Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da
minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da
tempestade de dilacerações que me abala?
Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos
meus desejos e febres?
Trecho de “Emparedado”
Nem sempre reconhecido como um dos grandes poetas sociais do Brasil, Cruz e Sousa (1861-1898), indiscutivelmente o grande simbolista brasileiro – sem dúvida um dos melhores do mundo -, produziu matéria com teor social relevante, principalmente acerca da condição do negro no fim do século XIX, fosse antes ou depois da abolição da escravatura. Entre essas obras, estão poemas em prosa considerados clássicos, como “Emparedado”, de seu Evocações(1898) e até versos publicados postumamente por Andrade Muricy, como “Crianças Negras”(nas Obras Completas, posto a lume em 1961). Sabe-se que Cruz e Sousa participou ativamente da campanha abolicionista, tendo contato, inclusive, com grandes figuras do movimento, como Joaquim Nabuco. Em 1887, o poeta publicou, a 22 de Julho, no periódico Renegação, portanto cerca de dez meses antes da Lei Áurea, um importantíssimo texto acerca das pretensões dos abolicionistas e sobre a questão da cultura escravocrata estar escancaradamente enraizada no sistema político e econômico brasileiro.
Cruz e Sousa, filho de escravos, negro sem mescla, apesar de ter obtido uma educação que, à sua época, era exclusiva das elites, sofreu duramente por sua cor. O cientificismo, àquele tempo, utilizando-se das teses do Determinismo e de algumas distorções das teorias de Darwin, concluía que a única verdade racial era aquela em que aos negros era destinado o trabalho braçal, enquanto aos brancos era fado o trabalho intelectual. Não à toa, portanto, que as críticas aos livros de Cruz e Sousa foram carregadas de preconceito étnico – sendo a mais evidente aquela de Araripe Júnior, que, ao analisar Missal, publicado em 1893, julgou Cruz e Sousaum “maravilhado com a civilização”, cujos poemas lembravam “os tum-tuns africanos”, sem negar a “ascendência primitiva”. O poeta também teve sérios problemas para se estabilizar profissionalmente, conseguindo somente um humilde cargo na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, após várias negações por sua ascendência – a mais emblemática, a de quando Gama Rosa, presidente da província de Laguna, tentou nomeá-lo, em 1883, promotor público, não conseguindo fazê-lo, porém, por oposição de políticos profissionais, contrários à possibilidade de um promotor negro.
Em qualquer momento da vida artística de Cruz e Sousa, fosse em sua época de hesitação (quando ainda perambulava pelo Naturalismo vigente na literatura) ou na fase simbolista que o colocou na eternidade, o tema da abolição (antes de 1888) e da marginalização dos negros (pós 1888) está presente. O que há de se separar é símbolo e sugestividade da clarividência que muitos esperam para esse tipo de temática. Mesmo a tão comentada insistência na simbologia do “Branco” (Roger Bastide foi o primeiro a pontuá-la) tem, sobretudo, o intento de superação: o poeta não tenta juntar-se ao Branco, mas transcendê-lo. A cor branca, para Cruz e Sousa, era uma representação ambígua do que, em planos etéreos, era luz e pureza, mas no mundo concreto, era a representação daqueles que impediam-no a escalada ao “triunfo supremo” das artes.
Mas, enfim, voltando ao texto “O Abolicionismo”, publicado em 1887, antes, portanto, de Cruz e Sousa entrar em contato com as obras simbolistas e decadentistas francesas, veremos que ele é de uma clareza pulsante, de uma retórica vaticinante. Vejamo-lo:
O ABOLICIONISMO - Cruz e Sousa
A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição - a do escravagismo.
A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.
Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.
Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.
Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.
Não se pense que com a libertação do escravo virá o estado de desorganização, de desmembramento no corpo ainda não unitário do país.
Em toda revolução, ou preparação de terreno, para um progresso político seguro, em todo desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou político têm de haver, certamente, razoáveis choques, necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas constantes revoluções do solo, pelos cataclismos, pelos fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações novas. O desequilíbrio ou o choque que houve não pode ser provavelmente sensível, fatal para a nação. Às forças governistas competem firmar existência de trabalho do homem tornado repentinamente livre, criando métodos intuitivos e práticos de ensino primários, colônias rurais, estabelecimentos fabris etc.
A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.
Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.
De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito isso não custa e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo.
Como antes exposto, esse texto é um tesouro porque é definitivamente um vaticínio. Todos sabemos que a Lei Áurea, por seu caráter não-reformista das bases, simplesmente decretou o fim da escravidão sem que ela profundamente estivesse findada na sociedade brasileira. Se convivemos contemporaneamente com um racismo implícito de algumas instituições e não raramente explícito de parte da população, como previu Cruz e Sousa, é por consequência da abolição mal-planejada, que simplesmente transferiu os negros das senzalas para as periferiase favelas, sem conduzi-los aos plenos direitos de cidadania. O poeta de Evocações, celebrado mundialmente, mas esquecido em sua pátria durante grande parte do século XX (e não raramente no atual século),é o exemplo mais evidente de como a sociedade estava fechada para os negros mesmo após a abolição; e só agora, no vagaroso processo de superação das desigualdades pelo qual passamos, que há uma crescente percepção de obtenção de direitos e de voz.
Há de se fazer presente neste pequeno estudo o pouco divulgado poema “Crianças Negras”. Ao contrário de “Abolicionismo”, “Crianças Negras” constitui-se de pura alegoria, com imagens vivas, nervosamente pinçadas. Há, nesse poema, o mesmo clima de malogro e destinação dos negros à miséria presente, por exemplo, no tocante “Meu Filho”, publicado em Faróis (1900). Eis, enfim, o canto referido:
CRIANÇAS NEGRAS (nas Obras Completas)
Em cada verso um coração pulsando,
sóis flamejando em cada verso, e a rima
cheia de pássaros azuis cantando,
desenrolada como um céu por cima.
Trompas sonoras de tritões marinhos
das ondas glaucas na amplidão sopradas
e a rumorosa música dos ninhos
nos damascos reais das alvoradas.
Fulvos leões do altivo pensamento
galgando da era a soberana rocha,
no espaço o outro leão do sol sangrento
que como um cardo em fogo desabrocha.
A canção de cristal dos grandes rios
sonorizando os florestais profundos,
a terra com seus cânticos sombrios,
o firmamento gerador de mundos.
Tudo, como panóplia sempre cheia
das espadas dos aços rutilantes,
eu quisera trazer preso à cadeia
de serenas estrofes triunfantes.
Preso à cadeia das estrofes que amam,
que choram lágrimas de amor por tudo,
que, como estrelas, vagas se derramam
num sentimento doloroso e mudo.
Preso à cadeia das estrofes quentes
como uma forja em labareda acesa,
para cantar as épicas, frementes
tragédias colossais da Natureza.
Para cantar a angústia das crianças!
não das crianças de cor de oiro e rosa,
mas dessas que o vergel das esperanças
viram secar, na idade luminosa.
Das crianças que vêm da negra noite,
dum leite de venenos e de treva,
dentre os dantescos círculos do açoite,
filhas malditas da desgraça de Eva.
E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela.
a ironia das aves rindo a aurora
e a boca aberta em uivos da procela.
Das crianças vergônteas dos escravos
desamparadas, sobre o caos, à toa
e a cujo pranto, de mil peitos bravos,
a harpa das emoções palpita e soa.
Ó bronze feito carne e nervos, dentro
do peito, como em jaulas soberanas,
ó coração! és o supremo centro
das avalanches das paixões humanas.
Como um clarim a gargalhada vibras,
vibras também eternamente o pranto
e dentre o riso e o pranto te equilibras
de forma tal que a tudo dás encanto.
És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
e a púrpura do amor vais estendendo
sobre as crianças, para protegê-las.
És tu que cresces como o oceano, e cresces
até encher a curva dos espaços
e que lá, coração, lá resplandeces
e todo te abres em maternos braços.
Te abres em largos braços protetores,
em braços de carinho que as amparam,
a elas, crianças, tenebrosas flores,
tórridas urzes que petrificaram.
As pequeninas, tristes criaturas
ei-las, caminham por desertos vagos,
sob o aguilhão de todas as torturas,
na sede atroz de todos os afagos.
Vai, coração! na imensa cordilheira
da Dor, florindo como um loiro fruto
partindo toda a horrível gargalheira
da chorosa falange cor do luto.
As crianças negras, vermes da matéria,
colhidas do suplício a estranha rede,
arranca-as do presídio da miséria
e com teu sangue mata-lhes a sede!
Cruz e Sousa, que segundo Andrade Muricy tendeu a um socialismo cristão (àquela época, isso era inaceitável aos intelectuais de esquerda, mas hoje, com ideários como a Teologia da Libertação, não nos soa tão inaceitável esse conceito), constituiu-se como um grande perceptor das falhas do movimento abolicionista – do qual participou – e talvez um poeta de voz inalcançável no que se refere aos penares dos negros naquele momento histórico. Em sua obra, há vários cantos de profunda e complexa revolta social, como em “Pandemônium”, “Escravocratas” e o já citado “Emparedado”. É de muita importância, consequentemente, que os grupos envolvidos nas lutas dos negros e das minorias relembrem não somente da figura do homem Cruz e Sousa, pobre, casado com Gavita, também negra, e finalmente impossibilitado de colher o fruto de sua genial poesia em vida, mas do poeta social que por meio de símbolos lutava com as suas armas contra as injustiças de sua época que, não raramente, encontram espelhamentos em nosso tempo, afinal, como ele nos cantou no início de sua belíssima “Litania dos Pobres”:
Os miseráveis, os rotos
São flores dos esgotos.
São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.