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Máriam - Homero Gomes

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Ilustração: Corão

Surata de Maria

"E se tendes dúvidas a respeito do que revelamos ao Nosso servo, componde uma surata semelhante à dele, e apresentai as vossas testemunhas, independentemente de Deus, se estiverdes certos."

( Alcorão, 2.ª Surata – Al Bácara: 23)


1. Não serei ninguém que eu não queira. Então, sou Maria, sou Marta, sou Salomé, sou Joana. Eu sou a Madalena dos sete demônios.
2. Não terei o passado que me impuseram, pois escolhi ser a filha de Abraão, a mulher de Isaac, a amante de Ismael.
3.Sou todas as mulheres que eu quiser ser. Sou todas as mulheres que eu quiser ter em mim.


4. Benditas as mulheres que suspenderam a fé e suspeitaram dela. Elas são as que se entregaram de corpo e espírito ao Mestre, mas que sempre se questionaram.
5. Do meu corpo foram retirados sete espíritos malignos. Agora, posso ser possuída por todas elas, de todas as épocas e gerações. Sou Máriam, Maria de todas as mães e filhas, de todas as prostitutas e de todas as virgens.


6. Não há pureza nem santidade. Pois elas são aparências da mesma essência, e não há essência.
7. Portanto, não me persigam, não atirem pedras e ofensas, não me humilhem. A perseguição é pior que o homicídio, já dizia o profeta de Ismael.
8. O Mestre foi perseguido e morto, e somos todos com ele. Mas permitam que eu tenha o tempo necessário para odiar a fé. Para colocá-la em dúvida, por mais que eu tenha visto milagres e prodígios.
9. Tenho esse direito, pois sou de pó, minha matéria não é divina e santa.
10. Não abro mão do direito de dizer: talvez não seja assim; de duvidar de mim mesma, se for preciso, com todas as fibras do meu corpo.


11. Vi  mulheres com feridas pelo corpo ficarem sãs. Vi loucas recobrarem a razão. Vi a fé à beira da montanha. Vi prodígios. Vi milagres.
12. Mas será que meus olhos são capazes de tamanho engano?
13. Sou de pó. Minha matéria não é divina e santa. Portanto, devo duvidar do que sinto e do que vejo, do que creio e do que desacredito.


14. A matéria deste mundo é sustentada pela sua própria contradição.
15. E não há nada de errado na autocontradição. Contradizer-se é vida, é sangue, é a própria matéria da morte.
16. Se há vida, ou algo que se possa chamar de vida, após a morte. Então, a morte não é morte. A morte é contradição.


17. Mas posso e quero duvidar dessa possibilidade.
18. Se coloco todo o meu ser e minha esperança nisso, posso me perder eternamente.
19. O que vejo, sem crer que vejo, é apenas matéria.
20. O que não vejo, podendo aceitar que vejo, é o espírito, lado obscuro da matéria.
21. Mas tanto a matéria quanto o espírito podem ser apenas ilusão. Ilusão da visão dos olhos; da visão da fé.
22. Então, não há nada além de ilusões.


23. Por isso creio, meu Mestre.
24. Creio Rabôni, em suas ilusões.
25. Creio Cristo, no engano dos meus olhos.
26. Creio Jesus, que você apareceu para mim, e primeiro para mim.
27. Creio filho do Deus vivo, que duvido de ti com todo o meu espírito.
28. Pois se todos os discípulos puderam duvidar e não se perderam, então abraço o meu direito à dúvida.
29. Portanto, não pensarei mais nisso. Não perderei meu sono em decifrar esse jogo de ilusões.


30. E para aquele que duvidar de minhas palavras, digo: faça o mesmo que eu.

Maria em árabe




Homero Gomes, autor do livro  Solidão de Caronte, -Editora Patuá,2013, nasceu em 1978 na cidade de Curitiba, onde trabalha, estuda e escreve. Entretanto, dentre os papéis que interpreta o que desempenha com mais satisfação é o de compartilhar a existência com Ana e Amanda, pois sem elas não estaria vivo, seu existir não seria vida. Porque é no olhar delas que vê a si mesmo e encontra amparo na solidão para trabalhar como professor de literatura e língua portuguesa e como editor de materiais didáticos, estudar os romances publicados durante os governos militares no Brasil para o mestrado em Estudos Literários da UFPR, e escrever, que é sua atividade principal, sua maneira de agir sobre o mundo, pretendendo imbricar-se nele seja como poeta, cronista, ensaista ou ficcionista. Por isso, nos últimos anos, colaborou com Rascunho, Cronópios, Cult, Germina Literatura, Ficções, Zunái, Nego Dito, TriploV, Relevo, entre outros. Além de manter, atualmente, coluna em veículos de cultura e literatura, como Musa Rara, Página Cultural, Mundo Mundano, Mantovani e Samizdat. Lançara, em breve, Sísifo Desatento por Terracota editora.


O mundo de Deus

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Agora que os cristãos estão pregados
No estrado em cruz de suas camas

E ninguém sobrou dos estudos de cor
Pra realçar a sombra que na rua figurar,
Que impregnou,

                         agora que eclipsam
Pelo halo de um lábio sobre o outro
As luzes das sefirot, a água da clarabóia,
Benta pra arrebatar um taoísta




E entra Alá, o mau metano
De quem solta a fumaça do cano
Pra usar, no lugar de petróleo,
Um carro de Apolo movido a bosta,

Agora que o Orixá dos Transgênicos
Atendendo em usinas a pedidos remotos
Pendurou o cartaz na tenda de "já volto",

Agora que tudo isso, afora o que emperrava,

Você pode finalmente definir
O mundo de Deus. Com a palavra:

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6 poemas de Glaysson Zamt

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Paradoxical Silence by Filomena~Famulok



OBSCENOS GESTOS AVULSOS


Inútil tentar conter esses teus gestos
– os homens olham a verdade
            com lunetas de mentira
            (apetrechos da primeira infância)
Os animais ao longe se agitam
à imagem do seu corpo
em queda
mãos erguidas
sublimando o momento
do abate
Eis que te devoram
sem pressa
presa
teu corpo em choque
bailando
numa coreografia maravilhosa
enquanto
teu olho
objeto avulso
passeia
sem lume
pela planície
do
nada.


balada para Auguste
  
 
Desconheço a medida das coisas
         – se é que as coisas podem ser
Do ponto
onde me encontro
até onde os olhos podem ver
diviso
sob a tutela da ordem
         (essa benção!)
a marcha fúnebre dos corpos
cansados
que com seus trejeitos estranhos
        de gado a serviço do pasto
            – da pátria
inauguraram a treva
em nós
E com suas vozes
sem boca
que anunciam planos ótimos
para se comprar esperança
à prazo
– em vinte vidas sem juros
 perpetuam  
ao longo dos tempos
o bordão
karmicômico
do progresso
que virá
em breve
virá
       você está preparado?    

II

Quem melhor algoz entre nós?
quem foi que impôs
ao homem
        A bandeira
        A espada
        A despesa
a disputa
da palma
do lixo
com o bicho
        da palma rude e crua
que bate na criança
que cheira-bebe
cola na rua
– sem escola pra desaprender
e
expõe no sinal
            – assassina
A pobre cria raquítica
que fuma-come pedra com política
(e à justiça paralitica)
        Restam olhos para ver?       



sibilibido


A língua
silaba por si
               laba
               se
               lambe
Os lábios mordendo
               os grandes
lábios
mordendo o falo
(e vai)
morrendo
a fala
si-la-ba
               por si
morrendo
               à míngua
(ea língua)
lambendo o
mel da
               sibila
a              libido
(essa fada)
que          silaba
por si só
escorre na vala      
da ferida
fingida
em flor                   (ai!)
               e se cala



afrodite biodegradável


Acordei
era tarde já
O mundo lá fora
ardia
perdido em meio
a algazarra
de pássaros elétricos cagando
sobre a cidade insone
– com fome

Sirenes
de ambulâncias
vendedores
de coisas que ninguém
mais usa:
naftalina
            vitrola
            amor

Esse troço
em liquidação
escorria solto
pela calçada
em meio ao resto
dos homens
que se acumulava
            nos bares
            nos lares
E entre garrafas
            desejos           
            seringas
uma coisa
sem nome
            sem pai
            sem pátria
se movia ainda
Insolente criatura
descartada assim
            no lugar errado
não era papel
nem plástico
vidro
– ainda se movia –
            metal não era.



siameses


Amaram-se tão ardentemente
que suas entranhas
outrora partes estranhas
de seres diferentes
tornaram-se partes iguais
pertencentes ao mesmo ente



comtempo

  
Raspando
a fina casca
do
contemporâneo
compoucotempo
chega-se à
cloaca
onde
descansa
inerte
a aptidão


Poemas de Obscenos Gestos Avulsos (Patuá,  2014).




Zamt, autor de Obscenos Gestos Avulsos (Editora Patuá, 2014), nasceu em Minas Gerais no ano de 1984. De lá pra cá muita coisa foi escrita – e, sobretudo reescrita. Não tem especialização em literatura nenhuma e nem bacharelado em nada. Mas em compensação, foi aluno de um dos grandes mestres do saber poético-universal: Seu Nonato. Avô, velho matuto e analfabeto exemplar que tece uma prosa como ninguém e já plantou (sozinho) em seu quintal muitos pés de eternidades – e disso nunca se gabou, pois que não vê razão em ser reles.  Zamt atualmente vive em São Paulo, mas pra tudo tem jeito.

Gilka Machado e a Insaciedade do Infinito

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Regressa ao teu Amor, goza um momento,
que o momento de amor que a vida goza
mais do que a eternidade é longo e lento.
em “Ouve, minh'alma, e pensa muito, pensa...”

Gilka Machado (1893-1980) foi reconhecidamente a maior poeta do Simbolismo brasileiro, conservando, inclusive durante considerável tempo após 1922, um prestígio quase inabalado. Se, por um lado, muito de sua poética é valorizada por revoluções estéticas (um verso livre teoricamente mais ousado do que aquele que era praticado à sua época) e sensoriais (uma radicalização da sinestesia simbolista, com uma ênfase trágico-erótica de tudo quanto existe), por outro, Gilka também foi uma exímia poeta social. Em seu livro de estreia – Cristais Partidos, de 1915 -, há um verdadeiro hino feminista, o soneto “Ser Mulher”, e, em seu Sublimação, de 1938, por exemplo, há dois poemas de teor social indisfarçável: “Ode aos Trabalhadores que construíram a Cidade do Rio de Janeiro” e “Alerta, Miseráveis”. A própria postura de Gilka, ao escrever uma poética de confessa sensualidade e feminilidade em uma época patriarcal e conservadora, demonstrava, naturalmente, um teor de enfrentamento ao qual a sua poesia estava envolvida.

Gilka Machado em sua maturidade
(Créditos: Templo Cultural Delfos)

O seu primeiro livro era de um Simbolismo pulsante, mas ainda com teores ortodoxos. Apesar de ter obtido, à ocasião de sua estreia, uma recepção grandiosa, a poesia de Cristais Partidosainda nos soa trabalhada nos clássicos moldes utilizados pelos simbolistas precedentes à poeta, o que, evidentemente, não quer dizer que não houvesse poemas verdadeiramente belos, como os dez “Noturnos” e o já citado soneto “Ser Mulher”. Aliás, acerca dos sonetos de Gilka, em toda a sua obra, à medida em que o seu verso livre ia evoluindo fabulosamente, nessa pequenina forma de quatorze versos a sua melodia não se encaminhava com tanto êxito. Em sua trajetória literária, foram padrões os quartetos com a mesma distribuição de rimas (ABAB/ABAB), deixando uma maior variação para os tercetos, nos quais já há uma melhor disposição de melodia. Tematicamente, que é o que importa, em fato, os sonetos configuram-se em maioria na sua obra-prima – Meu Glorioso Pecado, de 1928 -, mas se lidos seguidamente, na concepção simbolista de que a poesia é indissociável de sua música – a poesia é música, afinal -, causara-nos a impressão de um curioso minimalismo melódico em oposição à grandiloquência imagética de seus versos. De Cristais Partidos, vejamos dois sonetospara exemplificar o exposto:

NOTURNOS (de Cristais Partidos)

VIII

É noite. Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado;
e, no tear da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus luminosos para o universal noivado.

Suponho ser a treva uma alcova sombria,
onde tudo repousa unido, acasalado.
A Lua tece, borda, e para a Terra envia,
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.

Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra de quando em quando. É uma noite de bodas
esta noite... há por tudo um sensual arrepio.

Sinto pelos no vento... é a Volúpia que passa,
flexuosa, a se roçar por sobre as coisas todas,
como uma gata errando em seu eterno cio.

E esse tão contemporâneo canto feminista:

SER MULHER... (em Cristais Partidos)
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Em Estados da Alma, a sua poesia começa a ganhar contornos de genialidade sinestética. No Brasil, com exceção talvez a Cruz e Sousa, nenhum outro poeta ou poetisa conseguiu tantos êxitos no grande jogo dos sentidos como Gilka Machado. O longo “A Emotividade da Cor” (“olhar a cor/ é ouvi-la,/ numa expressão tranquila,/ falar de todas as sensações/ caladas, dos corações.”) é de uma felicidade expressional palpitante. Mas, dessa obra, os célebres sonetos de “Particularidades...” consistem certamente em obras-primas de uma poesia erótico-sinestética:

PARTICULARIDADES...(em Estados da Alma)

I

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pelos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

II

Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente coma,
porque afagos de velo oferece e propina.

O intrínseco sabor lhe ignoro; se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
Gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina...

Toco-a, papo-a, acarinho o seu carnal contorno,
saboreio-a num beijo, evitando um ressabio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.

E que prazer o meu! Que prazer insensato!
- Pela vista comer-te o pêssego do lábio,
- e o pêssego comer apenas pelo tato.


Ainda em Estados da Alma, há verdadeiras perambulações por uma musicalidade que ganha caráter etéreo, como em “Ouvindo um solo de violoncelo” e no soneto “Sobem, na longa esguiez dos galhos ressequidos...”. Sobretudo, o seu verso livre, ao estilo de um Hermes Fontes e não muito diferenciado daqueles versos soltos de Alphonsus de Guimaraens dos derradeiros livros, começa a demonstrar sintomas de uma melhor adaptação à poesia sintética do que às longas divagações (quase sempre divididas em partes), como, em exemplo, no poema de primeiro verso “Por este fim de dia”, de vinte e oito versos polimétricos. Tais características tornar-se-iam mais evidentes ainda em alguns poemas de Meu Glorioso Pecado, publicado em 1928. Porém, antes falemos de um poema em particular presente em Mulher Nua, de 1922. Sabe-se que o Surrealismo deve muito ao Simbolismo principalmente no que se refere ao onirismo em plena correspondência com as coisas do mundo “real” (não se exclua do hall de influentes nessa questão alguns Românticos, como um John Keats, tão precioso aos simbolistas ingleses e brasileiros), mas como definir essa estrofe final de “A uma Lavandeira” a não ser como uma evocadora de certos momentos da pintura da espanhola Remédios Varo?

Ao teu labor, que assim depura,
tenho este anseio singular:
pudesses tu, leda criatura,
lavar minha alma da amargura
e pô-la ao sol para secar.

Mas foi em Meu Glorioso Pecado que Gilka marcou-se como definitiva. Se, por um lado, muitas das temáticas simbolistas se mantivessem claras na obra, a construção já deixara para trás aquela ortodoxia formal dos livros anteriores e alguma hesitação que aparecesse em Mulher Nua, por exemplo. O que vemos aqui, mesmo nos sonetos, é de um primor estético, mas, acima de tudo, de uma construção personalíssima. Meu Glorioso Pecado é Gilka Machado em sua essência mais vibrante e grandiloquente. Não raramente, porém, deparamo-nos com temáticas que nos lembram, em interessante espelhamento, outra célebre simbolista e que, tal qual a poeta carioca, sofreu das agonias dos amores e das lassidões inatingíveis: Florbela Espanca. Eis um soneto para exemplificar a ideia:


A QUE BUSCAS EM MIM... (Em Meu Glorioso Pecado)

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos vai unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou... Mas teu anseio
fora possuí-la – e espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma...

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!


Todas as temáticas trabalhadas anteriormente por Gilka, com exceção àquelas sociais que culminariam no aspecto mais considerável de seu Sublimação (1938), obtiveram o seu maior êxito em Meu Glorioso Pecado.A ânsia de infinito, comum a todos os simbolistas – e que com Gilka obteve o mais vivo caráter de rebeldia social após o “Emparedado”, de Cruz e Sousa -, é desenvolvido em vários momento da obra. Mas notemos a beleza destes versos livres – cuja síntese estava, como já fora citado, desenvolvendo-se em seus livros anteriores - e em que a tópica é reavivada em um tom curiosamente tátil:

MEU DESERTO... (em Meu Glorioso Pecado)

Meu deserto,
és para mim
o que é para as aves o espaço:
murcham na tua ausência
minhas asas,
saudosas dos teus longes,
saudosas do infinito da tua alma.

Ah! a impossibilidade
dos meus surtos,
sem as distâncias iluminadas
do teu ser misterioso!...

Por ti meu sonho desfalece,
aos poucos,
de inércia, como um pássaro cativo.

Vem com o teu peito vasto,
com teu espírito incomensurável,
dar-me a ilusão,
dar-me a certeza
de que é meu todo o céu,
de que és meu todo;
traze-me a liberdade,
as distâncias azuis;
deixa que eu possa, bem no inferno dos teus braços,
roçar o corpo pelas plumas do éter!...

E mesmo voluptuosidade típica da poeta ganha, nos versos iniciados em “Tua boca é um voo de andorinha mansa”, certamente um equilíbrio entre a delicadeza e a voracidade não encontrada em seus poemas anteriores sobre do tema:

(…)

Tua boca é um voo... Que avidez de sangue!
Nunca se sacia, nunca se conforta,
deixa sempre exangue,
no seu rumo infindo,
qualquer outra boca em que, um momento, aporta
essa malfazeja que é um demônio lindo.

Tua boca é um voo... Quanta vez de ninho
lhe serviu a minha (lembras? - Que tristeza
pássaro daninho
que inda me tresloucas!)...
Tua plúmea boca, nos meus lábios presa,
ensaiava os surtos para outras bocas...

(…)

Quando Sublimação foi publicado, ou seja, em 1938, Gilka Machado já havia sido considerada “a maior poetisa brasileira” cinco anos antes em pleito realizado pela revista O Malho, em votação nominal que contava com os intelectuais mais credenciados para a época. Porém, ao lançar o seu novo livro, não cantava mais aquela pós-simbolista perscrutadora de todos os sentidos, mas sim uma poeta das ânsias humanas mais atuais, não raramente urbana, social, com um fino entendimento da função espiritual da poesia mesmo em um tempo em que o ser fica tão alheio a si mesmo como o moderno. Gilka, definitivamente, nesse livro, tornou-se “a voz da humanidade”, como definiu Andrade Muricy. O poema introdutório, de um linguajar simples (assim como em todo o livro), mas de espetacular acerto, deixa bem claro essa cosmovisão, não sem almejar, ao mesmo tempo, um aristocrático isolamento do artista, típico da época de sua formação literária:

O MUNDO NECESSITA DE POESIA... (em Sublimação)

O mundo necessita de poesia,
cantemos, poetas, para a humanidade;
que nossa voz suba aos arranha-céus,
e desça aos subterrâneos,
acompanhando ricos e pobres
nos atropelos
das carreiras
de ambição
e na luta pelo pão!

Lavemo-nos das máscaras histriônicas,
tenhamos a coragem
de propalar a existência eterna
do sentimento;
ponhamos termo
a esses malabarismos
de palhaços
falsos
da modernidade,
permanecendo diferentes,
diante da multidão
insensibilizada,
enferma.

A humanidade quer rir de tudo,
porém é alvar sua gargalhada;
foge das tristezas,
mas paira ausente
em meio aos prazeres,
desligada em toda parte,
perdida em si mesma.

O homem anda esquecido
do caminho da fé
que a poesia sempre lhe ensinou.
O homem está inquieto
porque lhe falta a posse das distâncias
que só a poesia proporciona.
O homem se sente miserável
porque a poesia já não lhe enche a alma
daquele ouro inesgotável
do sonho.

O mundo necessita de poesia,
(não importem assuadas)
cantemos alto, poetas, cantemos!
Que seja nossa voz
um sino de cristal,
um sino-guia de perdidos rumos,
vibrando do nevoeiro da inconsciência
do momento angustioso!

Nosso destino, poetas, é o destino
das cigarras e dos pássaros:
- cantar diante da vida,
cantar
para animar o labor do Universo,
cantar para acordar
ideias e emoções;
porque no nosso canto
há um trigo louro,
um pão estranho que impulsiona
o braço humano,
e os cérebros orienta,
uma hóstia
em que os espíritos encontram,
na comunhão da beleza,
a sublimação da existência.
O mundo necessita de poesia,
cantemos alto, poetas, cantemos!

Quase tudo em Sublimaçãonos soa mais contemporâneo e menos moldado nas questões atemporais de seus primeiros livros. Um poema como “Aos Heróis do Futebol Brasileiro” demonstra como a sua poesia caiu em definitiva ocasionalidade, apesar de uma sensível percepção da alma brasileira. Mas ainda há momentos marcantes e típicos de sua poética ástrica, como nesse trecho de “Viagem ao Sétimo Céu”, um dos bons poemas do livro:

Por entre céus, subíamos
ao Silvestre;
a cidade,
lá em baixo,
era um céu invernal
e o céu dilatava os olhos
enamoradamente
para as estrelas
que bailavam no abismo.

Em Velha Poesia(1965) paira um grande clima recordatório, nostálgico, na consciência serena de um encerramento da própria trajetória poética. Mas também traz trechos pungentes de percepções sociais, como da viagem que a poeta fez para os Estados Unidos em 1941, que desaguou nestes versos, absolutos em crítica contra o materialismo estadunidense (em um sentimento de desprezo afluente àquele que levou Garcia Lorca a escrever o seu Poeta em Nova Iorque):

CENTRAL PARK (em Velha Poesia)

Por entre tuas árvores sem franças
minha angústia passeia
encolhida em lembranças.

Talvez tenhas encanto,
mas te vejo através da neve e do meu pranto
e feio tudo em ti se me afigura;
mas te vejo desdobrado
em meio de uma hostil arquitetura
onde os arranha-céus
exclamativos
lembram ameaças feitas a Deus.

Vegetação sem flores e sem frutos,
árvores nuas, causticadas pelo frio;
fez-se de pedra, é gelo a água do rio,
e bandos de aves e aluviões de passarinhos
abeiram os caminhos
esperando alimento dos transeuntes.

Amplo Parque Central, como tu me desolas!
Não tens mendigos implorando pão,
mas as asas em ti vivem de esmolas,
voejam, aflitas, de mão em mão...
A minha alma, também, vaga em tuas estradas,
como essas pobres aves torturadas,
porém
ninguém
compreende a fome
de ternura
que meus dias consome.

Pasma, contemplo a estranha romaria
que te enche pelas manhãs:
mulheres e homens conduzindo cães
fragílimos ou possantes,
de várias raças e de aspectos desiguais,
com carinhos vigilantes,
com desvelos maternais,
e quedo-me a pensar que delícia
seria se eles soubessem ter para com os semelhantes
a ternura que têm para com os animais.

Acorro sempre à janela aos ruídos
de latidos
que vêm de ti, para a felicidade
de sentir expressões de humanidade
em tua gente
diferente.

Amplo parque mundial, ó New York ilusória
que atrais o mundo com mentiras vãs,
conheço alguém
que bem
conhece a história
dos sonhadores em que tanto atuas,
dos poetas que a ti vêm,
e erram por tuas
ruas,
com uma inveja infinita de teus cães...

A compressão de que a sua trajetória poética se findava se dá, sobretudo, pela confrontação das mulheres presentes em Gilka dessa Velha Poesia. No poema “Saudade”, por exemplo, compara-se a mulher jovem, absoluta em seu erotismo, com a sua imagem envelhecida, inerte, imersa nas nostalgias de tudo quanto foi precioso um dia. Note-se a adjetivação mallarmeana presente no poema:

SAUDADE (em Velha Poesia)

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

Gilka Machado foi, de maneira justa, considerada a maior poeta do Simbolismo brasileiro, e, sem dúvida alguma, uma das grandes de toda a Língua Portuguesa. Quando a Academia Brasileira de Letras, em 1977, depois de um obscurantista hiato, abriu a vaga para a primeira entrada de mulheres na agremiação, a poeta de Meu Glorioso Pecado foi cogitada por vários intelectuais (até mesmo Jorge Amado, com quem não tinha nenhuma relação estética, declarou o seu apoio). Gilka, porém, declinou o convite. E após essa negação – que evidentemente em nada anulava a eternidade de sua obra - seu legado, é bem verdade, antes de ser reconhecido passou por um perigoso tempo em esquecimento até a publicação de sua Poesia Completa, em 1992, doze anos depois de sua morte, portanto.


Se durante muito tempo a sua obra foi analisada somente em suas bases eróticas – que são de uma eloquência vivaz -, limitar a leitura de sua poética a essa tópica é estiá-la de grandes momentos. Gilka escreveu a mais profunda perscrutação dos sentidos que a nossa poesia já conheceu – e isso em quase todas as temáticas que lhe eram de interesse; e aos sentidos de Gilka não conseguimos denominação clara nem direção definida, pois - irmã da alma e filha da terra -, todos eles cantavam ao inefável - mesmo quando soassem qual uma canção mundana - para que sempre indicassem o infinito.


Corpos em Cena, de Susanna Busato

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Ilustração: Osmar Ortiz



Tarde inescrupulosa...
Teu olhar invade-me as coxas
Entre claves de sol e colcheias

  
Traçado no tapete

Atrás
a lã se alinha
atrai e lança
(traço em lua)
a linha tensa.

Atrai e lança
a nua lã
a sua lança
em minhas flores
suas sendas.

Atrai e traça
atrás e trança
avança e tece
a lã a lança.
E transa enlaça
a linha e caça
no arco a nua
de minha pura
renda a dança.


saudade digital

minha saudade
me sacode
e se vira
por dentro
como um dedo
cutucando o centro
metendo o acorde
entre dois tempos


horizonte de espelhos

colunas e conchas
água clara
seios
no chão as curvas
de um sol navegam
sua ilha
clitoriana gruta
horizonte de espelhos
superfície ao reverso



olho da noite

Olho da noite
comboio de sombra
pestana de tempo
mira-me agora
carrega-me onda
sossega este medo

  
As mulheres têm peitos

As mulheres têm peitos.
Pelos peitos elas tecem
sua presença redonda e completa.
Sob a blusa os peitos falam
descansam
caminham.
Somente os peitos têm asas.


Poemas de Corpos em Cena (Editora Patuá, 2013)



Susanna Busatoé paulistana, professora universitária. Trabalha com poesia brasileira com seus alunos e coordena o Grupo de Estudos de Poesia – GEP/CNPq, voltado à pesquisa em poesia brasileira e à sua divulgação, por meio de atividades de leitura, recitais, e publicação do conhecimento construído pelo grupo. É também coordenadora na UNESP do convênio de parceria de projetos sobre Literatura e Tradução com o Museu Casa Guilherme de Almeida, Centro de Estudos de Tradução Literária, de São Paulo.

Premiada pelo Mapa Cultural Paulista, fase estadual, categoria Poesia, em junho de 2010, tem poemas publicados na Revista Cult, Revista Brasileiros e nas revistas eletrônicas  Zunái, dEsEnrEdoSe Aliás, além de ensaios na Cronópios, Zunái e Gérmina, e outras revistas acadêmicas no Brasil e no exterior. Dentre os livros publicados, destaca-se o livro de poemas Corpos em Cena,  lançado pela Editora Patuá, em 2013.



O importante equilíbrio da matéria sem vontade

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Era uma mulher escrita há muito tempo
ou talvez fosse uma mulher sentada numa cadeira
com a hipótese de cair lá dentro

a sala à volta era suficiente
mas ela interessou-se pelo espaço quieto dentro da madeira
na quase divergência de um infinito por dentro 
a ser ultrapassado devagar
era a cadeira o mais apetecível

o importante equilíbrio da matéria sem vontade

será o não saber da velocidade das coisas
que a debruçava para dentro
dos espaços mais quietos ali
espaços onde os espaços dela podiam ser atrasados

não a forma ou o nome da espera
teriam ali dentro ficado debruçados de outros

e que de entre as duas
a que ficasse não devolvesse quieta
a história de movimentos lancinantes
de demandas a moinhos fraccionados
da velocidade ridícula a que se gastam as coisas vivas

tinha um século aquela cadeira, à medida de a assustar
e não lhe devolvia quase nada
a não ser que lhe fora escrita
para um outro infinito 
(a sentar-se 
na mesma cadeira)
que a ultrapassou devagar



Hóspedes do Vento - Chico Lopes

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Ilustração: Chico Lopes, Senhores da Noite
                                    

                   Neno trazia em si coisas que lutava por fixar, por explicar: a casa, a lua cheia no céu pelo lado oriental, uma mangueira escura, pouso dos chupins que nela tinham farreado ao anoitecer. Queria que Mário sentisse, visse o que era um chupim, fechava as mãos em concha, alisava peninhas invisíveis: “Assim, assim, quase roxo, de tão preto. Bandos, a mangueira preteja, trinta, quarenta. Atrevidos, alegrinhos.”
                    Na memória de Mário, vácuo com esboços atormentados, havia uns vãos ansiosos que as conversas preenchiam. Acendia uma benga e pensava nas estradas que tinham pela frente, os muitos quilômetros de nadas que era preciso empurrar para diante, para o fundo do horizonte, o vento em suas costas.
                  O sonho de Neno – chegar a L. – passara a interessá-lo, como se fosse seu. Nem por isso queria se comover. Detestava que ele começasse a fungar, ao falar da irmã, quando se sentavam para descansar. “Não quero saber”, grunhia de lado, mordendo o cigarro.  Neno, abraçando as pernas cruzadas, fechava os olhos e punha-se a descrevê-la: “Clarinha, olhos verdes, Luisa, Luisa...” Recompunha-a com o que julgava ser fidelidade, mas, a cada vez, a irmã tinha outro nome e Mário sorria incrédulo, meio condoído; lembrava-se que ele já era assim, um tanto alheio, dado a ter desmaios e dizer desvarios, quando o conhecera num chão de obra onde dormiam seis, sete; depois, dava de ombros, jogava uma pedra num dos caminhões que passavam. Não tivera nada que se parecesse a uma família. Neno tinha Luísa ou como a irmã se chamasse, tinha a tia Carmela, a casa de quintal enorme em L. Que nada disso existisse, pouco importava – nutria-o, impelia-o. Quanto a ele, nem delírio.
         - A gente era feliz, lá...- dizia Neno, quando os dois se levantavam e retomavam a caminhada. Mário, não querendo ouvir, aproveitava sua energia maior, suas pernas mais longas, para adiantar-se. Deixava-o para trás, para bem mais longe, e ria quando ele tentava alcançá-lo, arfando. Por vezes algum lobo guará cruzava a estrada, saído de um breu lateral, aturdido pelos carros. Mário saía correndo atrás do animal, gemendo, fazendo uma caricatura do temor e do desespero do outro traduzida em gritinhos afetados e braços se abrindo, espalhafatosos, no ar.
        Uma promessa de chupins, mangueira, lua cheia, casa e irmãs, os atraía na linha engolida sucessivamente lá na frente. Escárnio de cetim, um céu azul-negro os cobria. O vento os hospedava. Por vezes, era tão forte que as duas figuras mais voltavam que iam. Era uma caminhada de ímpetos contrariados já no nascedouro.


             Pernas estropiadas, arriscaram-se a parar perto de um posto, fugindo à claridade e à limpeza, inimigas naturais de suas presenças. Mário supunha que um barracão ali perto estivesse desocupado e pudesse servir para dormir, pneus e caixotes que os escondessem. Famílias entravam e saíam das zonas de luz, iam entupir-se de comida boa naqueles lívidos salões do supermercado-restaurante, pais e filhos olhando feio para ele. Era sempre assim, olhares e narinas registrando-o: o cheiro o delatava. Horrendo, e ele não queria livrar-se dele. Por vezes, se roubava umas moedas, pegava algum ônibus de cidade só para isso – estragar o ar dos passageiros.  O que exalava era um protesto silencioso a todos e malograva os trajetos daqueles rostos metidos a superiores: a náusea mal disfarçada o deixava feliz. Não sabiam quanto um corpo de homem podia feder? Pois, ali estava ele, a informação viva.
             Conduziu Neno ao barracão: vazio, uns sacos de estopa providenciais. Mais tarde, num sono entrecortado por clarões de carros, sonhou que os dois eram perturbados, examinados numa devassa insondável por lanternas de policiais. Acordou em sobressalto, não havia nada, e Neno acordou também, mas para contar, com os olhos brilhando, uma coisa que ele já ouvira: “Eu e a Luísa pedíamos e a Tia Carmela cantava assim: “En el camino verde/camino verde que va a la hermita/desde que te fuiste/lloran de pena las margaritas”...” “Camino verde”, sucesso de Gregório Barrios nalgum remoto tempo de rádio.
         A lembrança animava Neno, ele queria pegar estrada. Precisavam mesmo cair fora – a incerteza do sonho das lanternas inquietava Mário. Constatou que era possível sair do barracão sem serem vistos. Afastaram-se meio correndo, contornando caminhões.  Houve tempo para, examinando uns caixotes entreabertos numa carroceria, Mário descobrir que ali havia caixas de leite. Roubou duas, que abriu nos dentes.
Bem mais à frente, quando o posto e seu néon era só uma luzinha entre outras e iam em marcha tranqüila, um carro foi se aproximando, circundou-os, fazendo com que se juntassem instintivamente, trôpegos. Mário viu as figuras lá dentro, quatro ou cinco homens, e segurou o braço de Neno, deixando claro, pelos olhares e os sinais, que teriam que fugir como pudessem, cada um para seu lado. “Não vai embora...”, Neno ia sussurrando, trêmulo, mas já nada adiantava – as portas do carro se abriam para despejar os tipos e Mário saltava para um barranco, escalava-o a unhas, rasgava-se em cerca de arame farpado, abria um talho numa canela, mergulhava num descampado azulado pela lua. Lá atrás, tiros e gritos. Escondeu-se no que lhe pareceu uma moita de espinheiros, quase sem fôlego, capengando, e esperou que o tempo passasse e um silêncio confiável se instalasse. Mais tarde, voltou devagar para o ponto, desceu o barranco e encontrou o corpo. Poucos carros, ninguém. Descobriu, sob um outdoor de cerveja, o que parecia ser um buraco. Com um tempo de escavação, usando uma daquelas estacas caídas da cerca, dava para aprofundá-lo, afofá-lo.
        Escavou, escavou, alheio a buzinas e luzes rápidas, e depois depositou o corpo. Não tinham economizado bala, a camisa um vermelho só, não dava para aproveitá-la; restos fumegantes ao lado revelavam que tinham queimado documentos e quaisquer papéis que ele carregasse. Rasgou um pedaço da calça suja e amarrou na canela, contendo um gemido. O morto estava mais para sorridente. Imaginou que voltava para a casa e a mangueira.


       Ave migratória atraída por semelhante, quase insensivelmente, certo Nico se juntou a ele numa rodovia, à entrada de uma cidadezinha. Perguntando seu nome, ele respondeu: “Neno”. Imediatamente, apalpou-se um pouco, como se estivesse se esvaindo: achou sua voz parecida à do amigo, sentiu seu rosto no feitio do dele. Não falou com o outro por uns bons quilômetros, a cabeça sempre elevada, os cabelos desmanchados por aquela onda de afago e opressão, esse vento que era inútil tentar debelar com os gestos vigorosos da mão, a idéia fixa de divisar mangueiras no horizonte, detectar uma mancha urbana mínima que significasse L.
       Nico tentou atrair a sua atenção e acabou por consegui-la com um cigarro, quando pararam na entrada de uma vicinal ladeada por eucaliptos. No saco, trazia muita coisa, orgulhava-se das bengas e latinhas de cerveja recolhidas, grudes indefiníveis, um amuleto de pelos, dois pés de frango, um batom como que mordido, um lápis de sobrancelha. Aceitou, cauteloso, ouvir suas histórias numa outra parada e, mais tarde, quando dormiam, acordou um pouco perturbado, afastou-se; Nico percebeu seus movimentos, abriu os olhos, sorriu, virando-se de bruços, inequívoco. Era “vasilhame”, ele podia servir-se.
      Teve que suportar depois, por muitos quilômetros, uns olhares febris, adoradores, e adiantava-se, mas ele andava depressa também, alcançava-o, os lábios tremendo e, quando paravam, ficava odiosamente perto, sondava as oscilações de sua braguilha, o que odiava – buracos como aquele, só pra aliviar o desespero extremo. Livrou-se dele numa outra noite, quando, depois de muito oferecer-se inutilmente, sossegou, dormiu; furtivo, tirou do saco coisinhas que iam lhe ser úteis, pulou para um campo próximo, meteu-se entre laranjeiras trêmulas de vento, fugiu pelo que pareceu uma cercania de fazenda, medroso de grandes cães.


         Não teria uma ideia de quais, quantos caminhos, a razão dos desvios, o que o guiava –  Neno, a letra do bolero de tia Carmela, uma estrela, a pulsação de um chamado? Havia um imperativo, embora nada de seguro houvesse e ele não fosse dado a tomar informações, perguntar, parar nas cidades. Extenuado, sentia-se amaldiçoado por esses restos de energia renitente que, mais que ele mesmo, tinham um pacto com a vida. Por que essa coisa burra em pé e o devaneio com sujas entranhas receptivas, por que fome, por que sede, fezes, urina, renovação do suplício diário pelo acender do sol, por que andanças?  Neno, um nome, lhe dava algum resíduo lógico, certo apetite para avançar; bloco escurecido de sensações, seguia. Os abismos do ar, a desmesura.
       Ao derivar, numa tarde, por alguns atalhos semi-urbanos, uma pequena cidade lhe pareceu familiar, e, por algumas conversas, supôs que L. era a inicial. Entrou, perdeu-se, dormiu olhado por um gato, acordou numa rua, sobre um extenso banco de madeira, defronte a uma casa. Passou o dia ali, sem ver nada que se parecesse com uma irmã e uma tia. Mas, ao fundo, havia uma mangueira.
    Ao entardecer, o barulho, chilreios, chamados, a agitação preta nas folhas, fez com que se erguesse. Tinham chegado, os chupins, dezenas, e outros iam se aproximando, se enfiando entre os verdes, ao fundo um céu entre rosa, cinza e alaranjado com uma sucessão revoante de pontinhos pretos. Ergueu-se, abriu os braços, não sabendo como saudá-los senão assim, camisa aberta, arreganhado, ele Neno, ele total, a mangueira repleta. Partiu rumo à casa, ao quintal, com as mãos em concha, capaz de adivinhá-los, formá-los, mas, no caminho, os joelhos se dobraram.
    Foi recolhido dentro da noite depois que duas figuras saíram da casa, a medo, e, olhando para os lados, sentiram sua cabeça e seu pulso.

Chico Lopes

(de “Hóspedes do vento”, dedicado a Pedro Romualdo de Oliveira)

ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "DA ARTE DAS ARMADILHAS", DE ANA MARTINS MARQUES

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Da arte das armadilhasde Ana Martins Marques inicialmente me deu uma voracidade de Edgar Alan Poe sobre o texto. Explico: Poe dizia que um bom conto devia ser capaz de cativar o leitor para que o lesse de uma vez só. A armadilha principal da obra de Ana Martins Marques é prender o leitor irreparavelmente até o fim. Não larguei o livro até que o terminasse. Sei que o mesmo há de acontecer com qualquer leitor que tenha coragem de ser esta presa.
Ana M. Marques abre seu livro com um poema epígrafe que funciona como a ponte do seu lirismo: “entre a casa / e o acaso //... a morada / e o mar//... entre a ilha / e o ir-se”. Instala-se assim seu universo particular. O leitor mergulha em uma lírica do mínimo e do simples, que encerra em si a delicadeza do olhar poético. Só não se iluda pela leveza dos poemas e nem pela simplicidade vocabular dos versos de Ana M. Marques. Esta habilidade de transformar palavras cotidianas em trama lírica, dialoga diretamente com poetas icônicos da Literatura Brasileira, como Drummond e Gullar, e para não iniciar uma lista, aqui me detenho.
Ana M. insinua “entre”, e vamos adiante pela primeira seção do livro, “Interiores”, passeando, como que numa vitrine kitsch, por poemas com títulos de objetos. O atento olhar da poeta, ao mesmo tempo que não descuida da parcela de sombra necessária a qualquer poema, revela “um pequeno lago / de luz” embaciado no poema “Colher”. Da mesma forma, no poema “Garfo”, “floresce / o metal” e no poema “Cortina”, esta lê o vento como uma dançarina em braile.
Ainda nesta seção, o poema “Relógio” surge como um contraponto aos demais poemas simplesmente por ser um poema longo. Seu fôlego sustenta-se pelas páginas vindouras em que a autora alterna o dia e a noite em recortes da rotina vertidos no lirismo cotidiano que prima desde o início do livro. Sobre o casal sugerido em cada verso do poema, o inútil relógio não conta o tempo, presos, tanto eles como nós, os leitores, na armadilha do verso.
Ana M. mostra suas influências e surgem nomes como o de Bishop, Cummings, Akmátova e um claro diálogo com Hélio Oiticica, no poema “Parangolé”, que capta as voltas da vestimenta sem adjetivos, porém claro “corredor / para o corpo”. Procure bem, e encontrará outras, silenciosas, algumas despertas como um galo anunciando a manhã.
“Da arte das armadilhas” a seção final do livro, não traz na aparente multiplicidade de temas um fio condutor como na primeira parte. Apenas não caia nessa armadilha da sutileza. “A linguagem / sem cessar / arma / armadilhas” e na linguagem tudo se justifica, poema após poema. Neste segundo momento a autora nos traz uma seleta de textos que passam do mitológico ao teórico, das estrelas ao naufrágio. Temas que convergem, quase ao final da obra, no “Poema de amor”. Distópico, maiakovskiano em essência, esse poema pode ser um veneno para os apaixonados, mas quando tudo mais parece perdido, eis que numa pausa entre parênteses Ana M. novamente nos eleva ao lírico e mostra que mesmo sem ser, este precisa ser um poema de amor.

 Da arte das armadilhas de Ana Martins Marques é a arte de prender o leitor para fazê-lo cumprir um périplo de simplicidade e sensibilidade. Usando mais um verso de Ana M.: “o caçador está preso / à presa”, e se inflamam na clareza do verso.






                     SELEÇÃO DE POEMAS DO LIVRO




entre a casa
e o acaso
entre a jura
e os jogos
entre a volta
e as voltas
a morada
e o mar
penélopes 
e circes
entre a ilha
e o ir-se



“Talheres”


Colher


Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz



Garfo


Em três ramos
floresce
o metal



Faca


Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato



*



Fruteira


Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?



Cristaleira


Guarda
e revela
a nudez
branca
da louça
o incêndio
despareado
dos cristais



Cortina


entre o fora e o dentro
lês
o vento



Da arte das armadilhas


O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente

Inaudível
o mundo mudo
aciona o fecho
da flor

Há desilusão
mas não há
fuga

O caçador está preso
à presa




imagem: ready-made "50 cc de ar de Paris", de Marcel Duchamp



*    *    *





Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte, onde mora. Graduada em Letras, tem mestrado em literatura brasileira pela UFMG. Trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É autora também de A vida submarina (2009), publicado pela editora Scriptum. Ganhou também o Prêmio Alphonsus de Guimaraens (FBN), pelo seu segundo livro, Da arte das armadilhas (2011), também finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2012).












Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.








1º Lançamento da Editora Substânsia

6 POEMAS DE FERNANDA TATAGIBA

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asfalto 
céu plano
deslisando
a pressa
cinza
por onde 
escapa
o homem 


*


a escada coberta de folhas
de sombra
sem marcas 
das solas dos pés 
lisa do lodo
da chuva de antes

longe da entrada

a escada
não desfaz
o outro lado


*


o silêncio ficou preso no elevador
entre dois andares
e outras pessoas 
tonto
vertical 
sem o fôlego da ausência 
de assunto
depois do grito 
todos saíram
por pouco, mais leve


*


por onde ossos
cresci 
em quantos olhos 
mudei 
enquanto trocavam
meu nome de maternidade
na mesma cidade
de todas as outras
nenhuma pessoa
menos eu


*


seja você
em tudo que farsa


*


nessa coisa de amor
mordo
nessa coisa 
nem morto 
de novo 
amor
só volto 
viva



fotos: Fernanda Tatagiba


*    *    *




Fernanda Tatagiba nasceu em Vitória, ES em 1984. Fez graduação em ciências sociais pela UFES e atualmente faz pesquisa em literatura. Em 2011, lançou o livro de poemas À Sombra das Coisas Turvas (Editora Cousa). Mora atualmente na cidade do Rio de Janeiro e prepara seu segundo livro Labirinto Mínimo. Escreve regularmente em seu blog.


Sylvia P. (P.) (por paulo guicheney)

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Voici le temps des Assassins.
Rimbaud


Sylvia era tão bonita. A primeira vez que a vi nua fiquei comovido. Misticamente estupefato. Momentos assim sempre me fizeram acreditar na existência de Deus-Nosso-Pai.

Deus habitava aquele corpo. Deus criou aquele corpo. Deus morava dentro da boceta de Sylvia.

Não Jesus-Bebezinho-O-Messias, mas Deus-Ele-Mesmo-Em-Pessoa morava ali.

De Ave Maria, Sylvia nunca teve nada. Acho até que Sylvia nunca foi virgem. Sylvia nunca poderia ter um filho, e muito menos um, barbudo, psicótico, e que se achava filho de Deus-Nosso-Senhor.

Já tive vontade de engravidar Sylvia. Uma vez estávamos fodendo, felizes-tristes, noite adentro. Ela de quatro. Aquela bundinha desenhada pela colisão das estrelas. O cu me olhando de soslaio. Deus abraçado àquela bunda. Perguntei se poderia gozar dentro dela. Ela disse que não, a não ser que eu quisesse engravidá-la. “Goze fora”.

Não consegui gozar. Acho que nunca mais consegui gozar depois dessa noite.

Eu toparia ser o pai de Jesus. Se Sylvia me tivesse pedido, daria Jesus a ela.

O corpo de Sylvia era isso. Aqueles peitinhos eram o rosto de Deus.

Sempre achei que Deus tinha a cara de dois peitinhos.

“Você é linda. Você é maravilhosa.”

Ela responde com um movimento dos lábios.

“Seus peitos são lindos, são perfeitos.”

“Ah, sei. Este é menor do que este”, e aponta para o seio esquerdo. Logo aquele que continha a maior parte do rosto de Deus. Aquele com o poder de destruir a vida na Terra. Aquele.

Nunca entendi Sylvia. Quando lembro dela sinto uma fome incontrolável por hóstias.

Uma vontade de ver padres estuprando freiras, de enfiar os tubos do órgão nos cus dos fieis, de afogar os recém nascidos na água benta, de urinar na boca de Santo Agostinho. Sinto a vontade de ter meu próprio Lager e rebatizar todos os católicos em uma imensa banheira de Ziklon B.

Não se enganem, sou um homem bom. Simpatizo com os vegetarianos e os veganos. E também simpatizo com as cotas. E com os ambientalistas. E com a  igualdade entre homens e mulheres. E com o casamento homossexual. Não que eu defenda essas coisas, mas sou gentil quando falam delas à mesa que habito, chego mesmo a apoiá-las com um sorriso gentil.

Sou igual a você.

Você se acha um homem bom. Honesto. Fiel. Amigo. Cristão.

Sou igual a você. Sou capaz de cometer todos os crimes do mundo. Todos. Somos iguais. Não se iluda. Somos dois monstros. Você e eu. Você que me lê. Eu que me escrevo. Eu.

Eu e Sylvia. A quem desejo o pior.

Sylvia. Sylvia. Ave Sylvia. César ajoelha-se aos teus pés.

Sylvia poderia ser tão bonita.

Eu matei Sylvia em uma tarde de inverno em Goiânia. Não estava frio e o sol estava claro. Numa tarde de inverno em Goiânia Sylvia morreu. O corpo foi exposto e os passantes prestaram suas homenagens.

Em uma tarde de inverno...

“...voici que cela finit par des anges de flamme et de glace.



*trecho de “Homem trancado em quarto de hotel


O homem perfeito - Cinthia Kriemler

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Ilustração: Salvador Dali



A decisão estava tomada. Ele se mataria naquela noite. Estava orgulhoso de si mesmo. Afinal, ia se matar pelo motivo certo. Pensou nos homens que conhecera, e que haviam decidido tirar a própria vida. Motivo: falência, chifre, doença terminal. Não, ele não era um desses que se matam por dinheiro. Ou porque são cornos. Ou ainda porque não aguentam sentir dor. Ele era, por assim dizer, completamente normal.
Não deixaria um bilhete. Homens que deixam bilhetes são todos uns dramáticos. Morrem querendo deixar para trás uma dezena de culpados. A mãe que devia ter entendido os sinais; a esposa que não devia ter gastado tanto; a amante que não devia tê-lo trocado pelo garotão mais novo; os amigos que deviam ter oferecido um ombro em vez de deboche. Não, homens que escrevem palavras de adeus são vingativos. Sempre querendo semear o remorso, infernizar os vivos.
Ele morreria de forma muito digna. Morte com planejamento. Já tinha pagado até pelo caixão e pela cremação. E por uma corbeille grande, com faixa escrita e tudo. Uma corbeille... Mas afinal o que era a porra de uma corbeille? Não sabia. Alguma coisa que se usa em enterros, com certeza. E que é chique. Senão a mocinha da funerária não teria lhe vendido com tanto orgulho o pacote 3C Primeira Classe, ou 3C-PC, como era carinhosamente chamado. Bem, isso ele sabia explicar o que era. Um pacote 3C-PC significava caixão-corbeille-cremação. Aliás, essa tinha sido uma das razões que o haviam levado a escolher entre ser enterrado ou virar cinzas. Explica-se. É que havia dois pacotes 3C disponíveis. O de Primeira Classe, composto por caixão-corbeille-cremação, como já se disse. E o Executivo, ou 3C-E, oferecido com caixão-corbeille-cova. A propaganda impactante feita pela Boutique do Último Leito (sim, mortais, funerária é coisa do passado) contribuiu decididamente para a escolha. Do pó vieste, ao pó retornarás. Mas tu decides como, dizia o folheto com letra em negrito. Embaixo dos dizeres, duas fotos: em uma delas, um caixão sendo baixado à terra por homens circunspectos; na outra, uma urna de porcelana magnífica, nas mãos de uma pessoa sorridente. Na verdade, ele havia achado o sorriso um tanto excessivo. Mas a mocinha das vendas logo o fizera mudar de ideia. "Veja bem que é o sorriso de alguém feliz por poder levar consigo as cinzas da pessoa amada." Como é que ele não tinha pensado nisso? De um lado o chão frio e úmido dos vermes, de outro o frescor da porcelana acolhendo as suas cinzas. Tudo bem que essa frase também era da mocinha, mas serviu bem naquele momento de decisão. 
Fez tudo sozinho. Não podia envolver no processo as secretárias, nem a família, nem os amigos. Não se imaginava dizendo "Eu gostaria da sua ajuda para organizar a minha morte". Não, eles não entenderiam. Como explicar que se mataria porque era feliz? Que não havia nada que já não tivesse feito na vida? Que tinha alcançado o que todos os homens desejam: a plena realização — e que, exatamente por isso, estava na hora de morrer?
Tudo em sua vida era perfeito. Tinha sido uma criança feliz, sem traumas. Um adolescente bem sucedido, bom aluno, cheio de amigos e namoradas. Adulto, tinha ficado rico. Muito rico. De um tipo de rico que não se vê, só se ouve falar. Antes dos 40 anos, já conhecia 24 países. Em 10 deles comprou propriedades luxuosas e estabeleceu-se em negócios diversificados. Casou-se com uma mulher linda e gostosa. Deus, como era gostosa! Mas não o bastante para impedi-lo de ter todas as amantes que quis, loiras, morenas, roliças, magras, negras, asiáticas. Mulheres discretas que sabiam como chegar e quando ir embora. Teve dois filhos. Lindos como a mãe. Inteligentes como ele. E até mesmo o divórcio foi feito sem mágoas. Separou-se da esposa enquanto ainda a achava bonita e excitante. Porque não queria permitir a si mesmo vê-la definhar com a idade. Porque não deixaria que ela se fosse quando já não a desejasse, ou quando não houvesse mais homens para cortejá-la. Ele a amava demais para esperar ao seu lado o desgaste da relação.
Tinha saúde. E como tinha. Os médicos repetiam a todo instante que ele era um exemplo de homem no cuidado consigo mesmo. Um dos filhos já estava ao seu lado nos negócios e o outro fizera sua própria fortuna. Eles o amavam e respeitavam. E haviam lhe dado netos. Crianças educadas, rosadas e bonitas. 
Sem pendências, portanto. Vida perfeita. Podia morrer pelo motivo certo: plenitude. E na noite certa. Estrelada, silenciosa, cheia de uma brisa fresca com cheiro de bos... Bosta?! De onde vinha aquele cheiro de merda insuportável? Aquele fedor de embrulhar o estômago? Alarmado, pensou que nada, nada podia quebrar o clima perfeito da noite da sua morte. 
Descendo as escadas com rapidez, saiu correndo, transtornado, pelo jardim meio escuro, buscando a fonte do cheiro fétido. Na pressa, tropeçou nos instrumentos deixados na grama pelos homens que haviam trabalhado à tarde na abertura do buraco da nova piscina. Uma piscina olímpica longa e funda. A topada o jogou para frente com força e ele se sentiu voando até que se estatelou em alguma coisa malcheirosa e gosmenta. E nada teria acontecido não fosse o azar de ter batido a cabeça em outro objeto qualquer deixado ali por descuido. Maldito objeto.
Enquanto morria, sentindo o cheiro de merda que, agora percebia, vinha da lama úmida que servia de chão ao buraco, e sem conseguir mover nem um único membro do corpo grande, lembrou-se de que não tivera tempo de escrever as instruções sobre o pacote 3C-PC para deixar sobre a cômoda. Lembrou-se também de que não havia escrito cartas ou bilhetes se despedindo, porque isso era coisa de homens dramáticos. Por fim, lembrou-se de que dissera à mocinha da Boutique do Último Leito para esperar até ser procurada por alguém com instruções. Não seria. E ele não seria cremado. E os vermes lhe fariam companhia. E ele ficaria na terra fria, ossos amontoados, distante de tudo o que amava, sem o frescor da urna de porcelana envolvendo suas cinzas.
Enquanto o sereno descia sobre o seu corpo imóvel, pensou em como gostaria de processar aquela empresa maldita, aqueles operários relapsos. Se ele não morresse, talvez ficasse paralítico. E teria que depender das pessoas e contratar enfermeiras e reformar a casa. Todas as casas. Em 10 países. Se ele não morresse, e ficasse paralítico, se tornaria incapaz para o trabalho, para o sexo. Se ele não morresse, veria, em poucas horas, aquele jardim repleto de policiais colhendo evidências, confiscando os objetos malditos. Se ele não morresse...
Ainda pensava nas possibilidades quando policiais e paramédicos chegaram para salvá-lo, na manhã seguinte. Agora, sim. Infeliz, miserável, incompleto, não tinha mais nenhum motivo para querer morrer. Era, finalmente, dono de uma vida imperfeita.

Cinthia Kriemler

Vôo Cego - Leopoldo Comitti

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1.
A noite gira em tono
da borboleta
que azul tonteia
na escuridão eterna.
Etérea estende as asas
e estremece em meias
voltas. Em torno,
uma lâmpada oferece
algum consolo insone
no círculo imperfeito
sobre as perfeitas pedras
da rua antiga. Tudo
é imortal nas velhas
cidades, até mesmo
as borboletas efêmeras
e azuis que se aquecem
no dia, esquecidas
de que a noite será
longa, muito longa.

2.
Um bêbado gira
em torno do poste
que infinitamente
carrega a lâmpada,
inerte, mas farol
de náufragos em terra.
No mar das pedras
e casarios, indica

o caminho do porto,
intriga a janela velha
que retorna ao escuro
sono dos insones
objetos. Frinchas
de luz não mais
concorrem com as hostes
da noite do todo
e para sempre.

3.
A mariposa agora:
esvoaça cega
diante da luz
inesperada que a retira
de seu canto morno.
Como encanto,
também gira
na lâmpada única
da rua poeirenta.
Azul e cinza
combatem insanamente
para alcançar o centro
de um desejo cego.

4.
O dia certamente
não virá, porque
o sol, em seu giro
torpe, desta vez
não fará retornar
a luz. Nas velhas
taipas o silêncio
e as sombras são
e sempre serão
absolutamente
eternas.
Derramam-se sobre
as paredes incertas
evocando velhos
fantasmas em seus
uivos de dor e lamentos
de saudade. Não há
paz de um fim de dia,
apenas a escorregadia
ladeira pela qual
deslizam almas
penadas.

5.
Giram também elas
em torno da lâmpada
fria, esperando a luz
final que certamente,
eternamente, não virá.
Nos anseios insones
ainda esperam uma vida
que também não virá.
Ecoam chibatas
em seus ouvidos

mortos,
mas ainda capazes
de sentir na pele desfeita
a dor que a morte
não esconde, não acaba,
não mata. Apenas arrefece
diante da luz que agora
reúne todas as criaturas
que o dia não quis.

6.
Giram todos, gira a rua,
num tontear de almas
tristes, que jamais
alcançaram a tênue
luz. Algumas, as vivas,
aos poucos se acabam
e escorrem sobre o chão
duro enladeirado. Na
noite da morte
insone
apenas a pequena
borboleta azul convive
com os mortos ainda.
Para mostrar, talvez,
a utopia da cor,
para aplacar a dor
dos mortos que se
abrigam
em cada beco da cidade
morta-viva, e sempre.

7.
Agora, porém,
gira devagar em cansaço
extremo, in extremis
Pede o retorno do sol.
nada se vê, apenas
a casario escuro e sempre
apenas sugerido tênue
pela pequena luz
que permanece acesa.
por fim, fecha as asas
e deixa sós e cansados
os fanados fantasmas
eternos de uma cidade
que pensa ainda viver
em sua morte

eterna.

8.
Sós, sobre a pedra,
duas asas-pétalas
azuis vão perdendo a cor,
enquanto os vivos
acordam, certos ainda
que estão vivos
e que um sol pálido
nasce frágil no horizonte.
Engano, as asas voltam
ao pó, consciente do fim.
Inconsciente, o povo
percorre as ladeiras
sedentos de uma vida
que jamais tiveram.
Apenas giram, giram
em seu giro eterno,
em torno da última
lâmpada existente

na cidade morta.


Leopoldo Comitti
 

CONTO DE MARIA BALÉ

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No País da Luz Eterna


As ralas mechas dos cabelos cor de cobre agitam-se em conhecida coreografia a roçar seu rosto num instante de serenidade explícita. À cantoria monótona e desafinada, ela prefere seguir o som que vem dos mistérios líquidos do cristalino caminho das águas. Seu corpo jaz no vão entre duas pedras, na parte rasa do riacho, onde juntam-se as lavadeiras, nas manhãs de segunda-feira. Seu espírito não manda notícias. Vaga ao longe, nas ruínas do País da Luz Eterna.

A longa maratona, sob o lilás do céu tão perto, ocorre lenta. Seus pés, ora esquivam-se, ora atiram-se na superfície imprecisa dos cacos de reboco das paredes destruídas. Caminha solitária, refazendo a trajetória dos que ali viveram num tempo de dia contínuo. Sonolenta, sua mente se recosta num floco de brisa.
Sem a trégua de horas noturnas, a luz, exausta em seus matizes pálidos, rasga nuvens, projeta sombras, desvela formas sem definir contornos. É missão para os mitos percorrer as entranhas de veias mortas da viela que conduzem aos destroços da pequena capela, de onde ecoam cânticos entoados por um coro de vozes infantis, numa língua desconhecida. No entanto, a sonoridade docemente melancólica ecoa em alguma memória antiga. A música, a cada passo mais penetrante, a embala.
Ela flutua sobre as flores baldias que brotam nas rachaduras dos restos marmóreos do que outrora fora um convento. Narcisos cor de ouro, belos e indiferentes, erguem-se fálicos por entre a vegetação rasteira.

- Vai ficar aqui sozinha. Nossos cestos estão vazios. Terminamos a nossa tarefa. Reverbera a voz de gralha que vem do nada, perfurando a o ar morno, assustando o vento.
E as crianças que cantavam? - indaga, recém-chegada. Seus olhos abrem-se aos poucos. O adeus da manhã ensolarada agrega sua massa orgânica à sua alma. O cesto de roupas sujas posta-se à sua frente, nos braços de sua porção abóbora. Ela rejunta a sua existência para a lida. Entre as dobras do seu colorido vestido de chita, enrosca-se, majestosa e luxuriante, a estrangeira flor amarela.



Foto: Alice Pleasance Liddell, tirada por Lewis Carroll (Charles Dodgson)
em 1858 - National Portrait Gallery, Londres.



*    *    *




Maria Balé é pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC - SP, produtora de textos publicitários e fotógrafa. É cronista do caderno Cotidiano do jornal eletrônico Algo a Dizer, edição mensal. Integra o elenco dos oito autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada, da MG Editora. Mora em São Paulo, Capital.

Plumas de sangue e fel: introdução a Pavão bizarro, de Emmanuel Santiago - Fábio Cesar Alves

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Tal como Rubem Braga, em uma de suas crônicas mais inspiradas, construiu um pavão “arco-íris de plumas”, Emmanuel Santiago, em seu livro de estreia, resolveu dar forma, cuidadosamente, a um Pavão bizarro. Neste caso, porém, não se trata de um olhar lúdico e carregado de ternura sobre o prosaico, mas de uma lâmina afiada que, ponto por ponto, desperta e fere os sentidos do leitor mais precavido.
O primeiro ato do rito macabro é encenadopelo poeta no revival parnasiano de poemas como “A fábula de Fabergé”, que abre o volume, e “O objeto soneto”. Não há como deixar de entrever um riso sardônico na busca obsessiva e no fascínio do eu lírico pela perfeição: uma voz cujo virtuosismo técnico incessante se volta também contra o leitor, como se nota de forma mais explícita no “Soneto sem assunto”: “Pirotecnia pura! Mas agora,∕que o soneto está quase terminado,∕o relógio murmura: duas horas”. O poema, embebido no torpor das formas fixas, escancara o seu próprio constructoe lança notas de cinismo e fel que, salvo engano, podem se dirigir, em sentido mais amplo, a boa parte da poesia contemporânea, cujo solipsismo exasperante nada mais é do que a expressão (essa sim, pura), de um grande comodismo em nome da virtuose. Esse movimento de aproximação e distanciamento crítico do livro de Santiago em relação à tradição está presente desde o título da coletânea: se “pavões bizarros” era o epíteto com que Vicente de Carvalho pejorativamente designava os parnasianos (antes dele próprio se tornar um grande ícone da escola que, durante muitas décadas, tornou-se a referência de como se fazer poesia), a caricaturização de procedimentos estéticos levados ao limite permite ao autor imprimir as marcas do mundo estilhaçado até mesmo no que parecia mais inabalável. O fascínio pela deusa mutilada (“Vênus de Milo”) e o “coito sem gozo” da Musa Impassível (“Furor Parnasiano”) já trazem algo do veneno e da profanação que, além do referido sarcasmo, irão contaminar, sem piedade, os outros poemas do conjunto.
No segundo ato desse rito muito particular, o eu lírico invoca as suas origens, o mundo da província e a atmosfera familiar, sem abandonar, contudo, o seu poderoso olhar enviesado. É assim que o poema “Igreja de São Pedro dos Clérigos (Mariana)” evoca não o “pus de ouro” dos santos, mas a dourada claridade que invade a nave e a eleva no espaço, etérea como a “luz balão” cabralina. A descrença e a visada em negativo de um eu lírico que sabe o sagrado um “cristal trincado” e, como Bandeira, tem a certeza de que o espírito pesa mais que o corpo (“Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto))” é fruto da mesma impureza que celebra a “espúria matéria escura” do nosso “Anjo torto” (e escuro) Aleijadinho, e que realiza a transubstanciação diabólica e corpórea da “Eucaristia”.
E, por fim, o terceiro ato desse rito demoníaco é celebrado claramente em “Entropia”, quando a via láctea bilaquiana se faz um “rastro de mênstruo” e as “ninfas sifilíticas” do “Soneto Idílico” são voluptuosamente estranguladas em nome de Dionísio. A essa altura, o “Ângelus”, um momento tão mineiro e alentador, é a encarnação da Lua Negra, quando, também no avesso da virtuose parnasiana, “as coisas, vacilantes, soçobram nas sombras”. Aqui, atam-se as pontas dos poemas iniciais do livro: à projeção sinistra de um mundo estilhaçado e cruento não escapam, por contaminação, as pérolas, as bailarinas de caixinhas de música, os origamis e os bonsais cultivados com delicadeza por essa subjetividade provocativa, cujo vouyerismo sinistro se compraz, narcoticamente, com a fumaça da cidade grande.
Ao beber nas tradições e ao mesmo tempo recusá-las como fórmulas prontas, procurando (sem necessariamente encontrar) uma dicção própria, mas fazendo dessa procura a matéria da sua poética, o inquieto autor desvela os impasses da lírica nos dias de hoje, quando os vernissages, matérias de capa e conluios de patota valem (muito) mais do que a própria criação. Enfim, um livro que, sarcasticamente, toma a bizarrice dos poetas-pavões ao pé da letra.
                                               
Fábio Cesar Alvesé doutor em Literatura Brasileira pela USP.



videoteca: "a l m a g e n e"

ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "TEU PAI COM UMA PISTOLA", DE THIAGO MATTOS

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          Li Teu pai com uma pistola (Confraria do Vento, 2012) já motivado pela tensão que o título de Thiago Mattos instaura. Você espera um romance policial assim, pelo menos um conto, alguma prosa com ação talvez. Não se espera um livro de poemas. Presumo que as referências de cinema na vida do autor possam ter influenciado a decisão do título. Refiro-me de uma forma muito positiva, claro. Como se o olhasse o cartaz, fui pra me envolver.
          Teu pai com uma pistola é o livro de estréia de Thiago Mattos, e a meu ver surpreende logo de início quando se nota que os poemas não têm título. Em vez disso o autor prefere denominar cada um de seus poemas de forma decimal. Uma progressão, frame a frame através da sua obra que vai da metalinguagem para a experiência familiar e passa por momentos de solidão. Mesmos temas para poemas? Talvez, mas dificilmente os mesmos poemas ou uma abordagem menos original. Realmente podemos falar em originalidade quando nos deparamos com "0,05 Roteiro", o segundo poema do livro, que o autor usa para estabelecer as bases de sua poética decimal. Um pequeno tratado de pausas, pontos, maiúsculas e temas, a concisa estrutura de sua obra, sem deixar de ser em si um poema. Thiago Mattos não está farto como na "Poética" de Manuel Bandeira, mas, assim como o mestre Bandeira, liberta-se do lirismo comedido e usa seus versos para "falar do ar que asfixia a vida // não necessariamente cumprir tudo".
         Em seus poemas, a solidão, sempre vestida na sombra da morte, desmantela a família de um eu-lírico garoto. Desmantelam-se  também os modelos, simbolizados na fórmula da “formatação times new roman 12, espaço 1 e meio)”. Este verso, do poema “0,5” ainda ecoando o poema "0,05 Roteiro", reafirma a busca do original. Esta pode ser a razão do périplo que o livro representa, afinal, como colocado nos versos do mesmo poema: “estamos afundados na noite / para falar / da noite / não para falar com a noite”. Creio que esta sensação inexorável de individualidade fica emblemática nos poemas “1,3” e “1,6”. O primeiro lançando a imagem de “ela”, como que perdida (dele? ou por ele percebida?) no trânsito noturno. O segundo por sua vez, oscilando entre a loucura e a lucidez de uma avó eterna em sua hora final. Não estou tecendo enigmas com este texto. Não digo mais para não estragar a cena de cada poema. Talvez resenhar  Teu pai com uma pistola, seja como rascunhar o trailer de um filme. Não posso entregar cada cena para não estragar o todo.
         O que se sucede é que Thiago Mattos faz desse caótico revirar-se, que parece desmantelar o indivíduo, a fusão do seu eu-lírico com a linguagem, como no poema “2.3”: “começo a virar pó / a virar palavra (…) é a mesma coisa”. Assim, o que resta, sendo indivíduo, substantivo, ou objeto torna-se o mesmo que habita e desliza entre as sombras e imagens dos poemas que se sucedem.  Tudo mais na lírica de Thiago Mello a partir daí passa a acrescentar ao claro/escuro de seus poemas, com imagens de corações, sangue, pedras, aves, adagas e uma sutil luta contra uma realidade cotidiana que parece antever o final do livro e que tenta-se evitar a todo custo. Tanto que para isso, o poeta divide os décimos de cada poema em centésimos de poesia, câmera lenta? Isso cabe ao leitor. Pegue a pipoca, se assim lhe convier:  Teu pai com uma pistola, em exibição nas melhores salas.




POEMAS CITADOS


0,05 Roteiro


Acrescentar poemas decimais que serão sobre abraços,
pausas no fluxo de poemas,
soluços interrompidos.
Tirar os pontos finais, deixar as vírgulas
Só elas têm sentido
Tirar as maiúsculas, deixar as minúsculas
Só elas têm sentido

falar de saudade e despedida,
evitar tudo que for abstrato
falar depessoas sem braços, partos,cópulas,
pessoas esfaqueadas,
nuvens que abraçama terra,
otempo que abraça e estrangula a vida,
aságuas que inundam e afogam
e são abraços de morte
falar do ar que abraça e asfixia a vida

não necessariamente cumprir tudo,
como não cumprimos o abraço de chegada, só o de partida
não se esquecer de que a contagem não conta nada
quanto tempo dura ou durou o meu abraço mais triste do mundo?
5 segundos – eu contei
quanto tempo dura 5 segundos?
ninguém sabe
acrescentar este roteiro ao livro como se fosse um dos poemas decimais
  


0,5


um córrego enterrou minha infância

parei a leitura para descer a manhã
você não me incomoda, pode ficar

pensei em fazer
até cartões de ano novo
(tudo para não cair
na fórmula
no carrossel velho e chorão
na formatação times new norman 12, espaçamento 1 e meio)

já te contei de quando morri afogado
no rio atrás da minha casa?

não vale a pena

estamos afundados na noite
para falar
da noite,
não para falar com a noite

escuto grito de criança
então passa um ônibus
começará a chuva?
do meu lado
duas mulheres
falam do trânsito
ruim
do governo
ruim
da vida
que é ruim mas é boa
ouço
que mais se pode fazer senão ouvir?
tapar os ouvidos é que não vamos
não vamos - não vamos

voltemos à noite
come outro prato de sopa
eu te acompanho,
se você ficar
se você ficar bebendo vinho,
eu te acompanho
se você entupir a goela com sopa,
eu te acompanho
se você quiser catar feijão,
eu te acompanho
se você quiser se matar,
eu te seguro as mãos,
para impedir ou para ajudar,
não sei

eu nunca sei

eu só repito e imito

enxuga a boca
teu sapato está
molhado
será a vida espatifada
nas calçadas da memória?

começará a chuva?

começará a chuva

reconheço o som
é um córrego
é como um córrego
um córrego enterrou minha infância
  


1,3


vi à noite
numa nuvem baixa
a luz do trânsito percorrendo

ela

  


1,6


vovó, você
            era maluca
mas agora
            você está sã

que coisa horrível

as flores têm cheiro de cemitério



2,3


começo a virar pó
a virar palavra

um homem correndo na rua vazia
ou na rua cheia

é a mesma coisa





LEIA OUTROS POEMAS DO LIVRO AQUI






Imagem: desenho (a partir de foto encontrada na internet) de Raoul



*    *    *





Thiago Mattos nasceu em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, atualmente é mestrando em tradução literária na Universidade de São Paulo. Em 2012 lançou seu primeiro livro de poemas, Teu pai com uma pistola, (de onde foram selecionados os poemas ora publicados) com o qual participou, em 2013, do Festival International de la Poésie de Trois-Rivières (Canadá). Sobre o livro, José Castello escreveu (O Globo, 12/01/2013) : « O livro de Thiago, de fato, me envolve. Oferece-me pistas em um caminho, na maior parte do tempo, desprovido de pegadas. [...] É todo belo – delicado e sutil, mas indiscutivelmente belo – o livro de Thiago Mattos. Transpassa-o, sempre, a mesma pergunta: será a arte ‘só isso’, isto é, ‘emoção estética’? Ou ela será ‘mais que isso’, quer dizer, será a arte (a poesia) algo que ainda hoje pode afetar, desarticular e deslocar? » Thiago Mattos é colunista do blog da Confraria do Vento, além de manter o blog Je Vous Défenestre, em que publica traduções de poesia contemporânea de língua francesa. Ainda em 2014 deve ser lançado seu segundo livro, Casa devastada – prosa em poesia.








Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.







Marcel Proust: Os prazeres da Busca e os dias - Jediel Gonçalves

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Uma linha reta será a mais fácil de conceber entre todas as linhas, porque não há esforço menor para o pensamento do que aquele a ser feito ao passar de um de seus pontos a um outro, sendo que cada um deles está igualmente localizado em relação a todos os outros.
Paul Valéry



Esta série de ensaios que se anuncia pode ser considerada como parte das curiosidades e inquietações que o romance Em Busca do tempo perdido me despertou durante todos esses anos de investigações sobre a obra. São as relações que esse roman fleuve estabelece com os demais sistemas artísticos (com a pintura, principalmente) que questiono. Provavelmente eu nunca teria me engajado na busca deste objeto, se seu autor, cujo nome tão longo quanto as frases de seu livro, não me tivesse feito sentir os “pontos nevrálgicos” que sua narrativa realçara à cada releitura e pelos quais eu entrara em contato com as outras artes. A estrutura pretendida respeitará a sequência de estudos dos sete romances que compõem a obra proustiana: 1. Introdução; 2. No caminho de Swann eÀ sombra das raparigas em flor; 3. O Caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra ; 4. A Prisioneira e A Fugitiva; 5. O Tempo reencontrado.Obviamente, estes ensaios não pretendem ser o desenho mais completo ou o mais perfeito, ser o último delineamento mais perspicaz sobre Proust. Antes, eles se elaboram conforme a estrutura de um discurso-desenho, com cores e traços, que busca compor uma figura mental trazendo as marcas e os limites do objeto para o leitor de mallarmargens. Estes textos recuperam nas formas do discurso literário alguns componentes que entraram na preparação do romance e na estética de Marcel Proust; acreditamos que isso favoreça na compreensão da mediação entre o leitor e o universo criativo do escritor.  Assinala-se, também, a tentativa de debater procedimentos que achamos relevantes no processo de criação artístico-literária.

 Marcel Proust em 1900. Fotografia: Hulton Getty.


Valentin-Louis-Georges-Eugène-Marcel Proust. Marcel Proust, como todos amantes de literatura francesa devem conhecer, ou simplesmente, Proust. É ele próprio quem nos convida a olhar sua obra por diferentes ângulos, prismas, portas e entradas ou pontes e torres medievais, chafarizes de uma Idade d’Ouro, e a propor-lhe novas interpretações.
Proust ultrapassou sua época. Em sua obra monumental, não deixou escapar o que mais a dignificava: o interesse penetrante pelas artes, em especial, a pintura. Alguns críticos observam as obras visuais descritas ou evocadas em cada um dos sete volumes e não percebem que todo o aglomerado de linguagem pictórica merece atenção; as artes plásticas desempenham função importante nesse romance que é considerado integralmente uma obra feita de “interioridade” e de “pensamento”. Precisamos retomar algumas passagens e mergulhar no mar-Proust. Assim, redescobrimos aspectos insuspeitados do autor e da obra.
À luz de estudos de criação artística, crítica literária e estética, um novo Proust foi surgindo ao longo destes anos trabalhosos de estudos, como a aparição num quadro mental. Com seu semblante gravado numa tela ultra-sensível que capturou e armazenou durante a juventude inúmeras impressões e que, desse forma, se dedicou muito tempo a revelá-las e a fixá-las, a “imagem de Proust” foi tornando-se visível e latente, como num museu gigantesco, que se erigiu em toda a Busca do tempo perdido.
Caminhar em direção favorável da busca, traçada por um fio que acompanhamos tanto para frente quanto para trás, até enxergarmos duas pontas no Tempo que incitem os pontos nevrálgicos que geraram e contornaram as linhas da nossa recherche. Há o delineamento do objeto; e há também o tempo que levamos para desenhar essa trajetória. O tempo – que pode ser o do leitor, no intento de reduzir os diversos espaços que circundam o espaço das palavras – é distinto daquele do escritor e do narrador. Para eles, o tempo (que está imbricado no espaço) é quem os reduz no processo de mover-se. Vislumbra-se as sutis linhas deste desenho, uma “entrada” para o silêncio que se torna via de acesso para um novo despertar para o leitor. Este desenho se forma em nós a partir de tudo que pensamos ser indispensável, quando os objetos de nossas buscas são as formas, os atrativos expressivos e mananciais proliferadores de mistérios de dentro e fora da literatura.


O escritor e os primórdios da “Busca”

 Retrato de Marcel Proust, realizado por Jacques-Émile Blanche, em 1892.


No museu de Orsay, do retrato de Marcel Proust, pintado por Jacques-Émile Blanche, em 1892, em Paris, que ainda guardamos na memória, não busquemos enxergar apenas o rosto e o coração do escritor, esse revelador das “intermitências” do ser, do eu, das vontades do nosso próprio coração humano. Busquemos, antes, ver de perto a pequena flor branca mundana, que ele trazia na botoeira do paletó. Esta mesma flor que repousa no lado esquerdo de seu peito entra com seus espinhos malévolos na carne da sociedade e, como verdadeiros respiradouros ou uma clarabóia perfeita que a sua inteligência abria inesperadamente no limite do fôlego e dos sentidos, sufoca por dispnéia e asfixia a garganta das classes mais abastadas para deixar no final um riso irônico, claustrofóbico e cruel. Voilà um narrador que brinda sua objetivação diabólica com uma taça de champanhe na mão.
Apesar das primeiras crises de sufocamento, vemos que o coração deste escritor é verdadeiramente inumerável. O coração do narrador está no obsessivo ponto entre o padecimento e a debilidade orgânica, e na exagerada exigência de afetos e de cuidados. Seu sopro está em toda a parte e nenhuma: é encantador e, ao mesmo tempo, radical. É impossível amar Proust sem amar o que ele amava, ou seja, o essencial.
Conhecedor de todos os caprichos e expedientes que a sociedade reproduz, fazendo desaparecer sorrateiramente uma funesta realidade por manipulação dos próprios interesses, a distração e a ociosidade mundanas do “herói” dessas histórias são a expressão refinadíssima e, ao mesmo tempo, patética de uma hipocrisia mental, de uma “lei”, da “lei do menor esforço social” e de uma economia ideológica, com que os grupos dominantes conseguem conservar para si auto-estima e alienação.
Na vida do escritor também pousam anjos cuja luz e benevolência são facilmente observadas porque distam poucos centímetros do coração e do poder que têm sobre ele. É próximo ao talento engenhoso de Marcel Proust que acorrem das camadas do povo para o leito do escritor cometido de enfermidade (sempre empenhado em seu trabalho de escritura) esses anjos de pessoas. Movida por um respeito primacial e arcaico, pela grandeza do extenuante trabalho a que se entrega Proust na construção de sua catedral-de-palavras, e compartilhando também do empreendimento da obra, pousa Celeste Albaret, esse anjo sem asa, na cabeceira da cama. É junto dele que ela passa a maior parte do dia.
Estes “bons franceses de Saint André-des-Champs”, ou boas almas, chegam do interior da França para auxiliar aquele homem de sentimentos tão finos e, ao mesmo tempo, tão castigados. Celeste, que trabalha como uma espécie de secretária do escritor, auxilia na distribuição dos exemplares do primeiro volume da obra. Eis a razão pela qual o barrador jamais hesitou em mostrar mais tarde que “as classes do espírito não correspondem às classes sociais”. São eles o sopro e os sujeitos que permanecem vivos até as últimas páginas da Busca. É junto deles que vai encontrar sua mais imorredoura e recuada legião de heróis.
As várias páginas que o escritor já tinha escrito não são outra coisa a não ser uma “preparação” do romance, como nos lembra Roland Barthes. Ainda nos escritos mais antigos, como Os Prazeres e os Dias, sentimos certa hesitação no estilo que, por tratar-se de um escritor muito jovem, vai aos poucos tateando as realidades essenciais de sua arte, a ponto de adquirir extraordinária concentração de um espírito amadurecido, e começar com afinco, com destreza talvez, a escrever. A superioridade deste autor com relação àqueles que o precederam vem justamente do fato que, escrevendo um só livro, ele disse tudo o que os demais precisaram de vários outros para dizê-lo. Eis por que dizemos que ele utilizou-se de vários gêneros e não se sujeitou a apenas um. Como poeta, imaginou fazer versos para suas frases. Como romancista, ele não foi, como muitos mais ou menos foram, uma árvore de romances. Como crítico, finalmente, exerceu a atividade literária dentro de uma proposta crítica e daí conseguiu tirar o essencial que faltava à sua literatura. Em suma, Proust foi um homem de um único livro.
É 1908. A la Recherche du temps perdu começa a ser escrita. É um meta-romance. E, neste mesmo tempo, Proust escreve um livro com ensaios críticos e de análise artística, Contre Sainte-Beuve, que só sairá publicado postumamente, em 1954, e de forma confusa (é impossível saber em que ponto termina este livro e começa aquele que seria o maior roman fleuve já escrito na literatura francesa). Este acaba vazando para todos os lados. Eis a principal razão que leva alguns críticos a acreditar que um edifício tão vasto devia ter fundações mais sólidas que um curto volume de juventude, duas traduções e uma meia dúzia de artigos. Mas onde poderiam ser encontradas essas fundações? Será que Proust teria desaparecido, voluntariamente ou não, com os traços de seu trabalho? Talvez isto bastasse para imaginar uma vida ociosa, consagrada à arte, ao mundo, ao amor, e totalmente absorvida por eles. Não se pode deixar de entender que as contínuas, monótonas e infindáveis páginas da Busca travam, de certo modo, interessantíssimo e coerente diálogo com outros escritos do escritor, e é por meio deste diálogo que muitos fatores determinantes da construção do pensamento estético emergem ao leitor, ou passam a ser melhor compreendidos.
Em 1913, após ter que suportar inúmeras recusas, uma inclusive por parte da Nouvelle Revue Française, onde o escritor André Gide é diretor, Proust consegue finalmente convencer o editor Grasset a publicar o primeiro volume da série de sete romances, Du côté de chez Swann, numa tiragem reduzida de publicações financiada por ele mesmo.
Logo eclode a Primeira Guerra e há novamente o isolamento, embora tenha continuado a escrever até chegar aos sete volumes. Proust morre em 1922, aos cinqüenta e um anos, sem haver estabelecido um texto expresso e concluinte do romance. A palavra “fim” que ele traçou nas últimas páginas de seu texto não marca um fim. Sua primeira versão é uma reconstrução a cargo de seu irmão Robert Proust e do amigo Jacques Rivière. Esta gênese está relacionada com um fenômeno extraordinário que, por sua vez, está ligado aos ocultamentos e inconsistências intencionais da Busca. Trata-se dos famosos manuscritos proustianos e de seus papelotes e hieróglifos ilegíveis, escondidos não se sabe onde, que vão sendo desvelados em dois sentidos: enquanto a possibilidade de novos textos e versões sobre a obra; enquanto à aparição de novas obras.
 
“No Caminho de Swann”31 de março - 11 de junho 1913, Bibliothèque Nationale de France


      Em 1910, o escritor Marcel Proust se dedica ao seu romance, alterando e desenvolvendo alguns fragmentos de Contre Sainte-Beuve. Nestes manuscritos, o narrador começa por evocar as férias de infância passadas ​​em Combray, junto aos pais que recebem a visita do vizinho Charles Swann. Em 1912, o romance está pronto para ser publicado.
No entanto, acreditamos que seja em vão querermos descobrir nestes papéis algo novo, que mudaria a consistência da obra, até mesmo porque a obra inédita de Proust não existe. Podemos talvez desenterrar um romance de Balzac ou um poema de Mallarmé desconhecidos. Mas, no caso de Proust, não devemos encontrar nada do que destoe radicalmente da Busca do tempo perdido. Se houvessem novos manuscritos, estes também só viriam confirmar a completude e a complexidade que antecederiam um livro por vir, não acrescentando muito do que é dito na obra editada, mas simplesmente tendo ainda muito a nos dizer sobre ela.
A verdade é que uma rápida visão sobre os manuscritos nos confirma que Proust nunca cessou de trabalhar. Escreve questionando um conjunto de concepções erguido durante séculos pela tradição, retomando diversas fontes e convertendo-as numa espécie de sincretismo cultural puramente seu.
Os textos encontrados hoje distam entre si de alguns meses ou anos. Não diferem simplesmente pelo brilho, certeza, amplidão ou perfeição de estilo. Os assuntos e os modelos de personagens não mudaram muito, mas o olhar que os observa já não é o mesmo. Isto se aproxima das leis da psicologia proustiana que aponta para uma experiência de conhecimento que se faz em “dois tempos”: não se tem uma nova impressão sobre um ser sem tê-lo confrontado com uma impressão que veio antes. Portanto, como Swann diante do retrato de Miss Sacripant, em quem ele reconhece a mulher “vinte anos antes” que ele ama, ou como o ouvinte do septuor de Vinteuil que de repente percebe, através do imenso arpejo, a pequena frase da sonata, a produção destes escritos respeita uma visão comparativa numa diferença milimetrada em tempos: sendo o segundo tempo os escritos do autor que, para avançar, se abastecem de um primeiro tempo, ou seja, de um escrito anterior.
Em 1918, já pela Nouvelle Revue Française (Gide diz em carta que ter recusado anteriormente editar Du Côté de chez Swann foi um dos “remorsos mais pungentes” da sua vida), sai À l’ombre des jeunes filles en fleurs, que obtém no ano seguinte o Prêmio Goncourt. Le Côté de Guermantes, em dois volumes, e Sodome et Gomorrhe, aparecem em 1920.
Um ano depois da morte do escritor, há um período de entusiasmo e grande interesse pela obra proustiana, como é o caso da famosa Homenagem a Marcel Proustde 1º de janeiro de 1923, escrita por um conjunto de escritores importantes. Logo depois, surge uma época de abandono e de desconhecimento ou conhecimento parcial da obra, embora esta tenha continuado a ser objeto de culto de muitos escritores de tendências diferentes. Até que, mais ou menos a partir da década de 60, aparece o estruturalismo e, mais tarde, o pós-estruturalismo dando à obra proustiana importância fundamental, sobretudo, ao que diz respeito aos estudos de Roland Barthes, de Julia Kristeva e da narratologia de Gérard Genette. Surgem cada vez mais interpretações fenomenológicas, hermenêuticas, da estética da recepção e autores como Blanchot, Foucault, Deleuze, Rorty, etc. Mesmo assim cria-se uma investigação em torno do estilo proustiano, iniciada por Spitzer e Curtius, e também sobre outros diferentes aspectos e temas específicos da obra, como por exemplo, as artes: a música, a pintura, a arquitetura, a literatura e suas relações com os movimentos artísticos conhecidos por Marcel Proust e em alguns casos antecipados por ele, como o cubismo, o futurismo, o surrealismo e outros.
Em Paris, o escritor muda-se de residência. Deixa o apartamento do boulevard Haussmann e instala-se na rue Hamelin, um quinto andar, de onde não sairá, senão uma única vez, em 1921. É o tempo dos jantares orquestrados oferecidos aos amigos. É o tempo em que ele pede para forrarem-lhe o quarto com cortiça. É também a época da camisa de tricô que, depois de ser aquecida próximo à lareira, era colocada sob o pijama para manter-lhe o peito aquecido. Pronto, de malha toda esburacada, mas quentinha, no peito, ele começa a escrever.
Em seu novo apartamento, “Monsieur Proust”, como costumava chamá-lo Celeste Albaret, discute com muitos da casa e insiste em sair naquela hora para uma visita à exposição de pintores holandeses exposta no Jeu de Paume. Ah! Como admirava esses pintores! Pretende logo vê-los, pressentindo que será a última vez que lhe será possível ver o quadro que considera o mais belo do mundo: A vista de Delft, de Vermeer. É fatal. No dia seguinte, adoece por causa de uma bronquite terrível. Rejeita o tratamento. Advém uma pneumonia. A partir daí, enxergamos o corpo de um homem doente deitado no leito, o rosto mortalmente pálido tomado por forças que vêm não se sabe de onde, ditando febrilmente à Céleste algumas correções finais de seu romance, frases longas e eternas que parecem querer imitar passo a passo o seu próprio medo de asfixia.

Marcel Proust, fotografado por Man Ray, em seu leito de morte.


Este homem de rosto sarraceno não é mais aquele charmant, mundano refinado, com o qual alguns já travaram conversa ou conhecimento, porém sempre com um andar meio dificultoso, deslocado, absurdamente gentil. Ele é o Proust que introduz suas propostas revolucionárias, na concepção e nos procedimentos artísticos, de tal modo que se pode lê-lo com tranqüilidade e ingenuidade, sem reparar as grandes modificações estéticas do que se lê produz.
Dando uma volta pelas páginas da Busca, captamos as impressões do autor sobre a França e, em particular, sua cultura: todos os nomes de pessoas e lugares parecem ter saído de alguma lenda celta ou terem pertencido a algum livro normando de poesias. A onomástica e a toponímia surgem como se lêssemos um guia de estradas de ferro ou um annuaire des châteaux, de catedrais; elas são trazidas por uma “tradição antiga e ao mesmo tempo direta, ininterrupta e oral, deformada, irreconhecível e viva”. Seguindo estes nomes, cobrimos todos os pontilhados de um incrível Tour de France por onde não apenas fazemos um turismo radical pela geografia, mas uma volta pelas profundas partes do serempreendida pelo autor.
Tudo bem se estas histórias causam estranhezas ao leitor comum, mas o importante a ser notado é que consistem numa das fontes mais fecundas para o pensamento crítico: configuram-se como uma mina inesgotável e o que delas extraímos nos enriquece e nos reanima. Exigem, por isso mesmo, disponibilidade e exercício de espírito, para que suas “chaves mágicas” sejam encontradas: o artista se afasta de sua própria obra para que esta caia nas mãos de um receptor criativo com o qual é estabelecida uma relação que nunca houvera antes.
Neste sentido, para alguns leitores convencionais, e muitas vezes não conhecedores de toda obra, Proust pode parecer um autor estranho e destinado a elites intelectuais. Possivelmente, pensa-se desta forma porque se leva em conta a distinção de conceitos ditada por ele entre alta e baixa cultura questionada pelo pós-modernismo e sustentada por autores como Adorno. Sem dúvida, em torno destas convenções – que surgiram das tentativas exageradas em retraçar a existência do homem Proust sob a forma de um aparente biografismo sério – há algo lendário: estendeu-se à sua personalidade a visão de um ser esnobe, dândi, freqüentador de salões aristocráticos, escritor de cartas condescendentes, etc. No entanto, devemos considerar a Buscauma obra de opiniões e de discursos nos quais se notam claramente os efeitos de um mundo extra e além Proust.
         Em 1910, o escritor Marcel Proust se dedica ao seu romance, alterando e desenvolvendo alguns fragmentos de Contre Sainte-Beuve. Nestes manuscritos, o narrador começa por evocar as férias de infância passadas ​​em Combray, junto aos pais que recebem a visita do vizinho Charles Swann. Em 1912, o romance está pronto para ser publicado.

Jediel Gonçalves


Jediel Gonçalvesé poeta e crítico literário erradicado na França, mestre em Literatura Francesa pela Université Aix-Marseille, membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos e pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX. Realiza atualmente Doutorado em estudos intersemióticos sobre a recepção de obras plásticas na obra literária do escritor francês Marcel Proust.



WE ACCEPT HER, ONE OF US

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“We accept her, one of us”

Quando criança elaera ele.

Ele, portanto, gordinho e com bochechas rosadas, tinha pânico de anões. Não podia vê-los e sequer alguém estava autorizado a pronunciar fatídicas sílabas: a-nões. Embrulhava-lhe o estomago e ele era atacado pelo que, já quando ela, chamava de alien (ser estranho que morava em sua barriga e resolvia se manifestar diante do primeiro sinal de angustia). Aos poucos ele percebeu que além da mortífera agonia sentida pelo descompasso do intruso, o alientambém dançava. Demorou para que eledesfrutasse de seu ritmo e permitisse o convite à dança.  Tarde, mas nem tanto, a influência pôde ainda vir cedo. Veio enquanto o autorizado para os meninos da época era a dança de rua. Foi quando ele iniciou sua coleção de machucados. Começou com pequenos roxos e terminou com um cóccix quebrado. Já quando ela, a situação se agravou. Com frequência achavam que ela havia caído quando em verdade jogava-se abaixo de livre e espontânea vontade. Já esteve no palco com um costela quebrada. Nada que não melhorasse com um derivado de morfina e lhe apresentasse as artificialidades deliciosas da vida comum. Ela, já adolescente e não mais gordinha (afinal, tal adjetivo só lhe foi autorizado na fase masculina e agora ela insiste que seu numero de calça -36- deve funcionar com a mesma cristalização que um número de sorte) significou, como pôde, a antiga fobia que vinha disfarçada pelo avesso. Tal qual um anão é um adulto pequeno, um adulto pode ser uma criança grande. O alien, que permanecia no mesmo lugar mesmo após a troca de sexo, migrou sua impaciência para qualquer referência a tal infantilismo. Adultos falando com voz de criança era o ápice do desespero. Era quase vital que o alienígena saísse pela boca enrolado num vômito sob a melodia de conversas fiadas na voz fina. Foi então quando o quadro piorou e seu intruso procriou. Percebeu que havia pessoas que mexiam suas devidas bocas numa espécie de ecolalia antecipada tentando, ao máximo, mimetizar as palavras que pronunciava. Um grupo inocente de ladrões a céu aberto que estavam fadados a repetir palavras sem som. Tomada por uma piedade compartilhada aliviou-se quando estudou o conceito-chique-lacaniano de lalangue . Que lhe roubem, então, as palavras, mas, nunca, nunca, sua entonação!


3 contos de Artur Rodrigues

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Ilustração: SENSUAL-Lux by onewordphoto



O ato de riscar um palito de fósforo 

Fiquei trancado em casa por meses, alimentando-me só quando estava prestes a desmaiar e bebendo até cair inconsciente. Com exceção do quarto onde eu passava quase todo o tempo, tudo estava como Isabel deixara. As chaves dela, uma xícara de café pela metade, um jornal velho e uma caixa de fósforos estavam na mesa onde ela costumava passar horas ouvindo música e escrevendo poemas que não mostrava nem a mim. Peguei o jornal da manhã em que ela me deixou, depois de uma madrugada inteira de explicações intermináveis da parte dela e súplicas incansáveis da minha, havia uma guerra em algum lugar, um desses países minúsculos do leste da Europa, e eu quase chorei lendo aquilo. Não que me importasse com aquela multidão de desconhecidos morrendo, nunca fui de me ligar a essas coisas, sempre há uma guerra em algum lugar, o que me incomodava mesmo era o mundo, fui trocado pelo mundo, como competir com Ele? Eu nunca fumei, mas acendi um daqueles fósforos, só por acender, fiquei olhando a chama até tostar meu polegar e meu indicador. Foi nessa hora que senti as mãos de alguém sobre meus olhos, eu fiquei assim, esperando que alguém falasse algo, não era necessário, eu sabia quem era, pelo cheiro, pela textura, o ritmo da respiração na minha nuca, não precisava falar. Eu me virei pronto para dizer alguma coisa, mas ela tapou minha boca com as mãos e guiou as minhas por entre as coxas dela, vagarosamente, até me meus dedos doloridos sentissem a umidez na calcinha de algodão. Era como se tudo flutuasse ao nosso redor e não me lembro de ter andado até a cama para chegar até lá. Nas poucas vezes que tentei falar algo, uma monossilábica Isabel me calou com um irresistível “shiiiii”, enquanto eu escorria pelo corpo dela, secando o suor com a minha língua, mordiscando cada pedaço, da macia polpa da bunda ao áspero calcanhar, conferindo cada milímetro, mesmo o pequeno sinal ao lado do ânus, a cicatriz do cotovelo, o pelinho que nascia insistentemente, solitário, quase invisível atrás da orelha, as nuances da tatuagem da adolescência que começava a desbotar, nós dois envolvidos numa névoa que fazia tudo mais leve e ao mesmo tempo mais intenso e, enfim, tudo se apagou luminosamente. Eu adiei a hora de acordar ao máximo, sabendo que ela não estaria mais ali, procrastinava a hora de abrir os olhos apalpando a cama ao meu lado, espreguiçando-me e enfiando minha cabeça debaixo do cobertor. Quantas vezes isso aconteceu? Eu sinto saudade daquela sensação de querer desaparecer do mundo, invejo aquele o tempo em que sentia aquela tristeza infinita, tão mais confortável que o agora seco e esturricado de que tanto fugi, o dia em que conheci a mais aniquiladora sensação de desesperança ao olhar para o último fósforo da caixa nas minhas mãos de velho.


Motoqueiro

As ruas de Artur Alvim não eram as mesmas de pela noite. Apesar do calor que alegrava as baratas, tudo estava meio vazio. As lâmpadas das ruas queimadas carregavam tudo com uma aura apocalíptica. Normalmente, os portões estariam cheio de pessoas conversando, latas de cerveja 500 ml nas calçadas, que eram derrubadas de vez em quando pela bola da criançada, e fatalmente haveria os carros, porta-malas semi-abertosemiaberto, vomitando o funk no último volume.
Era uma noite de sexta-feira que não se parecia com sexta-feira. Na verdade, para descrever aquela noite, seria necessário inventar um novo dia. Nenhum dos dias existentes justificava o passo apressado e apreensivo do universitário que sempre caminhou por ali sem qualquer preocupação que não fosse qual a refeição que encontraria dentro do microondasmicro-ondas quando chegasse em casa.
Aquele silêncio lembrava mais um silêncio de imaginação, de livros de Allan Poe, um silêncio pontuado por latidos caninos e explosões dos escapamentos das motocicletas. Nas janelas, era possível ver algumas silhuetas obscurecidas pelas luzes amarelas e fracas das casas. 
Em uma das travessas, alguns moleques teimavam em ficar na rua. Conversavam e ouviam música como se não estivesse acontecendo nada. Eram todos irmãos, de 5 a 20 anos. Os mais velhos tinham os cabelos crespos tingidos de amarelo e grandes tatuagens nos braços. Algumas delas eram indistinguíveis e outras, mostravam palhaços armados, dragões cuspindo fogo, serpentes e carpas.
Cambadas de trouxas, disse Mateus, conhecido no bairro como Boy, que pilotava a moto grande, uma Tenerè. Isso aí não tem nada a perder, disse Dinho, em tom de descaso. Se não for de um jeito, acabam indo de outro, continuou o garupa.
Já estavam rodando pelo bairro por mais de uma hora. Resolveram parar em algum lugar para beber alguma coisa. O posto de gasolina também estava vazio. Boy cumprimentou os dois frentistas, entrou na loja de conveniência e abriu a geladeira. Demorou um tempo segurando uma lata e outra e finalmente saiu com uma BrahmmaBrahma gelada. Não gosto dessa cerveja, mas é a melhor que tá tendo. Dinho não ouviu o comentário, estava do lado de fora tragando com vontade um cigarro de filtro vermelho. Soltou a fumaça e entrou na loja para pegar uma Coca-Cola.   
É hoje, você vai ver, disse para Boy, já do lado de fora. Espero que seja mesmo, respondeu o amigo, porque a minha mina tá me enchendo o saco achando que fui atrás de outra. Fica dando alerta no meu rádio o tempo todo. Que embaço da porra, hein, mano, você é um dominado do caralho.
Boy vestia uma calça camuflada e uma camisa branca. Era uns 20 centímetros mais alto que o outro. Dinho estava de boné vermelho, camiseta, bermuda de surfista e chinelo. Conversavam com a intimidade de quem se conhece desde a infância. Jogaram bola e empinaram pipa juntos. Chegaram até a fazer uma sociedade nas bolas de gude.
Na adolescência, se afastaram um pouco. Boy continuou na escola enquanto Dinho passava as noites fumando maconha e andando de skate. Filho de sapateiro, Boy tinha a ideia fixa de que teria de passar no vestibular da faculdade pública se quisesse alguma coisa da vida. Já Dinho, filho de um bancário, tinha a certeza de que o pai teria de pagar a faculdade.
Nem um nem outro chegaram a entrar na faculdade. Boy porque não passou no vestibular da USP de administração. Dinho porque não precisava estudar para ganhar dinheiro. Começou vendendo erva e, depois, pó. Nunca mexeu com crack por questão de princípios. Seus clientes eram pessoas de bem, trabalhadoras e eram os mesmos por anos e anos. Notava que vários deles trocavam de carro todos os anos, sinal de  que a droga não prejudicava tanto assim na vida deles. Veja o guitarrista do Rolling Stones, o cara cheirou pó a vida toda e continua lá, inteiro, apesar da cara de acabado.
Boy passou no concurso da PM. Há três anos era soldado da corporação, onde trabalhava no setor administrativo. Normalmente, ele e o amigo andavam desarmados. Naquele dia, porém, o policial tinha na cintura sua segunda arma, uma pistola 380 cromada, semiautomática com capacidade para 16 tiros. O outro carregava um 38 velho que deixava em casa para o caso de algum cliente tentasse se crescer para cima dele.

Nenhum dos dois costumava cheirar cocaína. Mas acharam que uma dose extra de adrenalina seria necessária. No banheiro do posto, dividiram a cápsula de plástico sobre um cartão de crédito e –- Dinho com mais habilidade que Boy –- inalaram o pó. Estavam acelerados, como as motos fazem com as pessoas nos semáforos da cidade.
Apesar da amizade, devido às profissões divergentes, não costumavam circular muito juntos. Às vezes, um passava na casa do outro para bater um papo. Uma semana antes, Dinho viu Boy chegando de moto do trabalho e o chamou de canto. Porra, maluco, manda esses seus camaradas pararem de matar a molecada na rua de noite. Os caras tão zerando uma pá de inocente. Outro dia mataram um coitado que tava voltando da escola. Cê tá louco? Quem tá matando essa porra são os malas que nem você... Ô, Boy, cala boca que cê tá ligado que não mato ninguém. Tô ligado, mas não é polícia. E se não é polícia que tá matando tenho certeza que é bandido.
Na noite anterior, dois caras em uma moto escura atiraram em cinco adolescentes que conversavam num banquinho na rua de trás. Dois deles morreram. Um havia acabado de chegar da igreja evangélica do bairro e só passou na casa do colega para devolver o boné que pegara emprestado. A mãe dele começou a circular chorando, de roupão pelo bairro, pedindo Justiça. A história chegara até Dinho. Nos arredores do bairro, mais de dez jovens haviam sido mortos por dois caras em uma moto escura. As cápsulas sumiam misteriosamente do asfalto. O mesmo acontecia na cidade toda. Dezenas de inocentes mortos por alguém de moto.
E por que os caras pegam as cápsulas se não são polícia? Por que a PM chega rápido pra socorrer os mortos e fode com a cena do crime antes da perícia chegar? Dinho não tinha a mínima dúvida de que quem matava eram policiais de folga, com apoio dos que estavam a serviço. Quer apostar que é ladrão? Como você sabe? Vamos fazer o seguinte, essa semana não que tá corrido, mas a partir da semana que vem a gente sai atrás desses malucos.
O PM não havia acabado de tomar a cerveja quando recebeu uma mensagem de texto. Eram um colega de farda que morava no bairro avisando sobre mais um crime. Os caras meteram bala numa molecada lá na rua 14, disse. Só podem sair pela Miguel Allende. Vamos encontrar esses vagabundos lá na frente. Falou, falou, bora, respondeu Dinho montando na garupa de um pulo só.
A moto quase empinou quando Boy acelerou. Era um veículo potente, de 400 cilindradas. Dinho segurou firme na cintura do amigo e rezou um Pai Nosso para si mesmo. Tudo que queria àquela hora era acender um cigarro. Ao contrário do piloto, ele não sabia atirar. Jamais acertara ninguém na vida. Só tinha aquela arma por precaução mesmo. Já Boy, mesmo sendo do setor administrativo, passara por treinamento. Quando um ladrão tentou roubá-lo na saída de casa, um ano antes, não vacilou: sacou a arma e atingiu o cara na cabeça antes que ele tivesse tempo de apertar o gatilho. Ele também pilotava moto muito bem. Para cortar caminho, subiu um escadão, atravessou uma praça pelo meio e enfim estava na Miguel Allende. Cadê os caras, porra?! Não tô vendo nenhuma moto, respondeu Dinho. Fica de olho, doideira, que você que vai ter que atirar nos caras com a moto em movimento. Então fudeu, mano, fudeu. Fudeu nada, ó os malucos ali, ó, disse Boy acelerando.
Eram dois homens vestidos de roupas pretas, capacetes pretos em uma moto 125 cilindradas preta. De início, não notaram que estavam sendo seguidos. Mas o som do motor da Tenerè os assustou. Aceleraram., Nno entanto, o veículo em que estavam era muito mais lento que o de Boy e Dinho. Atira nesses porras, Dinho, vai. Ele mirou e deu três tiros. Dois pegaram em uma Brasília verde que estava estacionada, mas o último, claramente, atingiu o garupa pelas costas. O sujeito, mesmo baleado, revidou com uma semiautomática e acertou de raspão a moto de Boy. Assustado, Dinho gritou ao encostar a perna no escapamento quente, mas a dor viria só mais tarde.
A moto preta virou numa ruazinha, que foi minguando até se tornar uma viela. Atrás, a uma distância de cinco metros, vinham Dinho e Boy. Sem ter para onde ir, os caras que iam à frente desaceleraram. O garupa pulou da moto e entrou no meio da favela. O de trás foi tentar fazer o mesmo com a moto em movimento, mas acabou caindo. Boy percebeu a oportunidade e atropelou com tudo o homem de preto que veio rolando em sua direção. Ato contínuo, freou a moto, desceu com a arma em punho dizendo perdeu, perdeu, seu lixo.
Dinho veio correndo e chutou a barriga do sujeito caído. Agora, Boy, o que você vai fazer se esse cuzão for polícia, hein! Não quero nem saber, vai se fuder de qualquer jeito, sai daí, respondeu. Agora já se fudeu, repetiu, olhando para o homem vestido com uma roupa de plástico, usada por motoboys nos dias de chuva.

Dez minutos depois, os dois estavam calados na moto voltando para casa, o veículo agora estava tão devagar que poderia ser ultrapassado por um cavalo. Boy, que era bastante moreno, estava branco. Porra, velho, cê acha que a gente ficou louco, Dinho puxou assunto, sem obter resposta. O cara não era polícia nem bandido. Polícia nem bandido, repetia, para si mesmo. Acho que nunca mais vou dormir lembrando da cena, mano, você tirando o capacete do cara e... Porra nenhuma, porra nenhuma debaixo do capacete. Porra nenhuma dentro da roupa. Nada, nada, nada, nadinha. Quem tá matando todo mundo não é ninguém, um monte de ar, uma porra de um fantasma ou sei lá o que... A cidade, disse Boy. O quê? Essa porra dessa cidade tá matando a gente, Dinho, vou pedir transferência dessa porra amanhã, vou morar no interior. Pode crer, mano, pode crer, é umas, viu, respondeu Dinho, sem segurar no piloto. O cigarro numa mão, a cabeça virada para o outro lado sem enxergar nada, a noite vazia, o céu cinza, sem estrelas, sem lua, apenas um balão flutuando muito longe.


BO 1978/2011

    O cb Paiva, responsável pela vtra 4456, efetuava patrulhamento de rotina no dia e na hora epigrafados quando foi informado por populares que uma tentativa de linchamento estava em curso em um logradouro próximo dali. No local dos fatos, a guarnição chefiada pelo cabo encontrou a vtra 56 do corpo de bombeiros e a turba agredindo o autuado José da Silva Ramos, vulgo Zé do Papagaio, que tentava empreender fuga sem sucesso. O mesmo foi conduzido ao distrito policial, assim como os agressores que o responsabilizavam por um incêndio em uma feira conhecida pela comercialização de toda a sorte de produtos ilegais, apelidada como “feira do rolo”.
    Nesta delegacia constatou-se que o meliante tem dezenas de autuações pode pela venda ilegal de animais silvestres, estando em liberdade condicional após ser preso neste mesmo distrito, quando foi flagrado com 60 papagaios, cinco deles mortos, óbitos causados pelas cruéis e desumanas condições a que impunha aos pobres representantes da fauna brasileira (art. 32º, Lei Federal 9.605/98). O meliante confessa que retira seus proventos de atividade criminosa, mas nega ser culpado das acusações de incêndio criminoso (art. 250, § 1º, I, CP), alegando um bizarro incidente, pelo qual um lagarto de sua propriedade teria começado o incêndio. O espécime teria sido adquirido junto a um andarilho chinês que passava pela feira, por volta de 30 dias atrás, quando o animal em questão ainda era um filhote.  O autuado alega que um suposto chinês, trajando blusa vermelha de seda e calça também vermelha, ofereceu-lhe o supracitado animal gratuitamente. O meliante dispõe-se a fazer reconhecimento fotográfico no álbum de suspeitos deste distrito em busca da identidade chinês, que nega tratar-se de uma figura criada por sua mente alucinada pelo uso de narcóticos, acusação que lhe foi imputada pelos também praticantes de contravenção que o agrediam quando da chegada do cb Paiva.
    Segundo depoimento do autuado a esta autoridade policial, o lagarto veio a crescer rapidamente durante o período de um mês, atingindo tamanho incomum para sua espécie. O autuado diz ainda que passou a receber várias propostas de venda do espécime, entretanto, resolveu manter a posse do mesmo após ter um sonho com o supra. No sonho do autuado, o chinês teria aparecido subitamente, informando que o animal não se tratava de um lagarto e sim de um dragão. O meliante confessa que após a estranha revelação onírica passou a acreditar que ganharia muito dinheiro se cuidasse do animal até que ele crescesse, atingindo o tamanho do mesmo durante o episódio sonhado, o que se igualaria a um prédio de cinco andares e poderia, então, atuar nas rocambolescas tramas hollywoodianas. O mesmo alega que o animal passou a soltar pequenas faíscas pela boca, confirmando-lhe as previsões que tivera durante o sonho e fazendo do animal uma atração na feira em questão.
    A testemunha número 1, o vendedor ambulante Marcolino Pereira da Silva, afirma ter perdido todos os produtos durante o incêndio, alegando que se tratam de roupas de origem legal e de grife, porém afirmando não ter nota fiscal da compra dos mesmos. A testemunha atesta que autuado é conhecido maconheiro e que vive fumando na barraca, sendo que costuma jogar bitucas para todos os lados, facilitando a disseminação de focos de incêndio. A testemunha nega conhecer qualquer motivação para que o referido tenha colocado fogo propositalmente, contrastando com os depoimentos dos depoentes que se seguem, mas afirma que compactuou com os demais agressores com socos e pontapés no autuado por se tratar de pessoa muito “folgada”. A testemunha notifica ainda esta autoridade policial de que a grande maioria dos pássaros do qual o autuado mantém seu sustento criminoso morreram carbonizados ou foram devorados pelo tal lagarto.
    A testemunha 2, Otaviano Severino Pena, também vendedor ambulante, afirma ter sofrido ferimentos leves causados pelo incêndio e ter perdido parte de suas mercadorias, produtos eletrônicos de segunda mão, como TVs, computadores etc. Segundo a testemunha, o autuado tinha diferenças com a direção da feira e poderia ter iniciado o fogo como ato de vingança contra a diretoria da referida feira. O mesmo afirma também que o animal acusado pelo suspeito como incendiário realmente tem hábitos estranhos e é maior que os lagartos que conheceu na barraca do próprio autuado, mas que o mesmo se trata de enganador da fé do povo e charlatão, praticando ilusionismo para fazer os populares acreditarem que o supracitado lagarto consegue verter fogo pela boca e que o espécime é um dragão chinês abandonado por suposto mago chinês que agora também aparece em sonhos.
    A testemunha 3, também vendedora ambulante Maria do Socorro Amaral, amásia do autuado, que também o agredia quando da chegada do cb Paiva, relata que o autuado é um mentiroso compulsivo, mas que o animal em questão realmente é um dragão, que inclusive o mesmo matou um cão carbonizado na casa em que ambos vivem em pecado após um espirro, que ela não agredia o autuado por causa do incêndio, mas sim por haver descoberto que o mesmo vive em pecado também com outra vendedora ambulante da mesma feira, a mesma que efetuou queixa de lesão corporal contra Maria do Socorro Amaral, esta que ficará detida nesta delegacia para averiguações posteriores.
    Os demais agressores conseguiram empreender fuga ao avistar a viatura onde estava o cb Paiva e sua guarnição. A Polícia Ambiental foi acionada para apreender o espécime acusado de ter iniciado o incêndio, mas o mesmo continua foragido, sendo que alguns populares afirmaram terem avistado o lagarto voando sobre os telhados das casas de um logradouro próximo do local dos fatos. Uma dona de casa chegou a vir até este distrito relatar a fantasiosa história, que não será incluída neste BO por tratar-se obviamente de fruto de histeria coletiva gerada pela disseminação de tal boato, já que é sabido que lagartos não voam. Sabendo-se tratar de fato inverídico, a guarnição ambiental continua empreendendo busca por terra, sem necessidade de que seja acionada qualquer unidade aérea.
    O capt Carlos Alberto, da 5ª Cia do Corpo de Bombeiros, relatou que o incêndio que iniciou toda a confusão tratou-se de incidente pequeno, sem maiores proporções, como uma série de outros ainda em andamento nesta região. Que não se trata de fenômeno normal tamanho número de focos de incêndio ao mesmo tempo, porém que isso não é motivo para atribuí-los a ação misteriosa de um dragão nos arredores, já que estamos em período quente e seco do ano, sazonalmente com maior incidência de incêndios. O perito do Instituto de Criminalística Domingos de Castro e sua equipe se dirigiram ao local do incêndio para verificar a causa do foco inicial. Requisitou-se exame de corpo de delito no autuado e nas testemunhas. O autuado será encaminhado para a Cadeia Pública. Foram feitas as devidas comunicações. Sem mais.   




Artur Rodrigues, autor do livro de contos O ato de riscar um palito de fósforo (Patuá), nasceu em São Paulo, em 1980. Cresceu na zona leste. Morou também no Recife e em Londres. Foi officeboy, operário, atendente de telemarketing e garçom. Desde 2003, atua como repórter cobrindo assuntos da rotina da cidade. Atualmente, trabalha no jornal Folha de S.Paulo.





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