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A Poeta Nua - Cathia de Almeida

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Eu vi uma poeta nua
Numa nudez de palavras
Atravessando a cidade como um rato
Procurando esconderijos

Eu a vi nua e fresca num entardecer sem nuvens

Eu a vi desesperadamente solitária

A poeta nua despencou do vigésimo andar de um condomínio
 Criando asas num instante

A poeta atravessou o céu entrecortando helicópteros de metal fosco

A poeta brilhava magnífica e abria as pernas
Para que todos pudessem admirar suas entranhas

A poeta não tinha entranhas
Mas os seios da poeta eram fartos
Os seios da poeta eram de matriz
E deles chovia um líquido impressionantemente mágico
De repente o trânsito parou para deixar as sirenes passarem
Mas a poeta nua
A poeta
Nua
Pousou sobre o mais alto edifício
E riu de achar graça!
No dia seguinte ao vôo da poeta nua
Procurei na imprensa uma notícia

Não havia nada além de assassinatos, assaltos, corrupção e notícias políticas

A poeta nua não saiu no jornal
Seu vôo inesperado
A chuva psicodélica
As entranhas que não existiam
Não foram notícia

Pensei que enlouquecia
Marquei consulta urgente



Terapia cognitivo comportamental
O médico mandou que eu verificasse o último andar do edifício
depois de me olhar com suspeita por mais de meia hora

Eu vi a poeta nua!!!- eu jurava.

No topo do edifício encontrei um band-aid
Um bloco de notas em branco
Coco de rato

Recolhi as evidências

A poeta estava lá!



Da minha vagina não sai sangue
Porque prenho poemas

Tenho sangue de gato nas veias
Viro morcego

A poeta nua trepava em mim com tanto vigor que eu ia explodir

A poeta não gozava nunca
Era mulher
 Mas meu gozo fácil era capaz de quebrar qualquer tabu
E fazer a poeta criar asas de tanto prazer

E as asas dela seriam verdes e feitas de fios de palmeira
E seu cheiro seria de um país que não vi
O mar teria medo dos mistérios de seu sexo

E ela repetiria versos em línguas indecifráveis cada vez que a minha língua penetrasse na sua boca e desenhasse os seus dentes

Me apaixonei pela poeta nua

Eu quero a poeta nua
A poeta



Desviando assunto um pouco
Não pago minhas contas há três meses

Água luz telefone

A poeta me enfraqueceu

Ela não tem contas
faz poesia
A harmonia do universo paga as contas da poeta nua

A poesia é um bem valioso
Só tenho meu trabalho e meio quilo de feijão que sobrou da cesta básica

A poeta nua não entende isso
Sinto que me abandona porque eu sou um coitado que não lê poesia

A poeta nua é mulher e quer resguardo

Quer velas no jantar
Música romântica

A poeta nua é mulher.





A poeta nunca deveria ter se entregado a mim
É difícil demais cuidar de poeta
Ora com asas
Ora sem

Mulher já dá trabalho demais!
Devia ter deixado a poeta solta
Pra ver só de vez em quando

Mas paixão pega a gente no laço
Achei que a vida com a poeta seria brilho
Carruagem
Vôo noturno
Alegria a não dar mais

Não era

A poeta tinha dias mulher
Dias anjo
Dias de olhar tudo com indiferença
Enlouquecida dizia que era só mulher
Não era poeta
Que queria olhar vitrine e fazer as unhas
Fazia boca de puta e pulava sobre mim como um gato

A poeta metia medo!

Preferia mesmo nunca ter visto a poeta
Preferia estar só
Abraçar os lençóis pensando numa trepada

Ontem
Mandei a poeta embora
Ela saiu como mulher
Carregando seu bloco de notas em branco

Ela não ameaçou se matar
Ela não disse que era louca por mim
Ela calou um poema inteiro

Depois de duas horas ela chegou meio bêbada

Jogou o caderno de notas sobre a cama
E disse que só voaria amanhã

Já é meio dia e não fui trabalhar
A poeta não acorda
Dormiu coberta esta noite
Não está mais nua



Não quero chegar ao ponto de deixar de te querer
ao ponto em que o sol já não aqueça
a areia sob meus pés
e todas as marés estejam recuadas
Porque meu amor por você transpassa e funda
sol
mar
ondas
E todas as gaivotas em revoada



Mar
Sílaba única
De todo o sentimento
Do mundo



As contas com o tempo
acerto depois
Somo minha vida à sua
e divido por
dois



Minha mão no seu peito
E a vida fica mais longa
300 anos
3000 milhas
Infinitas noites entrelaçadas



Nas mãos que toco
 encontro gestos que me encontram
 e tiram tantas sereias dos meus cantos
 tantas nuvens
 e estrelas
e luas
 e movimentos repentinos
E novos gestos  em mãos aladas
 e novas asas que se abrem e chegam tão perto de todos  os sóis
todo o calor que se acumula e dissipa
todo o calor
Ícaro
o canto ecoa em mim e te embala
o canto ecoa em ti e me assusta
o canto o toque a brisa quente e úmida do seu hálito

e o tempo se desfaz em promessas de eternidade



Posso sentir seu hálito
Posso sentir o roçar breve do seu corpo
Seu cheiro
Como?
Se ainda não tenho memória dos seus olhos sobre os meus
da sua voz
e do calor das suas mãos?



I
Criou-se um tempo novo
um tempo de espera madura
o desejo do hálito
o desejo do cheiro
o calor guardado no abrigo das almas
e não posso mais fazer nada
Aquecer-me ao sol
olhando nuvens desconfiadas de tudo
o desejo
sem fúria


II
Hoje se resume a isto
24 horas de aguardo
Deito-me de lado e sinto sem querer
Cada palavra sussurrada
Cada canto que ainda não ouvi
Mas nada me convence do não-falado
Como se o silêncio dissesse tudo


III
Se sou alegria também sou vento
Se sou poesia sou afago
E posso construir um mar em fúria
Com peças de cerâmica e com palavras


IV
Ainda minhas mãos estão frias e suplicam delicadas
Seus tons de vida
Nada tocam senão folhagens
Nada tocam senão o ar
do que são feitas as palavras...


Poemas extraídos de A Poeta Nua, ainda inédito. 

Fotos de Silvio Ferreira Leite.



 
Cathia de Almeida já foi de tudo na vida até escolher ser só mulher, poeta mãe e professora de mosaico. Nada está em ordem porque a vida não tem ordem e tem dias que a gente não é nada mesmo. De resto ouvir passarinhos, cuidar de cães, olhar o mar.... com a certeza de que tudo acaba!






Videoteca: "Mamãe lia a sorte no açúcar" de Victor Heringer

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Conceito e texto: Victor Heringer.


Música: Victor Heringer. Trechos de comerciais, declarações de jogadores de futebol e pastores a respeito de sonhos vs. Allen Ginsberg lendo "A tempestade" de Shakespeare.

Vídeo: Victor Heringer. Trechos de "The GOES-O weather satellite launches aboard a United Launch Alliance Delta IV rocket" (NASA, 2009) e "Carnival" (Bud Gamble, data desconhecida), ambos em domínio público. 



Notas:
1) "O homem tem todas as chances de desaparecer e desaparecerá mais cedo do que pensa, mas, por outro lado, tem razão em prolongar essa tragicomédia, nem que seja por distração ou por vício" (Cioran, 1990)

2) Meus mais sinceros agradecimentos ao senhor Anônimo que subiu a escada branca para o azul belamente vestido de azul e branco.

3) O ruído da palavra "sonho" que se ouve no vídeo é, de fato, a palavra "sonho" lida por um programa de conversão de pixels em sons. 



* palavras de Victor Heringer









Victor Heringer (1988) é autor de: "Glória" (romance, 7Letras, 2012, Prêmio Jabuti) e"automatógrafo" (poesia, 7Letras, 2011).  Site: http://automatografo.org.


O Veredito de Cruz e Sousa sobre o Abolicionismo

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Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da
minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da
tempestade de dilacerações que me abala?
Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos
meus desejos e febres?

Trecho de “Emparedado”

Nem sempre reconhecido como um dos grandes poetas sociais do Brasil, Cruz e Sousa (1861-1898), indiscutivelmente o grande simbolista brasileiro – sem dúvida um dos melhores do mundo -, produziu matéria com teor social relevante, principalmente acerca da condição do negro no fim do século XIX, fosse antes ou depois da abolição da escravatura. Entre essas obras, estão poemas em prosa considerados clássicos, como “Emparedado”, de seu Evocações(1898) e até versos publicados postumamente por Andrade Muricy, como “Crianças Negras”(nas Obras Completas, posto a lume em 1961). Sabe-se que Cruz e Sousa participou ativamente da campanha abolicionista, tendo contato, inclusive, com grandes figuras do movimento, como Joaquim Nabuco. Em 1887, o poeta publicou, a 22 de Julho, no periódico Renegação, portanto cerca de dez meses antes da Lei Áurea, um importantíssimo texto acerca das pretensões dos abolicionistas e sobre a questão da cultura escravocrata estar escancaradamente enraizada no sistema político e econômico brasileiro.

Cruz e Sousa em sua mocidade
(Créditos: Cultura Negra em Santa Catarina)


Cruz e Sousa, filho de escravos, negro sem mescla, apesar de ter obtido uma educação que, à sua época, era exclusiva das elites, sofreu duramente por sua cor. O cientificismo, àquele tempo, utilizando-se das teses do Determinismo e de algumas distorções das teorias de Darwin, concluía que a única verdade racial era aquela em que aos negros era destinado o trabalho braçal, enquanto aos brancos era fado o trabalho intelectual. Não à toa, portanto, que as críticas aos livros de Cruz e Sousa foram carregadas de preconceito étnico – sendo a mais evidente aquela de Araripe Júnior, que, ao analisar Missal, publicado em 1893, julgou Cruz e Sousaum “maravilhado com a civilização”, cujos poemas lembravam “os tum-tuns africanos”, sem negar a “ascendência primitiva”. O poeta também teve sérios problemas para se estabilizar profissionalmente, conseguindo somente um humilde cargo na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, após várias negações por sua ascendência – a mais emblemática, a de quando Gama Rosa, presidente da província de Laguna, tentou nomeá-lo, em 1883, promotor público, não conseguindo fazê-lo, porém, por oposição de políticos profissionais, contrários à possibilidade de um promotor negro.

Em qualquer momento da vida artística de Cruz e Sousa, fosse em sua época de hesitação (quando ainda perambulava pelo Naturalismo vigente na literatura) ou na fase simbolista que o colocou na eternidade, o tema da abolição (antes de 1888) e da marginalização dos negros (pós 1888) está presente. O que há de se separar é símbolo e sugestividade da clarividência que muitos esperam para esse tipo de temática. Mesmo a tão comentada insistência na simbologia do “Branco” (Roger Bastide foi o primeiro a pontuá-la) tem, sobretudo, o intento de superação: o poeta não tenta juntar-se ao Branco, mas transcendê-lo. A cor branca, para Cruz e Sousa, era uma representação ambígua do que, em planos etéreos, era luz e pureza, mas no mundo concreto, era a representação daqueles que impediam-no a escalada ao “triunfo supremo” das artes.
Mas, enfim, voltando ao texto “O Abolicionismo”, publicado em 1887, antes, portanto, de Cruz e Sousa entrar em contato com as obras simbolistas e decadentistas francesas, veremos que ele é de uma clareza pulsante, de uma retórica vaticinante. Vejamo-lo:

O ABOLICIONISMO - Cruz e Sousa


A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição - a do escravagismo.

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.

Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.

Não se pense que com a libertação do escravo virá o estado de desorganização, de desmembramento no corpo ainda não unitário do país.

Em toda revolução, ou preparação de terreno, para um progresso político seguro, em todo desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou político têm de haver, certamente, razoáveis choques, necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas constantes revoluções do solo, pelos cataclismos, pelos fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações novas. O desequilíbrio ou o choque que houve não pode ser provavelmente sensível, fatal para a nação. Às forças governistas competem firmar existência de trabalho do homem tornado repentinamente livre, criando métodos intuitivos e práticos de ensino primários, colônias rurais, estabelecimentos fabris etc.

A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.

Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.

De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito isso não custa e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo.

Como antes exposto, esse texto é um tesouro porque é definitivamente um vaticínio. Todos sabemos que a Lei Áurea, por seu caráter não-reformista das bases, simplesmente decretou o fim da escravidão sem que ela profundamente estivesse findada na sociedade brasileira. Se convivemos contemporaneamente com um racismo implícito de algumas instituições e não raramente explícito de parte da população, como previu Cruz e Sousa, é por consequência da abolição mal-planejada, que simplesmente transferiu os negros das senzalas para as periferiase favelas, sem conduzi-los aos plenos direitos de cidadania. O poeta de Evocações, celebrado mundialmente, mas esquecido em sua pátria durante grande parte do século XX (e não raramente no atual século),é o exemplo mais evidente de como a sociedade estava fechada para os negros mesmo após a abolição; e só agora, no vagaroso processo de superação das desigualdades pelo qual passamos, que há uma crescente percepção de obtenção de direitos e de voz.

Há de se fazer presente neste pequeno estudo o pouco divulgado poema “Crianças Negras”. Ao contrário de “Abolicionismo”, “Crianças Negras” constitui-se de pura alegoria, com imagens vivas, nervosamente pinçadas. Há, nesse poema, o mesmo clima de malogro e destinação dos negros à miséria presente, por exemplo, no tocante “Meu Filho”, publicado em Faróis (1900). Eis, enfim, o canto referido:

CRIANÇAS NEGRAS (nas Obras Completas)

Em cada verso um coração pulsando,
sóis flamejando em cada verso, e a rima
cheia de pássaros azuis cantando,
desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
das ondas glaucas na amplidão sopradas
e a rumorosa música dos ninhos
nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
galgando da era a soberana rocha,
no espaço o outro leão do sol sangrento
que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
sonorizando os florestais profundos,
a terra com seus cânticos sombrios,
o firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
das espadas dos aços rutilantes,
eu quisera trazer preso à cadeia
de serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
que choram lágrimas de amor por tudo,
que, como estrelas, vagas se derramam
num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes quentes
como uma forja em labareda acesa,
para cantar as épicas, frementes
tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
não das crianças de cor de oiro e rosa,
mas dessas que o vergel das esperanças
viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
dum leite de venenos e de treva,
dentre os dantescos círculos do açoite,
filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela.
a ironia das aves rindo a aurora
e a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
desamparadas, sobre o caos, à toa
e a cujo pranto, de mil peitos bravos,
a harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
do peito, como em jaulas soberanas,
ó coração! és o supremo centro
das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
vibras também eternamente o pranto
e dentre o riso e o pranto te equilibras
de forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
e a púrpura do amor vais estendendo
sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
até encher a curva dos espaços
e que lá, coração, lá resplandeces
e todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
em braços de carinho que as amparam,
a elas, crianças, tenebrosas flores,
tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
ei-las, caminham por desertos vagos,
sob o aguilhão de todas as torturas,
na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
da Dor, florindo como um loiro fruto
partindo toda a horrível gargalheira
da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,
colhidas do suplício a estranha rede,
arranca-as do presídio da miséria
e com teu sangue mata-lhes a sede!
  

Cruz e Sousa, que segundo Andrade Muricy tendeu a um socialismo cristão (àquela época, isso era inaceitável aos intelectuais de esquerda, mas hoje, com ideários como a Teologia da Libertação, não nos soa tão inaceitável esse conceito), constituiu-se como um grande perceptor das falhas do movimento abolicionista – do qual participou – e talvez um poeta de voz inalcançável no que se refere aos penares dos negros naquele momento histórico. Em sua obra, há vários cantos de profunda e complexa revolta social, como em “Pandemônium”, “Escravocratas” e o já citado “Emparedado”. É de muita importância, consequentemente, que os grupos envolvidos nas lutas dos negros e das minorias relembrem não somente da figura do homem Cruz e Sousa, pobre, casado com Gavita, também negra, e finalmente impossibilitado de colher o fruto de sua genial poesia em vida, mas do poeta social que por meio de símbolos lutava com as suas armas contra as injustiças de sua época que, não raramente, encontram espelhamentos em nosso tempo, afinal, como ele nos cantou no início de sua belíssima “Litania dos Pobres”:

Os miseráveis, os rotos
São flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.


dia

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[imagem: Carlos Monteiro]

ela acordava no ventre quente daquele muquifo, úmida da noite, como se a língua seca dum vira-lata lambesse a cara, lambia a cara a luz fragmentada do sol, era cedo no entanto, o dia, terrível deslumbre, a impossibilidade de fechar os olhos sem rugar a testa, sem achar num olho o inverso do alívio, e eles de pé a vigiavam, numa manhã estrondosamente colorida, em que ela ouvia os ruídos do lado de fora, era dia, e sonolenta pedia ao homem tão de perto 'por favor', ela, só queria voltar pra cama.

Vanessa (por paulo guicheney)

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“Não aprendi dizer adeus/ Mas tenho que aceitar/ Que amores vêm e vão/ São aves de verão.”
Leandro e Leonardo

“J'implore ta pitié, Toi, l'unique que j'aime,/ Du fond du gouffre obscur où mon coeur est tombé.”
Baudelaire


Quem ama merece automaticamente o apedrejamento.

Uma besta.

Um leproso que corrói o mundo pelo simples fato de existir. Que atire a primeira pedra aquele que nunca amou, poderia ter dito Cristo. Mas Cristo nunca amou. Cristo nunca foi leproso, Vanessa. Uma besta, um tolo. Cristo nunca foi nada. Eu sou tolo. Leproso. Eu sou nada.

Cristo nunca soube o que é o amor.

Cristo e Vanessa foram feitos do mesmo barro. Caminham a mesma estrada ruim que leva a caminhos fáceis. A mesma estrada. Sempre.

Eu me perco em todas as esquinas.

Eu que vendi meu piano e quebrei minhas mãos. Eu que estudei Chopin todos os dias da minha vida. Eu que levo porrada – prazer em conhecê-la: eu levo porrada. Eu que assumo que sou nada. Mas amo. Eu que sou tolo. E. Leproso. Eu que vendo minha casa e gasto todo o dinheiro em Valium. E cocaína. Eu que passo 2 meses por ano falando uma língua de merda do norte pelo simples prazer de esquecer que sou brasileiro. Eu que me apaixonei no México e cheguei a me casar sem que ninguém soubesse. Eu que escrevi uma sinfonia e a dediquei a Beethoven mesmo odiando Beethoven. Eu, Vanessa, que adoraria tocar piano para você. Por toda a minha vida. Adoraria. E ninguém sabe disso, é um segredo nosso, genau? Todos os dias.

Vanessa, meus caminhos são tortos.

Eu tentei te dizer isso. Mas você não me escutou. Você fugiu.

Quando era criança meu pais se separaram. Fiz uma longa viagem com minha mãe. Em Londres ela apontou um rapaz estranho. De batom. E cabelos espetados. “Ele é o cantor do Cure”. Por toda minha vida carreguei essa frase: “Ele é o cantor do Cure”. Demorei muito tempo até comprar um disco do Cure e entender que minha mãe estava mais uma vez: certa. “Ele é o cantor do Cure”. E se cantei uma canção do Cure para você é porque de uma maneira certa e estranha eu te amo.

São assim os amantes, Vanessa. Você não vai entender isso. Você não ama. Você não sabe o que é o amor. Você erra, Vanessa. Vou rezar por você e por Cristo. Por toda a noite irei, bêbado, rezar no corpo de outra mulher por você e por Cristo-Nosso-Senhor.

Eu sou torto, Vanessa. Mas sou limpinho. “Mon cœur mis à nué uma divisa, não um corte de cabelo.

Vanessa, vou te confessar mais duas mil coisas: Eu odeio todos os tipos de máquinas. Eu odeio computadores. Eu odeio música eletroacústica. Eu odeio internet. Eu acredito piamente que o Facebook é a coisa mais estúpida criada pelo homem depois da Igreja e da camisinha em pó. Vanessa, eu entrei nessa merda apenas para te falar oi. E você respondeu: oi. Sinceramente, eu preferiria vá tomar no cu. Vá à merda. Foda-se, filho da puta. Vá para a puta que te pariu. Mas oi? Não, não tenho paciência com isso. Oi para você também , Vanessa. Enfie fundo na tua alma o teu oi.



*trecho de “Homem trancado em quarto de hotel


Grandes ideias, em pequenas iniciativas, se encontram em Curitiba - Carla Ramos

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A Secretaria da Cultura de Curitiba vem promovendo os Saraus Literários Populares nos diversos bairros da cidade. Em abril, na Cidade Industrial, contou com a presença de 30 convidados na Casa de Leitura Paulo Leminski. No bairro Portão, na Casa de leitura Wilson Bueno, teve a presença de 70 convidados entre poetas, escritores e públicos apreciadores da Arte em Geral.
Segundo Brizola, responsável pela realização dos saraus, a ideia é percorrer todas as ruas das cidadanias e as casas de leitura da cidade a comportar o público encontrando estes artistas de linguagens diversas. Promovendo condições para que eles tenham um espaço democrático para serem reconhecido com seu trabalho literário, continua ele, pois muitos não tem condições financeiras de estarem em um livro publicado.

Vozes de uma Alma, o livro. Nasceu no sonho do mineiro Rodrigo Ricardo, que complementa a ideia de Brizola,em dar vozes a novos poetas do Brasil! A ideia surgiu, virtualmente, em rede social, na comunidade "Poesias Escolhidas" e se transformou em livro a ser lançado em Curitiba e posteriormente nas principais capitais brasileiras.
A expressão poética do Paraná encontra-se representada pelos nomes de Carla Ramos, Christiano Oliveira, Daniel Maurício, Jeferson Bandeira, Jefferson Dieckmann, Maria Cecília Coutinho e Rita Ramos. 

Os sete poetas estarão presentes no dia do lançamento de Vozes de uma Alma, quando essas grandes ideias, em pequenas iniciativas, se encontraram em nossa cidade.
Data: 17 de maio
Horário: 15 horas
Local: Rua da Cidadania do Pinheirinho
Evento: Sarau Literário Popular
Endereço: Av. Winston Churchil, 2033 - Capão Raso (ao lado do Terminal do Pinheirinho)
Mais informações: 87070764 (com Carla)


3 poemas de Samantha Beduschi Santana

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Horas bandidas
  
decantam vinhos vertidos
em horas magnéticas
os corpos

ampulhetas malignas oscilam
em sensuais delírios
graves
rubros
férteis

o corpo dele se quer nela...
quer roubar confidências
de paredes epidérmicas

ela acende a vela
fecha a janela
prepara a taça
pra dança

a pele nua
a língua lava
a língua
felina lida
feitiço
leve
e lento

o corpo dela o quer na fluída jaula...
quer libertar ao vento
a sua ígnea essência

ampulhetas malignas oscilam
em céleres rituais
escondem desejos
suados
banidos
caídos
de horas bandidas
deliciosamente
molhadas
breves
e findas



Etecetera

ser até ter sido
um tecido

e ser tem um preço
...

se tecera seres
de si mesmo
nos caminhos
{ter-se-á ninhos}

será um deles
{um dos seus seres tecidos}
o começo
de um  éter{se}terá?



submissos

                            são os ATOS

                            dos nossos

                                                corpos FALHOS

           
                           
                                                                                              movem-se ávidos

                                                                                    escassos de premissas

                                                    aos passos impostos

                                                    no compasso falho

                  DE OUTROS CORPOS


                              
nossos corpos

são destroços híbridos,

particípios paridos

                                  DE NÓS MESMOS
                                   
                      
                                                                                            vão- se

                                                                          os sonhos inválidos,

                                                      ficam os céus,

                                                      os véus sobre

                            os ossos partidos...


                            e

                            os
                                                                                                      vãos

                                                                                                doloridos

                                                                                                      NOS

                                                                                               NOSSOS

                                                                                                  OLHOS

                                                                                                 ÁRIDOS




 Ilustrações: Michael Cheval

 


Samantha BeduschiSantana nasceu em Curitiba em 1973. Vem publicando conteúdos poéticos em sites e em um blog pessoal através do pseudônimo Sarah Kundalini e de seu nome de nascimento. É licenciada em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná. Viveu cinco anos na Flórida nos Estados Unidos, e trabalha como professora de inglês e como tradutora de textos acadêmicos há 15 anos. Envolvida com as artes desde pequena, estudou violino durante a infância e a adolescência. Cursou Desenho Industrial no Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, e trabalhou como designer na Coordenadoria de Desenho Gráfico da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.

RENASCIMENTOS - JANDIRA ZANCHI

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3 NOTAS

alcanço o canto da estrela prima
solo de cordas e acordes
perfume – encanto – da noite vacilante
ante o astro que em suas 3 notas sibila
o sonho aspirado de alguma madrugada vadia

enquanto tua alma crescendo em
                                         crescente crisálida
é o movimento – aleatório – do vento.






VINIL E CLOROFILA

sair ao vento e molhar a alma
colher-se em grãos vazios
de vinil e clorofila
enquanto se abstém o tempo
- na sinfonia do horizonte –
de fazer a chamada dos sonhos
nas pontes de silêncio.



 

RENASCIMENTOS

Tenho, em mim, uma roseira de frutos doces e amaciados
de manhãs inertes -  celebrados sem artifícios ou colorações –
poderiam ser encontrados em dias de pouca luz
daqueles esquecidos nos poentes de mármores vazios
quase ao desalento, ricos de madeixas escuras e perfumes de cristal,
tão idôneos em sua ligeireza que entre eles se descobre a água
como um metal de cheiro e calor em seu leito de alvorada.

Foram renascimentos e escutas de uma eternidade vazia
quase opaca na retidão de suas fronteiras, muita saída a sal
e nuvens, circunspecta no eixo maciço da navegação em terra
fria – mesuras e ciência do cotidiano – pássaros e sombras,
fusos e rocas de sabedoria
quase vergando
da alma
a sombra de sua pedra angular - finitude.

Foram nesses estremecimentos de ventos e voltas que estendi
cem contas de fadas e fóruns em uns discursos de meio tempo
regados ao líquido e à nata por ali estremecidos dos corredores
estrelas e parcimônia das vantagens do esplendor da vida

a luta da subsistência estiagem verde e marinha
em beijos salinas versos que se criam monásticos elásticos
prenhes do desejo branco da liberdade
quando ainda não havia o tempo, o fio e o medo
só essa valente sina de semáforos e luzes
aspirando o anjo em seu pouso branco
outono dedilha sua ventura na laje e no apego.




 
ARCOS

meus arcos são diáfanos quando da passagem oriente
sol em seus tenazes de lírios loquazes espremidos no horizonte
curvo e vesgo à  distância da veneração

noites morenas revelam-se em suas longas caudas sem confundir-se
com o pó prensado dos desertos crus  - enamorados das passagens
líquidas e verdes, sonhados e sonâmbulos em suas fortunas

que em dias de febre passeiam no ósculo de Apolo, alienígenas e macros sem breves ou brevê de cores que transparecem e  tonificam - lilases e róseos de todos os azuis - expressos nas longas eternidades das planícies e seus  oratórios de limo e paz e ,mesmo assim, não prosperam ou ascendem, antes, erguem-se  lisos e latentes, conscientes, formosos, tocando os ventos do tempo, o diamante da lua, liquefeitos, mornos, sem tingir-se para o porvir

enfeitam-se de sombras e silêncio para as estrelas pálidas e sorridentes dos terraços sem pulsão – pouso de perfumes que prometem manhãs de tino e voo no deserto da água.


JANDIRA ZANCHI


Ilustrações: deviantART,  poca2hontas(Martina)
 
Poemas de A Janela dos Ventos (Emooby-2012) 




Galeria Herê Fonseca

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Imagens:  http://arteherefonseca.blogspot.com.br/




Mineiro, Herê Fonseca vive e trabalha em Cuiabá. Trabalhou no atelier do pai, Tião Fonseca, com esculturas e diversas técnicas, fez curso superior em Artes Plásticas, com licenciatura em Educação Artística e cursos de aperfeiçoamento como o “Arte e Cidade” na Universitat Politecnica da Catalunya, Barcelona, Espanha, em 2006; O exercício e a compreensão das Artes Plásticas Contemporâneas na Pinacoteca Miguel Dutra, Piracicaba SP, em 2007. Trabalha com esculturas aéreas em movimento, esculturas estáveis, têmpera sobre papel, acrílico sobre tela, murais, esculturas em barro, máscaras, empapelamentos, pinturas em seda, objetos. Desde 2009 participa de intervenções na cidade de Cuiabá com o Coletivo à Deriva, que recebeu o prêmio Salão Jovem Arte de 2012 com a instalação Cidade Reinventada.

EU NÃO SEI ESCREVER

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                                                      EU NÃO SEI ESCREVER

“Eu não sei escrever.” Era o que ecoava desmembrado da rouquidão representada por um forte sotaque nordestino, “ela não sabe escrever”. 
1989. Inserida em um transporte de uma cidade a outra entendi (ainda sem entender) na pele o significado de metáfora. Recém-chegada a Brasília, em plena fase de alfabetização, recebo a sentença de que devia repetir a série.
“Ainda não identificamos o problema. Mas é impossível ir adiante. Ela não sabe escrever. Estranho pois os erros não são como os erros tradicionais, a troca de ‘s’ pelo ‘z’, por exemplo. Parece-nos que ela inventa palavras.”
Seria Lacan aquele que nos conta que a psicose não se confirma pela presença de um delírio, mas, sim, por transtornos na linguagem? Sempre soube.[1]Marcas inscritas que impossibilitam minha escrita. Traço fundo que me mantinha , no estrangeiro, em relação a minha língua materna e retardou significativamente o meu encantamento pelas cartas.

Como diria um amigo, “o que não acontece, acontece”[2]. Salva pela sensibilidade de uma professora de reforço, não repeti o pré (atual primeiro ano).  “Ela possui escuta-falha.”, diria eu caso fosse ela em tal contexto. Como sinônimo, ela disse: “Ela escreve foneticamente.” E, sim, foi aí que descobri que a fonética mente. Ela mentia para mim. “Tíííatru” vinha representar “teatro”; “runlá”, “vamos lá”. Tratava-se de uma criança de lá, curitibana, tendo aulas com uma professora daqui, nordestina.
O estranhamento não parava por aí, alegavam os adultos. Inquietavam-se tanto pela estranheza e criação de algumas palavras, “Tíííatru”, como pela dificuldade em compreender o sentido, “Por que ‘já’ é agora e ‘já já’ é daqui a pouco?”, ou então, “Por que fala-se ‘você fez isso de novo’, no lugar de ‘você fez isso de velho?’”.

Como tudo sempre começa por um mal entendido, tal desfecho orientou minha singular relação com a linguagem. História que se iniciou muito antes da percepção de sua existência, o que me confunde, significativamente, sobre o que seria o conceito de experiência.




[1] Autodiagnóstico selvagem
[2] Peres, W. As pequenas mortes. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. p. 9.

3 POEMAS DE CARINA DESTEMPERO

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BEDUÍNOS

Caminhamos como quem
sabe onde quer chegar
como quem
sabe o jeito de chegar
caminhamos como
beduínos,
como se soubéssemos encontrar
água no deserto e
como se soubéssemos
armar tendas contra tempestades
de areia.

Caminhamos como quem
depois de dias caminhando
depois de meses caminhando
depois de sete vidas caminhando
finalmente vê um oásis.
e nos jogamos na nascente
bocas abertas esperando o jorro de água
doce.

Não caminham
mais.
Das bocas abertas escorrem grãos
de areia
Ampulheta daqueles cujo destino
final era
miragem.




*   *   *




O peito do pé em carne
viva e eu morrendo
e pedindo 
mais
mais
mais 
com o coração batendo a
sessenta setenta setecentas
vezes por segundo até
pular
do peito até
atravessar
a garganta até
cair
da ponta da minha
língua
dentro da sua
boca.

(e eu que No
creo em brujas, 
- nem no amor -
acredito
que o seu
feitiço
possa curar 
a minha falta
de fé.)




*   *   *




Eu e você cambaleando
cantando dançando
tango
numa noite dessas de lua
cheia, rua vazia e
desertos áridos em
bocas secas de tanto álcool
tentando afogar
minúsculos demônios de
carne viva e pele morta
que ateavam fogo aos
ingênuos corações
como às bruxas na
inquisição e tudo,
tudo,
porque ousamos,
meu amor,
ousamos,
por quarenta e dois segundos,
amar.






Foto: Heather Landis



*    *    *





Carina Destempero é psicóloga, apaixonada por psicanálise e por literatura. Escreve para os sites Confraria dos Trouxas e Digestivo Cultural.








5 poemas de Enrique Carretero

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 Ilustração: Don Paulson



estranho a mim mesmo

quero reflexos
                        janelas

para olhar
- furtivo –
intimidades alheias

para olhar pedaços de mim
                                               a esmo



sem ligação de retorno

luzes, cerveja, forró, samba e música dos anos oitenta

saliva, corpos, sexos duros

- é muito tarde -

bebemos muito e a roupa fede a cigarro
e nós moramos sozinhos e temos cachorros
e amanhã é domingo e começa o horário de verão
e o dia depois de amanhã é segunda e voltaremos a nossa rotina

talvez seja possível ficar em vertigem de trapezista
e cair como Altazor

à procura de estrelas fugazes nas gretas dos precipícios

- obrigado, Huidobro -

quiçá você possa cair fatalmente

mas eu conheço minhas quedas

e não as tuas



espera

como sustidas do céu por deuses
as nuvens pendem sobre a cidade

nuas

as árvores enfrentam o inverno

silente

aguardo que a noite invada

escondo o relógio na gaveta

espero o tempo passar



restos

acordo
ainda sem saber quem sou

o sol se derrama no quarto
minha cachorra me olha com ternura e abana o rabo

a manhã se tinge de suave bruma
meu companheiro finge continuar a dormir

restos da nossa pele ficam nos lençóis
e pelos da cachorra restam no chão

nos desmanchamos aos poucos
até o fim do dia
e da noite

e do dia
e da noite



a modernidade

é bem na hora em que as primeiras nuvens da tarde ficam refletidas nas janelas do prédio em frente e o vai-e-vem das portas de vidro mostram quem está saindo um pouco mais cedo do expediente

é bem nessa hora que a modernidade cospe no meio do rosto

quando as palavras dos outros se liquefazem e correm bueiro abaixo em direção a rios poluídos

e na solidão do transporte público volto à minha pequena residência para ver se consigo desfrutar o fingimento de um pouco de liberdade

e me encara uma futilidade de tempo desperdiçado em horas que não desejo e das quais não tenho como escapar

e então meu coração se une à revolta de pichadores e manifestantes

e minha desesperança a moradores de rua





Enrique Carretero nasceu em Santiago do Chile em 1971. Formou-se em administração de empresas em 1995, mas desde 1998 trabalha na área de ensino de idiomas. Em 16 de junho de 2001 chega a São Paulo, onde mora desde então. Em 2008 inicia o curso de Letras na Universidade de São Paulo, concluindo o bacharelado em Português/Grego em 2012. Escreve desde a adolescência. Travessias, editora Patuá, é o seu livro de estreia.

HAICAIS DE MARCOS BASSINI

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ação de despejo:
sai a razão, entra
           o desejo




   por causa do meu ego
o nó na minha garganta
agora é cego




 não, não cairei em prantos
se te encontrar com outros
eu mesmo sou tantos


     

somo, multiplico, me embaso
     planejo meticulosamente
meu acaso




tudo será como antes, depois:
          eu e você bem distantes
como se não existisse o nós dois




quem escuta o urro não vê:
  doía mais quando o berro
era sussurro




o inexorável arrefece
     nada é improvável
depois que acontece




quando me perguntaram
          quem eu era, menti:
 disse meu nome




*    *    *




Marcos Bassini é redator, músico, autor do livro de poemas "Senhorita K" (Editora Patuá) e apresentador do Haicai Combat, um slam de poetas em que a arma é o haicai e o juiz é um lutador profissional.

LEIA MAIS POEMAS DO AUTOR AQUI!

4 POEMAS DE MAÍRA FERREIRA

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Âncoras


cenograficamente esfolada
um batom cor de boca
meio bomba atômica
madalena contaminando
os sete mares
eu e essa mania de lançar
âncoras a aquários
de beber oceanos
com lambidinhas de poodle
debruçado sobre a poça
- esqueço -
meu ovário esbarra
no seu
(focinho contra focinho)
vazio como
uma caverna submarina
onde espécies ainda
não descobertas dançam
ao som de
som nenhum




Left handed situation


vamos ser canhotos meu
bem explodir as tapeçarias
os inventários e as taças
as delicadas taças de cristal
beber apenas em copos
de requeijão velho com resto
de rótulo por fora
0% de gordura trans
tão emocionalmente diabéticos
digerir é retornar
como num ciclo ou um cachorro
perseguindo o próprio rabo
sem saber discernir
onde termina e onde começa
aquilo que quer perseguir
vamos ser canhotos e derrubar
todas as caras peças dos leilões
escrever livros inteiros apenas
com o lado esquerdo do corpo
e mergulhar no mar para nadar
apenas com um braço
e apenas com uma perna
respirar com apenas uma narina
sem ter tempo para observar
as voltas que damos
ou a ilha que construímos
ao nosso redor
sem ter tempo inclusive para ser
a ilha e habitar qualquer coisa
além
de um trajeto




Tipo analgésico


uma fotografia sobre a lareira
caso eu tivesse lareira
um cheiro de perfume no carro
caso eu tivesse carro
todo o leite do mundo
derramado
mas eu não sou de chorar
não, chorar não
é minha praia
faço mais o tipo
analgésico
restos de sopa
pela geladeira
meu grito embalado pra
presente aguardando sob
a língua de um
canhão
mas eu não sou de chorar
não chorar não é
minha praia
sou mais a ideia
de morrer
dançando




2113


um dia eu sei farão
estátuas peroladas de nós dois
assim artistas tão claramente escuros
no centro ardido das multidões estreitas
e seremos mais eficazes que todas as placas
e mais abertos que todas as avenidas
porém entre os corpos muitos
somente nos amarão os
pombos que nunca
descobriram bem
onde se
depositar
entre um voo
e outro.




Foto: Pedro Dias






*    *    *



Maíra Ferreira nasceu em 1990, no Rio de Janeiro, onde mora desde então. Atualmente, cursa Letras na UFRJ e prepara a publicação de seu primeiro livro, a ser lançado ainda em 2014. Já colaborou com diversas revistas literárias, como Portal Cronópios, Plástico Bolha, Polichinello, Parênteses, etc. Vez ou outra, posta em maira não mora mais aqui

A espada desenho na tábua - De Adriane Garcia

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Quando saio pelas ruas nem imaginam
Que sou Arthur
Não o da Távola
Mas o mordomo de Deus, o Arthur
Bispo do Rosário
E que ainda só não tive coragem
De juntar meus cacarecos
E fazer meu manto
Mas já os olho
Como quem sabe
Muito bem
Quem entrará no meu céu

Saio empunhando sérios brinquedos
Que se quebram
Crio o amontoado de suas sucatas
São os carros, as gentes, as buzinas
São os inocentes deitados na rua que
Passam por cima dos meus fragmentos
E de novo eu choro
Para dentro

As vozes várias querem me convencer
Que está tudo bem certo
Mas por que é que não encontro
Na minha caixa de segredos
Um velho amuleto?

Arranco um a um meus fios de cabelo
E os colo em sete cabeças de boneca
Só assim de poder vê-las
Posso não me sentir calva
Saio na rua, careca
Pronta para trespassar o riso:

A espada, eu desenho na tábua.


Imagem: Broken doll by LadyShadowStyle











Adriane Garcia, nascida em 1973, é mineira, de Belo Horizonte, cidade onde vive e trabalha como funcionária pública. Cursou História na Universidade Federal de Minas Gerais e especializou-se em Arte-Educação pela UEMG. É teatro-educadora e atriz. Escreve poesia, contos e dramaturgia, além de infanto-juvenis. Venceu o Prêmio Helena Kolody, do Concurso Nacional de Literatura do Paraná, com o livro Fábulas para adulto perder o sono. Seu O nome do mundo, também de poesia, será publicado pela editora Armazém da Cultura.

9 EXCERTOS DE "FÁBULAS DELICADAS", DE ELIANA MARA CHIOSSI - PARTE 1

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LENÇOL 


Interrogações e silêncio, sob a capa visível. É apenas um conjunto contínuo de águas. Oferecido sempre em horizontalidade, atravessa distâncias. Se eu pudesse andar sobre ele, seria uma ponte e estaria desfeito o feitiço de ilha. Não é local onde se possa deitar, solo sem feitio de grama. Faltam-me asas e não posso sobrevoá-lo. Estou de frente para o mar. Não posso escalar, então é uma coisa sem alturas. Não posso dobrá-lo, não posso carregá-lo no bolso. Se pudesse pendurá-lo em varais, o mar seria água escorrendo ou tela feita de azuis. Mar tem coleção de perigos. Mar parece esta casa aberta, abandonada, com porões repletos. Mar, enigma que surge em vestes contemplativas. Mar é este meu inferno coberto de águas.




RETORNO 


Voltei ao quarto, como se procurasse o abrigo ancestral da caverna. Tudo ao meu redor prepara a desilusão. Antes que eu seja traída, vejo aquele que declara amor, titubeando, empolgado e vaidoso de si mesmo, preso ao nó das próprias promessas. Nas lojas, sou vista como uma equação matemática e os vendedores precisam garantir os seus salários. Dizem nomes bonitos e me servem cafezinhos. Os filhos rosnam suas necessidades, até crescerem, habitados por aquele olhar que me inutiliza. Meus pais são meus filhos agora. Um deus para mim é pouco e consigo descrer de uma legião inteira. Após o mar, seguindo sempre em frente, há uma casa que me espera. Dentro dela mora um homem bom, que me visita nos sonhos. Se eu mantiver os olhos fechados, a fantasia continua e me dá abrigo. A realidade estaca, com seus coturnos e armas. Berra, impaciente. Abre meus olhos com um aparelho de metal. E exibe o filme ininterrupto de meu alheamento. 




APOSENTOS


Esta casa nos faz arquitetos. Consideramos as marés e fincamos os mastros, nos pontos cardeais da planta baixa. Estudos diários sobre os ventos e eis a instalação dos moinhos. Ao redor, fios tênues, elásticos, para seguir sem exaltação e sem horrores as desobediências das águas. Ávidos coletores desenhando o interior de cada cômodo. Os cômodos são palcos. A direção do espetáculo é compartilhada. Quando chega minha vez, dirijo os movimentos do teu corpo para os prazeres da minha carne. As naus trazem acenos dos marinheiros mal alimentados, sem zelo e sem higiene, a desejar o frescor desta pousada em alto-mar. Os jardins são suspensos. Temos nossa biblioteca, reunião de todas as nossas astúcias. Nos teus dias de diretor, fazes de mim tua brincadeira preferida. Chama as gaivotas que trazem fios de prata e enfeitam meus cabelos. Esta casa me faz tua. Digo o teu nome. Digo minha fome, que é você, meu homem.




NÉVOA 


Atravesso a nado esta sala distinta. Dou braçadas enérgicas para chegar à praia da casa, minha cama. Beijo o lençol na superfície da areia e agradeço o acolhimento das quatro paredes desta ilha. Deixo para trás o passado continental, pendurado em calendário de equívocos e sobressalto. Esqueço o tráfico, a bomba, a faca, a gordura, a noite das esquinas e os fios elétricos. Reconheço a verdade da ilha que recebe um corpo cansado. No desenho assimétrico do porto, sou um náufrago. Conciliado na volúpia de sombra e frutas. 




OBJETOS 


Como se houvesse um outro pensando através de mim, escrevo e me surpreendo. Escrever pode ser apenas o gesto da atriz, que mergulha e volta com um peixe na boca, com estrelas e uma bota de afogado. A cada mergulho, o que trago de volta é algo que recolhi, na atividade diária de aranha. Ágil e calculada caça. A escrita é este anzol sem método, na pesca quase involuntária de cenas e acontecimentos nervosos. Revelações de uma coleta ambígua. Registro incessante, que trabalha à minha revelia. O que cai na rede, uma briga de casal ou a morte de um pássaro. O que completa o traçado das mãos, isto que me foi entregue, é uma construção, à qual farei perguntas. E depois, darei relevância, contorno e decoração. Escrevo. E o mundo, então, se multiplica. 




ORÁCULO


Eu imagino a cena em que o fogo começa. Todas as vezes em que pergunto quem sou eu. Não há dor neste momento, e posso ver o fogo me consumindo. O corpo começa a ser queimado pelo fogo desta pergunta. Primeiro a combustão dos cabelos e das unhas. Enquanto questiono a mim, o fogo queima minha pele. E porque insisto, grande distração, vai o fogo fazendo o trabalho de resposta: queima meus órgãos, músculos, vísceras, células, até os ossos. O fogo interrompe o processo. Põe sobre mim seus grandes olhos contemplativos. Repito a consulta. O fogo, impassível, reduz tudo que é meu corpo a puro pó. Estamos no descampado e, imediatamente, o vento leva a síntese do corpo de mim mesma. Restos de minha matéria. Declaração do fogo. Todas as pessoas são apenas coisas vivas. Apressadas moléculas, que nunca descansam. Entregue à minha memória, única resposta disponível. Existir é apenas uma sucessão de deslocamentos. 




XADREZ 


Relembro as cenas deste quadro insólito. Quero desenhá-lo e não consigo. Não sou capaz de descrever o que meu corpo registrou. Olho para o piano e sei que sonhei música. Sentada, diante de todas as teclas, desaprendo. Retorno ao tempo de ignorância absoluta, quando o desfile das palavras eram sequências de gritos sem tradução. Não sabia ler, e ainda assim, pressentia o secreto e amplificado livro que a vida exibia. Todos os objetos feitos com palavras. O piano me nega seu discurso. Minhas mãos cegas tocam as teclas-signos, buscando falar através de suas vozes. O contato de minhas mãos ingênuas. Os poderes instalados na franja do instrumento. Emerge a distância entre o que sou e o que o piano é. Não conheço o Deus deste mundo. Todas as músicas, inaugurações de infinitas realidades, me abandonam. As teclas dizem, diante dos meus tropeços, que é melhor voltar para o lugar de onde o desejo veio. Sonhar a música não é possuí-la. 




ÁRIA 


Ouço a voz de Callas. E faz pouca diferença se fosse outra. Do alto deste sonho, posso avistar o fio de fumaça vindo do horizonte. A soprano no seu ápice convoca as deusas mitológicas, que esperam. Agarradas ao meu sonho, fantásticas mulheres que não cedem. Trazem na voz a dor e seu êxtase. O abandono é uma ferida ativa. O amor, mais uma vez reencenado. A platéia sabe que é tudo mentira. A platéia aproveita para purgar lembranças más. A platéia deseja a voz chegando ao teto. A voz tocando os lustres do teatro vivo. A voz que ultrapassa a matéria ficcional do sofrimento. O pranto da gueixa maquiada, destaque na paisagem rubra. A mulher ferida ainda não morreu. Os cabelos soltos adornam a espinha toda ereta. O adereço que brilha, antecipa um gesto definitivo. A borboleta faz seu vôo acrobático. Solta a voz, lendo as últimas notas de um amor perdido. Canta o próprio flagelo e se fere. Bate as asas e fecha a noite sem cortinas.




ORQUESTRA 


Nem tristeza nem alegria. Apenas a reunião anunciada de nossas diferenças. O risco era conhecido, desde o início. A sensação vertiginosa de perder o controle. Seu riso falso, minhas pernas agitadas sob a mesa. Nossa desordem em conjunto: mãos frias, sílabas gaguejadas, objetos derrubados e olhos baixos. Descontrole da voz e do riso. Havia o auxílio arisco de um vinho encorpado. Nenhum futuro após aquela noite desperdiçada. Nem dor nem êxtase. Esquecimento. A escolha sendo feita. Assim como se entrega o barco à deriva do vento e das águas inconstantes. Talvez isso: nosso amor, esse barco. E o dia de amanhã, essa música. 





Foto: Tony Frissell



*    *    *






Eliana Mara Chiossi, paulistana, por ela mesma: "Pia de batismo. Sou menina e assim como os meninos também choro porque tenho medo do padre e da água fria e talvez pressinta o que será de mim se não me livrar da Igreja Católica. Sou periferia. Brinco nas ruas e meus brinquedos são feitos de latas e de madeiras, de tapas e gritos na rua sem saída, onde moro. A nossa vida é quase sem saída. Mas encontro a saída na adolescência no Movimento Popular de Arte [zona leste de São Paulo]. Viro atriz, faço parte da Geração Mimeógrafo, sem saber bem o que é isso. Sou professora doutora em Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estudos sobre a produção cultura e artística do MST. Muitos livros que escrevi e muitas fotografias que fiz estão guardadas em mistério. Um livro circula público,"Fábulas Delicadas"(Editora Escrituras, 2009), de velozes poemas em prosa [do qual foram selecionados os poemas ora publicados]". 





Sub-verso - Charles Marlon

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“Então, lembrei-me” (Lisboa,2009), Rui Pires Cabral.



“Os navios todos se parecem e o mar é sempre o mesmo”.[1]

1968. Esquadros de
memórias emprestadas;
fotografias em preto e
pouco branco. A lágrima

que me cai, me sai sem minha
ser - sequer. Há cor demais nas
rugas de Caetano e as palmas
no auditório pedem – ainda-

uma última canção. Em
que gaveta ainda bate –
se tanto – ou por qual
janela saiu (pra se perder)

nosso baço coração? 



“Lá onde o mundo real se converte em simples imagens”[2]
                                                                       Para o Vitor.

Lembras-te ainda de como era,
mas foi se perdendo - o sorriso-
como o medo, pelas páginas.

As ruas não te pertencem,
o quarto que alugastes por meio
salário não é o de tua infância e

já não o foi também de outros, os
que viram os pombos pela janela
como tu agora vês, ainda que mal.

Dormes mal a noite inteira – mas a-
prendestes que  a tarde não é afeita
a colchões. Esperas que o alarme

do carro na esquina cesse, que
o senhorio não toque no aluguel, que
não toque o telefone; que toque o telefone

e que no fim de outra semana,
sob a suspeita de um cansaço
que geme como uma geladeira

vazia, ainda haja tempo para
outro engano, e que mais uma
vez – quem sabe - talvez-

valha a pena viver.



 “Não avançamos na linguagem como num caminho”[3]
                                                             
Encontras no teu e-mail
palavras que vem -
quiça, por meio de coisa alguma-

dos amigos que conheces
só pelas próprias palavras.
Começas a imaginar

como lerão tua resposta,
que voz fictícia te atribuirão,
qual rosto tirarão de tua sin-

taxe; e sabes, agora, que
isto seja talvez, ainda,
o que há de mais real

em nós.  



“Vôo noturno”[4]
                        Para Wilson Caritta (em memória)

Há amigos que chegam
mais cedo ao derradeiro
destino; e que, agora,

conhecem por dentro
a substância
que faz o escuro

da noite. Houve quem 
lhe dissesse: “você nem sequer
está triste... vai partir por quanto

tempo?”
Não sei, é certo. Mas há
ainda as
circunstâncias,

qualquer coisa 
por cumprir,
este poema...

Tudo labirinto, pra enganar 
a morte, tudo mensagem
que já não significa coisa 

alguma.



“Vence na vida quem diz sim”[5]

Aprende
nos livros e na vida a ser
um tanto menos sincero
e vai às ruas
sorrir aos outros
que passam
para fingir uma
fuga da dor –
que aprendeu a
adorar quanto
mais roda,
sendo
sempre
e nunca a mesma –
que dura e que parece
saber ser o estômago
uma forma mais bruta
de coração. Mas

retorna, ao fim
do dia,
a casa há – ainda –
de lhe acolher
uma outra vez

e amanhã, quando
ligarem, cedo, às
cinco, há de dizer
- como bem sabe –

que
sim.


Charles Marlon 


Poemas de Sub-Verso (Editora Patuá, 2014)



_____________________________
[1] Título retirado da obra A sociedade do espetáculo de Guy Debord. Tradução: Francisco Alves e Afonso Monteiro. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005. Pg.13
[2] Título retirado do romance O Coração das Trevas de Joseph Conrad. Tradução: Celso M. Paciornik. São Paulo: Abril, 2010. Pg. 1
[3] Verso de poema sem título de Gonçalo M. Tavares. In: 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. Pg.182
[4] Título e versos em itálico retirados do livro Vôo Noturno de A. de Saint-Exupéry. Tradução anônima. São Paulo, Editora Penteado LTDA. e Editora Abril S.A, 3ª ed. 1975.
[5] Título retirado da música de Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça Calabar, o elogio da traição. (1973)
 


Volume morto

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consumido
milhares de litros
de poemas
em alarme
entro agora
no volume morto

nenhuma nuvem
de versos ou gafanhotos
no céu ulcerado da seca
sobre ossadas de palavras
fósseis
nenhum poço
guarda no fundo
ritmo
líquido e cristalino

todo poema
quando não houver mais poemas
invisível memória
no talvegue das páginas
do volume morto





Estrela Binária - Bellé Jr.

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 Compañera

sinto seu cheiro escorrendo
debaixo do trevo das araucárias
sinto que sou sereno e você é geada
e assim que romper a madrugada
e pôr fim ao nosso outono
num segundo secarão as folhas
e nelas, as caligrafias
sobre as mesas dos poetas

mas será você quem será
presente e condensará
num orvalho silencioso enquanto leio
residéncia en la tierra
caballero solo com o baseado aceso entre os mesmos
dedos que durante a noite desnudarão seus seios
e os mais incendiários pecados

serei seu solista de lábios e de beijos
não te quero apenas
mulher
mas compañera
carrega comigo nessa marcha a bandeira negra

te desejo errante e derradeira

trepadeira de estrelas na escuridão baixa
   fugiremos juntos na poeira da estrada
e sós ergueremos nossa fortaleza
na lareira seremos o fogo
da fumaça subindo solitária

e sumindo conosco
sem uma só palavra




Estrela Binária

talvez o amor seja como o tempo
nada mais que uma invenção humana
e por humana, imperfeita
mas que uma vez inventada
já não pode ser desfeita

enquanto escrevo estes versos, debatemos
eu e uma indecifrável garota negra
cada qual com suas armas
meus sorrisos e poesias
suas carícias, sua coragem ensolarada
nosso campo de batalha é uma cama empapada de suor
e um presente de futuro esquivo, arredio
a um plano maior e mesmo aos insuspeitos devaneios
que se conjugam a dois
não permite nem ao menos que pensemos sobre eles 
e brinda-nos com sua deriva
tão reconfortante se fazemos dela
horizonte
para onde não se ruma nem se rema
apenas se espera
pois sua maré
já basta

debatemos
eu desejando laçar seu coração com minha artéria aorta
para que seja só minha, exclusiva e infinita
ela, tão liberta, tão feminina, tão linda e segura
que sua liberdade me encanta
tanto quanto me assusta
e por vezes me afasta

falamos sobre meu amor
falamos sobre sua liberdade
sobre a noite em que os dois se conheceram
e se apaixonaram
então adormeceram abraçados, um dentro do outro
e ao abrirem os olhos no século seguinte
viram seu amanhecer erguendo-se, insurgente
sobre seu ontem, sobre
o que foram antes de serem
inseparáveis  
 
nós
deitados sobre o que, juntos, eles nos tornaram
imaginamos um amor livre
que para ela é imprescindível
é inegociável
para mim parece incrível e desejável
belo e proudhoniano


construído coletivamente através de contratos autônomos
têm no lastro das vontades, os limites
têm as regras do respeito mútuo
a qualquer momento revogáveis
renováveis, revisáveis
por quaisquer das partes: casal, trio, quarteto
afinal, não se pode, nem se deve, quantificar o amor
seja em números primos
seja em amantes pares

mas não pense que isso faz o amor mais simples
mais sincero e intenso, sem dúvidas
talvez, inclusive, mais honesto e verdadeiro
mas de forma alguma mais simples
justamente o contrário
por libertário, é incrivelmente complexo e idiossincrático
claro, toda liberdade traz consigo mais liberdade
estas, por natureza
não apenas testam
mas rompem barreiras
preconceitos, tradições
costumes, inércias e fronteiras  
e toda ruptura é dolorosa
por mais indispensável e benéfica que seja
presenteia-nos com novas dores
inéditas, impensáveis, indispensáveis
maravilhosas, porém
preteríveis

feliz será o dia
em que elas por fim nos interpelem
num beco sem saída

mas eu, ao menos eu, não estou certo
e por certo nem errado
por não sentir-me preparado para enfrentá-las
por saber que delas me tornarei escravo

não temo apenas o ciúme ou o apego
contra eles luto e a cada luta
perco, choro e persevero
o que, no fundo, me devasta 
é a perspectiva de não sermos nada
mais que sopro espontâneo e breve
tão incapaz de deixar
tão incapaz de herdar
algo que se pretenda, que ao menos se pretenda!
eterno 
que seja inconformado
que se faça rebelde e que lute
contra o reinado intransigente da efemeridade
e este algo só poderia ser o amor
só ele é assim tão petulante
só ele tem em sua finitude
todo o infinito necessário 
para permanecer como brisa ou flutuação quântica
e morrer disposto a estalar novamente
a qualquer instante
a qualquer deslize cósmico
para simplesmente reviver-nos num beijo tão único
só nosso
e numa explosão singela e atômica

revelar-se a origem primeira, de toda estrela
binária

que há no espaço


Poemas: Bellé Jr.
Fotografias: Aline Lata

 Poemas de Trato de Levante, Editora Patuá (2014).

Pocket Requiem - Kyrie Eleison (por paulo guicheney)

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Há uma criança morta que passeia pelas ruas de Goiânia. Há uma criança morta em cada esquina. Centro e Núcleo de Goiânia.

A., eu morri em 1987.

Quando criança minha mãe deu-me um termômetro para mastigar. Era claro. Frio. Lembro-me de seu desespero. Lembro-me também de quando John Lennon morreu.

De meu pai esqueci tudo. Meu pai é a fissura na mão direita. O melanoma no olho esquerdo.  A promessa de destruir meu carro na próxima esquina. A fratura.

Saio de casa. Não tenho casa. Moro em um quarto de hotel. Moro entre os livros. Moro entre as cordas de um piano destruído. Moro no berço dos filhos que não nasceram.

Lembra-te dos nomes, A.?

Saio de casa. Uma mulher espera por mim. Sou um homem educado. Sou um homem simpático. Sei o que ela quer ouvir. Ela elogia meus olhos. A minha voz. Acendo um cigarro. Ela é linda, percebo. Ela pergunta de onde veio minha família. Respondo que do inferno. Ela ri. Toco suas mãos. “Vem comigo?”, eu recito. “Vou”.

Saio de casa.

A falta de um tema e todas as variações que nascem dessa falta. Posso repetir eternamente. Saio de casa. Saio de casa. Saio de casa.

De repente não atravesso mais as ruas de mãos dadas com uma mulher. Espero que uma rua me atravesse. Espero o peso das ferragens da minha infância. Espero o peso da mão de meu pai no meu rosto. Espero. O rosto quebrado.

Estou em 1987. Não falo uma palavra em ucraniano. Sou a criança na esquina da 68. Sou a criança que respira o desespero do pai. Sou a criança na esquina da 78. Caminho pela 80. Chego à 57. Meu padrinho mora aqui. Sua casa não existe mais. Tornou-se um laboratório. Meu pai. Enlouqueceu. Nossa casa é medida periodicamente. Nos mudamos para o Setor Coimbra.

Louco.

Não há desgraça. Maior para um filho do que ver. O pai louco.

Eu não sei escrever sobre isso.


A vida é apenas o tempo de terminar este livro, A.



*trecho de “Homem trancado em quarto de hotel



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