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"CHARLES", UM CONTO DE MARIEL REIS

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Charles, arrume os brinquedos antes de sair. Charles, não esqueça o casaco; está frio. Charles, não crie nenhuma confusão no colégio, não quero aborrecimentos. Charles, por favor não mate nenhum amiguinho. A vizinhança não gostará nada se a sua mania de colecionismo retornar. Foi muito difícil se desfazer das cabeças dos outros meninos.
             Charles, outra coisa, liberte as meninas presas no porão, elas precisam pegar um solzinho. Charles, você está me ouvindo? Você está em casa ainda? Está surdo menino? Charles?
             Bati a porta de casa, saí à rua com a cabeça cheia dos conselhos de minha mãe. Ela não tem gostado nada de minhas novas companhias. Sempre criticando todo mundo, sempre apontando um defeito, sempre. Esse amigo não é grande porcaria, Charles. Esse outro é um pateta. Por que não arruma uma namoradinha? As meninas do porão, elas são um charme.
            As meninas do porão são três órfãs com que minha mãe me presenteou em meu último aniversário. Elas são brancas, loiras e compridas. Mamãe cortou-lhes a língua. Não lhes falta nada. Uma ou outra vez levo meus amigos para brincarem comigo e divertimo-nos a valer com as três. São nossas escravas, diz um de meus amigos. Não, não são escravas, elas podem fazer o que querem. Podem ir para o quintal tomar sol? Podem, se quiserem. Amarro uma corda ao pescoço de cada uma, sobem a escada, atravessam a sala, cruzam a porta, tiram toda a roupa e deitam-se na grama. Elas quase não tem pêlos. Eu não gosto de pêlos. Quando crescem, procuro raspá-los. Elas não se opõem, ficam quietinhas. São obedientes, muito obedientes. Aprenderam que não podem me contrariar. Não gosto de maltratá-las, não tenho ninguém além delas.
            Quando mato meus amiguinhos e lhes arranco a cabeça para enfeitar a estante de casa, sinto uma solidão grande. Não terei ninguém mais com quem conversar. Não consigo evitar o meu impulso. Sou obrigado a isto, é a minha natureza.
            A gente vive mudando de casa. Eu vivo trocando de escola. Minha mãe vive saindo do emprego. Tudo por minha causa. Tudo porque não consigo me controlar. A psicóloga pediu a minha internação, mamãe não deixou. Meu filho não tem nada de errado, dona. Se você não consegue fazer direito o seu trabalho, não culpe meu filho. Em quê universidade você tirou diploma? E saía comigo, me arrastando para fora do consultório, contrariada.
             Um homem, de uma das escolas, vestido de negro, apareceu certa vez com um assistente social. Eu estava sozinho em casa. Eles tocaram a campainha. Tocaram, tocaram, tocaram. Eu me escondi. Peguei a cabeça de um rapazinho lindo, embrulhei-a e a pus na lixeira da cozinha. Fui até a porta. Abri. Sua mãe está? Posso falar com ela um minutinho? A minha cara pareceu estúpida a eles. Olhavam-me como se estivessem diante de um alienígena. Mãe, mãe, gritei para dentro de casa, sabendo que não obteria resposta. Minha mãe não está, quer deixar recado?
            A minha educação e meus modos polidos espantam os dois homens. Tudo bem, filho. Pode entregar a ela nosso cartão? Estendo minha mão gorducha para tomar da mão seca o retângulo de papel com nome e telefone do assistente social. Muito obrigado, rapazinho. Eles saem. Limpo o tapete da porta. Quando cruzam o portão, não me obrigo a sorrir mais. Volto para a cozinha, retiro de lá a cabeça da lixeira e a ponho novamente na estante. É o meu troféu.
            Desço ao porão. Elas estão se penteando. Voltam-se para mim. Aponto para uma delas que tira a camisola. Os seios com sardas me atraem. Comprei em uma venda de garagem um aparelho de choque parecido a um carregador de bateria. Prendo as tenazes nos bicos enegrecidos pelas descargas elétricas. Minha mãe me chama, pergunta por mim.
            Charles, Charles, apareça. Tenho uma surpresa para você. Filho, largue essas songamongas e suba aqui. Os olhos úmidos e compridos, languidos e penetrantes, abandonam-se quando o meu interesse é esmorecido. Mãe, estou aqui embaixo, vou subir já. As três voltam a se pentear. Olhe aqui, meu filho, veja bem. Você precisa devolvê-las para a casa de adoção. Está caro demais. E você não pode escondê-las a vida inteira. Minha mãe está certa. Desconverso.
             A campainha toca. É meu amigo. Vai comigo à escola todos os dias. Meu quarto está uma bagunça. Tudo espalhado. Ouço: Charles, arrume os brinquedos antes de sair. Charles, não esqueça o casaco; está frio. Charles, não crie nenhuma confusão no colégio, não quero problemas. Charles, por favor não mate nenhum amiguinho. A vizinhança não gostará nada se a sua mania de colecionismo retornar. Foi muito difícil se desfazer das cabeças dos outros meninos. Charles, outra coisa, liberte as meninas presas no porão, elas precisam pegar um solzinho.









*    *    *



Mariel Reis (Rio de Janeiro, 1976) é originário do limítrofe bairro carioca da Pavuna (vizinho à baixada fluminense), graduou-se em letras pela UERJ e integrou os conselhos editoriais das Revistas Confraria do Vento e Paralelos. Seus livros lançados são "Linha de recuo e outras estórias" (2005), "John Fante trabalha no Esquimó" (2008), "Cosmorama" (Poesia, 2009) e "Vida cachorra" (2011), este último com prefácio de João Anzanello Carrascoza e quarta capa de Paulo Lins.  Em 2012 lançou "A arte de afinar o silêncio" (leia aqui uma resenha); E-mail. 






uM CoPo De PRoSa

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Um copo de prosa 
câmara ardente 
a viva voz 
A cintilação dos olhos 
Temperados pela transparência 
da luz 
A abertura dos poros 
Aparelhados pelas aerovias 
do momento 

Ainda no segundo copo 
falar das novas 
para o lado do azul 
ainda que estanque 
e sem defesa 
contra esta membrana cinza 
túrgida desses dias férreos 

e desse continente não se veja 
uma tampa removível 
um istmo, que fosse 
mesmo algum trilho 

No terceiro 
das contemplações e inquietações 
crescentes 
algum velho projeto tão aquém, 
incompleto, carcomido
novo tornando-se atraso 
mas por princípio resistindo 

das gorduras excessivas 
em relação a um tempo pretérito 
dos anos decorridos com valor 
demonstrativo 
indicador de posse presente 
ou futura 

Depois 
sensíveis ouvidos oscilando 
entre a gravidade e o riso 
mansos e serenos, receptores 
de um jato 
das águas passadas 
mesmo quando a língua cheia 
de demônios 

Nesse caso 
pode dar-se o recontágio 
do espírito 
uma reaproximação coronária 
ao que ambos fomos 
um precipitar-se para dentro 
do subsolo dos afetos 

e então toparemos com a fonte 
renovada e verdadeiramente 
viva 

O quarto da atriz - Chico Lopes

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Ilustração: Toque Noturno, Chico Lopes


           Aproximar-se do retângulo verde-escuro com descascados sobre um azul-claro fenecido, tomar posse da visão esquiva, não era para qualquer um. Fora a vida inteira assim, janela difícil para os candidatos a espiões, emoldurada por paredes apagadas, sempre fechada.
      As camadas atestavam que o tempo passava - eu estava indo para os vinte e três anos e a mulher envelhecia, mas menos que outras. “A gente dizia que era feito a Jeanne Crain...”-  lembrava uma dona de restaurante. “Que Jeanne Crain?”.  “A irmã boa de Gene Tierney no filme “Amar foi minha ruína”. Não, não adianta, você não vai saber...”, ela balançava a cabeça, suspirando.
     “Jeanne”, fosse quem fosse, sabia ocultar as rugas, e nada de se parecer com minha mãe. Era ainda bonita. A rua parecia mais larga e mais leve.
    
     Rua que insistia em não ser como as outras: ainda não se apagara de um muro um anúncio de Adhemar de Barros para governador. Eu passava, pegava algum fio de Chopin que saía daquela casa, participava de um sonho imobilizado cujo encanto poderia ser quebrado por um som de atualidade – qualquer ruído brotado de mim representaria uma falta de escrúpulo. Meus passos ficavam menos pronunciados. Soletrei “Jeanne” à turma solenemente, como se cada letra obedecesse a uma caligrafia artística. Nicanor me ouviu com incredulidade e risinho. Conhecia o nome verdadeiro dela, muito comum, comparado àquele. Olhou para mim, todo indulgente, todo superior aos meus ardores de iniciante.
   - História muito velha. – Ele cuspiu partículas de fumo de um cigarro amassado na boca. Passava dos cinquenta e reinava sobre nós como um oráculo avacalhado, desfibrado por cachaça. – Não casou, mas teve dois – o primeiro caiu no mundo e o segundo, todo mundo garante, era louco. Parece ter dado pra monge, ouvi dizer que se meteu nalgum mato por aí e ela levava comida pra ele. Nada comprovado. Também, se teve outros, escondeu bem. Não olha pra ninguém, mas não é louca mansa. Só muito orgulhosa...- Parecia colocá-la numa pilha mental de refugos, de lembranças locais que o deixavam mais tolhido, condenado, precisado de um novo copo. E o pedia. Alguém completava, aludindo a um fuxico antigo: haveria noites em que ela dava um sinal – um papel de bala que deixava cair no banco de praça onde estava; era o escolhido recolher e segui-la, rumo à rua da Biquinha. Eu saía, insatisfeito. Teria que voltar mais vezes para o quarteirão.

     Gente espremida, coisas que a nova cidade encurralava com bares, lanchonetes, carros estacionados com toca-fitas estrugindo música sertaneja, lojas de 1,99, de conveniências, e difícil chamar de “footing” o que havia na rua 15 de Janeiro, mas uns remanescentes, de idade indefinível, ainda subiam e desciam. Sem esperar mais nada, cumpriam a rotina por nunca terem tido outra coisa ou imaginação para sequer cogitar dela. Milagre que ainda andassem para cima e para baixo, sem rumo, que não fossem nomes nos anúncios da funerária colocados nos principais pontos da rua.
      Ela também deslizava entre estranhos, trabalhadores novos do comércio e das fábricas, putas adolescentes, tipinhos tatuados, de camisetas e bonés virados, se indignando com o que entreouvia, baixando a cabeça para a maior parte do que a cercava, escolhendo um ou outro banco para sentar-se, ainda abanando-se com leque. Vez em quando, o rosto muito branco, os olhos grandes, desapareciam sob um tufo de algodão-doce cor-de-rosa.. Ou parava num carrinho de sorvete de palito. Contava moedas, lerda.  Resistia bem ao equilíbrio nos saltos altos. O perfil para trás – olhasse o quê? - por sobre o ombro lisinho e virava, subitamente, figura de camafeu. Multidões que a ignoravam, que a esmagavam, de que ela se desviava, estóica, ancorando-se numa bolsa. Por vezes, um pulo à igreja, mas olhava por sobre as cabeças e retornava, desanimada. Muda. Nunca respondia a um boa-noite que fosse.
      Eu me vestia com a melhor calça e camisa. Noites, noites, meses saindo com a camisa aberta – meio quisesse atenção para meu tórax, para a exaltação que agigantava meu corpo – descia facilmente, levitando, mais impelido que aturdido pelo calor, para o canto de quarteirão de onde olharia para a janela. Num dado momento, da pouca luz vazada pela veneziana, o quarto daria sinal de estar aceso. Antes, com um recuo maior para trás de uma sibipiruna, era vê-la chegar da rua e entrar, fazendo ranger o portão. Vez em quando, parando, dava um jeito no cabelo, colhia duas, três asinhas brancas ou roxas de manacá. Nada em seus gestos e olhares se parecia remotamente com um sinal.
Uma noite, escondida da chuva sob o toldo de uma farmácia, como eu, incomodada com os que se encostavam em seu vestido, se amontoavam sobre ela, molhando-se no aperto com o oblíquo das rajadas, cravou-me os olhos. Únicos. E eu não podia – nem queria – deixar de ser examinado.
                                                            
     
        Duas idas a uma zona, nada mais. Nada no espelho que indicasse desses que atraem, fazem muito e podem alardear números com convicção: Nicanor, afundado sob cinzeiros e copos, fora casado duas vezes e se separara, mas ainda tinha camas a visitar regularmente, de corpos jovens – sabia irradiar uma competência viril tranqüila; Jaime me incomodava, insondavelmente bem-sucedido, os dentes ordenados e alvos como de propaganda, cavanhaque para cofiar com pose, velado, inteiro, senhor de si; Rubão nada dizia, mas vivia pronto para escarnecer de quem falhasse, feito existisse para saber de podres que o deixassem à vontade em sua pequenez. Ninguém a quem eu pudesse confessar fraquezas, ninguém de quem eu pudesse escondê-las completamente.
      Diante da janela, imitando um certo jeito de amassar cigarro nos lábios, esperei. As finas riscas de luz lá estavam, desafiando-me a imaginar o que ela fazia lá dentro, como se movia, o que preparava. Olhei para o alto, vi o círculo branco dos curiangos, a lua, a vastidão negra e funda do céu, zero voraz, nada que se movesse, o calor, as árvores não acusando uma brisa de alívio. Fiquei até meia-noite, e nada aconteceu.
   - Cretino.
    Era a voz de Rubão. Talvez fosse a de Jaime. Talvez a de alguém dentro de mim que, ciente de que não se devia fiar em olhar feminino algum, por fixo que fosse, tivesse todo direito a algo que soava como um pontapé.


       Passos diurnos em direção à porta da frente? Não tinha um pretexto para uma visita, só ficar nas cercanias do muro, não saltá-lo e não ir até à porta, ladeada por duas paisagens a óleo pintadas diretamente nas paredes. A casa só tinha como vizinhos dois terrenos baldios e uma residência desabitada. Que eu passasse, que eu olhasse, e nunca coincidia de ser um momento em que ela estivesse pelo lado de fora. Voltando da rua, num meio-dia, passou sem me ver. Vi que o sol não a desfigurava, embora uns senões ficassem visíveis; meio que amaldiçoei a luz e fechei os olhos para recuperá-la noturna, incerta – a lua com seus filtros, as voltas pela praça, sob néon e mercúrio, e as ruas escuras, lhe eram mais favoráveis.
      Decidido: nessa noite, pular o muro. Circundar a casa, ficar ciente do que via apenas da rua, apossar-me do âmbito, o luar escasso e as muitas árvores acentuando meu furtivo. Dei com um quintal de grama alta, descuidada, de onde emergiu – e se escafedeu – um gato amarelo. Dentro da casa, ruídos mínimos. Mas, alguém se movia. Uns arranhões em acordes aleatórios, o piano, uma valsa muito lenta. Fui executando a volta em torno da casa obedecendo aos dedos dela - como seriam? - nas teclas, pernas tremendo e coração engolfado; apossei-me dessa topografia, desses desenhos, paredes, portas de fundos, pisos, tijolos quebrados, e, longe, alguma ave noturna, empoleirada no alto, alertando. Encostei-me àquelas paredes, excitado, esgueirando-me para frente, para finalmente ficar junto à janela, passar os dedos sobre sua madeira, afagá-la, descascá-la mais um pouco. Era preciso urinar, urinar livremente, para tornar tudo isso mais completo. Era meu, era eu.
     Acenderam-se as riscas fininhas, às quais meus dedos imediatamente se agarraram, ávidos e frustrados por tão pouco. Passos. Pedaços os mais parciais, os mais incertos, de uma figura que se movia, e depois parava. Não era implausível que girasse, falando sozinha – uns resmungos muito distantes, um balbucio, uma pergunta a ninguém e uma resposta a nada. Sentava-se na cama. Levantava-se. Onde inexistiam dados, a imaginação erguia possíveis. À falta de ver, escutar. Um fiapo de choro. Era agora só aquilo, aquilo, um ponto obscuro capaz de reter, resumir toda a noite, concentrar toda a minha atenção: a mulher que chorava, chorava para si, ignorante do que a cercava, de qualquer possibilidade de testemunha. Chorava enormemente, e eu olhava para fora, para toda a noite, sentia toda a cidade, todos os Nicanores, todas as ameaças, todo o peso de um mundo que não podia senão acuar uma criatura tão sozinha. Quando, depois de tudo, apagou a luz, as riscas se extinguindo, eu senti alívio pelo escuro que a protegia de mim.
       Fechei o zíper, recuei, recuei. Vergonha de ser notado pelo olho da lua.
        Saltei, ganhei a rua da Biquinha, seus paralelepípedos, suas árvores, sua escuridão, seu deserto de gente, como se carregasse o mais impuro dos estorvos – eu, eu, quem mais?. Pediria um copo, outro, engoliria tudo depressa, para me aturdir, para chamar depressa o sono. Se Nicanor me perguntasse alguma coisa, nada diria. Resoluto, me calaria, calaria qualquer alusão a ela ou a mim – não, nunca deixá-lo saber, protegê-la: proteger-nos. Tinha compreendido o que era uma janela. Uma janela fechada.

(de “Hóspedes do vento”, dedicado a Ignácio de Loyola Brandão)

Chico Lopes

Dois Poemas de Caio Cardoso Tardelli

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APARIÇÕES

… E foi em certa noite desolada,
Quando a paz vai ulular outra estrada,
Que mais do que o teu vulto observei...
Não era o mundo, as regiões do ouro,
Que me pulsavam em sorvedouro...
Talvez... talvez vi o que jamais saberei.

Como em uma amorosa ilusão,
Senti súcubo pegando-me pela mão...
E tudo era dor, vertiginosamente
Rodopiando em torno a mim mesmo...
A felicidade passava a esmo,
Sombra de minha sombra, cegamente.

E os livros, dispersos na estante,
Pulsavam, como lúbrica bacante,
Os seus próprios abismos no mundo...
E além, marchando atrás da janela,
A vagarosa, incessante caravela
Do meu derradeiro segundo...

A lua cantava canções funéreas
Para o seu poente... e as etéreas,
As estrelas, os portais do infinito,
Somente essas brilhavam, sonhando
Sob o longo lamento brando
Do mais remoto sonho desdito.

E o sol... o sol na claridade inferna
Queimou-me o olhar nessa noite eterna...
Desta terra o primeiro verso
Rebentou em meus perturbados ouvidos.
Aguçava-me todos os sentidos
A harmonia inicial do universo.

E tudo, como em um pesadelo,
Dormiu sob o auroral selo,
Como a mais serena noite comum...
Mas, fantasma de mim mesmo, sei, trago
Esse eterno lamentar aziago
Da universal transfiguração ao Um!

-

Pela tarde que morria encantada,
Como as doces canções que têm um fim,
Cantava o aroma da flor exaltada
Quando cantávamos, outrora, assim,

Nessa alegria em que nada, nada,
Se difere de um grandioso jardim...
Pela tarde que morria encantada,
Como tudo lembrava, carmesim,

O sol de nossas vidas que se vai,
Lentamente, delido, como um ai
Que pela vastidão se degrada...

Mas como pareceu-me bela assim
A piedade das coisas que têm fim,
Pela tarde que morria encantada...



Videoteca: "Minha Mãe Costurava para Travestis" de Lisa Alves

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"Minha Mãe Costurava para Travestis" (2014) │ HD
Conceito e texto │Edição de áudio e vídeo → Lisa Alves

lisaallves.blogspot.com.br 

"Verlaine escreve Clair de Lune que influenciou Debussy, esse amor puro que mais tarde se transformaria na tragédia pessoal de Rimbaud e Verlaine." Ramon L V Dias 


poetas de Brasília│poetas do Brasil│ arte digital │ vídeo arte │video poema │ poesia │Travestis








Nódoa - Diego Callazans

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Ilustração :  Litany of the Shades, Art2mys  



[condição humana]

da vulva o mundo é convulso.
ao nada rasgou o tudo.
no vácuo que ora ocupo
o trauma do vir oculto.



[o que eu teria dito em meu Bar Mitzvah]

a Lei que me toca é livre
dos livros eternos, voa
das tábuas do vil SInai
aos sinos que a alma entoa.


desnuda a Torah das letras:
יהוה? metáfora da Pessoa.
o Orco? rima canhestra
que num arfar se destoa.




[eleição]

entre
o nada
e a dor:
o entre.



[complexo]


tick tock
sounds the clock
- mas só o do ianque no Iraque.

no éden tupiniquim
relógio douto é assim:
triste traste.



[pesadelo]

chão de asilo
mães n'alzheimer
depõem rosas
necrosadas

são meus males
aos pés
como olhos
por sobre

o punhal
meu consorte
este mar
que evanesce



[comédia]

a ribalta retorcida,
se equipara a vida.

pra retinas fatigadas,
más arlequinadas.

canastrices vaudevilles
de faustos Aquiles.

ante cachaça em palavras,
Ofélias cevadas.

tua engrenagem nos funde,
vil Machina Mundi.



[o inalcançável possível]

fosse-nos dado ver o que a passagem
deixou saltar para aquém do destino
e que se alberga quiçá nesse etéreo
em que lacramos amanhãs olvidos!

pois para isso sim estamos cegos
e os portais do grão saber são cuias
que adensam poças a borrar o senso,
mesmo voltado só para o diante!

e toda espreita se mostra imprestável,
pois não há Hubble que aponte o fora,
não há conceito que evoque o quase,
nem esses versos lhe servem de altar!



[volátil]


             estou

a escapar pela tangente
sem raio que me centre

            em breve

a letra que conduz
à língua que me prende

            escapa

a ideia que me prende
à boca que conduz

            em breve

sem verso que me enrede
estou a escapar com o ar

            - jamais!



Diego Callazans


Poemas de Nódoa, inédito.



3 Contos de Rinaldo Fernandes

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 Ilustração: Poppy heaven, valzart



O PINTOR E A DANÇA

para Sylvia Cyntrão

Preso no escritório, entre árvores de arquivos, eu nunca entendi o fato de o meu vizinho, que é pintor, viver também atirado em danças. Quando, à noite, curvo de cansaço,  venho do trabalho, vejo-o com a esposa plantando ritmos no alpendre. Às vezes, a dança dos dois derrama-se até a praça em frente, agita-se entre as mangueiras. A grama, nos canteiros, magoada pela valsa dos seus pés.
Visitando-o certa vez,  disse-me que, poeta, os passos da dança eram recolhidos na agenda, em forma de versos. E fez-me entrar no ateliê. Ele conseguira pintar o perfume da dança na papoula que se abria no seu mais recente quadro.



A SENHORA DO EDIFÍCIO


Amanhecer de sábado, o sol já intenso nas pedras do calçamento. A rua retirada, o longo muro arruinado, o pardal acordando poeira do reboco. Um coqueiro ao pé do muro. O mendigo deitado, metade do corpo à sombra suave do coqueiro, as pernas expostas na calçada. Os raios lambem-lhe os sapatos. O mar, adiante, rosna como um cão que, de repente, assustado, se descobriu verde.
A senhora do edifício, que vive sozinha no sétimo andar, de sua varanda vê o mendigo, o mar, as areias alvas de sol. E deseja a sombra do coqueiro. Deseja as (quebradas) palavras no muro. Deseja – de onde veio isso? – a barba do mendigo.
O mendigo ressona, recitando no sonho o primeiro pão da padaria próxima. E toma o pão do padeiro, mastiga-o com um sabor sofrido, morno. Mastiga a mão da senhora do edifício, que ontem lhe atirou três moedas. Mastiga os tijolos podres do muro.
O mendigo, no sonho, principalmente funga debaixo da saia da senhora, aperta os dentes no pão entre suas coxas. A senhora sente cócegas, sorri. E solta manteiga para o pão.
A senhora, na varanda, esquece as areias, o mar. Vai tomar seu café. Agora, na mesa, sem esquecer o mendigo, aperta o pão com as duas mãos. Morde-o com firmeza, faminta. Os dedos bem úmidos de manteiga.



CARPINTEIRA

para Bete

Transborda o berço, o sono do meu filho no quarto. Os pingos no metal da pia – marteladas no meu crânio. Vou à cozinha, aperto bem a torneira. Antigamente, tudo limpo, polido. Agora, o pó cobrindo a geladeira. Na sala, despenco o corpo na poltrona.
A TV fora do ar, meus dedos tamborilam no nada. Minha vida, a esse tempo, embrulhada em quatro paredes. Olho-me no grande espelho. Em carne viva, a mordida que os dias me arrancaram.
Olho a cinza de cigarro que, antes de sair, meu marido quebrou no tapete. Alta madrugada, bêbado, ele chega atropelando o sono do menino e o meu. Em nossas discussões, borrifa-me o rosto com o rum do ódio.
Mas, encanteirar, construo um barco com as tranças nuas de cebola. É nele que, próximo temporal, ganharei as águas que, eu sei, sempre estouram da biqueira.





Rinaldo de Fernandesé contista, romancista e crítico literário. Autor dos livros de contos O perfume de Roberta (Rio de Janeiro: Garamond, 2005), O professor de piano (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010) e do romance Rita no pomar (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008). Os contos acima foram extraídos de Confidências de um amante quase idiota, seu livro mais recente (7Letras, 2012).

6 poemas de Susanna Busato

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Ilustração: AlliDzi

 
Academicismo

querem que eu seja original 
que tudo o que eu diga seja 
original como as flores
original como os planetas
original como os postes
que perfilam sua cinzenta capa concreta
na origem das esquinas
e ao longo das sarjetas



Socorro

Ao menos um fresta,
um ar, uma réstia,
uma salva de promessas.
Qualquer coisa qualquer
que salve bem
depressa.



Relírico

era mimeses
como todas as manhãs
e repousavas tuas assonâncias
sobre a sintaxe limpa da louça
aliterações na paisagem
alegorias com tua boca
barrocos teus olhos
metonímicas tuas pupilas
eras um quiasma nas metáforas da manhã



Onda

Éramos nós em cada ponta do lençol. Nas dobras, as sobras de nossa pele. O dia ia longo e o branco do tecido cada vez menor. O gesto repetia o compasso. Olhares de corpo. De um avança o segundo que retorna. Lento o lance das mãos. Leve o lençol entre dedos. Nas dobras feitas, o tecido de nós.



Cravo vermelho

Cravo.

Dor certa e reta
navalha na testa
agulha na têmpora:
ósculo cor
rupto abrupto.

Vermelho.

Rompe surta
dor cor
rompida
por dentro:
cápsula
ínsula
de vida.




Cilada

Poema de pavio
Curto
Poema de rabo
Longo
Um explode
No espaço
Outro expira
De longe
Poema curto
Tarja preta
Poema longo
Homeopático
Um te engole inteiro
O
ou
tro aos
bo
ca
dos


Susanna Busato

 


gavita

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Lenka Simeckova 



"gavita, gavita "
liturgia, cosmo, escarlate
todo o meu ser é um poema não escrito

escrevo em adoração  ao cosmo 
buscando  um deus na manhã clara
ele se deixou perder
estendeu seu corpo no seio da noite

as suas mãos eram amoras  
alastrando folhas pelo meu peito deserto

sou o desejo da palavra
a gramática ferida com sede do sentido
vocabulário desfeito em grotas
colméia de gritos
conjunção de todos os ancestrais

esse poema não foi escrito com a minha voz
alguém o fez  anteriormente
semeou migalhas na mesa do verbo

alguém, um peregrino, talvez
o homem com uma igreja fincada no ventre
a mulher aberta aos lábios dos deuses

a luz elétrica desceu pelas minhas veias
sangrei  lâmpadas na música das horas
eram candeias
o sopro do espírito galgando a linguagem
incenso perfumando a vida

sei que estou debruçado à mesa do mundo
uma estrela sacrificada me habita

comigo se alimentam as aves desesperadas
os rios crescem para dentro do poema
inaugura os sinos
enquanto os círios engravidam a noite

deus respira o mundo pelas narinas dos místicos
a noite é própria para o esposo 
estranha liturgia tem a lua
estendendo os cabelos sobre o sexo do amantes

os jardins se formam nos úteros enamorados
se tornam azeite na esperança da lâmpada
o poema brota no corpo anoitecido

trago o cosmo sustentando por uma flauta.

"Quererte sem hífen"

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silvia grav

a-mar-a-boca

o mar é aquilo azul-ex-verdeado e mais um bocado, mas o mar, enquanto sucedido pela letra a, expõe o escândalo vermelho-sangue: pulsante, infartável. tem também a boca. dessa eu não sei quase nada, só-sei-que grita. guarda lubrificante, que, indecentemente, chamam de saliva. agora, o que se sabe é que A BOCA É O SEXO DOS QUE SE APAIXONAM. de tudo o que (não) sei, tenho uma imenso desejo de querer. dessa vontade eu sei que não tem cor, também não tem sexo, hífen, acento ou vírgula. minha vontade é espaço e se eu quiser: ex-passo. mas de tudo mesmo, eu quero querer, por que só ter não basta.

Ganido

Querer-te, apenas, imensurável, feito um corno viril estou eu, prostrado, um oceano oposto a ti. Querer-te, apenas, é o que me basta, pois não posso decifrar-me em códigos, lascívia, inteiro chamas. Então afogome sem hífen, e o que não me sobra: auxílio. Pecaminoso, examino o teu toque lisérgico no meu corpo, impermeável: tu não me adentras. Agora, consigo desenhar em teu extenso dorso o mapa de minha dor, mas choro ao te dizer que não cabe. Não cabe também a minha inconstância, meu suor grosso, meu beijo aguado e sofrido. Pálido, externado, me percebo inteiro teu em tua foto; diabo frouxo não reconheço o meu sintoma. De longe, eu, lagarto em parede examino-me inábil e agora minha causa é perdida: você sobre mim. Quererte sem hífen é tentar aproximar minha boca da tua: vácuo. Antes, o imaginar era estritamente poético, traçado de subjetividade, mas agora o que consigo pontilhar são hifens soltos e acometidos, despejados sobre minha carcaça árdua, sôfrega, intensa e ainda poética, presa a ti.




Quilate Pingente

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 Hannes Hummel

Nem se Rimbaud te comesse
Piva te lambesse o rabo
e numa suruba do diabo
Fellini Contini bebesse
Nem se encontrássemos as cinzas de Calígula
e nos coroassem dedos, serpentes e Heras
Nem que o próprio César de púrpura se vista
e Cleópatra o fume em meio maço de feras
Nem se Moisés e Abrãao
juntos, auroras azuis me abrissem
Nem se Pandora me Selassiê
em sua caixa com um feixe
e os espectros de Querelle me cuspissem
mesmo assim, eu não desistiria
seguiria
solitário peixe
Me deixe
navegar em labirintos escuros
mares turbulentos
festas, óperas e apuros
Não peço socorro
me sujo, me rasgo me permito ser gente.
e despencar beat do alto morro
quilate pingente.



DaS PaLaVRaS eM ViDa

videoteca: "o buraco" de Carla Diacov e Lisa Alves

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Concepção, edição de vídeo, paisagem sonora e texto │ Lisa Alves │ lisaallves.blogspot.com

Filmagem e Texto │ Carla Diacov │carladiacov.blogspot.com


[videopoema, terrorismo poético, poesia, vídeo arte, buraco negro, TV]



"Em teoria da informação, designa-se por ruído qualquer perturbação que ocorra na transmissão do sinal, tal como uma voz muito baixa, falta de atenção do receptor, muita informação, linguagem inadaptada ao público ou código mal adaptado. O mecanismo compensatório do ruído designa-se por redundância. A teoria da comunicação adaptou o conceito de ruído para designar tudo aquilo que perturbe a comunicação linguística..."[ http://www.infopedia.pt/$ruido-(linguistica)]



CONTO INÉDITO DE FURIO LONZA

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Dragões copulavam debaixo da terra



     Sou um cara descolado e maneiro, um cão farejador, uma espécie de rastreador urbano. Me amarro em comida e mulheres gordinhas. Em meu meio, há todo um conjunto de regras que fazem parte de uma mitologia obrigatória e que precisam ser respeitadas. Regra número 1: um autêntico rastreador urbano não dá dicas, usa tudo em proveito próprio. Por exemplo: vocês sabem qual é o restaurante nesta cidade que fecha às quatro da manhã e prepara cozidos de grão de bico com paio que fariam qualquer macrobiótico trocar de religião? Ou risoto de vôngole, sopa de fava com chucrute e linguiça, tudo muito erótico e sensual, uma comida da época medieval, ferventada em sólidos caldeirões de ferro negro? Não sabem? Pois é ali no Leblon, numa ruela obscura, depois eu dou o endereço correto. Regra número 2: um cara maneiro bebe, mas nunca fica de porre. Naquela noite, depois de me encharcar com duas dúzias de cervejas, pedi minha primeira steinhager da noite. Regra número 3: destilado e fermentado, dois mundos que não combinam. Lá pelas tantas, surgida talvez das profundezas etílicas de um reino das trevas, Valquíria, a mulher do dono do bar, veio a minha mesa e perguntou como estava a comida.
     - Ótima, perfeita - atropelei-me, completamente bêbado e alucinado -, muito saborosa, molhadinha como sempre. O codeguim estava suculento, daqueles que a gente enfia o garfo e faz splorft, cuspindo pra cima aquelas gotinhas de gordura presas na pele ...
     Ela riu. Estava mais sensual que nunca naquela blusinha decotada que mostrava dois majestosos peitões duros e empinados. Era uma mulher muito sadia. Sadia e carnuda, esse o grande trunfo da cozinheira Valquíria. Como a comida, tinha um apelo caseiro, meio alemão, da Baviera. Suas coxas eram tipo antigo, daquelas que se viam nas fotos de nossos pais e avós com trajes de banho enormes, que sugeriam tudo, mas mostravam pouco. Dessas coxas que se colam ao cimento escaldante dos quintais da periferia plenas duas horas da tarde e queimam, exalando um odor característico, misto de suor, carne chamuscada, cheiro de peixe e água de colônia, meio azedo e ao mesmo tempo doce, coxas explodindo o short branco apertado, short de empregada lavando a calçada com a mangueira, que deixa ver a base das nádegas, coxas gordinhas de dançar bolero, meio esparramadas pros lados e que sustentam uma bacia pronta a parir aqueles bacuris de quatro quilos e meio. Convidei-a para sentar à mesa e ela sentou. Me excitava a cada frase. E ela percebeu. Comecei a pegar naquele braço gorducho, dando ênfase nos elogios, tentando a duras penas fazer com que os gestos parecessem naturais.
        Eu fixava os peitos da mulher com uma fome perigosa. Por trás do balcão, o dono do boteco flechou-me com olhos envenenados. Passava das duas da manhã. O odor dos temperos se dissipava. Regra número 4: um cara descolado não abusa da sorte, é prudente, espera que as coisas se encaixem. Mais uma steinhager veio no exato instante que meu pé descalço subia pelas pernas da mulher do dono do bar, embrenhando-se pelas coxas quentes e imiscuindo-se nas intimidades úmidas que abrem o caminho da felicidade para qualquer homem. Precisamente quando Valquíria abria mais um botão da blusinha, fazendo com que aqueles dois maravilhosos melões pudessem respirar com mais liberdade a atmosfera densa do boteco enfumaçado, o maridão veio e desferiu-me um poderoso cruzado no olho esquerdo e continuou me socando pelo resto da eternidade. Estrago feito, jogou-me na rua.
     Já na calçada, de bruços, com um braço quebrado e hematomas generalizados, percebi que a noite tinha me soltado um sonoro e derradeiro peido na cara. Tentei me levantar, mas não consegui. A cidade borbulhava e emitia um rugido subterrâneo fantasmagórico, mulheres choravam seus anjos ensanguentados nos apartamentos que ladeiam a Ataúlfo de Paiva, enormes relógios digitais mostravam caracteres etruscos. Pessoas embalsamadas passavam.
     Com o braço bom, fiz sinal a um táxi. Pra onde, doutor? Seria uma pergunta metafísica? Regra número 5: um farejador que se respeita nunca dá o itinerário correto a porra de motorista algum. Ele aposta na intuição do sujeito. Eu disse:
-  Pra UTI, rápido, talvez ainda haja tempo!

    Quebrara todas as regras. Eu tinha motivos. Não é todo dia que as pessoas têm a oportunidade de voltar do consultório com um diagnóstico de tumor maligno no cérebro. Era uma questão de coerência. Afinal, Deus também tinha quebrado suas regras.





Imagem: Leif Jones


*    *    *







Furio Lonza (Trieste, 1953) é escritor, dramaturgo e jornalista. É autor de 17 títulos, entre romances, contos, livros infanto-juvenis e ensaios.















07 poemas de Camila Nuñez Muitas

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Ela nada

Regressar de ti para si
Não deixando rastro, nenhuma evidência.
Ela é tão misteriosa para você quanto para ela mesma
Andando sobre paredes, na casa, sem pertencimento algum.
Seus pés beijam o vento
Sopros flutuantes arrastam pensamentos
Pegadas apagadas
Ausência de nada
Anda suspensa de ti como um corpo em desdobramento
Avista tudo de longe
De baixo, de cima
Nada de dentro
Mar dentro da nau, regresso.
Netuno, deus do absurdo.
Sim , o oceano não passa de um louco
Descobre que é  dentro dela que mora a morte
Ela por dentro é mar
Deseja não se afogar


Nada


Sincronicamente move pernas e braços
Anseia por abraços que asfixiem o desparecimento
Sufoca a despedida
Chora, implora
No ar um cheiro de fim tão forte quanto iodo
Há um  insuportável perecimento preenchendo seu olfato
Desejo de não respirar
Ela só quer mergulhar
Na imensidão desconhecida
Ela
Nada


Na Pele

Vivo esse louco arroubo
 Intrínseco e  metafísico
Imagino-me altiva a vagar
 Num ardil
Vacilar  sempre.
Sequer sei falar sobre certas coisas que me distraem
Oscilo entre sublimações, ostracismos, delírios  e castrações
Ser objetiva é paradoxal demais para uma mulher atormentada pela subjetividade
Ser  indomável
Sua oferta me é ofensiva                          
Tão pouco  me basta
Não roubarás os suspiros que só eu devo sufocar
É certo que  mente
Talvez sem saber
Não sabemos medir polaridades,
Amar é estar vivo e engloba  a dúvida
A asfixia, a pausa, a apneia.
O mar também é incerto
Há sempre riscos, em tudo, no raso  e num profundo mergulho.
Lá,
No fundo há sempre calmaria
Preciso romper a superfície e penetrar no abissal
de mim
Uma indolência me perfuma
 Perfurando meu entusiasmo
Essa onda
Sou pedra

Não acredito que será sempre assim
Conheço a temporalidade
A eternidade quem cria é o legado
Peço que isso não me seja negado
 E que alguém...
Que alguém me leia
Pareço sucumbir à fragilidade
Mas é só uma ilusão
Ou alusão
Minha
Sua
Procuro
Mas o que  busco  não pode ser uma tábua de salvação
Não acredito mais nisso
Vivo entre o mergulhar  e a correnteza
Vivo tesa
 Mesmo quando morna
Espero por uma beira
Onde bata sol e eu possa sentir o frisson das borbulhas das águas mordiscarem meu corpo até eu achar graça
...
 A Graça alcançada
Quero !
da beira enxergar a garça
 Branca do outro lado, em cima de uma eira de sal
Mirando o peixe
Quero assistir  seu lance perfeito
Tão faceira ave
Tão certeira se faz na necessidade
da fome, da carne!
 É belo,  não trágico.

Quero tomar dessa água salobra e conseguir extrair todo o doce que sei que ela tem
Serei eu
 O preamar
 E a pororoca


Meu voo tem destino
 Ou não?
 Existe também o desatino
 Sempre constato que são fatos
O perene anda ao lado do perecer
O desatar deve ser tão preciso quanto é  preciso respirar
O desafio  é o limite que minha angustia pode suportar
Meu suicídio se dá no momento exato de renascer
E quando isso
Cerrarei meus olhos para você
E jamais olharei para traz
Não com os olhos de outrora
Porque somos sempre coisas
novas

Luas cheias e vazias
Ambas são lindas
Encanta-me ver um macho grávido
Sou de sagitário
Metade  cavalo
Os cavalos-marinhos apresentam um elaborado comportamento de corte.
 Nadam juntos e enlaçam suas caudas.
 Através das contrações musculares do macho, ele abre seu orifício.
 Abrir orifícios é sempre um ato de coragem     
 É na verdade selvagem!
 Na metáfora eu sigo
Não se afete, falo para mim mesma.
 Eu  também sou  ela
Apenas siga,
 Ouça
falo?
Ouço
 Ela, diga!
O que a vida te  pede ?
A vida  me  impele
Sinto toda a minha vida
na pele.

Por do sol

É como se ficasse um vão entre o dia e a noite
O abismo lírico
A poética do hiato
Uma Lacuna estratigráfica
Como um  tom  de cinza
Que está entre o preto e o branco
Como a cinza
Que é a própria desmaterialização de algo que se desfaz
O próprio resto em si
É algo assim
Entre o tudo e o nada
O horizonte parece desfalecer
É tão lindo que assusta
E me enche de angustia
É como ficar no entre
Entre a matéria e o espírito
É como estar apaixonada
Aquela sensação desencaixada de tão encasada
Paradoxal
É um não pertencer de tão profundo pertencimento
É perecimento
Há um todo que não se vê e não tem fim
Por isso não se alcança
É como um consciente sonhar e se sentir no meio , perdida
Entre sonho e vigília
É estranho o por do sol

É por
É por vir
É por ir
É por algo...

É cor de cobre
De extração
Impregnado de extensão 
Que escapa, que esvai 
 bem na sua frente
A olho nu
Como um deus
Se despedindo
e o que nos cabe
é  apenas
Contemplar!




Outono

Observo o horizonte
Suspirando em falsete
Meu olhar se faz oblíquo
Com os sentidos transversais
Observo quase cega
Mas ainda tenho faro
Distraída pela impermanência efêmera 
De um céu em metamorfose
Implodindo cores
Surreais
Fendas de luzes se abrem
Uma linda nau em nuvem se forma
E o céu se colore em tons quentes 
Num instante cai o sol
A nau some
As nuvens se espalham em cartela cinza
E eu
Me horizontalizo
Em prece
Oh! Outono, de fria brisa
Paradoxos
Linhas oblíquas
Seu céu me abduz 
Acho lindo os urubus
Com seus olhos rapineiros
Farejando  carniças
Eu também 
Com meus olhos
Sinto cheiros
De outonos 
inteiros




Além da pele

As vezes eu me perco e vago
E o chão se abre para um vasto e complexo desentendimento
Me sinto frágil e quebradiça
São bilhões de pedaços
Um caleidoscópio alucinógeno
Uma miragem nebulosa
 surreal
O caminho perde o sentido
A bússola para
 pairo diante de um enorme não sei
Arrebol, por do sol, eclipse
Tanto faz
Procuro por nós, encontro distâncias
Léguas homéricas 
ainda serão percorridas
E uma vontade latente por trégua, por água...
Ela sou eu em algum lugar 
Em trânsito 
Em transe
Transo palavras como quem busca saída
mas a vida é labiríntica 
A existência é frágil
A certeza oscila
As verdades são ilusórias
E a realidade cobra
 troco de pele e isso dói
A coragem é constituída por substancias corrosivas e explosivas 
Que venha a Implosão então
Em texto
Em vida
Em gritos
 silencio.
Me reencontro...
Precária
Existir de fato é poético e 
Hermeticamente delicado.

Sou eu 
Apenas mais uma
Bela circunvagante existência
Por excelência e servidão a condição humana. 
Um jogo
Um troco
Um troço
108 é o número de cantos e contas sagradas
E eu não faço ideia da quantidades de vezes que ainda irei me perder
O yoga é vai e vem 
Krishna aconselha Arjuna a lutar
Não existe paz sem guerra
Os oposto coexistem
As escrituras pedem para eu ignorar meus sentidos e a racionalização
E eu giro...
Grito e cio
Silêncio
Sou boa e má
Exalo fedores e odores

É bela e vertiginosa a impermanencia das coisas
Beijo o chão e todos os pés e mãos de Shiva
Em suas 84 mil posturas
Seu falo imenso 
seu tridente em punho
E sua dança 
Sou uma de suas serpentes circundando seu pescoço
E troco de pele, e troco de pele , e troco de pele...



Rara

Que holocausto é esse?
A ambiguidade deve permanecer ou ser eliminada?
O que tem de ardiloso e perverso nessa fidelidade ao caminho do nada
  Minhas dúvidas,   também posso chamar de verdades
Será “certo” manter-me fiel a escolhas de outrora
Como ser predador sem ser presa?
Toda hora ou milésimo de segundo vivido já é outra  hora
Avante , eu e  minhas perguntas sem respostas
Elas se sustentam num presente / futuro que flutua sem ponto de gravidade
Não se sustenta imóvel!
Será isso grave, será uma síndrome, tem remédio que justifique castrar o desejo pelo desconhecido? Ou será que conheço bem tudo isso?
O porvir misterioso ... sigo, ou sou arrastada por algo que pulsa, e não sei dar nome
Assim, posso também esquecer meu nome ?
Aonde chegarei, e que valia tem minha trajetória, se não para mim mesma ?
A lucidez tange a loucura e o contrario também, e como julga-las se não matando a singularidade?
Deixa pra lá
Minha primeira pergunta era...
Que holocausto é esse?
Eu sou uma legião em extermínio diário
Atravesso o seco deserto, com a secura de um coito roubado.
Afundo em águas, terras uterinas, ensopadas.
Eloquência nenhuma, tem hora que o grito é mudo!



Aferindo toda a minha animalidade
 Qual é a maquina? O osciloscópio que mede a verdade de um desejo ou uma paixão ?
Meus muitos suicídios
Saiam da frente!
Quem me explica o triangulo das bermudas?
Eu uso saia
Entre minhas pernas
Goteja uma água
Dita sagrada
É inexplicável
E cai em cima da virgem
E isso também não se explica
É sagrado
 Eu sou gruta!
E os prazeres dos olhos?
Ninguém vê como eu vejo!
Não exatamente...
Existir não é exato
Por favor, saia da minha frente.
Fica por traz
O retrovisor tem algo que me encanta
Talvez porque através dele eu veja o que está na minha frente
E também o que está por traz
Há sempre algo por traz!
Tem gente falando comigo e eu não consigo escutar
Ruminar ensurdece?
Será que as vacas escutam enquanto se distraem em mastigações?
Será que gozam com isso?
Quem vai me responder com exatidão
E porque devo acreditar?
Quem ousará desdizer uma poética?
Sim
A poética engloba a vida
E a vida
Nos engole
Rumina
E cospe!
Rumine o que é seu
E devolva o que sobrar
Essa massa homogênea
 substancias que dão barato
É cara, é rara!





Odor

De prontidão ela se arruma para uma noite que não vai chegar.
Seu olhar anda tão desencaixado que parece vestir-se pela primeira vez de uma lente multifocal
Com isso produz vertiginosos  pensamentos
Inclina a cabeça e olha para o céu azul de nuvens brancas
Projeta-se nelas
Nas nuvens
Ele a chamava de nuvem
Ela deseja um dilúvio negro
Que venha encharcá-la
Isso não acontecerá
De súbito
Sente o odor da carniça
Do fim.



4 poemas de Wander Porto

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SOPRO DA MADRUGADA

Catar plumas
No sopro da madrugada
É como referir-me ao tempo
Sem dizer nada.

E falar de você?

Nas lágrimas de sêmen
Que salpicam as calçadas
Vão ficando
Uns espelhos de saudade,
Umas antigas vontades
De ainda ter
Um lar,
Um bar,
Um par
E um dar sem conta
De coxas que se entrelaçam
Em carícias últimas,
Às quais não me dei franquia
Por medo de me acordar
Assim tão moço
E ainda tão cedo
Em susto e taquicardia.

Mas teu cheiro está
Nas plumas que cato
No sopro das madrugadas,
Perfilado,
Militar
E só.





POEMA DE PLANTÃO

A manhã entrou
Abandonada de sol,
Sonegada de pássaros
E cancelada de azuis;

A tarde chegou
Atropelada por sons,
Rubricada de pêsames
E sufocada de adeus;

A noite passou
Apavorada de bangs,
Povoada de céticos
E lambuzada de berros.

Quem viu minha alma
Que aqui chegou sorrindo?
Quem viu meu espanto
Que um dia quis o mundo?

A madrugada lamentou
Na sirene do camburão
Que levou a jovem morta,
Estrangulada de solidão.

Encerro o ponto
E pego o ônibus
Incendiado de medos,
Apedrejado de sonhos!






CORES DA NOITE

Uma poesia incerta
Vara o sinal
Vira a esquina
Com a sirena aberta

Como uma ambulância verde
Levando um ferido de amor,

Talvez um cavaleiro de azul
Clamando por glórias perdidas,

Quem sabe um pintor andaluz
Uivando negras tintas ao luar,

Quiçá uma rádio-patrulha cinzenta
Carreando roxas dores vadias

Ou ainda uma branca mulher nua
Chorando por se sentir tão pouca.

Uma poesia incerta
Varando o sinal
Virando a esquina
Com a sirene aberta

Quase sempre nada mais é
Que uma palavra nunca dita
Arrombando o vermelho da boca.







LIVRO CAIXA

Há pressupostos
Proclamando deuses,
Há desconexos
Incendiando os ares,
Há uma estilha de luz
Caída numa sarjeta bêbada,
Há um cálice de paz
Vomitando vermelhos pelo ânus,
Há um triste cadáver
Declamando cadernos de poemas,
Há um imenso afeto
Embalando êxtases de solidão,
Há um imortal desejo
Rompendo os códigos da vida,
Há uma demência no ar
Vendendo silêncio aos sonhos,
Há um espocar de fogos
Celebrando a arte dos estafilococos,
Há um amargo nas bocas
Cumprindo o fadário das tragédias,
Há um coração sem efeitos
Acendendo círios no próprio túmulo,
Há um vigário sem orações
Na catedral dos incomunicáveis.

Há, por certo há,
Um Dever no livro Razão,
Um Haver na folha Delírio,
E um Saldo na coluna Tempo
Grafados em letras de nuvens:

-Um instante para nos amarmos!

Assim por dentro como por fora,
Assim na Terra como nos Homens!

Poemas e Ilustrações : Wander Porto


 
Wander Porto nasceu a 14 de Maio de 1950, em Patos de Minas, Montanhas Gerais. Começou na juventude escrevendo pequenos poemas de encanto, canções de maldizer, letras de música e alguns artigos nos jornais da cidade. No início dos 70, com amigos, editou o jornal A BENÇÃO que durou pouco, apenas o bastante para ser inoculado pelo vírus letal das Letras. Tem dois livros publicados e esgotados, - MUITO PRAZER! – TODO MEU!- contos ligeiros e -SOPRO DA MADRUGADA- de poemas. Na gaveta sem chaves, ALMANARQUIA – Contos – e SUMIÇO – ARQUITETURA DE UMA SOLIDÃO – Romance Ficcional. Hoje, sua principal ocupação é anunciar que está chegando para a Humanidade a IMENSA MANHÃ DOS IGUAIS e, num triz, a HARMONIA se instalará na Terra quando todos estarão NUS, belos e nus, portanto, permanentemente, legíveis uns aos outros. Assim, não haverá mais questionamentos inúteis pra nos encher o saco, embrutecer a paciência e instalar Cizânias!!!

Roberto Bozzetti: AUTO

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AUTO

                                 
                             a última
                             auto-
                             -ironia

                        o último

                              no esgar
                                                     do auto-
                                                    -engano

                        sorriso
 
                              ao perceber
                              o erro de
                              cálculo
                              e lembrar
                              do anjo
                              perverso
                              ausente
                              no banco
                              vazio
                              do carona

 

Rosas em Ruínas I - Histórias de amor duram o tempo da neve em Curitiba - Bárbara Lia

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“Apenas se olharam. Olharam-se era a casa de ambos”
(José Saramago)



E fico a olhar teu rosto
O olho esquerdo me ama
O direito rasga-me - navalha fria
Segue pelos flancos a desenhar estrelas
O sangue escorre doce para o chão frio
O sangue se transforma em rio
Meu néctar fluindo mel vermelho
E nele tudo que é vida diz teu nome




Canto Sagrado de Estrela & Flor


A fala tensa do teu desejo sufocado
A evocação da branca flor convexa
Poética réplica de Apolo - Amado!

Teu desejo oculto neste fog imaculado
Saltou - sem cerimônia - na noite branca
De corujas cínicas a ciciar: - Sim!

A esta evocação - doçura e lâmina -
Dissolvo-me. Nunca venhas para mim...
Nunca venhas para minha cama

Sonhar abrigar tua carnadura em flor
Espatifou os átomos do meu corpo -
Quem há de suportar tanto amor?

Flor rósea côncava entorpecida
Corpo cravado no absoluto iluminado
Então é isto - Estar ao teu lado?

Deus extraiu-me da tua esquerda ilharga
E se voltar a ti vou me transfundir em blues
Como uma estrela feliz que volta para casa.


 


— Como impedir que uma gota d'água jamais seque?
— Atirando-a de volta ao mar.
(Diálogo do filme Samsara)


(...)


Nesta vida não cabe este - nós -
Desato tudo como quem morre
Atiro a gota bela de volta ao mar
Recolho uma rosa agonizada
Levo-a na lapela como o cadáver
Deste amor que poderia...
Poderia... Girar mil rodas imaginárias.




Uma estrela desabou em mim
Difícil é segurar uma estrela nas mãos
As estrias laceram ao tempo que alimentam
A luz das estrelas demora trinta anos para chegar aqui
Conheço esta estrela e ela me abala
Agora só resta uma saída...
Para onde for, levá-la.
Mesmo por não saber a rota que permite
Repor estrelas no céu...

(Agora a estrela é minha)




Imagem: Man Ray – Rayograph (1928) – fonte: http://www.moma.org/



Bárbara Lia (Assaí, Brasil, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa - 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas - Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.  




8 Haikais de Chris Herrmann

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Imagem: Chris Herrmann


Sopro da vida
traz uma folha caída
: verde-amarela.


*
Feminina entoa
corpo que se abre em flor
- borboleta voa


*
Lua minguante
esconde-se em suas sombras
: sol, lua de mel


Pousa devagar.
Embalando a brisa
a passarada.


Rouba a cena:
Flor beija borboleta
- sonha divagar


*
A aranha tece
a sua rede de sonhos
: depois adormece


A tardinha cai.
Juntando-se a ela
o sonho se esvai.


*
Os olhos do gato -
Hipnotizam a paisagem
até desbotá-la.


Chris Herrmann

Haikais de Voos de Borboleta (Editora Protexto)


 


À Sombra das moças em flor, ou uma visão poética do mundo - Jediel Gonçalves

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Alguns proustianos – falo dos egoístas e dos mais ciumentos que fazem da Busca uma “verdadeira religião”, caindo no mais abominável proustiano dos pecados, a idolatria – gostam de sair por aí, atraindo, como numa missão jesuítica, mais tribos de pesquisadores para seu aprisco. Porém, por causa de seu proselitismo, desconsideram o conceito proustiano de “verdade”. A verdade está num conjunto estilístico-literário-filosófico que ronda o discurso literário do escritor. Há determinantemente na “voz da obra” (na voz que o leitor incorporou para si em sua leitura) uma palavra ainda não ouvida, que se expõe aos ouvidos de um observador, interessado em compreender os fios que se vêm por debaixo da fabricação do tecido-texto. Tal “verdade” reside nos compostos de nossos sonhos e é feita da mesma matéria que eles; a verdade está onde a vida se assemelha a um sonho e o sonho, à vida. A leitura de um livro pode ser uma verdade, no conceito de Proust. De um lado, ela nos enleva, somos tomados pela sensação de caminharmos através das clareiras de uma floresta encantada. Por outro lado, a “verdade” pode ser uma espécie de viagem, de incursão interior, que demoramos como que uma eternidade para nos livrar e conseguirmos despertar dela.
Se levarmos em conta o pensamento de Roland Barthes, não cabe ao crítico descobrir o mistério desta “verdade”, mas encobri-lo ainda mais com a linguagem. O regime dessa verdade é diferente do racionalismo clássico: o regime proustiano de verdade(s) é sobressalto, intermitente.
Para Proust, o material de que é elaborada a verdade confecciona também os sonhos que rompem os limites entre o ser desperto e aquele que ainda dorme, entre o que é corpóreo e o que é simbólico.
A “verdade” é da Arte, pois nela encontramos os símbolos que sobem os rios na contracorrente e que nos ajudam a subir os degraus do cais-calvário. Não adianta ficar parado no ancoradouro para receber a verdade-iluminada, inspirada e sígnica. Deve-se dialogar com a memória involuntária, para saber até que ponto a marca indelével dos sonhos e dos pesadelos nos castiga, para saber até onde a imaginação criadora – urdida da memória – nos conduz.
A “verdade” é, para Proust, a união de muitas identidades, de muitas épocas, que se comunicam até se fundirem. Metaforicamente, essa “verdade” reflete nossas vidas, fala com elas, deixando tudo transcorrer simultaneamente em lugares e tempos diferentes. É uma verdade sem excessos, mas vívida de essências. É uma verdade que se transveste: tem seus criados, visitantes particulares, etc.; não precisa de amigos ou inimigos, pois tem os avatares deles; é andrógena, pois, em Proust, um homem pode parecer, ao cabo de um instante, sob o aspecto de uma mulher. É uma verdade que produz e possui seus próprios apetrechos, somos despertados por ela quando recebemos um toque perfeitamente audível: “Estamos sendo ridículos diante dos convidados deste jantar. É melhor pararmos por aqui.”
Enfim, se há realmente “ensinamento” sobre a verdade em Proust, devia ser este: de tanto lidar com as sombras, aprende-se discernir consistência e consciência por trás das mesmas.

O herói-narrador proustiano anseia por Balbec e reflete sobre a natureza da viagem. Questiona também o que diferencia as viagens imaginárias das excursões reais. Segundo ele, quando viajamos em nossa imaginação, somos milagrosamente transportados “de onde vivemos para o centro de um lugar desejado.”

“Infelizmente, esses lugares maravilhosos de onde a gente parte para um destino longínquo, são igualmente lugares trágicos, pois, se ali se cumpre o milagre em virtude do qual os lugares que ainda não tinham existência senão em nosso pensamento passarão a ser aqueles em que iremos viver, por essa mesma razão é necessário renunciar, ao deixar a sala de espera, a reencontrar logo o quarto familiar onde estávamos há pouco. É preciso perder toda a esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro emprestado por onde se tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como o de Saint-Lazare, onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um desses imensos céus crús e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz.”

São inúmeros os caminhos para que o leitor produza a “busca” em si. Na maior parte das vezes, a “busca” é algo que se faz em si, para si. Ela resulta no embate com mais descaminhos (e com mais buscas) marcados por uma mobilidade: com início e com fim de novos percursos que aproximam o leitor de uma consciência estética.
É por meio da mobilidade que se tem em cada palavra, em cada cadência verbal, o fundamento do texto proustiano. Nessa cadência poético-verbal, a literatura proustiana consegue atingir o imaginário, o simbólico, a dimensão virtual, enfim, o natural na profundeza de criação.
Através da matéria palavra, Proust parece exercitar no processo dos sonhos o inescrutável da linguagem obscura. O que as coisas e as pessoas emitem não se realiza. É o herói quem deve decifrar os indícios. E para comprender, lhe será necessário despregar-se da alma humana, desligar-se do corpo, para transformar-se em fenômeno mágico e completo. Recuperar a “palavra”, a vivência dos signos vital e artístico que trazem a penumbra do tempo e do espaço na caixinha da memória, enfim, recuperar a literatura, significa experimentar uma espécie de criação dramática de todos os gêneros literários, postos uns ao lado dos outros.
Poucos escritores conseguiram penetrar na esfera da obra de arte: Proust criou uma língua diferente em sua própria gramática, em sua inteireza senhorial e em sua lógica e poder. A língua proustiana é posta a serviços dos signos da arte, “signo imaterial”, segundo Deleuze, que é posto, por sua vez, numa suspensão dialética. Em função da vida, da duração e dos sentidos das palavras, estão os projetos de destruição dos pilares do real e da apropriação reformuladora do real em outra coisa. Esta é a visão poética do mundo para Proust.
  
“À Sombra das moças em flor”

Atrevidas moças caminham ao longo da praia normanda de Balbec. Uma empurra sua bicicleta, as outras duas carregam um saco de golfe. A cena, contida em frases híbridas que misturam colorido e musicalidade, transforma-se – com uma leve “pincelada” das palavras – num quadro impressionista, cujos elementos mal conseguimos distinguir.
Tudo está no espírito. O reflexo que o espírito da nossa leitura projetou nessas coisas as interpreta como a natureza que possui um pensamento. As coisas e as imagens das coisas se avizinham das ideias. Porque, sem dúvida, os Nomes são desenhistas fantasiosos que nos traem numa espécie de estupor; representam lugares e pessoas tão pouco semelhantes com o mundo visível ou com os sentidos dados pela imaginação.
Este episódio é notável para a importância que Proust dá à descrição. Aqui, o leitor é espectador da cena, pois ele adentra o “quadro” descrito pelo narrador. As decrições da clareza e do brilho do céu e da paisagem de fundo e, inclusive, a dimensão e o caráter poético da descrição dos corpos das moças evocam um retrato. Numa primeira leitura, cada nota de luz é absorvida pelas personagens femininas. Elas emitem luz! As meninas são, na verdade, desenhos aproximativos que se podem obter da realidade, porém são também diferentes do mundo visto do ponto de vista imaginado.
A vegetação é reproduzida para que o observador-leitor tenha a impressão de sentir vibrar cada ponto de luz na “atmosfera” da cena descrita. Pelo texto, há uma sensação de realidade que se vive quando se contempla uma tela impressionista.

“(...) No meio de todas aquelas pessoas, algumas das quais estavam pensando em algo mas traíam então a mobilidade do espírito pelos gestos bruscos, pelos olhares que divagavam, tudo tão desarmonioso quanto à circunspecta hesitação de seus vizinhos, as mocinhas que eu vira, com o domínio dos movimentos que provém da perfeita flexibilidade do corpo e um sincero desprezo pelo resto da humanidade, vinham vindo em linha reta, sem hesitação nem rigidez, executando exatamente os movimentos desejados, numa total independência de cada um dos membros em relação aos outros, conservando a maior parte do corpo aquela habilidade tão notável nas boas valsistas.”


“(...) Já não estavam muito longe de mim. Embora cada qual fosse de tipo inteiramente diverso das outras, todas eram belas; para falar a verdade, eu as via há tão pouco tempo e sem ousar encará-las fixamente, que ainda não conseguira individualizar nenhuma delas (...)”

“A não ser uma, cujo nariz reto e pele morena faziam contraste com as outras, como, num quadro da Renascença, um rei Mago de tipo árabe, só me eram conhecidas, esta pelos olhos duros, atrevidos e risonhos; outra pelas faces onde o tom de rosa ostentava esse marrom acobreado que dá idéia de gerânio; e mesmo esses traços eu não tinha ainda indissoluvelmente nenhum deles antes a uma que a outra menina qualquer: quando (conforme a ordem em que se desenrolava aquele conjunto, maravilhoso porque ali avizinhavam os mais diversos aspectos, e todas as gamas de cores – elas se aproximavam umas das outras, mas disposto de modo confuso como uma mulher em que eu não pudesse reconhecer e isolar as frases no momento de sua imagem, percebidas mas esquecidas logo após) via emergir um oval branco, negros, olhos verdes, não sabia se eram os mesmos que me haviam encantado a pouco, não tinha condições de ligá-los a esta ou aquela moça que eu tivesse esperado das demais, e reconhecido. E essa ausência, na minha visão, dos limites que em breve estabeleceria entre elas, propagava através do seu grupo uma flutuação harmoniosa, a contínua translação de uma beleza fluída, coletiva e móvel.”

Esta é a primeira visão que o narrador tem de Albertine, por quem se apaixona logo depois. Alguns especialistas afirmam que por detrás da famosa Albertina, vive a face escondida de Alfred Agostinelli, jovem aviador que Proust conheceu, em fevereiro de 1913, numa viagem à Cabourg, na Baixa-Normandia. A relação com Agostinelli se intensifica e Proust contrata o rapaz para ser seu secretário e motorista particular. O rapaz aceita a proposta, mas, no outono de 1913, não suportando mais as crises de ciúmes de Marcel, Agostinelli deixa definitivamente o escritor, antes de falecer, em maio de 1914, num acidente trágico quando pilotava seu avião durante um treinamento. Comovido com a morte do jovem, Proust escreve dois romances inspirados nessa paixão: A Prisioneira e A Fugitiva, cuja estrutura e enredo Proust já relativamente se anunciara em À Sombra das moças em flor.
No entanto, a Primeira Guerra atrapalhou a publicação desse segundo volume. Anterior ao Tempo redescoberto, esta “segunda parte” – anunciada desde a publicação de No Caminho de Swann, em 1913 – deveria chamar-se O Caminho de Guermantes. Bastante debilitado por causa da doença asmática, Proust aproveita “o tempo benéfico da guerra” para trabalhar sua escritura. Se, nessa época, assistimos a um Proust frequentador menos assíduo dos famosos salões, é porque ele buscava “se fechar” para o mundo a fim de escrever e dedicar-se aos cadernos de rascunhos e paperoles, dos quais nascerão quatro novos volumes da Busca.

O narrador está nitidamente apaixonado por Gilberte, filha de Charles Swann e Odette. Ele aproveita a íntima relação entre sua família e a dela para adentrar o mundo da menina. Um dia, enquanto brincavam em seu quarto, sentindo a necessidade de tomar um pouco ar, os dois inclinam-se junto à janela.

“Nesses momentos, as tranças de Gilberte roçavam meu rosto. Parecia a finura de sua grama a um tempo natural e sobrenatural; pela força de folhagens artísticas, uma obra única, para a qual teriam utilizado a própria relva. A um fragmento mesmo ínfimo delas, que celeste herbário eu não teria em moldura? Porém, não esperando obter um pedaço de verdade daquelas ao menos conseguisse uma fotografia delas, quanto mais preciosa que as florzinhas desenhadas pelo Da Vinci!”

À Sombra das moças em floré um romance composto de duas partes: “À cerca da senhora Swann” e “Nomes de países: o país”, fazendo ecoar a ordem do arranjo estabelecida no primeiro romance No Caminho de Swann. Na primeira parte, o narrador conta os avanços do amor por Gilberte. Da mesma ternura, delicadeza e respeito que Swann observava no clã dos Verdurin (porque, para ele, este grupo transmitia a beleza e a perfeição de Odette de Crécy), o herói proustiano enche de qualidades os pais da moça que ele ama. No segundo capítulo, o herói atinge “uma quase completa indiferença por Gilberte”, enquanto conhece Albertine durante as férias que passava em companhia de sua avó na cidade marítima de Balbec.
Nos demais romances, o herói tem por companhia a presença do jovem aristocrata Robert de Saint-Loup. Porém, no início desse romance, o personagem em questão rejeita friamente o vínculo de amizade com o herói-narrador. Saint-Loup “funciona” numa estranha lógica: não se submete ao sofrimento amoroso, mas também não submete os outros ao mesmo tipo de sofrimento. Isso faz com que o narrador tire uma lição – Saint-Loup não pode ensinar verdade alguma, pois, no conceito proustiano, o pensamento só se move efetivamente se for motivado pela dor. Sem sofrimento não há pensamento. “Proust não crê que o homem, nem mesmo um espírito supostamente puro, possua um desejo natural pelo verdadeiro, uma sede pela verdade (...) Quem é que busca a verdade? É o ciumento que é pressionado pelas mentiras do amante”, diz Gilles Deleuze em Proust e os signos.
Antes de tornar-se escritor, o herói-narrador precisa cumprir um “itinerário” na decifração de signos. Dentre esses signos, o mais violento, o mais revigorante, o mais completo, é o signo da arte, que, para Deleuze, funciona como uma espécie de “terminal dos signos”.
Música, pintura e literatura pontuam essa travessia. No início do romance, ele realiza o sonho de ir assistir à interpretação teatral da famosa atriz Berma. Ela o decepciona: “(...) E, devido a isso, as obras verdadeiramente belas, se sinceramente escutadas, são as que mais devem nos decepcionar, porque, na coleção das nossas idéias, não houve nenhuma que correspondesse a uma impressão individual”, o narrador conclui.

“Pois, quando estamos na espera de preciosa descoberta e desejamos receber certas impressões da natureza, sentimos algum escrúpulo em deixar nossa alma acolher, em vez de impressões menores, que poderiam nos enganar quanto ao exato valor de Berma em Andrômaca, nos Caprichos de Marianne, em Fedra, era uma das coisas famosas que minha imaginação tanto desejara. Teria o mesmo divertimento que no dia em que uma gôndola me conduzisse para junto do Ti Frari ou dos Carpaccio de San Giorgio del Schiavoni, se alguma vez ouvidos pela Berma os versos: “Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós, Senhor, etc.”” 
 
Mas, a melhor parte ainda está por vir... em Balbec, o narrador conhece o pintor Elstir. No ateliê do pintor, ele descobre o quadro imaginário do porto de Carquethuit. O poder da obra em revelar “a natureza como ela é, poeticamente”, chama sua atenção.

Em Balbec, já bem instalado em seu quarto de hotel, o narrador observa – do “quadro” formado por sua janela – a extensão do mar e do céu. Este espetáculo de proporções panorâmicas, contínuo e continuamente renovado se desdobra diante dos nossos olhos.

“Às vezes o oceano enchia quase toda a minha janela, aumentada como estava por uma faixa de céu bordada no alto apenas por uma linha que era do mesmo azul do mar, mas que, por isso mesmo, eu imaginava ser ainda o mar, atribuindo sua tonalidade diferente a um efeito de luz. Em outra ocasião, o mar só se pintava na parte inferior da janela, estando todo o espaço restante coberto de tantas nuvens amontoadas umas contra as outras, em bandas horizontais, que as janelas pareciam, por premeditação ou especialidade do artista, apresentar um “estudo de nuvens”, ao passo que as diferentes vitrinas das estantes, mostrando nuvens semelhantes, mas em outra parte do horizonte e diversamente coloridas pela luz, pareciam oferecer como que a repetição, cara a certos mestres contemporâneos, de um só e mesmo efeito, apanhado sempre em horas diferentes, mas que agora, com a imobilidade da arte, podiam ser todos vistos em conjunto em uma mesma habitação, executados a pastel e cada qual sob seu vidro. E às vezes, no céu e no mar uniformemente cinzentos, um leve tom rosado se ajuntava com delicado requinte, enquanto uma borboleta adormecida na parte inferior da janela parecia apor com suas asas junto daquela “harmonia em cinza e rosa” ao gosto das de Whistler, a assinatura predileta do mestre de Chelsea.”

Por meio da “metáfora”, ao comparar a terra e o mar, o artista suprime as separações entre ambos, “só utilizando para o lugarejo termos marinhos, e vocábulos urbanos para o mar”.Esta revelação do poder da metáfora, chave para a vocação do herói-narrador que quer se tornar escritor, também é constitutiva do estilo de Proust. Como evidenciam as últimas palavras, iluminadas, do romance: “E, enquanto Françoise desprendia os alfinetes dos cortinados, despregava os tecidos e corria as cortinas, o dia de verão que ela aos poucos desvelava parecia tão morto, tão imemorial, como uma suntuosa e milenária múmia que nossa velha empregada não fizesse mais que ir desenrolando cuidadosamente de suas bandagens, antes de fazê-la aparecer embalsamada em seu vestido de ouro.”
Desta frase, surge uma alegria que já anuncia a “Adoração perpétua” e a poética do Tempo redescoberto.

 Jediel Gonçalves


Ilustração 1: Veronese (1528-1588), O Calvário (1580-1588).
Ilustração 2: Claude Monet, Passeio por Argenteuil (1875).
Ilustração 3: Joaquim Sorolla y Bastida (1863-1923), Passeio à beira-mar (1909)
Ilustração 4: Sandro Botticelli (1444/45-1510), Retrato de Simonetta Vespucci(1480-1485)
Ilustração 5: Leonardo da Vinci (1452-1519), A Estrela de Belém(1505)
Ilustração 6: Titien (1488-1576), A Ascensão da Virgem (1516-1518)
Ilustração 7: James Whistler (1834-1903), Crepúsculo de opala(1865).



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