! Ela teria adorado essa caixa de lembranças; era tão romântica. Queriiiida... ela iria amar se eu telefonasse e dissesse que, e dissesse apenas, mostrasse a caixa. Tenho certeza de que ela iria querer fazer disso um roteiro, um mochilão de um ano, assim, viajando, anotando, fotografando, sabe? Ela gosta muito disso. Nossa, a Érica. Amor, você se importaria d’eu telefonar pra ela? Assim, só pra saber o que anda fazendo, se está namorando, casada; também não vou convidá-la pra vir aqui do nada, nem acho bom que venha aqui, porque, ah, sei lá, um constrangimento misturar passado e presente, e não teria privacidade pra deixa-la abrir a caixa, se emocionar; ela é muito emocionada com as coisas, com certeza vai chorar, me abraçar sem palavras, e, ai, amor, desculpa mas, eu preciso sair eu preciso sentir eu preciso telefonar para a Érica e dizer que, e dizer.

Ilustrações: (1) Colagem com monotipias e xilo - Ramon Rodrigues
                  (2) Xilo sobre panfletos - Ramon Rodrigues




Priscila Lopes (Florianópolis/SC) nasceu em 1983. Formou-se em Relações Internacionais, especializou-se em Comércio Exterior, atua profissionalmente como Analista de Projetos & Propostas em TI, e paralelamente a tudo isso, desde criança se dedica à literatura. Destaque em concursos e seletivas literárias, já foi contemplada com bolsa da Biblioteca Nacional e selecionada para publicação através do FUNCULTURAL/SC. É autora de “Uns traços, todos imponderáveis” (Editora da Casa, 2010) e “O Livro Espantado” (Editora Patuá, 2014). Coorganizadora da coletânea nacional “XXI Poetas de Hoje em Dia(nte)”, publicada pela editora Letras Contemporâneas. Integrante da antologia “Cantares Catarinas - A Nova Poesia Catarinense” (2010), editora Todaletra.
Home:www.priscilalopes.com
FanPage:fb.com/priscilal0pes


Antônio - Homero Gomes

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Ilustração: Tomie Ohtake

(Ao som de One, Metallica)



“Não havia gritos nem silêncio, apenas esse estranho ruído que a ira e a batalha juntas produzem.”

(Xenofonte, Vida de Agesilau)



A casa era repleta de santos, velas e crucifixos. Os móveis cheiravam a velharia, cânfora e pinho. Era aconchegante, exceto pela penumbra espessa que cobria os olhos.
Dona Izaura era viúva. Pouco depois da morte do marido, nascia um menino gorducho.
Seu filho foi uma criança normal. Antônio.
Era saudável e sorridente. Até completar sete anos.
Durante o verão, as tempestades eram frequentes. Numa delas, um raio caiu, provocando queda de energia em toda a cidade.
Quando retornou, dona Izaura percebeu que seu filho olhava estaticamente para um dos crucifixos da casa.
Não havia nada de errado com o crucifixo. Cristo permanecia ali, preso à cruz. Mas a partir daquele dia, Antônio desligava-se da realidade.


Dona Izaura chamou alguns médicos da cidade, mas todos lhe diziam a mesma coisa: Seu filho está catatônico. Procure um especialista.
Um jovem psiquiatra da universidade passou alguns dias levantando dados para um possível tratamento.
Então, dona Izaura, a catatonia de seu filho é resultado de estresse pós-traumático. Muito provavelmente é consequência do raio que estourou na cidade durante aquela tempestade.
Mas por que ele não tira os olhos daquele crucifixo, doutor? Isso deve ser algum sinal.
É realmente um dado interessante, mas é apenas coincidência, respondia com prepotência o estudante de psiquiatria.
Mas tem que haver algum motivo!
Um catatônico se desliga da realidade, ficando isolado em um mundo só dele e impenetrável. Seu filho, dona Izaura, não vê aquele crucifixo... Nem mesmo a nós dois ele ouve. Se a senhora prefere acreditar em crendices, eu não tenho como ajudá-lo. Procure outro especialista. Um padre, por exemplo.


Os primeiros anos não foram tão difíceis. Dona Izaura foi se acostumando à doença do filho. Ignorando o olhar estranho que seu filho dirigia ao crucifixo. Antônio passou a viver em uma cadeira de rodas. Algumas beatas da cidade passaram a considerar o filho de Izaura um santo. Faziam rezas, acendiam velas, implorando por milagres.
Alguns milagres realmente aconteciam.
Foram vinte anos de peregrinações e missas realizadas dentro daquela casa simples e bolorenta.
Durante uma das orações na penumbra de velas, todos os crucifixos da casa giraram, deixando os cristos de cabeça para baixo.
Os fiéis se apavoraram, se benzeram e saíram correndo. As únicas pessoas que ficaram na casa foram dona Izaura, Antônio e o padre, que tremia por dentro da batina.
Mas Antônio permaneceu imóvel, olhando o crucifixo, como fazia há duas décadas.


Antônio passou a ser chamado de filho do demônio. Muitos propunham ao padre que o exorcizasse.
As visitas cessaram, as orações também; porém, os crucifixos continuaram a ficar de ponta-cabeça. Dona Izaura não vencia colocá-los no lugar, pois retornavam sempre à antiga posição.


Passaram-se seis anos nesse tormento. De santo, o filho de dona Izaura havia se transformado em demônio.
Mas no verão, junto às tempestades, os crucifixos pararam de girar, deixando dona Izaura mais tranquila.
O padre voltou a visitar a casa de Antônio, o filho do demônio.
Foi numa dessas visitas do padre – prolongada devido à tempestade forte que se instalara rapidamente – que Antônio se manifestou de maneira mais forte e clara.
O piso começou a tremer, depois a casa toda, jogando no chão os armários, cristaleiras, santos, velas e crucifixos.
Apenas um crucifixo permanecia imóvel, aquele que Antônio olhava fixamente há tantos anos.
Quando o tremor passou, Antônio se levantou da cadeira de rodas e começou a andar pela casa.
Dona Izaura chorava, crendo em um milagre.
O padre, estático, não acreditava no que via.
Depois de caminhar em silêncio pela casa toda, Antônio se dirigiu ao padre e a sua mãe, com os olhos arregalados de ira. Gritava.
Quantos sinais, mãe, terei de fazer para que você me dê ouvidos? Será que era tão difícil? Foram vinte anos olhando este crucifixo, como um santo, e depois mais seis deixando toda cidade apavorada, pensando que eu me transformara no próprio demônio. Será que era preciso eu fazer essa bagunça toda para que vocês prestassem atenção em mim?

Antônio, então, se acomodou melhor na cadeira de rodas, fechou os olhos por algum tempo.  Quando os abriu, eles já não possuíam o brilho de antes. Olhava estaticamente para o crucifixo, tal como fizera durante todos aqueles anos.


Homero Gomes

O lugar da poesia no mundo

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" O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude." Escreveu Martin Buber em ' Eu e Tu' prosseguem em nosso tempo fragmentado em que é aceita a dualidade das atitudes mas não a do mundo, dicotomias terríveis, entre teoria e prática, ato e pensamento, atuação e presentificação e por aí vamos... Poetas continuam sendo vistos como ' micos-leões-dourados' , 'águias-anãs-de-cabeça-branca' e em alguns casos leopardos das neves ou seja animais raros, semi-extintos, os próprios poetas louvam esta visão de si mesmos como semi-extintos e raros, quando a poesia é comum e parte da tessitura dual do mundo. Lá vem você com filosofias, dirão os chamados ' seres pragmáticos' de certo modo adoecidos por causa da tensão permanente criada pela dicotomia, ela mesma uma doença, não existe separação entre teoria e prática , entre ato e pensamento, pensar é um ato e isto é mais do que óbvio, o pensar poeticamente o mundo é atuar poeticamente no mundo, isto está dentro das possibilidades como uma dupla verdade para o poeta, para a lavadeira, para o gerente de banco e para o terrorista.

Marcelo Ariel em ' Apostila 01- ' O lugar da Poesia no Mundo ' para a Oficina 'Escrever um livro ' que se inicia em julho na Estação da Cidadania em Santos-SP

4 poemas de Pedro Tostes

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Jardim Minado

O amor
       este
             jardim minado
por onde
             caminhamos abraçados
lado a lado
              com o inimigo.

Este conto
           de safadas
   farsa
          mal contada
                      - mentira reinventada
na qual
        sempre acabamos
                         caindo
novamente.

Olha,
      olha ali.
                Do outro
lado da pista!
              Não é ali?!
não é ali?!
            que morreu
o coração
          atropelado por um taxista?




Negativado

É tudo simples, como se não tivesse solução. Segue adiante, firme e forte. Faz de conta que tanto faz. Mas toda hora a sala vazia torna duro fingir que eles não estão ali. Parados, imóveis, estáticos e me observando.

Esses malditos fantasmas e seus boletos de cobrança.

Mas é fácil sorrir. Viver demais mais um pouco. Passear no palco como quem pulsa. Mesmo se não for bem assim, a gente aperta a pasta de dente até o fim pra tirar um restinho de vida. Maldita mania de fortaleza. Sentinela, bom escoteiro, sempre alerta, pronto a resolver qualquer situação. Eles apenas observam e riem: são a minha plateia.

Esses malditos fantasmas e seus boletos de cobrança.

Hoje não, eu tô bem: quase não sinto nada. Só essa pequena mancha que insiste em existir bem no meio da minha cara. O simulacro vai muito bem, obrigado, até anda dando autógrafos. Pensei mesmo em deixá-lo no meu lugar: faz esse papel melhor que eu. O problema é que eles não deixam, eles insistem.

Esses malditos fantasmas e seus boletos de cobrança.

Então a gente paga de louco. Procura refúgio no hospício. Corre e beija na boca, bem gostoso, a própria insanidade. Baila, gira, aperta a bunda dela. Ela ri gostoso, mas te nega o último beijo. Danadinha. E quando você acorda, no outro dia, você sabe quem é que está lá te esperando, do lado de fora do quarto. Finge que não, mas o saldo negativo insiste em te avisar.

Esses malditos fantasmas e seus boletos de cobrança.



Poética

A poesia é mesmo caso sério:
vez por outra vai parar no cemitério.
E sempre volta, como um
zumbi literário.

A poesia brasileira anda broxa,
não mata a cobra,
esconde o pau
e espera ansiosamente pelo
próximo edital.

A poesia brasileira contemporânea
é esquizofônica;
uma hora fala duro,
na outra difícil (e demonstra
pouca propensão a atirar-se
de edifícios).

A poesia brasileira corrente é polida,
faz foto pro cartaz, gosta
de ser notícia no jornal, do caderno
de resenhas, é bonita
limpinha, correta e erra pouco.
Fuma mas não traga,
estupra mas não mata
e tá sempre em cima do muro.

O poeta? Que se foda! Ele que morra duro.





Hard Porn

         penetro
 cada elemento possível
         :
dedo, mão, coxas entre
                       laçadas, boca, língua,
cheiro
      ; você,
                    gulosa, sorve
e abduz em sua boca
                    o favo
do mel a te temperar
                     com uma alegria
infantil e uma
    fúria
         indecente enquanto se
             posta de quatro e
pede "bate!"
             ; as ancas latifundiárias
se expandindo em minha
                 frente
                        enquanto me enfio
e domino todo colo
              do teu útero e
                          cutuco o fundo
                  da sua carne
       com minha vara
em riste
                    ; as cinturas
seguindo o pancadão
                    , frenéticas
, enquanto ardem
          no lombo e avermelham
               as marcas da mão
- na cara, na cara!
                        ; ela é cada palavrão,
                               nome impróprio,
                         armageddon, despiste
                      de deus, próprio inferno
; arde
           menos a pele
que a alma
      se entregando
por qualquer desejo
      , adoradora fálica
               , famélica
                           ; se revira
, ergue o torso sobre a cama
cavaleira que só
                 , nas pradarias
   da sua própria pele umedecida
                            pela
                       cachoeira
                    de vertigens
 
;  ninfa
       , o calor dos seus
 domínios saqueados
         por hordas
, em chama os vales
                   , florestas
   , você
       entregue ao próprio
     fogo
                    ; "o anel que tu me destes
                     tinha prega e se rasgou
                    . foi chorar o seu cuzinho
                        : a vaselina acabou"
      ; encaro
             o
        buraco
             o
            co
       e fundo
            do
 teu cu aberto
            lo
            go
      relembro
      a lua, o
         astro
   nauta lento
      fincando
             o
        mastro
            no
          solo
     iluminado

                  ; as britadeiras na rua
                  são mais lentas que meu
                        sadismo sodomita,
             estocada,
  estocada,
                     estocadas as energias,
         epicentro do
teu gozo,
           terremotam
                      o corpo que liquefaz-se
e, antes da morte
                   anunciada
   , recebe no rosto o jorro
              do chafariz em lava
 e lava a cara suja
                     da porra
                     do amor.



Ilustrações: Corviid,deviantART



 
Pedro Tostesé poeta reincidente e insistente. Já teve seus livros apreendidos e ainda sim não aprendeu. Fez parte da Poesia Maloqueirista, mas lembrou que sua mãe sempre o aconselhou a evitar más companhias. Editou a revista “Não Funciona”, cujo título expressa bem o sentido da sua vida. Seus crimes anteriores são também conhecidos como “o mínimo” (Ibis Libris, 2003), “Descaminhar” (Annablume, 2008) e agora este “Jardim Minado” (Patuá, 2014), no entanto comete publicações em antologias e revistas desde 1996. Detesta escrever minibiografias, pois não gosta de apresentar crachá, preferindo o escracho. Quando risca palavras com sua pena, quase arrisca ter razão.

Segredos e filmes

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Às vezes ela faz isso, sabe? Manda mensagens pra mim usando os títulos dos filmes. Mas não em sequência no mesmo canal, sabe? O trajeto dos filmes na planilha passa de um canal pro outro, se contorce, descompensa. Tem de ser muito secreto, porque se alguém descobre a verdade imediata por detrás

pensando melhor, tem nada demais não. É só Verô, que só recebe contracheque pra passar recibo de que todos fazem empreendimento no rentável negócio de energia a cabo. Transmita informação, melhor ainda! Anteciparam todos os tipos de funcionário, pra incluir no orçamento e vencer a concorrência. Contudo, coitados - como iriam imaginar que algo tão frívolo faria diferença a esses vaidosos excêntricos, os consumidores? Isso mesmo, bravo desbravador de parágrafos: não havia quem escolhesse a programação dos canais!

Arranjaram depressa a garota que parecia talhada com formão para a função: sua classe rica não se arriscaria em nenhuma vocação! Vagou de Marsailles a Varselha, paga pelo pai, na esperança de gastar na luz seus verdes anos. Mas agora, depois de toda sua experiência em folguedos insolentes, Verônica tem seu lugar na gloriosa cadeira atrás da mesa de uma função para a sociedade!

Não recebe, encara a coisa como um estágio. Mas se arroga a liberdade de mandar indiretas sobre nosso estranho amor, pra qualquer paranóico que por um aflito acaso seja versado em criptografia quântica ficar sabendo? Talvez tenha até um caso com ela, e essas mensagens, pelo próprio fato de existirem, na verdade estejam dizendo que eu me manque, que ela já me dispensou. 

Ou talvez ela tenha esquecido que fui o único a sacar a safira claríssima de sua vida, lânguida como uma raridade? Por que uma pele de leite escorrendo pelas almofadas macias, comendo amêndoas ou castanhas de caju? Por que ela foi sair de casa hoje? Por que aceitou o emprego, e agora vive cercada de gente importante, cujo maior medo é que o mundo gire em seu torpor e saiba tudo que ela faz! Esses caras não têm vida! E tudo por que? POR QUEEEE?



Sei também que sua função lhe permite enxergar e encarregar à grade, acrescentando o quanto lhe agrade programas que, por um lamentável engano, há muito não eram produzidos.

Foi o caso do dia em que eu cheguei atrasado em nosso encontro, e quando ligo a tevê a cabo descubro; ressucitaram o "show da quinta atmosfera". Mas como metade do elenco não mexeria mais um braço agonizante pra fora da velhice, assinaram apenas contratos para a cessão de direitos. 

O primeiro episódio da nova temporada, versão depois da guerra, da última guerra que você se lembra, sentiu o cheiro da chuva na terra, era quase a trincheira molhada, esse primeiro episódio se chamava "lave a roupa dos mais velhos". Até aí tudo bem. 

Por mais que eles cheirem a hospital abandonado. E fiquem na sua frente nos corredores estreitos da Oportunidade. A primeira pessoa chega, está pronta pra passar o sabão na droga da roupa, uma pinóia de roupa clara, que a luz do sol chega a peneirar a malha, mas quando vê está atrasada. ah, Verô! Coincidência pra cima de mim? Eu acho que nããão!

NÃO DIGA NUNCA

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Querido Max

Eu sei que você deve estar vendendo cerveja na praia e que por isso não tem tempo de aparecer aqui para nos ver. A cidade está cheia de turistas e é uma boa oportunidade para tirar um dinheirinho extra. Eu sei. Não precisa me explicar. Quem não precisa de dinheiro neste vale das balsameiras? Lembra quando a mãe nos falava isso, Max? Que só o comércio nos salvaria. Que escolas fazem gente inteligente para um desemprego nobre. Escolas são para gente de mãos finas e delicadas, não para nós. Eu sei que você está vendendo cerveja na praia. Leva salgadinhos também? A praia é tão longe de tudo e aquela gente rica fica com fome cedo, mesmo de barriga cheia. Alguém lhe ajuda nisso? Pode me dizer. Não se envergonhe. Não devemos nos envergonhar do trabalho honesto. Max tem vergonha de me dizer que vende cerveja na praia. Que precisa andar quilômetros para chegar até lá. Uma praia em que costumávamos nadar, pescar e catar siris para comer mais tarde. Hoje aquelas águas estão sujas. Não há mais siris. Não sei por que ele tem vergonha de ser um ambulante. Um ambulante que não se desvia do seu caminho para me visitar. Não vem vender na minha porta. Hoje está chovendo e Max não deve estar na praia. Fico pensando onde Max está numa hora dessas com essa chuva. Em casa. Sozinho. Ruminando. A mãe se preocupava muito com você, Max. Com sua felicidade, os seus vícios, a sua falta de uma religião, de uma luz para colocar no candeeiro. Eu também fico em casa vendo filmes na TV. Mas eu tenho Deus dentro de mim. Leo trabalha o dia inteiro naquela maldita serraria e até que precisa de uma ajudinha sua. Não tem ninguém lá com ele agora. Max sempre detestou a serraria do meu marido. Acho que detesta mesmo é o Leo. A serraria é uma desculpa. Max tem ciúme de Leo. Do meu casamento. De mim. Éramos muito apegados até Leo aparecer. Um dia, numa volta da praia, Max me beijou na boca. Os siris se debatendo na cesta. Eu senti pela primeira vez uma alegria coberta de vergonha entardecida e voltamos correndo pra casa. A mãe rezando pra Fátima. Max não deve se lembrar disso. Eu me lembro sempre que vejo beijos nos filmes. Quando Leo me beija na cama não é a mesma coisa. Beijo de marido. Não é igual. Não sei explicar. Assinamos um papel para nos beijar. Um contrato. E você espera receber ou entregar o que está no contrato. O beijo é o carimbo. Não é assim? Max, você é um autônomo, como dizem. Pode vender o que quiser e onde quiser. Não precisa se envergonhar. Você é livre. E a liberdade, neste mundo curto da gente, é uma tocha acesa sobre a cabeça dos justos. Vou fazer o jantar agora e gostaria que você aparecesse. Num barco. Eu queria um barco. Max não sabe disso. Eu sempre quis um barco. E ser feliz. Para Max ser feliz é vender cerveja na praia da Beira. Para Leo, cortar madeira. Feri-la em portas e janelas. Mesas para pobres. Mesas para ricos. Para a Santa Ceia. Você vai aparecer no Natal, Max? Leo não quer fazer um barco pra mim. Diz que não tem tempo. Que com barco é diferente. Ele não sabe cortar madeira em barco. Não sabe pescar. Pegar siri. Não sabe o que é praia. Não sabe o que é um barco desaparecendo aos pedacinhos no mar lá longe. 

Não diga nunca que não vai me ver mais, Max.



Raul de Leoni e a Melancolia da Eternidade

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Afinal, é o costume de viver
que nos faz ir vivendo para frente;
nenhuma outra intenção, mas simplesmente
o hábito melancólico de ser...
(Em Decadência)

Raul de Leoni (1895-1926) foi, ao lado de Moacir de Almeida e Da Costa e Silva, o grande poeta da Belle Époque brasileira, essencialmente por representar quase todos os estilos poéticos de uma época, em um perfeito espelhamento. Somente em sua Luz Mediterrânea, publicada em 1922, há poemas que se aproximam de um Neo-Parnasianismo e de um Pós-Romantismo, outros plenamente simbolistas, e tantos outros que somente traçam o gosto personalíssimo do poeta, cuja alma focalizava as civilizações antigas, num ambíguo desdém à civilização contemporânea; ambíguo pois, ao mesmo tempo em que a poesia de Raul de Leoni simplesmente não dava amostras de qualquer modernidade (no sentido vanguardista, visto que a sua obra foi escrita durante a ebulição do Modernismo brasileiro e publicada exatamente no ano da Semana de 1922), as suas observações acerca das explosões dos movimentos vanguardistas foram extremamente conscientes.
Àquela época, além dos Simbolistas da primeira geração que ainda viviam e publicavam esparsamente, Gilka Machado já calcava a sua gloriosa carreira literária e Hermes Fontes também trilhava o rumo célebre, mas ambos eram, então, Neo-Simbolistas sem concessões para versos neo-parnasianos ou huguianos, muito comuns a Moacir de Almeida, Da Costa e Silva.

Raul, por sua vez, quando declarava-se uma “Alma de origem ática, pagã/ Nascida sob aquele firmamento/ Que azulou as divinas epopeias/ Sou irmão de Epicuro e de Renan,/ Tenho o prazer sutil do pensamento/ E a serena elegância das ideias...” (em Pórtico) aproxima-se dos helenistas e de um epicurismo consciente (ao contrário do que os nossos ultra-românticos cultuaram, distorcendo o conceito de prazer do filósofo), que viria, em alguns poemas, desaguar em um estoicismo não muito distante do que pregava um Marco Aurélio, das Meditações, por exemplo.
 
Raul de Leoni: distante do dandismo de vários Simbolistas.
Créditos: ABP Casa Raul de Leoni
Mas como um poeta Simbolista, também partilhou da visão do malogro tão cantada por Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e pelos portugueses (Antônio Nobre, principalmente). No belíssimo “Noturno”, eis que se faz o poeta um assinalado pelo seu tristonho destino - e ele o acata, resignado de sua “maldição”. É um longo poema, mas é essencial que seja transcrito por completo:

NOTURNO (em Luz Mediterrânea)

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Os pinheiros pensavam cousas longas,
Nas alturas dormentes e desertas...
O aroma nupcial dos jasmins delirantes,
Diluindo um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava e adormecia
O ar meigo e silencioso...

A ronda dos espíritos noturnos,
Em medrosos rumores,
Gemia entre os ciprestes e os loureiros...

Na penumbra dos bosques, o luar
Entreabria clareiras encantadas,
Prateando o verde malva das latadas
E as doces perspectivas do pomar...

As nascentes sonhavam, em surdina,
Numa tonalidade cristalina,
Monótonos murmurinhos,
Gorgolejos de águas frescas...

Sobre a areia de prata dos caminhos,
A sombra espiritual dos eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da aragem,
Projetava ao luar desenhos indecisos
Ágeis bailados leves de arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...

E das perdidas curvas das estradas,
De paragens distantes,
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas traziam
A longa, a pungentíssima saudade
De cavatinas e mandolinatas...

Lembro-me bem, quando em quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo impertinente,
Roendo um som estridente,
Arranhava o silêncio...

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Eu era bem criança e, já possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos deslumbrados,
Passei a noite inteira, o olhar perdido,
No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno
Dos eternos espaços constelados...

Era a primeira vez que eu contemplava o mundo,
Que eu via face a face o mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite silenciosa.

Era a primeira vez...
E foi aí, talvez,
Que começou a história atormentada
Da minha alma, curiosa dos abismos,
Inquieta da existência e doente do Além...
Filha da maldição do Arcanjo rebelado...
Sim, que foi nessa noite, não me engano,
- Noite que nunca mais esquecerei -
Que – alma ainda em crisálida - velando
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu senti e pensei
O meu primeiro sofrimento humano
E o meu primeiro pensamento eterno...

Como fora do Tempo e além do espaço,
Sem ser princípio, espírito sem fim,
Sofria toda a humanidade em mim,
Nessa contemplação imponderável!

Já nem ouvia o trêmulo compasso
Das horas que fugiam pela noite.
Que os olhos soltos pela imensidade,
Numa melancolia deslumbrada,
Imaginando coisas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me perdia
Na ideia das esferas infinitas,
Na lenda universal das distâncias eternas...

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...

Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a vertigem
A suave virgindade do meu ser!

Já a lua transmontava as cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em sobressalto;
No pátio das mansões, na granja das herdades,
O cântico dos galos estalava,
Desoladoramente pelos ares,
Acordando as distâncias esquecidas...

E, então, num silencioso desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do espaço eterno
Em reticências trêmulas, sorria
A ironia longínqua das estrelas...


Pouco comentada é a feição Pós-Romântica de Raul de Leoni. Em seus versos do estilo, não chega a cantar com exatidão a sua musa – contradizendo o descritivismo parnasiano -, mas discorre de uma maneira intimista, não raramente fantasista, brumosa, sobre a relação entre o sujeito-lírico e a sua amada, de certa forma precedendo os nossos Penumbristas e Impressionistas literários (Pádua de Almeida, Onestaldo de Pennafort, por exemplo). Vejamos um exemplo:

HISTÓRIA ANTIGA (em Luz Mediterrânea)


No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube porque foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe o que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...

O diálogo que há com o soneto “O Último Escombro Florido”, de Onestaldo de Pennafort (em Recapitulações, de 1934), é evidente:

(…)

Mas tudo isso se foi... E ontem, passando,
por tua casa, ao ver o teu jardim
que a hera daninha, aos poucos, foi matando,

pensei em ti, no nosso amor, em mim.
Em nós também – eu já nem sei quando -
houve uma cousa que morreu assim.

Nas célebres antologias sobre o Simbolismo, Raul de Leoni figura como um poeta de verbo maior, muito superior àqueles poetas que, apesar de se terem declarado totalmente Simbolistas, não produziram uma obra significativa como a do autor de Luz Mediterrânea. Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao falar sobre a posição do vate petropolitano em nossa literatura, nos dá uma posição mais ponderada do que a de Andrade Muricy (que o colocava como um poeta hors concours, espelho da Renascença): “Sem falar em seu platonismo, que já seria decisivo (os simbolistas acreditavam no mundo das ideias, e não nas coisas, meras aparências), também sua doce melancolia, certo esfumaçamento de contornos, sua expressão mansa e espiritual, colocam-no sob o signo do Símbolo.” É evidente que o Simbolismo de Raul de Leoni passa longe da expressão abstrata e de livre-associação de alguns poemas de Cruz e Sousa (principalmente em seus últimos livros), mas negar a característica simbolista em sua obra é negar o próprio poeta. Inevitavelmente, o grande exemplo é

 A HORA CINZENTA  (em Luz Mediterrânea)

Desce um longo poente de elegia...
Sobre as mansas paisagens resignadas,
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distâncias desoladas...

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas
Na penumbra nostálgica, macia...

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência,
Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

Os sentidos se esfumaçam, a alma é essência,
E entre fugas de sombras transcendentes,
O Pensamento se volatiliza...

Em um outro soneto de Leoni há um diálogo belíssimo com uma obra do poeta simbolista Silveira Neto, autor do importantíssimo Luar de Hinverno (1901). Vejamo-los:

LEGENDA DOS DIAS  (em Luz Mediterrânea)

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...”

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera.

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

E o soneto “Sombra” de Silveira Neto, presente em Ronda Crepuscular (1923):

Escureçam-no as trevas e a sombra
da morte.
(cap. 3, Nº 5)


O Ocaso, a arder no seu deslumbramento,
Põe fímbrias de ouro pelo céu. Na estrada
O crepúsculo segue o passo lento
De alguém que vai ao fim de uma jornada.

Vede-o: só tem por acompanhamento
A própria sombra pelo solo; e cada
passo que muda reza-lhe o memento;
E a sombra é cada vez mais alongada.

Outra maior, porém, seu passo apanha
No íntimo d'alma, a suplicar piedade;
Pobre viajor que desces a montanha.

É aquela que nos traz, sombra dorida,
O crepúsculo amargo da saudade
Ao fim da marcha fúnebre da vida.

Inegável também, como já se deve ter percebido, é o cromatismo crepuscular na obra de Raul de Leoni, como um cantor das civilizações e dos impérios em suas perpétuas decadências; de certa forma, uma aproximação temática, não estética, do poeta com o Decadentismo francês. A “beleza do que se finda” está presente não somente no já transcrito “A Hora Cinzenta”, mas também em “Torre Morta do Ocaso” (“Como és profética de longe... quando,/ Na moldura do poente de ouro e rosa,/ Interpretando todos os destinos,/ Vais por todos os ventos espalhando/ Tua filosofia dolorosa/ Na balada sonâmbula dos sinos!...”) e mais evidentemente em “Melancolia” (“Poente!/ Estas horas que vão passando, surdamente/, Nunca mais voltarão no tempo imaginário/ No jardim solitário,/ Estão-se desfolhando, ingloriamente,/ Tantas rosas divinas, a sonhar.”) e no belíssimo “Crepuscular”, soneto que transcreverei por completo:

CREPUSCULAR  (em Luz Mediterrânea)

Poente em meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção com que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencidas de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...

À época em que vivia o poeta, muito comum era o Cientificismo e a pregação de superioridade de raças (muitas das teses baseadas em testes de frenologia, como as absurdas considerações criminológicas de Lombroso). Um exemplo: discutia-se naquele início de século a possibilidade da realização de uma eugenia – de uma “boa geração”, portanto; ou seja, da separação dos “bons” (brancos, ricos, atletas) e dos “ruins” (negros, epilépticos, alcoólicos) para que os então considerados danosos à sociedade confirmassem a crença de “esterilização” e desaparecessem graças às suas condições biológicas desafortunadas, de acordo com as ciências da época. Raul de Leoni escreveu a sua “Eugenia” - de uma genialidade ímpar -, mas não referente às atrocidades que poder-se-iam prever do método cientificista:

EUGENIA  (em Luz Mediterrânea)


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heroicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longo o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo,
E do teu ventre nasceriam deuses...

Raul de Leoni, ao lançar a sua Luz Mediterrânea em 1922, correu o mesmo risco de muitos grandes poetas celebrados àquela época mas devorados pela convenção geral ao Modernismo (como, por exemplo, Hermes Fontes). Salvou-o, talvez, a sua serenidade de expressão, colocando-o como um poeta formal, vasto em penumbras e metáforas filosóficas, mas sem partir para a verborragia de alguns poetas menores ou da pura e fria poesia de acaso de um Martins Fontes. O seu caso situa-se ao lado da explosão expressional de Augusto dos Anjos. Se ambos diferenciavam-se absolutamente daquele momento de erupção do Modernismo – e por isso não foram devidamente apreciados em vida (Leoni foi mais do que Augusto, claramente) -, também nos é evidente que as suas poéticas tornaram-se fortalecidas com o passar do tempo, pois são muito à frente de qualquer estouro vanguardista ou de adaptações modistas; fortaleceram-se também porque do Simbolismo nutriram-se com o que havia de mais revolucionário: a imagética do ser atemporal, que é, afinal, a condição eterna do homem sob o signo da sugestividade.




[as guerras búdicas: nosso templo/ nosso tempo] por alexandre guarnieri - parte 2

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o monge desse tempo pede fast-food online, frequenta versões simuladas de incríveis orgias gregas com transexuais made in thai, remixa ao vivo os mantras que canta, é DJ numa rave no cume do monte Fuji, é hacker e reprograma seu kharma transferindo dharma do banco de dados de algum iluminado recém-cadastrado, depois, ingere substâncias que regeneram seu funcionamento metabólico e volta ao zero, ao centro sereno de sua consciência [ a esta altura não haveria sistema sagrado que não pudesse ser burlado por algum freelancer, cada hábil hacker de kharma, desde que disponível, seria sempre bastante requisitado, por controle bionívoco nas sub-rotinas ( é o que diziam os antigos ) porque é o comando mais indicado para o álibi do servidor-lakshmi ] / o monge desse tempo passa de alucinado a lúcido num único segundo aplicando um minúsculo choque elétrico numa área delicada de seu córtex cerebral - esse raro neuro-aparelho é de fabricação caseira / nosso monze gen, caso algo saia errado, caso haja um curto-circuito, tem guardada uma mente sobressalente na cabeceira, junto aos sutras escritos em páli por Sidharta, espalhados entre os discos de Sinatra / o monge desse templo se suicida com diesel na lua cheia de maio, na última ceia do Vesak, se incendeia em protesto ao aumento abusivo do preço da lâmina descartável da qual depende para raspar a cabeça/ de suas cinzas engenheiros genéticos indo-tibetanos, sino-japoneses ou afro-coreanos o farão nascer de novo, o sucessor de si próprio na escala sagrada dessa única linhagem religiosa, um gênio, um gêmeo artificial transgênico: o monge zen desse templo é tão sério, e ao mesmo tão excêntrico!




/ máquina búdica hum /



/ máquina búdica dois /




*    *    *







Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial de mallarmargens e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ), de 2011, é seu livro de estreia e está disponível aqui. Seu próximo livro, "Corpo de Festim", será lançado em 2014. Email.




5 poemas de Paula Autran

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Para Deter a Enxurrada

Escrever como quem canta uma canção que faz chorar.
Escrever como quem crê. 
Escrever como uma mãe que vê seu filho pela última vez.

Escrever para rasgar o peito com as próprias mãos
para fazer sangrar 
para fazer doer
para fazer chorar.

Escrever como quem toma a última dose de morfina,
como quem bebe a última gota de água,
como quem usa a última bala na agulha.
Escrever como o alguém 
que acabou de ser expulso 
do ventre de sua mãe,                                                                                                                          como alguém que acabou                                                                                                                         de ser expulso do Paraíso.

Escrever como quem goza pela primeira vez,
como quem ama pela primeira vez,
como quem puxa o ar na inspiração final.

Escrever como alguém que se                                                                                                            balançana beira do abismo,                                                                                                                           que abre os braços
para se jogar do precipício. 

Escrever para lembrar do que dói
para que pare de doer
para que doa mais.
Escrever para ferir.

Escrever para que a chuva venha,
para que o sol queime,
para que o frio arda.

Escrever no fio do facão,
no olho do furacão,                                                                                                                                    na boca do vulcão.

Escrever sem esperar resposta, 
sem esperar aprovação, 
sem esperar sentido.

Escrever para deter 
a enxurrada.




  

Todo mundo que eu conheço.

Todo mundo que eu conheço tem levado
muito a sério a palavra envelhecer.
Todo mundo que eu conheço
tenta loucamente dar um sentido à 
essa palavra, verbo, sentença, definição, 
sina.

Então, eles se olham com muita seriedade
e fazem caras de sérios
e circunspectos

e falam muito
sobre coisas como: 
o que estão fazendo,
o que estão pensando
e como estão cansados.

Todo mundo que eu conheço
termina as festas muito cedo
porque estão cansados e ficarão
muito cansados amanhã
porque estão muito cansados 
hoje.

Todo mundo que eu conheço tem quase 
quarenta
ou quarenta mesmo
ou quarenta e uns poucos
e parecem muito amedrontados.

E eu que fiquei com muito medo
muito antes dos quarenta agora
quero rir,
quero dançar
quero dormir muito tarde quando posso

e quero acordar muito cedo
e rir com meu filho
e dançar com ele no meio da sala,
no meio do quarto,
no meio da rua.

Quero escrever muitas peças de teatro que
ninguém vê,
que ninguém lê, que ninguém monta e
me divertir mesmo assim.

Quero chegar na festa e falar besteira
e olhar para as nuvens e rir com gente 
que não vejo há 
vinte anos quando era 
jovem e muito séria,

pois muito jovem eu não sabia 
que
quem não tem medo de morrer
morre apenas uma vez.






 Tudo que nunca fizemos juntos.

Acabei de te mandar pelo correio uma caixa
na qual escrevi assim:
tudo que nunca fizemos juntos.

Lá tem uma viagem ao Chile,
uma ida ao Ceasa,
a compra de um apartamento na
Rua Arthur de Azevedo, em
Pinheiros.

Lá tem também
uns passeios de bicicleta aos domingos
e a festa do nosso casamento.

Tem o nascimento da Clarissa
e uma ida à Rússia para tomar vodka
legítima e transar sob a neve,
sendo observados por Lênin.

Tem mais umas músicas que
a gente não conhecia,
e um curso de história da arte
para fazermos juntos e
arrumarmos um jeito diferente de brigar
com conhecimento de causa.

Tem mais um ou outro sentimento
que a gente não sentiu
e algumas brigas (poucas) que a gente
não brigou.

Tem também um pôr do sol
diferente,
tem a aurora boreal
que a gente não viu

e tem uma ou outra receita de carne assada
que eu não cozinhei para você,
com as ervas que te faziam tanta falta
na minha comida
cheia de afeto e pouca razão.

Então, quando essa caixa chegar aí
faça o seguinte:
abra, leia com calma
e faça um mapa
com tudo o que a gente não fez junto.

Isso tenho certeza, vai te ajudar
a não repetir diariamente
todo o traçado da nossa vida
anterior.

Isso vai te ajudar a
reconstruir uma vida,
sem copiar ipsis literis
tudo o que fizemos,
construímos,
sonhamos,
vivemos,

ao lado de alguém que nem faz idéia
de que pisa todos os dias no mesmo chão
que o nosso amor
adubou.

  




 Meu novo dicionário.

A chuva cai e eu não consigo escrever os mil 
textos pendentes
nem dar os mil telefonemas urgentes
nem ir nadar e perder as mil calorias a mais.

Só penso que depois de amanhã
você faz três anos
e, portanto, eu faço quatro.
E para alguém de quatro anos
nem sei muita coisa.

Você sabe bem mais,
sabe até daquilo que tola eu 
pensei que poderia te esconder 
para sempre.

Passa pela rua e enxerga tudo:
as formigas carregando as folhas, 
o espinho no talo da flor
a migalha do pão caído no chão
e de novo a formiga que vai levá-la depois.

Você vê o ciclo todo da vida
e eu passo tropeçando (e esmagando)
tudo o que habita abaixo 
da sola do meu sapato. 

Nesses anos aprendi a só acelerar o passo 
quando
surge o degrau mais alto da calçada,

e a renomear tudo,
principalmente a palavra amor,
que desde que você chegou por aqui, 
nunca mais foi usada 
em vão.





Ode aos jornais.

Eu gosto dos jornais, das revistas.
Gosto de deitar ao sol lindo como o de agora
e tomar cerveja e ler revistas, jornais. 

E gosto especialmente dos jornalistas 
de ver como pensam nas manchetes,
nos olhos, nos lides, nos abres.

Gosto dos jargões, da inteligência, 
da objetividade buscada e nunca encontrada,
porque impossível.

Gosto desses Sísifos das palavras.
Cresci entre laudas, me eduquei ouvindo 
o barulho aconchegante
das máquinas de escrever.

Fui criança intrusa nas redações gigantescas 
dos jornais
Fui colaboradora, estagiária, foca.

E torço para que nunca se acabe a possibilidade de 
correr contra o vento atrás da fugidia página de jornal, 
que misturada à areia, insiste em não se deixar 
aprisionar entre meus dedos ávidos.

 
Poemas de Manifesto de mim mesma (Editora Patuá), 2014

Ilustrações de Natália Lemos



Autora do livro de poemas Manifesto de mim mesmaPaula Autrané mestre (e doutoranda) em artes cênicas pela ECA/USP. É formada em história (USP) e jornalismo (PUC). É autora do livro infantil Vovó Rock and Roll (editora Prumo), co-autora da peça infanto-juvenil Tirando um Som(editora Paulus), do relato jornalístico A Volta dos Mutantes (sobre a banda de rock, Editora Publisher Brasil), e de Peças (edição própria) com cinco peças de sua autoria. Teve seis peças encenadas, entre elas a infantil Armário Mágico, com a qual foi indicada como autora revelação no Prêmio FEMSA. A peça também foi adaptada para o Teatro Rá Tim Bum, da TV Cultura. É integrante do Centro de Dramaturgia Contemporânea. Também ministra aulas de dramaturgia e escreve textos jornalísticos. E muito recentemente passou a se auto-intitular escritora.

CONTO DE ANDERSON FONSECA

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A maior notícia da história


Liga-se a TV. Canal de notícias *** 

O jornalista diz: – No instante em que nossa mente deparou-se com a ideia de Deus, pensamos ser Ele o nosso criador, e uma pergunta começou a nos inquietar: “Como reagiremos quando nos encontrarmos com Deus?” Hoje, teremos a resposta. O cientista sul-coreano, Chin-Hae, e o norte-americano, Samuel Johnson, enviados pela NASA em 2048 numa missão exploratória da lua Titã, encontraram, após cinco anos de pesquisa, nosso criador. Este é o momento mais importante da história da humanidade. Em alguns segundos, graças ao Sistema de Comunicação Interplanetária (ICS)  uma rede de satélites posicionados ao longo da trajetória da Terra a Saturno  assistiremos ao vivo, Samuel revelar-nos Deus.

Conta-se 20 segundos. O tempo dilata-se na tela luminosa. 1 segundo depois...

 É chegada o momento, o Dr. Samuel Johnson...

Subitamente o jornalista é interrompido e o cientista surge na tela.

 Estou emocionado, jamais pensei que veria a causa de minha existência. Por séculos buscamos nosso criador nas estrelas, miramos para longe, além do espaço e tempo. No entanto, ele estava aqui, perto de nós. Dr. Chin, por favor, aproxime a câmera.

A câmera se aproxima do rosto de Samuel, e depois desce. O foco centraliza-se na mão dele, está segurando algo, a imagem não é clara.

 Contemplem o criador...Deus é uma bactéria. Esta forma de vida primitiva contém uma cadeia genética similar a nossa. De algum modo ela veio até a Terra e nos deu origem.

Samuel segura uma lâmina fina na mão esquerda, na direita, a foto da bactéria.

Ninguém do outro lado da tela crê no que vê. Ninguém... E, de repente, como um raio que desaparece no céu, a transmissão acaba.

  


*    *    *



Anderson Fonseca, nasceu em 1981 na cidade do Rio de Janeiro. Formou-se em Letras pela Universidade Estácio de Sá.  É escritor, editor, crítico e consultor literário. Como escritor publicou o livro de poesia Alucinação (ed. Multifoco, 2009) e Notas de pensamentos incomuns (2011). É editor do selo Orpheu poesias da editora Multifoco. Editor Chefe da revista eletrônica de arte e cultura Aliás e editor assistente da revista Confraria, Brasil/Portugal (edição impressa, 2009). Editou por seis anos o blog Escritos do Exílio,  onde publicou textos experimentais de prosa e poesia. Tem textos seus publicados nas revistas Confraria (ed. impressa, 2009), ZunáiMaria JoaquinaCronópiosCeluzlose e Germina Literária. Leia contos e poemas do autor aquiE-mail.

O tempo na poesia de Nayara Fernandes

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Imagem de Christoffer Relander


Pudera eu ser poesia



Pudera eu ser poesia
como o vento, esvaindo-se no tempo.
Semente sendo.
Pudera eu ser poesia
como o tempo, intento da ciranda sem ritmo certo.
Acertando sempre a música do peito.
Pudera eu ser poesia
me apoderando da sombra com motivo
de sobra para ser refúgio.
Reino dos alívios almáticos.
Pudera eu ser poesia
fogo esquentando o frio
e afeto afagando dentro dores insolúveis.
Pudera eu ser poesia
luz sem sombra devolvendo a leveza
somatória das doçuras muitas.
Quisera eu ser na poesia
o amor dignificando a Vida,
exaltando a alma dos amantes – estrelas dos versos eternos.




Ávidas asas (tem a vida)


Vida
ávida
 leva os dias.
Tempo voa
(veloz-voraz-denso)
esquecendo de ser sereno –
leve intento do vento.
Leveza vai
e não mais volta,
brisa a leva para além do horizonte.
Pelo sol ilumina-se.
Na maciez das nuvens adormece.
Repousada de si –
ali eterniza-se.
Vida ávida voa.
Tempo não ver a beleza das suas cores.


Idioma do desejo


às vezes o pouco diz tudo
o curto se alonga  –  dentro
os silêncios gritam no peito
muda o tempo
move o vento
o ventre d’alma carrega sentimento
o tiquetaquear do relógio
embala o movimento
alma baila
corpo para –
congela
o idioma do desejo
são os gestos
os dentes trincam
a boca fecha
o peito bate
os poros abrem
alma pare – e exala
como pétalas de rosa.




Além do sonho


Serei abraço e manto
ou qualquer sorriso bobo.
Serei fuga e refúgio
ou qualquer brisa te acariciando o rosto.
Serei a alegria que te aviva a alma e a doçura te visita os olhos
ou qualquer besteira que beija os lábios um riso.
Serei alarde no silêncio triste, silêncio se paz te falta.
Serei o canto que te encanta os dias e o sol que te amanhece a vida
ou qualquer semente que te nasça flor nas dores.
Seria se um dia fôssemos o que não somos, além do sonho,
ilustrados numa foto.


***

Queira-se!
 Como se quer o outro,
 defeituoso. 

Mas se quer porque se ama.
 Se quer em suma

 – carne e osso e vícios muitos.






Nayara Fernandes nasceu em 02 de setembro de 1988. Nordestina, piauiense, filha de Terezina.  Estudante.  Acredita que poeta não se faz: se nasce. Entre poemas e prosa, publica em "Onde Cantam os Pássaros”. Planeja ser jornalista e publicar seu primeiro livro.



Dez tábuas

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Jadir João Egídio - Escultura em madeira





















I (palavras)

em curso
as correntes
áureas algemas
no pulso
taquicardia
taquigrafia
fluxo
em curto
a energia vaza

para o caos
bastam 10%.

II (salvação)

Para o fundo
o ferro fundido
em Cremona,
o ver de olhos livres,
das meninas da gare,
a máquina do mundo
dos irmãos Dante & Drummond,
o concreto
entre design e divino,
clowns e espectros de Shakespeare,
o anjo Gabriel bêbado
no Cabaré Voltaire.

Não há mais reservas
para o Paraíso.

III (império)

Os ratos robustos
em seus turvos discursos
de tungstênio e medida milimétrica.
Vetustos sacripantas da onipotência
em ilusões de ética
para répteis.
Lixocracia,
o mal hálito do poder
arrota democracia
com tropa de choque,
estatísticas falsificadas,
demagogia.

Fezes e vermes,
a gosma de Leviatã.

IV (sentidos)

Carne sem tecido
ideias
no oco de ossos
sombras
no balé das ruínas
de signos fixados
simulacros
crucificados
nos objetos perdidos
entre a estação central
e a borda
do abismo
onde tudo desaba.

Sem noção,
tudo sem noção.

V (verdade)

Tratados teológicos,
cartas de princípio,
documentos secretos,
agendas,
certidões negativas,
ordens de despejo,
intimações da justiça,
cadernetas de vacina,
listas de compras.
declarações de fé,
relações de bens,
declarações de imposto de renda,
históricos escolares.

Em nenhum arquivo
vive a verdade.

VI (tempo)

Dez mil amigos virtuais,
um novo mausoléu flutuante
para embalsamar o tempo
em saquinhos de saquê ou de sacolé.
Nenhum espaço
sem preenchimento,
todos os mil itens obrigatórios.
Não esquecer sorriso permanente
frases  de vencedor,
expressões de triunfo.
Acúmulo de bolsas
e acessórios.

Os vírus hackearam nosso fígado.
Os vírus apagaram os relógios.

VII (amor)

Só me lembro de Eros
quando o computador
dá pau
e aparece error
no monitor.
Os grandes amores
gosmentos
congelados no freezer
para toda a vida
sempre haverá outra
saída.

O amor morreu de retórica
pouco antes do almoço.

VIII (inimigo interno)

Há algo comigo
que não assimilo.
Em mim
o mais distante
horizonte
rasga o umbigo
e segue adiante
indiferente
ao meu pânico,
um afluente
inverso
- rio de matéria escura-
corre em refluxo constante,
ilegível verbo evasivo
inconjugável
conjura a falência dos sentidos.
Entre pleura e pneuma
o trânsito de inessência
intratável,
um lance
sempre fora de alcance.

E se eu for
somente aquilo que me escapa?

XIX (corpo)

Parafusos de titânio
no maxilar
para que as palavras
fora de fuso
soçobrem horizonte
eviscerado.

Da carne em ganchos
e febre
no frigorífico
pingos de suor
desgastam frágil guarda-volumes.

O rosto
profano sudário
fora de uso
trêmulo desenho
inconcluso.

Movimento peristáltico
do corpo
nuvem difusa
suicida
no vaivém
das cordas vocais.

Extirpar do rosto
todas as cidades perdidas.

X (horizonte)

Prestar atenção
ao excesso
não para podá-lo
mas ampliá-lo
até o limite
insuportável
do palco
onde ondas
desabam
círculos
em debandada.

espreitar
o que se acumula
como pus
nas palavras
extremas
espremê-las
em linhas
no sentido anti-horário
até não mais
alcançá-las.

Todo excesso
também é um deserto.

O QUE SALVA VOCÊ?

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O que é que salva você?

Ainda uma conversa entre um casal. Liamos juntas, eu e elas. A fera na Selva. Henry James. Ele também defende que há forma além do conteúdo. Que a forma diz tanto quanto o conteúdo. Que sem a forma alguns conteúdos se perdem. Dizem que existe o ético da fala. Creio, em sua companhia, o estético. O estético que vise o ético e tente supor, para gerar boas fantasias, que a coisa-dita e a coisa-ouvida encontrem-se no mesmo discurso. Sendo da mesma procedência.

Ao tentar responder o que o salva da mediocridade mundana, da possibilidade de não ser absorvido pela multidão, a personagem sugere que desvendará uma verdade. Verdade esta que, quando dela nos aproximamos como leitores, torna-se difícil aos olhos. Parece que o que nos salva é difícil de ver. As letras começam a se tornar cinzas juntamente com o papel. Entramos na espera deles, desejamos saber o que os salva para nos salvar também. Olhamos para frente. Esperamos. Saímos ilesos da vida esquecida. Olhamos para o futuro. Foco! Precisamos de foco ou não conseguiremos sequer distinguir as letras da forma-escrita. Ela também aguarda, faz da sua verdade a espera da verdade dele.

A Fera é suposta na espreita. Desejamos, como exibicionistas, feras na posição de ataque (deixamos vestígios). Ela observa, a fera os ronda e não ataca. Há vidas sem feras. Há vidas na espera de que uma fera apareça. Ao ver uma fera, por pura identificação, posso desprender a minha antes amordaçada. Mas há fera nele. Há espera. Pela fera. É preciso que haja fera. Há espera. Pelo momento certo em que ela aparecerá e será ou morta por ele ou a própria assassina. Um minuto a mais. A máscara da dissimulação não cobre o olhar do buraco dos olhos. Não houve fera.

Foi uma espera vã? Ou foi a espera?
A mão já não tinha os mesmos traços, o rosto é irreconhecível, o corpo perde a rigidez. Espere! A pele tão branca quanto a cera denuncia os escritos de suas histórias. As rugas escreveram  seus corpos.

Aconteceu. O mundo havia acontecido. Em outro lugar. O fracasso se deu com precisão absoluta. A letra torna-se branca. Sem graça como o branco. A página, todavia, é tomada por um luto. Empretece.
        

Fechamos os olhos.

4 poemas de Homero Gomes

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Afecções do Ausente

Poeira negra e veneno no ar.
O mundo continua após tudo,
mesmo que nada.


Pilhas de corpos,
seres sem metafísica,
para o passeio, entre sangue e vísceras,
do oculto na neblina da história.


O ausente ainda olha um mundo infectado.


E dele não ri.
É o sorriso apagado no muro das cidades;
o que foi
e que se perde a cada feto que brota.


Retirado à força,
embalou o espírito na necrose do outro.


Mas o outro não importa;
somente o que se foi.


Chega de vermes e de vísceras.
O sangue que escorre da gengiva
chora o que foi arrancado da inércia.


O ausente apenas sabe,
não chora o sangue ingerido,
que rega de espinhos o ventre do outro.
Apenas sabe.


Sangrado feito lixo,
ainda olha a sua ausência.


Ele sabe.
Em um mundo infectado, resta apenas sua marca.



Fogo das Veias

Legumes pelo asfalto
e
óleo nas sarjetas.

O dia na pressa acumulada dos dedos feirantes.

Sob luz morrediça de postes,
braços compridos,
inscrições criptografadas nos muros abandonados à sorte.

Recostado na umidade que escorre pelo reboco,
o vazio nos ombros.

Cílios compridos vestidos de olhos verdes,
secura nos sentidos,
querendo o escondimento pela peruca azul.

A cidade passa lenta.
Odeia o corpo transfigurado com o fogo de suas veias.




Pó nas Pálpebras

Luz na janela pingando pontos de pó nas pálpebras,
pingando pontos de luz,
enquanto sentado espera o peso do corpo sumir.

O vaso de papoulas ao lado,
o cheiro de mofo que sobe dos pés
e a alegria de ainda possuir cigarros.

Se distrai olhando as voltas da fumaça,
olha o ar com olhos embaçados de tempo.

Não procura resolver enigmas.
Dos seus problemas não espera iluminação.

Fuma o último fumo
e espera o ar transparecer.

Da janela, brotam pingos de pó,
Mas as pálpebras se fecham.

Enrolado, o pescoço enruga com a pressão.
A corda estica e o peso consuma o fim e some.

O tempo cessa.
O pó descansa.


Prometeu

ele falava do que conhecia
sentia nos pelos de seu corpo o torpor das almas desorientadas
sua voz ecoava pelo vale


amordaçado
pretendem matar a voz


inoculou no sangue humano
o desejo


amordaçado
pretendem deter o vírus


a importância da voz
e de sua reverberação pelos espaços


amarram pés e mãos
prendem seu corpo a uma montanha úmida e nua
tapam-lhe a boca
corda e violência


o vírus
que se espalha
enquanto escorre o tempo


amordaçado
pretendem anular os atos inoculados nos homens


HOMERO GOMES

Poemas de Solidão de Caronte (Editora Patuá, 2013). O poema Fogo das Veias foi publicado na antologia Fantasma Civil, da Bienal Internacional de Curitiba (2013) e Pó nas Pálpebras foi musicado por Bárbara Eugêniapelo projeto Reversos, da revista Nego Dito.

Ilustrações : deviantART

Outros Jabs Literários - Edson Valente

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lustração: Haen9, deviantART



PERGOLADOS
  
Aprendi a conhecê-la pelos silêncios.
Como quando se ouve uma música. As pausas ditam o ritmo,
dão o tom. O que preenche é mero contrapeso para o que falta.
Da mesma forma que os esquecimentos constroem uma
personalidade. Os vãos da arquitetura. Os necessários lapsos
para manter alguma coisa de pé. Senão restariam apenas ódio e
indignação, um travesseiro duro de tanto enchimento a impedir
o sono reconciliador.
O rancor. Pelos pequenos e grandes avanços e retrocessos.
Quando as facas estiverem já sem ponta, poderão receber as
mais sinceras carícias. O entendimento pela maturidade. Mais
que isso, a aceitação.
Aprendi a amá-la pelas ausências.
Ao mesmo tempo que aprecio a estática do descompromisso,
sinto falta do grito. Da perseguição. Da lamúria esganiçada.
O respiradouro emite um desassossego agonizante, mas mil
vezes seu barulho que a lassidão da morte. Mil vezes a raiva e o
desprezo.


 
DOMINGO

Quão nefasta é a calmaria que bateu à porta do quarto
pela manhã. O sol alaga a piscina esvaziada com um clarão
emudecido, os gritos da ópera no recuo da audição amenizam
a sobriedade do vizinho que largou o vício do sonho. O avião
deixa no cimento a sombra dura de sua carcaça, levando pra
longe as cores dos guias de viagem. Chia o peito asmático da
TV com insônia desde a madrugada. Alguém saiu para comprar
o pão e voltará com uma nova tristeza. Cada minuto sustenta
o desespero, marcado na paralisia do relógio quebrado. A força
das ausências se mede nos círculos que os copos imprimiram
nas superfícies mais secas, os rastros mais palpáveis do
abandono, sinais do incompreendido detalhados na geometria
do inevitável. O despertador já está programado para as sete
horas, a segunda-feira é a certeza que resta.
  


MISSIVA
  
O sinal de sua presença em minha ausência. Colei os olhos
em cantos indefinidos da arquitetura do templo em que me
prostrei, joelhos arrebentados de súplica, as negações formando
estalactites que apunhalam as sombras do meu rastro. As veias
pingam o choro dos órgãos torcidos, a formar poças para a rega
da colheita minguante. Mas o paganismo é exercício de pleno
direito, então esqueça as orações que ensinei. Confesso que
nelas insisto ainda com tremor na consciência, mas chegará
o dia em que a repetição será nada mais que o mantra do
esquecimento.



A ILHA DE BRUNSTEIN
  
O silêncio que antecipa toda tragédia. A encomenda recebida
sem atraso, o cinto de segurança que não falhou. As crianças
sorriem na aceleração da montanha-russa. O médico chegou
a tempo e o dentista tinha espaço na agenda. Mulheres se
empetecam com frivolidades no salão de beleza, o show é
aplaudido com entusiasmo. Casais saem abraçados do cinema
e comentam o filme sob o deslumbre dos diletantes, antes de
dividir um frapê de coco na lanchonete disfarçada de anos 50.
Em tudo, porém, a centelha e um pequeno rastro de pólvora.
Supostamente imperceptíveis. A página a ser virada pelos de
Dos úmidos dos pessimistas, os agourentos que nada mais fazem
senão entender o movimento de rotação em sua plenitude.
Esses que colocaram sua cama no quarto do pânico e, antes de
apagar a luz, verificam se há qualquer sinal de estremecimento
na superfície empoeirada do criado-mudo. No estampido da
desgraça, sentirão, com um egoísmo irrefreável, o alívio de
constatar que, desta vez, ainda não foi com eles.



APOCALIPSE
  
Amores que se esbarram, mas nunca se encontram. Poemas
desperdiçados. Desejo cuspido ao relento, enquanto a noite
ergue paredes sóbrias para a ala dos perdidos. Quarenta palmos
de silêncio, o Cruzeiro do Sul está morto. Disseram que o
mundo vai-se acabar em pranto, mas há muito venho chorando.


Edson Valente


Textos de  Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014).


Article 1

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(epítetos de hécate)


:: dominadora de tudo :: castanha assassina :: visionária maior :: portadora do fogo :: 

:: indomável :: germinadora de flechas :: mãe de tudo :: amante de cadáveres ::

:: olho selvagem; face-de-fera; bebedora de sangue :: rondadora da noite, a da bandana brilhante, rainha das cadelas :: 

:: dona das encruzilhadas :: aquela-que-tudo-transforma :: terna, delicada :: espírito da alegria ::

:: comedora de sujeira :: a da terra e debaixo da terra :: a dos sândalos dourados ::

:: lady ::





rubens zárate
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