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Como fazer um poema neobarroco

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Coloque num saco palavras orgânicas, principalmente do organismo feminino
Útero, ovário, vagina, hímem, seios, gândulas
Acrescente nomes de animais, principalmente os estranhos
Ornitorrinco, lontra, camaleão, dragão
Adicione imagens católicas
Santos, asas, anjos, inferno, diabo
Misture ações oníricas
Flutuar, girar, transparecer, alongar, voar
Crie uma persona de mulher jovem, bruxa, punk, super sexuada
Sacuda tudo e jogue na tela do computador.
Faça amizade com as pessoas certas.
Deixe a fome por afirmação de identidade agir.

Seu poema neobarroco está pronto.

7 poemas de 10 mg

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Fotografia de Lucien Clergue
















Catamarã

Bem no meio
da baía
o limite
entre o que vem
e o que fica para trás.

No fundo das águas
um marco de pedra
fixa
a travessia
entre o que nunca veio
e o que não virá mais.


Cerol

O trilho,
o melhor lugar
para o vidro moído.

Mas é fora da linha
que voa a vida.


Mar aberto

Dois abortos abaixo
da felicidade
o corpo de Paloma
apenas porto de passagem.


Deslimite

Requerer
o que se quer
se quiser
ser
menos que rei
mais que rês
querer
sequer
mais do que se pode
só o que puder
ser
e só se é
tudo aquilo
que se quer.


O que escapa ao escuro

Caem fora da blusa
dois pomos na linha turva
entre estrelas em brasa
e breu,
presas entre pressa e pressão
as aves latejam auroras
e voam paradas
para um céu inalcançável
por palavras. 


Despejo

Nosso lar
não é mais nosso
logo um shopping
ignóbil
colosso

nossos móveis
nossos ossos
no caminhão de entulho

a copa do mundo é nossa
por que não sentimos orgulho?



A cicatriz de Ulisses

A velha ama
Euricleia
vislumbrou,
ao lavar os pés
do forasteiro,
velha cicatriz:
não era no joelho,
mas um pouco mais acima.
Sabia agora
por que tamanha demora.



fragmentação/ nuno rau

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(Obra de Antony Gormley)



/por Nuno Rau/



tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas, guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiro, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente, rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam com as amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras. Tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem. Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de um copo
sem fundo - é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigreeentoam salmos
punksde três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
grafites com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler.

3 contos de Priscila Lira

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Ilustração: Olaf Hajek
 
 
As Bruxas
 
            Junta o carvão do chão. Enche a boneca de pintinhas, agora ela ficou doente, é catapora, coitadinha, precisa descansar, está com febre.
            Arlete anda maravilhada pelo centro, de mãos dadas com a vovó, que busca tecidos para a saia que usará no terreiro, dos retalhos sairão as saias de domingo da Arlete e também as bruxinhas de olhos esbugalhados, bem diferentes dessas bonecas que a hipnotizam nas vitrines do centro.
            É preciso que se conheça Arlete para que a entendamos, é preciso que não se pense que a maldade exclui a inocência, é preciso saber que a maldade vem de fora e que algumas crianças a transformam em milagres. Arlete tinha mãe e pai, que rasgaram as alianças e, junto com os anéis, foram-se os filhos e ficaram os dedos. Dedos nos quais foram postos novos laços e novas crias. A primeira prole foi enfiada no saco do esquecimento.
            Vem Arlete, conhecer seus novos irmãozinhos. Pede a benção da mãe, não, ela não pode te levar junto, não vê que vocês vão atrapalhar o novo casamento? Tu tem que me ajudar a cuidar dos teus irmãos, não fica triste, amanhã a vovó faz umas bruxinhas bem bonitas para vocês, com aquele pano florido que nós compramos ontem, o vestido vai ser tão bonito quanto o da boneca da tua nova irmãzinha.
            Arlete vai cuidar dos irmãos e vovó vai aos algodoeiros, catar as tripas das novas bonecas. Molda com cuidados os vestidos, costura seus contornos, enfia as tripas, costura as entradas, junta fios de lã e transforma em fios de cabelo, pinta com cuidado os olhos de azul, olhos condenados à vigília constante, pois que a tecnologia do cerrar e abrir ainda é coisa das indústrias e da natureza, veste-as com o tecido florido, filho da sua saia. Olha, minha neta, como ficou linda sua bruxinha! Agora vá brincar com suas irmãs e deixe que eu cuide dos bebês.
            Junta o carvão do chão. Enche a boneca de pintinhas, agora ela ficou doente, é catapora, coitadinha, precisa descansar, está com febre. Ela não descansa, porque não fecha os olhos, deve ser a febre, desse jeito vai acabar morrendo. Sobe na árvore, joga a boneca do alto. Ai, meu Deus! Ela se foi! Precisamos preparar o velório. Anda pelo sítio em busca das flores mais bonitas, enterra a bruxinha embaixo da árvore, cobre de flores seu túmulo de vida tão curta. Agora vamos brincar de esconde-esconde.
            Chove durante os dias seguintes, as gotas regam as tripas da finada bruxinha, seu tecido apodrece, as costuras se desfazem, as sementes de algodão brotam na terra, para continuar o ciclo de rancor da vida de Arlete, que não entende quanta vida a mais tem suas bonecas que morrem e renascem, do que as bonecas de fios de nylon e olhos que piscam.



Fêmur

Eu não sou criança de novo, o peso desses anos todos parece ter me dado de presente algumas toneladas, o colo de ninguém me sustenta. Sou um elefante de fraldas. Um elefante com osteoporose que precisa que lhe deem banho todo dia e lhe troquem a fralda.
Não uma criança, muito menos a criança que fui há 88 anos. Durante esse tempo, meus pedaços se renovaram muitas vezes, ao ponto d’eu não ser mais nada daquilo que nasceu comigo. Agora sou um elefante de fraldas que ainda não aprendeu a andar e que lembra da sua outra vida com estranheza.
Como podem essa pele acinzentada e cheia de rachaduras e esses fiapos de cabelo serem eu? Eu, que incontáveis vezes durante a vida me olhei no espelho, concluo que minha memória mudou de dono e que eu, tudo que sou eu, passado, presente... não tenho imagem.
É muito simples tornar-se outro, morremos e nascemos tantas vezes na vida, que a metamorfose torna-se algo banal antes mesmo de tomarmos consciência da nossa presença no mundo.  Este caso, por exemplo, imagine: uma freira andando pelos corredores do convento, escolhe uma porta para entrar, anda em direção a ela e vê alguém entrando antes. Apressa-se para aproveitar a mesma abertura da porta, mas o outro que estava a segurar a maçaneta não a vê. Bate a porta.
Queda
            Fêmur.
E num piscar de olhos sou um elefante que acabou de nascer no fim da vida. Que precisa aprender a andar e tomar banho sozinho.
Imagine quantas vezes minha memória mudou de imagem durante esses anos.
O meu passado me estranha, mas estranha mais ainda essa vontade de não morrer. De continuar uma elefanta perambulando pelos corredores do convento, os fiapos brancos de cabelo escondidos, assim como eram escondidos antes de serem fiapos e antes de serem brancos.
Acho que a vontade de viver vem da vontade de não morrer nas paredes entediadas desse hospital. Morrer aqui, como um elefante indigno que não se separou do bando para dar adeus a memória, isso eu não quero.
Agora, assim como uma criança, preciso aprender a viver como a elefanta que sou. Em verdade, o espelho não importa, importa é meu peso sobre o andador, o mingau sem açúcar que eu tenho que tomar, as agulhas que me sustentam nesse mundo, minha primeira nudez entre homens nesses oitenta e oito anos, pois que agora nasci elefante e não sei tomar banho sozinha (que Deus me perdoe por isso).
Por quê preciso suportar? Porque não posso perder o reino dos céus depois de oitenta e oito anos de sacrifício. Porque tenho medo de que a sete palmos do chão exista apenas sete palmos do chão, porque viver é sofrimento, porque é isso que me resta, porque em meio ao cansaço desses dias gris e aéreos eu ainda tenho a esperança de acordar, rezar o pai nosso, tomar banho, vestir o hábito e ir até a cozinha, comer um pão com ovo frito e café.



O barulho do mormaço

            Tu não sabe o que é conviver com o Diabo a vida inteira, conviver com o Diabo a vida inteira é duvidar de Deus a cada segundo.  O Diabo, quando te odeia, te prende e algema tudo ao teu redor: tua mãe, que ama o Diabo, e teus irmãos. É assim que ele consegue te fazer ficar. Lama, lama e lama tinha gosto a minha vida. Nasci na lama, feito um porco. Burra que era a minha mãe (de ter uma ninhada, de ter olhos de bicho que não enxerga xyz, que não sabe o que é o Diabo, que não sabe nem o que é a loucura de viver na lama com uma ninhada e o Diabo), burra que era eu, menos que a minha mãe, burros e esfomeados que eram meus irmãos, burro que era o Diabo, burro e cruel, burro e tarado, burro e nojento. Porca que eu sou, porque convivi na lama com o Diabo a vida inteira.
            Quando era criança e, na catequese, me ensinaram o que era o Diabo, logo vi que ele estava na minha casa, escondendo comida, me comendo, quebrando garrafa, quebrando a burra da minha mãe, esbugalhando de medo os olhos esfomeados dos meus irmãos. Quando o Diabo vive contigo, ele nunca mais sai de ti.
            Eu corria para a esquina e tentava fugir do Diabo. Subia na mangueira e gritava o nome do meu pai, mas só ouvia o barulho do sol quebrando as folhas. Porque meu pai morava com Deus, ele nunca me responderia, a gente trocou ele pelo Diabo. Eu gritava o nome do meu pai, gritava que ele tinha me abandonado e me deixado na lama, no inferno, ele não respondia, estava feliz, no céu, com Deus, sem fome, dormindo nas nuvens e decepcionado com a gente, que dormia com o Diabo.
            Meu pai não respondia, mas meu estômago Gritava, meus irmãos choravam na minha lembrança e eu, pequena e burra, presa na lama, lesma inútil, voltava para o inferno. Se tu pensa que o Diabo sempre maltrata, tu é mais burro que eu. O Diabo engana, te abraça, te dá pão e café com leite, corre contigo no quintal, depois te come, te bate, te joga no chão e quebra garrafa. O Diabo toma banho, passa perfume, vai na igreja, reza o pai nosso, aperta a mão dos irmãos, conta histórias inventadas da vida, diz que ama, diz que cuida, depois te fode, te todos os lados, de todos os jeitos, de todas as formas. Fode, fode, fode. É nojento o Diabo, feito de barro por dentro e por fora, com cheiro de fossa e pele de pedra. Eu via o desgraçado passar perfume, mas aquilo, no meu nariz, era essência de esgoto, cheiro de raiva guardada, que rasgava meu olfato feito gilete, chegava na goela e dava ânsia. Barro e enxofre formavam aquele monstro com a Bíblia debaixo do braço apertando a mão da vizinha burra, que me olhava de cara feia e dizia pros filhos não andarem comigo, que eu era indecente.
            Indecente eu era na minha rua, na minha escola, a indecente, burra, estranha, muda, feia, suja preta fedida, mas não era surda. O Diabo me chafurdou na lama, eu era toda lama, assim ele fez da minha vida um inferno, até longe do inferno, porque suja de lama que não tinha água que limpasse, o Diabo fez de mim o Diabo.  Ninguém tinha medo de mim Diabo, tinha ódio, nojo, eu não era bem-vinda no céu da vida dos outros, nem por meu pai, Deus o tenha.
            Por isso fugia e me escondia, até a fome bater, no escuro empoeirado da sala de livros da escola, porque lá ninguém sentia meu cheiro, nem via minha cara diaba, lá eu não ouvia me gritarem de muda. Foi lá que tive a ideia de matar o Diabo. Mal eu sabia que uma vez na tua vida, nunca mais ele sai.
            Mas o Diabo tinha a herança do céu, do tempo que Deus o criou do barro. O Diabo gostava de doce, de suspiro. Todo dia comprava suspiro na padaria. E ficava feliz, sorridente, comendo suspiro. Dava café com leite e pão pra mim e meus irmãos, corria com a gente no quintal, mas aquilo era a porta do inferno, a gente sabia e aproveitava, não havia como correr da porta do inferno, só nos restava aproveitar o prelúdio da desgraça. A gente não tinha raiva do anúncio que o suspiro trazia da padaria nas mãos do Diabo, porque sabíamos que o suspiro era o que restava do paraíso naquele enxofre de homem.
            Uma vez o Diabo me obrigou a fazer uma receita de suspiros, porque a padaria não abriu. Eu coloquei purgante no suspiro para me vingar, e depois o Diabo se vingou de mim, em mim, na minha mãe e nos meus irmãos. Nesse dia eu corri do inferno e no dia seguinte, na sala de livros, decidi matar o Diabo. Não seria uma morte cruel, como as que eu fantasiava para ele todos os dias, porque eu não queria ver ele morrer, eu queria o Diabo morto!
            Eu, a indecente, suja, nojenta, rasgada, roxa, muda, lesma inútil, não queria voltar para casa depois do terror da noite inferno passada. Não queria ver a cara de paraíso dos outros. Queria morrer, mas se morresse, iria para o inferno eterno e nunca mais veria meu pai. Por isso resolvi matar o Diabo, assim teria tempo de pagar meus pecados e finalmente dormir nas nuvens.
            Escureceu, ninguém deu por minha falta, voltei para casa e o Diabo dormia virado de costas para a burra da minha mãe. Matando o Diabo, eu fugia, e ela podia ser burra e feliz com a ninhada de infelizes longe daquele inferno, enquanto eu pagaria os pecados e depois encontraria meu pai. Uma faca de cozinha no peito, ele arregalou os olhos e me agarrou o braço. Foi virando água e me largando len... ta... men ...t... ... ... e. Roubei o saco de pão na cozinha (mais um pecado para pagar nessa vida desgraçada), corri e subi na mangueira da esquina, a esperar que o inferno final se armasse lá em casa com gritos e polícia. Silêncio.
            O que eu não sabia é que a vida é um formigueiro de infernos e que o Diabo me perseguiria, agarrado no meu braço com os olhos assustados, para sempre. Fugi, mas a fome, a rua, a chuva, o sol, o frio, me transformaram no Diabo e eu não conseguia terminar de pagar meus pecados. Jamais chegaria no céu, meu pai se esqueceria de mim ou rezaria para que a Diaba que ele um dia chamou de filha, nunca mais aparecesse na sua frente. O mundo me fodia, fodia, fodia, de todos os jeitos, todos os lados, todas as formas, cuspia em mim, na porca, nojenta, fedida, burra, Diaba. Numa noite, sem dormir, com medo do Monstro que matei, percebi que inferno maior que esse não havia, que o inferno estava na minha cabeça e de lá não sairia sozinho.
            Por isso deixei que um homem sorridente me fodesse pela última vez, por um saco de suspiros. O que eu farei depois? O que devia ter feito desde o ínicio, mas burra que sou, não percebia: Abrir a minha cabeça com a faca ainda suja de sangue do Diabo, tirar aquele ninho de enxofre lá de dentro e encher o vazio com suspiros. Os suspiros, resto de céu que sempre esteve na minha vida, me levarão até meu pai, com quem dormirei nas nuvens, a esperar o dia em que minha burra mãe e a ninhada façam o mesmo.
            O formigueiro continuará aqui embaixo, misturado aos sangues da faca.

                                         
 
Priscila Lira (Pitanga/AM,1991) é uma poeta e contista amazonense radicada em Curitiba, aonde faz mestrado em literatura (UFPR). Tem um e-book publicado, Manual de Feitiçaria, disponível no Scrib e no Camaleo e um livro de contos no prelo: Os quinze dias de Zózima no Jardim da Morte.
 

A poesia agora é o que me resta - Diego Callazans

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Ilustração: Silentium by ra-gro




não ser
nem luz
nem treva
tão só
penumbra.

estar
votado
pro vago.

qual borra
de ocaso,
não ter
o traço
que cinda.

restar
no entre
das falas.



*
não pra planilhas,
mas para livros,
fomos cerzidos.

só os delírios
nos dão abrigo.


a mente é rala.
não raro o vago
ela adivinha.

e passa as noites 
nessa oficina.

lobotomias
dragam sua vala.
resiste o asilo. 

no cerne habita
ainda o mito.
  


*
na mão não canta o mistério.
com o dito jamais se deita.

não há com o que se o ferre.
a carne o sabe, não o porta.

deixemos que passe alheio
o que mais dentro ressoa.

não vem da areia esse gesto
que diz ao vento: “disperse”.

pra deuses não nos fizeram.
a águia, se ousarmos, desce.


 
*
poema que pari parou–me.
só dei de si quando houve
tal blitzkriegde metáforas
por mi'as vias fleumáticas.

no mais das vezes não vale
a pena dar pena ao acre
ofício de artifício uterino
– o feto nos sorve o cassino!

só marcha de flatos! lassos
tocando uma! tão raros
os de se pôr à estante
pra repousar sob Dante!


  
*
poema não pode ser diplomático.
ele é de bombas, não de tratados.
de brigas de foice, não de xotes.

poetas não devem ser polidos.
deveriam se cuspir ao se ver.
deveriam perigar sair no tapa.

poeta é um troço tão espinhoso
que não deveria dar abraços.


Diego Callazans 


Poemas de "A Poesia agora é o que me resta" (Patuá,2013)



Histórias prováveis de Marco Aurélio Cremasco

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Ilustração: Candido Portinari
 

Deixou uma pasta amarela como quem se livra de obrigações, transferindo-as para mim. Dias depois, morreu. Ao abri-la, notei um caderno velho, recheado de letras escritas por alguém sem paciência. Havia centenas de folhas: poemas, historietas, partituras, exercícios de extração da raiz quadrada do pi até a nonagésima oitava casa decimal. Desenhos e desenhos de nuvens cheias de “v” entortados, imitando passarinhos, e no rodapé da última folha, escrito em gótico: Fim.

 1.
João Flores nasceu catando cavacos. Construiu sua casa no canto mais comum do mundo. Na cozinha havia pão e sopa de letrinhas. Tinha compromisso com a tristeza, mas nutria-se de felicidade. Pensava e dispensava na mesma facilidade. Andava de olhar fechado, porém aberto às besteiras. Nada é tão importante quanto um sabonete: vive escrevendo cheiro por onde escorrega — era a sua máxima ou mínima (se é que existe importância no arco-íris aprisionado em uma bolha de sabão). Trazia a vida em um saco de coisas. De vez em quando abria o bendito embrulho e passava horas vendo o vento brincar por entre os dedos.

2.
Era doida. Maluca comum. Comia o vento. Bebia a chuva que do céu não caía. Nem sei explicar. Chuva, vento que só ela conhecia e disso se nutria. Era doida e amava um doido. O doido era doido. À luz do dia saía de guarda-chuva aberto e com um minúsculo buraco pelo qual entrava gota aqui gota acolá da chuva da doida apenas para lhe saciar a sede, se é que sede havia, pois chuva que é chuva ninguém sabia e nem a via. Andava assim por amor à sua doida. Quem sabe por isso as pessoas acreditavam que os doidos eram doidos e mais doidos ficaram quando os doidos se casaram e de doidice pioraram quando mais doidos nasceram. Os filhos tornaram-se importantes: um descobriu o caminho para Luê. A outra decodificou o DNA do cefalôndrio. A terceira nada fez a não ser colher flores de vento regadas pela chuva dos pais.

89.
Ficava zanzando por aí de modo a ter como residência esporádica pequena poça que o abrigava. Tudo o que lhe ocorrera corroera lembranças. Dessa ou de outra maneira lhe coubera, pouco de tudo em passado quase recente importava. Isso importava e por isso tangia precioso zunido. E como! Suor e ovos alados. Abandonou os óculos de centenas de lentes e ficou maravilhado com a situação do mundo aos pedaços. Completou-se com as virtudes dos imorais. Tudo resolvido, pensou. Despiu-se e sobrevoou a cama daquela diva com o violino pronto a zunir. Foi abatido entre duas mãos suaves e com leve odor cítrico. Morreu, enfim, o pernilongo, como sempre quis: entre aplausos.

157.
A vida? Por isso toco tuba e, raramente, acordeão.

184.
Em 2053 não estarei vivo. Não terei o privilégio de ver as coisas que nem imagino existir. Não terei o prazer de sensações que sequer sonho experimentar. A maioria das pessoas que amo ou me amam ou nutrem algum afeto estarão distantes, tão distantes que, às vezes, eu até poderia entristecer. Mas em 2053 eu também estarei longe. Quem sabe? Pouco mais perto de uns poucos, que aos poucos somado faz o suficiente, se não o bastante. Saudade antecipada daquele que nem virei a vir nascer ou do outro que, em vida, nem cheguei a conhecer. Em 2053.


Marco Aurélio Cremasco


Estes textos fazem parte do livro de contos “Histórias Prováveis” (Editora Record)

3 POEMAS DE MADJER DE SOUZA PONTES

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[fortuna]


eu me dei um destino
mais vasto que uma vida
mais denso que o silêncio
das árvores noturnas

eu me dei um destino
que não concerne ao meu
deserto árduo e isolado
mas dele nascedouro

eu me dei um destino
que de sangue e de ferro
que de angústia e de vida
vai pulsando nas coisas

eu me dei um destino
de atroz contentamento
de mágoas luminosas
e cruéis lamentações





[peroração]


o mundo
é o golpe que experimento:
há diárias incisões que o suor padece
pois que a obravida:
                esta procura incessante de um algo dizer
                este ensaio falho de exatamente
                esta dor semota nalgumas poucas folhas soltas
                esta invenção de poder
                               está em cada raiz arraigada ao ser:

é um golpe que ultrapassa o muscular
                que arde fundo no sofrimento
                               de uns tantos versos
                               de uma tanta vida
                               que não se deixa dizer





[queda]


o beija-flor equivocou-se?
ou foi o vidro que dividiu
a tarde? – foi mais que uma luta
que da sala cinza se viu:

que o beija-flor sendo leve
vezes escapa ao olhar –
mas aquela tarde foi lenta:
a vida despencando no ar –

não houve socorro que prouvesse:
– o vidro dividia a tarde –
como sentir-se preso em si
e não bastasse nenhum alarme –

o beija-flor descansou triste
flutuando num perverso abismo
como o olhar sem saber quando

concluirá o cruel aforismo




Ilustrações: Nastya Ptichek



*    *    *



Madjer de Souza Pontes nasceu em Pedra Branca, é editor da Revista Pechisbeque e terá seu primeiro livro publicado pela Editora Subsânsia.



O Parnasianismo Místico de Cecília Meireles

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Cecília Meireles (1901-1964), uma das mais místicas poetas brasileiras, evidentemente Pós-Simbolista, foi autora de um livro Parnasiano - o primeiro de sua carreira literária – o Espectros -lançado em 1919, e que somente em 2013 atingiu a sua terceira edição, por intermédio da Editora Global. Os motivos pelos quais há poucas edições dessa obra é conhecido: a própria Cecília o rejeitou (assim como o fez com os escritos antes de Viagem, publicado em 1939), tratando de fazer grandes esforços para que o livro se perdesse em esquecimento, sendo Espectros somente re-editado e comentado postumamente. Assim como em Nunca Mais (1923), alguns poemas da obra têm força para figurar em uma reunião de poemas da autora que focasse a sua feição lírica e mística, inclusive por demonstrar a evolução estética da poeta.

Espectros, na edição de 1919
(Créditos: Sacrário das Plangências)
Mas, afinal, o livro - que contém 17 sonetos - revela-nos qual Cecília? Ao contrário do que Darcy Damasceno argumentou na crítica intitulada "Cecília: Um Cinquentenário", publicada em 1969, no "Jornal do Comércio", Espectros não impede o surgimento da real face criativa e espiritual de Meireles por consequência de um uso correto da forma poética, evidenciada pela irrepreensível métrica ou acentos ao bom estilo parnasiano; há, de forma manifesta, alguns sonetos que já antecedem a sua abertura ao mistério e à introspecção, mesmo que, formalmente, a obra estivesse basicamente atrelada à descrição positivista a que estavam presos, em teoria, o estilo de Raimundo Correia e cia.

Vejamos, por meio do soneto introdutório, como o pensamento de que Espectros é tão somente um livro parnasiano pode ser questionado:



ESPECTROS

Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo.

Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda,
Erguendo o olhar, exausto a tanto estudo
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,

Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece, ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sóis),

Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva,
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.


Apesar da permanência de uma estrutura parnasiana - inclusive com a chave-de-ouro com uma impressionante densidade de imagens -, a tonalidade dos versos difere do padrão parnasiano. A ingenuidade do observador, muito comum a Olavo Bilac, por exemplo, desaparece. A tempestuosa noite ganha uma perspectiva de mistério e de mística – bem além das simples natura imersa em tempestade (um tanto diferente, é claro, daquela imagética pulsante de “Cholera Naturae”, de Duque Costa)-, aos olhares de certa forma impassíveis do sujeito-lírico, que parece observar, somente, a grande alegoria rediviva de "deuses, demônios, monstros, reis e heróis". Não me parece uma perspectiva estritamente Parnasiana, mas tampouco de uma amplitude de análise e perscrutação do além típica dos Simbolistas (ou típica da própria Cecília, em sua fase madura); talvez um início dessa sua perspectiva mística de poesia.

Outro soneto a que podemos analisar é essa "Evocação":

EVOCAÇÃO

(Lendo Beaumarchais)

Noite fresca e serena. Aberta a gelosia
Do florido balcão, numa penumbra leve,
Dorme a câmara avoenga. O vulto a um canto amplia
O velho cravo mudo. O luar põe tons de neve

No embutido do assoalho, em que a sombra descreve,
Larga e aconchegadora, a poltrona macia,
Onde sonha, esquecida, uma guitarra breve
O seu sonho eternal de amor e melodia.

Há um perfume no ambiente, - um perfume de outrora,
Muito vago, a lembrar todo um passado morto...
... E é quando no silêncio um largo acorde chora,

E sente-se fremir, numa estranha dolência,
Sob o esplêndido céu, calmo, profundo, absorto,
A alma de Querubim, na ansiosa adolescência...


Esse soneto, apesar de certo entrave rítmico, dá-nos imagens fabulosas e, curiosamente, usa, no trecho "o luar põe tons de neve no embutido do assoalho", uma das referências mais criticadas pelos Parnasianos e críticos do Simbolismo: a insistência do uso do vocábulo "neve", já que "vivemos em um país tropical" (sabe-se, porém, que a neve não é incomum nas região sul do Brasil, onde o Simbolismo prosperou). É deveras curioso, portanto, o aparecimento desse vocábulo, que se une, posteriormente, à percepção tátil ("poltrona macia") e sonora ("uma guitarra breve") e olfativa ("há um perfume no ambiente"), formando uma sinestesia que, quanto mais analisada, mais simbolista, no que se refere ao desenvolvimento imagético, transforma o poema.

Ao momento do lançamento de Espectros, no ano de 1919,o Simbolismo ainda produzia grandes obras; o gaúcho, com Eduardo Guimaraens, Alceu Wamosy, entre outros, estava em seu auge; o nordestino ainda dava frutos importantes – Da Costa e Silva, por exemplo, lançou nesse ano o seu Verônica – e o espectro do Eu, de Augusto dos Anjos, só crescia pelo Brasil; e no próprio Rio de Janeiro a maior das poetas simbolistas, Gilka Machado, ganhava uma relevância esplêndida no meio literário. Então não é absurdo cogitar uma influência do movimento Nefelibata nessa inicial obra de Cecília - apesar do padrão de Espectros tender, sim, ao Parnasianismo clássico, como em "Judite" e "Antônio e Cleópatra". Eis o primeiro soneto dos dois citados:



JUDITE

De Holofernes o exército assedia
Betúlia. É noite. Dorme o acampamento.
Sob a tenda, que às vezes arrepia
Uma lufada rápida do vento,

Que uiva e geme em funérea litania,
Na sombra, a um canto, dorme temulento
O assírio general. Judite espia;
Entra na tenda... para, que um violento

Tremor lhe tolhe o passo. Arfante o seio,
Holofernes contempla... espreita... escuta...
E, vencendo de súbito o receio,

Vendo-o a dormir, - sem que a mais nada atenda,
Ágil, toma-lhe o alfange; resoluta,
Degola-o...                                        
                                      .... E deixa a tenda.


É uma obra que serve de completa oposição aos dois transcritos anteriormente, pois a postura do sujeito-lírico beira o blasé tamanha a sua frieza na descrição da cena da degolação. Nada mais Parnasiano ou “Anti-Romântico”, afinal. E, como contraposição a esse frígido "Judite", transcrevo "Sortilégio", poema que evidencia de forma pulsante as influências das leituras simbolistas em Meireles (e - por que não? - das leituras dos decadentistas franceses, cujas obras estavam tão difundidas que desaguaram até mesmo sobre a Tríade Parnasiana, em sua fase derradeira):

SORTILÉGIO

Profunda, a noite dorme. E no antro, que avermelha
A fogueira infernal, incendido o semblante,
Chispas no olhar oblíquo, ígneos tons na guedelha,
A velha bruxa horrenda, a persignar-se, diante

Do vasto fogaréu, resmungando-se, se ajoelha.
E, enquanto, goela aberta, o sapo à crepitante
Lenha segue um voejar de rútila centelha,
Crava o olhar a coruja, afiado e penetrante,

Num livro de sinais cabalísticos, mago,
Entre ervas secas, sobre a trípode. E a ondulante
Fumaça, que escurece o fundo antro plutônio,

Assume, a enovelar-se, o contorno amplo e vago
De uma égua de sabá, orgíaca e ofegante,
Em cujos flancos esporas o demônio...


O sabá foi um dos temas mais utilizados pelo Simbolismo. Alphonsus de Guimaraens o eternizou poeticamente em seu "Rimance de Dona Celeste" (construção popular de verso que também seria utilizada por Cecília Meireles). Essa superstição medieval segundo a qual, à meia-noite do sábado, havia um "concílio herege de bruxas presidido por Satã" vai muito além da retórica positivista de um "Vaso Chinês" (Alberto de Oliveira), ou de uma bela, mas ingênua "Via-Láctea" (Olavo Bilac). "Sortilégio" configura-se em um poema estruturalmente parnasiano - em cuidadosos alexandrinos clássicos -, mas tematicamente Simbolista, inclusive pela utilização da temática satanista.

Espectros foi, sobretudo, consequência de um momento histórico-literário: a literatura da Belle Époque trazia, como “poesia oficial”, o Parnasianismo, mas vários outros movimentos obtinham êxito com o público e, não raramente, com a crítica, como o Pós-Simbolismo (vide o caso de Hermes Fontes) e o Pós-Romantismo (caso de alguns poemas de Moacir de Almeida). Não é de se estranhar, portanto, que Cecília Meireles, aos 18 anos – ainda em fase de formação poética -, optasse pela escola mais aderida à época e, pouco a pouco, nela desenvolvesse as suas influências; tal fenômeno também aconteceu nos primeiros poemas de Augusto dos Anjos – alguns deles presentes nas “Outras Poesias” -, que evidenciam influências Pós-Românticas, Parnasianas e só um pequeno tanto da grandiosa face do poeta que acabou por escrever, em sua maturidade, o perpetual Eu.
Apesar de não se posicionar entre os melhores livros parnasianos influenciados pelo simbolismo, Espectros é de claro interesse para os leitores de Cecília Meireles porque evidencia a evolução do estro da autora de Viagem e também porque demonstra que, mesmo parnasiana, a poeta já compunha não raramente uma poesia mística, pois essa era uma das características primeiras de sua alma, não somente de um estilo literário ao qual ela aderisse ao acaso de sua mocidade.




FIO COBRA - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Giorgio de Chirico



TORTURAS

Monossilábicas frasesaproximam-se por
entre as nuvens nesses dias de faíscas
foscas fosforescentes
                                   entrementes

                           silêncio aquietado
nesta estrada simplificada de dias
decorridos inteiriços sem rasuras ou

estrelas que se apagam
afinam afunilam na madrugada

evito-as,  insone, gargarejo  quando
lembro maviosas torturas
nessas horas  que não se encaixam.



ENTREGA

ciente do invisível
espectadora do possível

sem trégua e lástima
o timo e o rumo ao léu

as sentenças são chaves azuis
espumadas à 1ª luz do dia
alvo e frio escorrido da noite
de ventosas e neblina

estrelas se entreolham
e novamente silenciam esses
acordos do solo que  se fazem
em blocos sem sedimentos
movimentos esparsos e caros
lentos ou perfurados
em suas conchas

 iniciou-se no milagre
avança-se a esmo e bagre

rezas são ofensas à meia voz
entrecortadas de suspiros
e música entre dois goles
quase impuros do néctar
dos sábios alfarrábios
alfabetos discretos
discrepantes e ondulantes
na nau dos tempos
contratempos em teus sonhos

avançamos cá e lá na surdina
da entrega esfrega esfrega
esfrega esfrega esfrega
entrega......


Ilustração: Giorgio de Chirico



FIO COBRA

Escuto, com parcimônia, o trincar
da tarde na chávena de chá
chuvisco e chuveiro de um
fresco almíscar de passos
escorridos  na laje

esmero-me em miúdos trocados
nódoas novenas de perdas promíscuas
passatempo bravio de detalhes
correntes e  serpentes do ser

sonsa de soníferos, mal acordo
vomito-me à míngua

minha vida me diverte
pois não lembro
minhas vias
razões e alegrias

 e na roca do tempo
refaço o quadro do vento
o fio cobra
cobre de fastio e fausto

um silêncio nadado
por léguas de insistência
verga na alma sisos e séquitos

um desmaio no horizonte
de dunas amarelas
 - arejado de luz -
enquanto corpúsculos
de água e sombra
estreitam-se no fim do túnel

 corrida do céu
a asa ferida
consciência
conhecimento
compartimento
acomodamento
filosofia de viés
dor e encanto
entoa o cântico
os violinos dançam
ao som dos festejos
       - aleluia -
a qualquer momento
a evidência.


JANDIRA ZANCHI


Poemas extraídos de A Janela dos Ventos (Emooby,2012)




5 poemas de Luci Collin

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 Ilustração: Roses and red by Jade Adric


 

DE SOMBREAÇÃO & BORDADURA


quando eu vivia na casa da rua anis
os cômodos e os exemplos eram imensos
calor abatumado na água-furtada
os insetos tergiversavam
e as rãs e os sorrisos eram de cristal holoédrico

uma mão regia os contratempos
os cometas eram inexplicáveis
as uvas de cera eram jacobinas
o amuo era sustado com água vegetomineral

elogio à lerdeza e à pantofagia
baralhando as notícias do jornal
um quelônio às vezes emergia da horta
para surpresa dos anões estáticos
para desespero da tia-avó manquitola
para a emoção do mamoneiro 

quando viviam todos na casa e ainda eu
os genuflexórios levavam a alturas máximas
e eram temíveis as quedas e as vertigens súbitas
e eram temíveis as asas enferrujadas
e eram temíveis os olhos búricos

os sapatos haviam conhecido todas as ruas
as sacolas haviam carregado curiosos pesos
os compassos haviam desenhado todos os círculos
os ombros haviam acumulado elegias

eu dançava para que as  acácias brotassem
eu dançava para que o doce desse ponto
eu dançava para que os vértices coincidissem
eu dançava pela alma dos afogados

me impressionavam as hagiografias
me impressionavam as vidas das criadas
a prataria escurecendo me impressionava
as joias na caixa me impressionavam muito
os dentes podres

a tabuada era um tratado de versificação
os espelhos tinham valsas embutidas
o tule sinonimizava voto e desejo
os desvãos do corpo eram grandezas incertas

e grudada nos rostos e colada às mãos e à pele
e às vozes mais delicadas mais desaplaudidas
ia      insistia     afincava
a aula magna do tempo



TENTAME           

 e entre nós e as palavras, o nosso querer falar
                                                                                                                                          M. Cesariny

não havia palavra que coubesse
na carícia que os dedos fazem nas cordas
palavra que frutificasse ao falar
do deserto

um instrumento desafinado
que arranha a plenitude do lago
que quase inexiste
traz uma dor desconcebível e úmida
de dia frio                 de voz rachada     
de sobreavisos

não havia palavra que se aproximasse
da carícia feita nas cordas deste instrumento inabitado
e a voz desconjuntada se esforçava para trazer
a manhã de volta

eu permeável pudesse nesta giga saber
que uma aridez ternária jamais não dói
não esboça certeza nem parelha
é arrítmica esta inquietação de perfumes abandonados

voz subsistida no som das carícias
nas horas eriçadas                na suspensão


e eu aqui querendo que a palavra que fala
não seja só
o próprio deserto



NAQUELE MAIO


as certezas chegavam oficialmente pelo correio
você guardara as máscaras numa maleta
e a maleta num baú antigo
e o baú fora enterrado a metros e metros
ou jogado no fundo do fundo do oceano índico
junto com as chaves
com os segredos do cofre
com o zoológico de cristal
              
               Isto não se sabe

E eu seguira regando os gerânios
as prímulas e os telegramas vindos de longe
afofando a forragem no cocho
desenterrando ossuários
ocupada não fora ao baile
cuidara dos detalhes da brotação
cerzira albores e antefaces

                   Isto se sabe



UMA TARDE QUE CAI



Quando o vemos está sentado no banco da praça
Ela está em casa presa à trama silenciosa

Na praça pássaros e flores são sinceros
Na janela pássaros são fantasmagóricos

Com o lenço do bolso ele seca o suor da testa
Ela enxuga os olhos com a manga

Ele rosna mas só por dentro
Ela supura mas nunca aos domingos

Ele lastima porque o pão é azul
Ela suspira e a tarde muda se avelhanta

Ele pergunta se as janelas são sinceras
Ela pensa em se atirar nalguma água

São fantasmagóricos os azuis que saem dos olhos
A gangrena e a borra são absolutos

Quando o vemos está em frente à TV imaterial
Ela está de costas de bruços de borco

Ele está palitando os dentes à espera
Ela vazia

Ele está entardecente e flama
Ela boia sobre a água azulíssima

Ele tosse cospe resmunga lanceia vage
Ela fez as unhas e o bolo simples

A previsão do tempo anuncia chuva
Ela toca a pedra friíssima

Ele se ofende
Ela se ofélia 



READILHO


isto que é uma coisa obsoleta
o conteúdo não salvo
a alvura do tempo presente

isto diacrônico e de origem obscura
envelhecido aos doze anos
aos treze sangrando
a voz mais oca nas conversações de inocência
uma fruta incluindo meus braços
incluindo as falhas que manifesto

isto que é alagadiço e eufórico
nesta nova temporada
as palavras repousam sobre os cílios
quem vem são camaleões e votos fuscos
estes homens grandes têm passos que valem
ouros

isto é a cidade da tela que é apenas luzes e umidades
é combinação de suspiros amarfanhados
numa grande angular o tabuleiro vira a pista molhada
acusações e controvérsias não cabem
num copo

os que querem por primeiro
são os favoritos da tia rose
mas suas músicas desapareceram das jukeboxes
e os dias líquidos e enfileirados não param de rir
os remendos lutam com suas vozes de banheiro

como é possível conspirar contra o concreto
as pontes têm esta precisão encomendada
as emancipadas linhas e o subir escadarias
este chacoalhar do metrô e esta guerra
são o último gole
já em si




LUCI COLLIN, poeta e ficcionista curitibana, tem mais de dez livros publicados entre os quais Vozes num divertimento (contos, 2008), Com que se pode jogar (romance, 2011), Trato de silêncios (poesia, 2012) e Querer falar (poesia, 2014). Participou de antologias nacionais como Geração 90 – os transgressores(2002) e 25 Mulheres queestão fazendo a literatura brasileira(2004), e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai, Argentina, Peru e México). Traduziu G. Snyder, E. E. Cummings e Gertrude Stein, entre outros. Tem pós-doutorado em Literatura Irlandesa pela USP e leciona Literaturas de Língua Inglesa na UFPR.


4 poemas de Gisele Borges

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Metamorfose de Narciso, Salvador Dali


 
Sonhos em Tempos de Fukushima

Ares que entorpecem,
desfalecem

Ocaso insalubre

Ante um sol carmim sangrento,
Tudo findado!

Meta cumprida
Pulso aniquilado.



Frenética CWB

Babilônicos sedentos,
Comedida alforria
Terapias diversas,
Impostora alegria

Vidas cinzentas
empoladas magentas;
Vísceras devoradas
esquecidas na alvorada

Frenesi e morte
edificam a epopeia;
A noite é o Habeas Corpus
da medusa europeia.



A instrução pelo beijo
(Para revirar João Cabral)

Serpentear a língua
Tecer a teia
Aguar o gosto
Desejar o oposto

romper barreiras, 
Faceiras maneiras!

A poesia do encontro
A humanidade enfim revelada,
Diante da catarse tão esperada!
  


Ode ao poeta

Sinto, poeta
a rima não toca mais

Tem asa quebrada
esta canção,
feita de foligem 
e areia pânica

Palavra sem chama
a sorver do meu prana

Tua pretensa delicadeza
é cega ante a minha flama

Encenada de escudo e lança,
rímel e carícias tântricas

Não quero mais teu compasso
A me incitar contradança!




Gisele Borgesé  poeta, editora, professora e mestre em literatura brasileira (UFPR). Atualmente, participa do grupo das Meninas que Escrevem em Curitiba e do corpo editorial da Revista Trías.

Terras

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Em sua via de ventre
aberta a terra à semente
úmida, em águas
nascentes do dentro

Na vocação de matéria
os contornos fêmeos do fora
em barro, corpórea, o que dura
piso de cenas, chão, um sustento

Sabe por fim a mortes, o seco
avalanche na medida de um corpo
por cima, pisada
um silêncio.

VAGNER MUNIZ

Pocket Requiem - Tuba Mirum (por paulo guicheney)

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“Oh, but how can I sleep with your voice in my head.”
Pål Waaktaar


Algo habita as placas tectônicas. Algo falta fundamental. Algo cova que se move entre os ossos. Fragmenta medulas.

Teu nome poderia ser Licht, A. Disse-te isso em um sonho?

Meu carro atravessa Goiânia. Vou morrer. É uma questão de simples matemática. Vou morrer em uma esquina de Goiânia. Recebo a mensagem de meu amigo, “ela está aqui. Perguntou por você. Venha rápido.”

Estou em Wien, A. Vejo o teu rosto nos contornos das minhas mãos. Quebradas. Fecho os olhos e sinto o ar. Luft und Licht.

Teu nome poderia ser Luft, A.

Espero o trem em uma cidade horrorosa alemã. Há um chiqueiro no qual pode-se fumar. Imagino que toda a Alemanha deveria ser colocada dentro deste chiqueiro. Imagino uma bomba imensa que destrua toda a Alemanha. Imagino uma bomba imensa que destrua toda a Europa. Que destrua todo o mundo. Que destrua o universo. Que destrua meu corpo. Principalmente meu corpo. Apenas. Meu corpo.

Não sinto mais, A. Dirijo apenas.

Estaciono meu carro. Meu amigo acena de longe, “César, cretino, por que demorou tanto? A médica está louca por você”.

Ela me abraça, olha minha falta de olhos e diz “achei que você não viesse”. Beija minha boca. Arrasta-me pelos corredores de uma casa imensa. Sinto o peso das minhas pernas. O peso dos tapetes. Dos quadros. Dos móveis e do vinho.

Sinto o peso do Valium.

Meu baço dói. Meu baço sempre dói quando escuto música. Quando escuto Luan/Lucas Sant(t)ana. Não sei bem. Ou Marcelo Camelo. Jeneci. Criolo. Tulipa Ruiz. Ela olha e diz “qual o seu problema?”. Eu respondo que prefiro um spring drum a tudo isso. Que escutei uma peça de quase meia hora para spring drum em Darmstadt e que isso mudou minha vida. Que música é algo que ela nunca ouviu falar em toda sua vida. Que música é algo para os bêbados e os viciados e os leprosos. Que música não pode habitar o lugar dos bem nascidos. O lugar dos consultórios. Que médicos não têm ouvidos. Que música não existe no Brasil da felicidade. Que música não existe na Alemanha dos fornos. Que música é algo que habita apenas os sonhos dos que sofrem.

Ela me diz para ir embora. Que não quer me ver mais nunca. Que sou um idiota.

Acostumo-me de maneira dura ao silêncio, A. O silêncio é quando a tua voz cessa de falar.

As coisas são sempre as mesmas. Entro no carro. Há outra mensagem. Há sempre outra mensagem. Há sempre a possibilidade de ser chamado de idiota por uma bela mulher. Há sempre a possibilidade de horrorizar uma mesa de médicos bem nascidos. Há sempre a possibilidade de horrorizar uma mesa de crianças de esquerda que estudaram em Barcelona. Há sempre a possibilidade de ser linchado por um bando de goianos toscos assassinos.

Tenho medo, A. Tenho medo de não estar morto na próxima esquina. Quero apenas um abraço teu. Posso morrer em um abraço teu.

Teu abraço Luz. Ar.



*trecho de “Homem trancado em quarto de hotel


Lavar banheiro - Por Adriane Garcia

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 fotografia de Alyssa Wonks
          
      Acordo, de súbito, de mentira, nem dormi. Fiquei remexendo na cama, pensando besteira, a mão me cansando até ver que o gozo não é privilégio de todos os dias. O sol na janela também não colabora e passa por debaixo da cortina como quem desafia meu poder de peneira às três da tarde, debocha de minhas tentativas frustradas de hermetismo. E vence. É tudo morno, quente, miolos cozinhando e uma vontade louca de me limpar. Rezo. Ou oro, como querem os evangélicos. Tento limpar o espírito que agora parece sujo, sujo, sujo. Embolado como roupas sujas num cesto onde a gente jogou as toalhas que procura, limpas. Não encontro. E na confusão que nem sabe ainda se estou deitada ou já de pé, meu corpo me leva até o banheiro.
      Olho-o. Ele me salva. Lembro da palavra que não gosto: latrina. Prefiro vaso. Parece sempre que é possível plantar flor, que dá pra botar um aguapé lá dentro. Uma vez fui num hotel muito chique, desses de serra, que toda vez que a arrumadeira saía, deixava uma florzinha de beijo boiando na água. Eu pensava que até defecar podia ser delicado. Depois dava descarga. E passava.
      Há três semanas que não lavo o banheiro e nós dois sabemos nos reconhecer. Ele pede que eu, antes, vá à área de serviço e me aparate para nosso ritual duplo e sentido. Estou tão urgente! Lamento que quase me desespero de não ter cloro, descuidar-me assim de meus exercícios. Mas sempre acho improvisações para as urgências e sigo com todos os saponáceos possíveis encontrados, mais os desinfetantes que abafam qualquer cheiro de realidade. Coragem. Sei que cansa. Olho para ele com uma determinação conhecida. E nos trancamos. E tiro a roupa já que nos molhamos à vontade. Vai demorar.
      Abro a torneira e escolho uma parede. Sempre a mesma. Praticamente um vício e prometo que, da próxima vez, rompo círculo sem ciência de que a própria promessa faz parte dele. Então, prometo. E quem sabe? Agora é a parede do espelho mesmo. A parede para onde mais olho na casa inteira, desde aquela época em que perdi um tanto de infância. Ela ganha a primeira ensaboada com a bucha amarela gasta que da outra vez já havia me dito sonhar aposentar-se; mas não, vou exigindo da pobre que se desgaste e que se vá perdendo, aos pedacinhos, até se tornar tão molenga do esquecimento de que foi bucha. Hoje mesmo compro outra. É bem cruel negar a lembrança dos melhores tempos.
      O azulejo vai perdendo marcas e ganhando brancos de espuma que querem me lavar também. Penso na nuvem suja, cinza em minhas mãos, talvez me infectando.
      Uma aranha na quina do teto. Decido: Antônia. Ganhou um nome e a oportunidade de continuar a teia.





Adriane Garcia, nascida em Belo Horizonte/MG, em 1973. Historiadora, funcionária pública, arte-educadora, atriz. Escreve poesia, infanto-juvenis, contos e dramaturgia. Venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Paraná 2013, Helena Kolody, com o livro de poesia Fábulas para adulto perder o sono. Escreve no Escritoras Suicidas e aqui.



Fotografia: Carlos Magno

IMA(R)GENS, DOIS POEMAS INÉDITOS DE MÁRCIO LEITÃO

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Ima(r)gem 1


Sou rio caudaloso
Multidão vermelha
Espreguiçando-se na navalha
Explorando o desejo encardido e medieval
Languidamente tenho as direções possíveis
E o controle da carne em minha fronteira
Percebo nitidamente o fluxo da vontade
Desde a eletricidade gerada até a cerca que a protege
Desde o disparate e a loucura desenfreada até o arreio turvo
Que, em muitos casos, só é plateia
E, em outros, é muro.
Sou vertical
Encorajo o sul motor feito de tempo e coleira
E persigo o norte em suas conexões de luz e de precipício.
Sou dente e flanco ao mesmo tempo
anoiteço a cada mordida
e a cada capa que me cobre de línguas.






Ima(r)gem 2


Somos ninho e espinho
convidamos o corvo sorridente ao jantar
e expulsamos o dia sem medir o sol.
Somos gêmeas separadas por umidade, florada e perfume.
Pontuamos o início das inundações
e o término de cada janela Aleph compartilhada
no céu das camas e dos olhos.
Muitas vezes sentimos falta de toques certeiros e cuidadosos,
muitos passam ao lado,
acham que só os entremeios merecem languidez ou aço.
Enganam-se.
Margens são propriedades sensíveis
e podem arrastar ou afogar em um mesmo gole de tormenta
qualquer desejo e qualquer praia.
Nutrimos secretamente a vontade irresistível
de ser boca a engolir nossa cria,
e de fazermos parte das águas e das curvas

que levam pra dentro a sinfonia e a algazarra.



Fotos: arte com sangue de Jordan Eagles


*     *     *




Márcio Leitãoé professor de Linguística, pesquisador em Psicolinguística (UFPB); tenta entender os processos mentais relacionados à linguagem. Poeta e escritor de livros infantis, escreve pra poder imaginar como é ter liberdade, respirar sem amarras. Escreve também pra se divertir com as palavras e com o que pode construir com elas. Publica todo sábado na zona da palavra.





7 POEMAS DE "OS OSSOS DA BALEIA", DE JORGE ELIAS NETO

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Caligrafia do bruto


Para Sakineh Mohammadi-Ashtia

Quem estiver sem pecados que atire a primeira pedra!
                                           João:8:7
                        

Pedra atirada.
No ar
uma réstia
da caligrafia do bruto.

Apedreja-se com força.
Quem sabe assim,
desencarnam as frustrações!...

Reconheço o homem na pedra.
Cada uma traz seu nome.
A figura de um deus incompleto
invalida a palavra: Humanidade.

Mas aqui,
corrompe-se a alma,
deforma-se o molde.

A estranheza de lapidar o corpo.
A ironia de deformar o nome
do delicado gesto do artesão.

Garganta seca de súplicas.
Olhos vazados por lascas.
O ventre fendido
Já não tem fome de amor.

Despedaçado,
jaz o corpo da criatura,
jaz a beleza.
Sob o lençol maculado
pelo sangue dos opressores,
desfeito,
o arco dos lábios.

A face desfigurada
é impura.
Já não se presta a prazeres
a carne macerada.




  
Poema justo
                           

                Para Reinaldo Santos Neves


Não fechar a frase, não.
Deixar a palavra ao relento.
Miguel Marvilla

                                                             
Raspar as sobras
da imagem – nata,
gordura –
o escorregadio da margem.
O liso da casca.
A paisagem.
Da palavra – o inesperado;
a calda – rasgos e fendas.
Na vastidão – passagem.

Rever imendas.
Acumular entulhos –
                                   vazios.
Cobrir de aragem.

Recolher do baixio
memórias 
aboios
arrelias.

Desviar das têmporas
o estampido –
tiro –
peleja de louco.


Repousar no estio.
Aconchego – relento.
Remover farpas –
asperezas – ao vento.

Lambuzar com visgo –
isca – voragem.

Revolver o leitor
no espaço-tempo.
Disparar a contagem.

No continente dos olhos 
despertar do torpor...
                A linguagem.




Peixe morto


Rijo
                   Seco
       Peixe morto

Ondas...
A sonoridade do estrondo
desmente o silêncio dos olhos.

Peixe morto
                     Barbatanas de pau
        emaranhadas no sargaço


       O que resta
compõe a  realidade.
Desfeito o furta-cor dos átomos
que comungavam o mar
       em tuas escamas.

Obscuro
                    Não ser
        Peixe morto








Discurso para o cadáver


Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
                ― do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
                 do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                 pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
                inútil
a  última centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                despeja
                       suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas  perante o choro
                humano).






XI


O vento de fora
virou as páginas.
        O silêncio...
Velho apaziguador –
sinaleiro do sono...
Sinto o despertar
tímido das sombras
na casa adormecida.
É chegado o momento
da rendição do corpo
ao emaranhado
dos sonhos.
Folgo imaginando
a comoção da noite
diante da carne
abandonada ao ocaso...




XIII


Sonho... Matriz da realidade.
Este momento,
em que nos perdemos
na melodia,
em que nosso ritmo cardíaco
    desacelera,
               claudica;
em que nosso coração
fica terraplanando sobre o cotidiano,
é um momento de felicidade.




XIV


Dispo-me dos pés.
A liberdade essencial
   se aproxima...
Finalmente,
me chamarei:
                                       ninguém.








imagens: "Baleia", escultura de Angelo Venosa



*     *     *



*     *     *




Jorge Elias Neto é médico, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. São de sua autoria os livros: "Verdes Versos" (Flor&cultura ed. – 2007), "Rascunhos do absurdo" (Flor&cultura ed. – 2010), "Os ossos da baleia", "Glacial" e "Breve dicionário poético do boxe" (inéditos). Integrou as publicações Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espiritossantense de letras – 2010 e 2011) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Publica regularmente nas revistas eletrônicas: Portal Cronópios de Literatura, Diversos afins e Estação Capixaba. Blog. Email.










3 poemas de Priscila Lira

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 Ilustração: Olaf Hajek




–Lição 6  (extraído do manual de feitiçaria)
  
A bruxaria da ferida é não ter mais que um sentido:
aquele que todos nós sabemos
e do qual não se pode fugir.

Ferida é um pedaço teu que morre, e só.

O fracasso te rasga,
o amor te rasga,
uma queda no asfalto te rasga,
o mundo te rasga

e é lá onde essa palavra se instala: no rasgo.
FE-RI-DA
Sem duplos sentidos, nem incompreensões.

Não há para onde sumir,
ela só dói, ela vai doer

até que o teu pedaço apodreça
e vire casca.



-Lição 11 (extraído do manual de feitiçaria)

Tu és um tolo em achar que bailarinas buscam magreza por pura imposição totalitária da arte.
Elas querem outra coisa,
querem ouvir um som que não está na música, que acaricia seus ouvidos mais que Tchaikovsky
querem que o amante sussurre todos os dias
algo que só pode ser dito quando o objeto em questão está aparente.
Elas querem que o ar se componha todas as manhãs pela combinação dessas nove letras:

Clavícula.

A clavícula refletida no espelho se transforma em palavra,
entranha no pensamento,
monta um labirinto lá dentro e
a partir desse momento
a única coisa que a bailarina consegue fazer
                                                                                                                               é dançar.




A vida é uma dor tranquila
indivisível
se espalha pelo teu corpo e
engasga de surpresa.

Não para morreres,
para lembrares que é dolorida
indivisível

A mentira se engole
e te mastiga feito fosses um pedaço de bife
cru

A geografia te arranca pela raiz e
deixa tuas folhas por todas as cidades por onde passaste.
Mesmo que voltes,
não as recuperarás.

A derrota te acompanhará por todos os cantos
rondando-te,
quando menos esperares
ela te engasga
não para morreres,
para lembrares que é dolorida, a vida,
indivisível.

A morte, tu escondes no fim do labirinto da tua cabeça,
mas ela se move e tu não percebes
encontra teus pais no meio do caminho, um filho,
ou mesmo tu, perdido no próprio jardim

Mas é uma dor tranquila, a vida
tu te acostumas
passeias pelo labirinto
a colher plantas e abelhas
dormes, amas, esqueces, traveste-se, deixas a barba crescer,
sorris, lembras-te, com leveza, das folhas perdidas,
incorporas a mentira consigo,
digeres a derrota com um sal de frutas
e caminhas até quando (?)

ela te engasgar de surpresa
para que tu morras
e lembres que é dolorida, a vida,
indivisível.


Priscila Lira

7 POEMAS DE "TEU PAI COM UMA PISTOLA", DE THIAGO MATTOS

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0,2


fumei
sentei:
metade do corpo
na sombra
metade do corpo
no sol

meu coração
metade meu
metade teu
metade nunca vista
batia forte

olho para a minha camisa,
para a minha barriga:
o pano treme
com o meu coração
que bate forte

então é assim
- o sangue
confessando nos intestinos
o quanto peca
e
erra
no coração

coração
no coração
do coração
para o coração
depois do coração

atrás
atrás do coração




0,4


lembro agora
quando
(pequeno)
ouvi falar de
caim e
abel,
caim que matou abel
e eram irmãos

um irmão que matou o outro

eu sentia o cheiro do sangue
e o cheiro de um homem de cabelo preto (suado) colado na testa
e eu sentia o gosto do sangue dele
e eu sentia o gosto e o cheiro do sangue melado nas mãos dele
(é assim que funciona a nossa cabeça)

ou quando vi a primeira figura (num livro) do inferno:
peitos, barrigas, demônios, chifres, fogo, uma serpente
este é o demônio, minha mãe disse
e, no canto da figura,
um homem de chifres e patas (muito baixo) sorria para o pescoço de uma mulher nua
nua no meio do fogo
nua do lado de um homem
nua do lado de um homem com chifres e patas
e que sorria para o pescoço dela
se estava com medo, não podia ser má
os que têm medo nunca são maus

este é o demônio,
e ele tinha um rosto
para mim, ele só podia ter nome
para mim, o demônio não podia ter rosto, só podia ter nome



1,1


queridinha do papai,
teus olhos têm a cor
perdida da luz azul,
do tetracloreto de carbono
e do navio afundando
na linha do horizonte

capitão!
ele põe a mão no peito,
fecha os olhos, olhos afundados no
assoalho úmido da embarcação
a embarcação afunda?
ou a linha do horizonte sobe?
a embarcação afunda?
ou os olhos é que caem da cara?

queridinha do papai,
teus olhos têm a cor
perdida da tua mãe morta,
do teu pai perdido no mundo com uma faca enfiada no peito,

sempre ali


2,1


eu estava na minha cabeça
me imaginando
falando numa entrevista
(como me imagino sempre)
de quando proust
desmaiou
vendo o quadro (um quadro de alguém)
"ele era doente", eu diria,
"ele era fisicamente doente,
desmaiou porque teve talvez
uma emoção forte
e como era frágil...
mas não desmaiou por causa do quadro
a arte ainda não tem
ou não tem mais
o poder de
fazer as pessoas desmaiarem"
e aí
   em seguida
   imediatamente
pensei numa
máquina
que era uma luva de boxe com um braço mecânico retraído que se expandia e dava um soco
no espectador
quando ele chegava perto
e o espectador desmaiava
ou
se fosse inteligente
pelo menos
fingia
desmaiar

  
  

2,2


sou isso
sou precisamente isto

como quem se despede
ou derruba café quente
na calça
ou ganha o nobel
e não tem ninguém
para contar

(às vezes olho
para o céu
esse céu -
o mesmo céu daí
este coração -
o mesmo coração daí
mas
a alma
a alma
- aí os abismos)

há um abismo no meio
dos abraços

  

3,3


me expulsaram
da minha
cidade
incendiaram minha
cabana
encheram minha
caverna
de argila

disseram:
queremos a cabeça dele

não procuraram
nas gavetas

não faria diferença



  

4,6


não é mais a ajuda oblíqua,
o grito da criança estreito
como
estrada para teu coração aceso

é só uma ponta de cólera,
aguda e absurda,
afiando facas,
cegando águas,
incendiando bagagens

me lembro do fio da saudade,
incandescente,
acendendo o abajur do quarto,
avermelhando os trilhos do metrô,
incendiando a estrada de


regresso






Imagem: poema visual ("poema de amor") de Manuel Calvarro (Espanha).




*    *    *




Thiago Mattos nasceu em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, atualmente é mestrando em tradução literária na Universidade de São Paulo. Em 2012 lançou seu primeiro livro de poemas, Teu pai com uma pistola, (de onde foram selecionados os poemas ora publicados) com o qual participou, em 2013, do Festival International de la Poésie de Trois-Rivières (Canadá). Sobre o livro, José Castello escreveu (O Globo, 12/01/2013) : « O livro de Thiago, de fato, me envolve. Oferece-me pistas em um caminho, na maior parte do tempo, desprovido de pegadas. [...] É todo belo – delicado e sutil, mas indiscutivelmente belo – o livro de Thiago Mattos. Transpassa-o, sempre, a mesma pergunta: será a arte ‘só isso’, isto é, ‘emoção estética’? Ou ela será ‘mais que isso’, quer dizer, será a arte (a poesia) algo que ainda hoje pode afetar, desarticular e deslocar? » Thiago Mattos é colunista do blog da Confraria do Vento, além de manter o blog Je Vous Défenestre, em que publica traduções de poesia contemporânea de língua francesa. Ainda em 2014 deve ser lançado seu segundo livro, Casa devastada – prosa em poesia.



In Taberna #1

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por Daniel Feltrin

No príncipio era o verme, e o verme estava com dEus  
E o verme era d’Eus.

Estive perdido na sua garganta te asfixiando, meu amor
Sai regurgitado, ex cathedra, deixando seus dentes intactos
Sou santidade beatificada pelo gosto da sua melancolia
Regozijo-me em urtigas e poemas não verbalizados
Eu não sou Deus, eu sou o verbo frágil entre seus olhos
Incólume, incauto, incógnito, inóspito, inoperável...



Imagem: Chrystal Chan - Seven Stars
http://www.lastritesgallery.com/darkpop_4.php#

3 poemas de Paulo César de Carvalho

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minha mala


levo
na minha
mala
minha
mandala
minha viola
nana
nara

victor jara
janis
callas
tame impala

nela levo
ella
avalovara
sinatra
sidarta
baraka
drácula
odara

comigo vai
martinho da vila
paulinho da viola
violeta parra
cartola
cachaça
maria alcina
alzira
maria fumaça

levo marina lima
marília medaglia
amélia
amália
martinália
e se ela
quiser ir
eu levo
a nália

quem sabe
faz a hora
o tempo
não para
tô indo
embora
meu bem
pra maracangalha
ou pra pasárgada
e passe bem

larga
a mala
ela
é minha
mas eu
não sou
de ninguém
disfarça
e chora
eu já vou
minha cara
olha o trem




a saudade é

a saudade é
o lápis
que risca
todo
o calendário
o meu
rosto
estampado
no santo
sudário
o seu
cheiro
guardado
no canto
do armário
o seu
gosto
cravado
de lábio
a lábio

é
o meu
ato falho
a rainha
do meu
baralho
o barulho
chato
do chocalho
um caminho
sem atalho
o que
me dá
trabalho
mas
não me dá
salário

é a palavra
que sobrou
do dicionário
no coração
flechado
no tronco
do carvalho
em toda
página
do meu
diário
na ponta
da minha
língua
no canto
do seu
canário

é
a minha
queixa
o que
me deixa
mudo
é tudo
o que
falo

a saudade é
do caralho


presente do futuro

sou filho 
do obscuro 
só brilho 
no escuro 
só me entende 
quem sabe 
que sou semente 
que só cresce 
em solo duro 
sou fruto 
que já nasce 
maduro
sou diferente 
de tudo 
sou parente 
do impuro
é com veneno 
de serpente 
que me curo 
só crê 
quem é descrente 
porque sabe 
que não juro
não ando 
no trilho 
não paro 
no muro
sou quem
só à frente 
se sente seguro
só me vê 
quem é vidente 
sou o presente 
do futuro




Paulo César de Carvalhoé bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Libertárias, Livro Aberto, entre outras. Foi consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos.  Sua dissertação de mestrado intitula-se "Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero 'carta de amor'". Tem poemas publicados no livro Na virada do século– poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro de poesia Toque de Letra e, em 2012, Letra na clave é sol (ambos pela editora Nhambiquara). Em 2013, publicou Letra Livre (editora Oitava Rima). É vocalista e letrista da banda Os Babilaques e PCC & A Contrabanda. Tem parcerias com vários músicos da cena contemporânea, como Tatá Aeroplano, Pélico, Juliano Gauche, Danilo Moraes, Tiago Galego, Bruno Roberti e Carlos Zimbher. Sua canção "Na garrafa", em parceria com a Trupe Chá de Boldo, alcançou o 1º lugar no TOP 10 da MTV em 2013. A canção "descarada", com Bruno Roberti, teve participação de Seu Jorge.
 

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