As Bruxas
Junta o carvão do chão. Enche a boneca de pintinhas, agora ela ficou doente, é catapora, coitadinha, precisa descansar, está com febre.
Arlete anda maravilhada pelo centro, de mãos dadas com a vovó, que busca tecidos para a saia que usará no terreiro, dos retalhos sairão as saias de domingo da Arlete e também as bruxinhas de olhos esbugalhados, bem diferentes dessas bonecas que a hipnotizam nas vitrines do centro.
É preciso que se conheça Arlete para que a entendamos, é preciso que não se pense que a maldade exclui a inocência, é preciso saber que a maldade vem de fora e que algumas crianças a transformam em milagres. Arlete tinha mãe e pai, que rasgaram as alianças e, junto com os anéis, foram-se os filhos e ficaram os dedos. Dedos nos quais foram postos novos laços e novas crias. A primeira prole foi enfiada no saco do esquecimento.
Vem Arlete, conhecer seus novos irmãozinhos. Pede a benção da mãe, não, ela não pode te levar junto, não vê que vocês vão atrapalhar o novo casamento? Tu tem que me ajudar a cuidar dos teus irmãos, não fica triste, amanhã a vovó faz umas bruxinhas bem bonitas para vocês, com aquele pano florido que nós compramos ontem, o vestido vai ser tão bonito quanto o da boneca da tua nova irmãzinha.
Arlete vai cuidar dos irmãos e vovó vai aos algodoeiros, catar as tripas das novas bonecas. Molda com cuidados os vestidos, costura seus contornos, enfia as tripas, costura as entradas, junta fios de lã e transforma em fios de cabelo, pinta com cuidado os olhos de azul, olhos condenados à vigília constante, pois que a tecnologia do cerrar e abrir ainda é coisa das indústrias e da natureza, veste-as com o tecido florido, filho da sua saia. Olha, minha neta, como ficou linda sua bruxinha! Agora vá brincar com suas irmãs e deixe que eu cuide dos bebês.
Junta o carvão do chão. Enche a boneca de pintinhas, agora ela ficou doente, é catapora, coitadinha, precisa descansar, está com febre. Ela não descansa, porque não fecha os olhos, deve ser a febre, desse jeito vai acabar morrendo. Sobe na árvore, joga a boneca do alto. Ai, meu Deus! Ela se foi! Precisamos preparar o velório. Anda pelo sítio em busca das flores mais bonitas, enterra a bruxinha embaixo da árvore, cobre de flores seu túmulo de vida tão curta. Agora vamos brincar de esconde-esconde.
Chove durante os dias seguintes, as gotas regam as tripas da finada bruxinha, seu tecido apodrece, as costuras se desfazem, as sementes de algodão brotam na terra, para continuar o ciclo de rancor da vida de Arlete, que não entende quanta vida a mais tem suas bonecas que morrem e renascem, do que as bonecas de fios de nylon e olhos que piscam.
Fêmur
Eu não sou criança de novo, o peso desses anos todos parece ter me dado de presente algumas toneladas, o colo de ninguém me sustenta. Sou um elefante de fraldas. Um elefante com osteoporose que precisa que lhe deem banho todo dia e lhe troquem a fralda.
Não uma criança, muito menos a criança que fui há 88 anos. Durante esse tempo, meus pedaços se renovaram muitas vezes, ao ponto d’eu não ser mais nada daquilo que nasceu comigo. Agora sou um elefante de fraldas que ainda não aprendeu a andar e que lembra da sua outra vida com estranheza.
Como podem essa pele acinzentada e cheia de rachaduras e esses fiapos de cabelo serem eu? Eu, que incontáveis vezes durante a vida me olhei no espelho, concluo que minha memória mudou de dono e que eu, tudo que sou eu, passado, presente... não tenho imagem.
É muito simples tornar-se outro, morremos e nascemos tantas vezes na vida, que a metamorfose torna-se algo banal antes mesmo de tomarmos consciência da nossa presença no mundo. Este caso, por exemplo, imagine: uma freira andando pelos corredores do convento, escolhe uma porta para entrar, anda em direção a ela e vê alguém entrando antes. Apressa-se para aproveitar a mesma abertura da porta, mas o outro que estava a segurar a maçaneta não a vê. Bate a porta.
Queda
Fêmur.
E num piscar de olhos sou um elefante que acabou de nascer no fim da vida. Que precisa aprender a andar e tomar banho sozinho.
Imagine quantas vezes minha memória mudou de imagem durante esses anos.
O meu passado me estranha, mas estranha mais ainda essa vontade de não morrer. De continuar uma elefanta perambulando pelos corredores do convento, os fiapos brancos de cabelo escondidos, assim como eram escondidos antes de serem fiapos e antes de serem brancos.
Acho que a vontade de viver vem da vontade de não morrer nas paredes entediadas desse hospital. Morrer aqui, como um elefante indigno que não se separou do bando para dar adeus a memória, isso eu não quero.
Agora, assim como uma criança, preciso aprender a viver como a elefanta que sou. Em verdade, o espelho não importa, importa é meu peso sobre o andador, o mingau sem açúcar que eu tenho que tomar, as agulhas que me sustentam nesse mundo, minha primeira nudez entre homens nesses oitenta e oito anos, pois que agora nasci elefante e não sei tomar banho sozinha (que Deus me perdoe por isso).
Por quê preciso suportar? Porque não posso perder o reino dos céus depois de oitenta e oito anos de sacrifício. Porque tenho medo de que a sete palmos do chão exista apenas sete palmos do chão, porque viver é sofrimento, porque é isso que me resta, porque em meio ao cansaço desses dias gris e aéreos eu ainda tenho a esperança de acordar, rezar o pai nosso, tomar banho, vestir o hábito e ir até a cozinha, comer um pão com ovo frito e café.
O barulho do mormaço
Tu não sabe o que é conviver com o Diabo a vida inteira, conviver com o Diabo a vida inteira é duvidar de Deus a cada segundo. O Diabo, quando te odeia, te prende e algema tudo ao teu redor: tua mãe, que ama o Diabo, e teus irmãos. É assim que ele consegue te fazer ficar. Lama, lama e lama tinha gosto a minha vida. Nasci na lama, feito um porco. Burra que era a minha mãe (de ter uma ninhada, de ter olhos de bicho que não enxerga xyz, que não sabe o que é o Diabo, que não sabe nem o que é a loucura de viver na lama com uma ninhada e o Diabo), burra que era eu, menos que a minha mãe, burros e esfomeados que eram meus irmãos, burro que era o Diabo, burro e cruel, burro e tarado, burro e nojento. Porca que eu sou, porque convivi na lama com o Diabo a vida inteira.
Quando era criança e, na catequese, me ensinaram o que era o Diabo, logo vi que ele estava na minha casa, escondendo comida, me comendo, quebrando garrafa, quebrando a burra da minha mãe, esbugalhando de medo os olhos esfomeados dos meus irmãos. Quando o Diabo vive contigo, ele nunca mais sai de ti.
Eu corria para a esquina e tentava fugir do Diabo. Subia na mangueira e gritava o nome do meu pai, mas só ouvia o barulho do sol quebrando as folhas. Porque meu pai morava com Deus, ele nunca me responderia, a gente trocou ele pelo Diabo. Eu gritava o nome do meu pai, gritava que ele tinha me abandonado e me deixado na lama, no inferno, ele não respondia, estava feliz, no céu, com Deus, sem fome, dormindo nas nuvens e decepcionado com a gente, que dormia com o Diabo.
Meu pai não respondia, mas meu estômago Gritava, meus irmãos choravam na minha lembrança e eu, pequena e burra, presa na lama, lesma inútil, voltava para o inferno. Se tu pensa que o Diabo sempre maltrata, tu é mais burro que eu. O Diabo engana, te abraça, te dá pão e café com leite, corre contigo no quintal, depois te come, te bate, te joga no chão e quebra garrafa. O Diabo toma banho, passa perfume, vai na igreja, reza o pai nosso, aperta a mão dos irmãos, conta histórias inventadas da vida, diz que ama, diz que cuida, depois te fode, te todos os lados, de todos os jeitos, de todas as formas. Fode, fode, fode. É nojento o Diabo, feito de barro por dentro e por fora, com cheiro de fossa e pele de pedra. Eu via o desgraçado passar perfume, mas aquilo, no meu nariz, era essência de esgoto, cheiro de raiva guardada, que rasgava meu olfato feito gilete, chegava na goela e dava ânsia. Barro e enxofre formavam aquele monstro com a Bíblia debaixo do braço apertando a mão da vizinha burra, que me olhava de cara feia e dizia pros filhos não andarem comigo, que eu era indecente.
Indecente eu era na minha rua, na minha escola, a indecente, burra, estranha, muda, feia, suja preta fedida, mas não era surda. O Diabo me chafurdou na lama, eu era toda lama, assim ele fez da minha vida um inferno, até longe do inferno, porque suja de lama que não tinha água que limpasse, o Diabo fez de mim o Diabo. Ninguém tinha medo de mim Diabo, tinha ódio, nojo, eu não era bem-vinda no céu da vida dos outros, nem por meu pai, Deus o tenha.
Por isso fugia e me escondia, até a fome bater, no escuro empoeirado da sala de livros da escola, porque lá ninguém sentia meu cheiro, nem via minha cara diaba, lá eu não ouvia me gritarem de muda. Foi lá que tive a ideia de matar o Diabo. Mal eu sabia que uma vez na tua vida, nunca mais ele sai.
Mas o Diabo tinha a herança do céu, do tempo que Deus o criou do barro. O Diabo gostava de doce, de suspiro. Todo dia comprava suspiro na padaria. E ficava feliz, sorridente, comendo suspiro. Dava café com leite e pão pra mim e meus irmãos, corria com a gente no quintal, mas aquilo era a porta do inferno, a gente sabia e aproveitava, não havia como correr da porta do inferno, só nos restava aproveitar o prelúdio da desgraça. A gente não tinha raiva do anúncio que o suspiro trazia da padaria nas mãos do Diabo, porque sabíamos que o suspiro era o que restava do paraíso naquele enxofre de homem.
Uma vez o Diabo me obrigou a fazer uma receita de suspiros, porque a padaria não abriu. Eu coloquei purgante no suspiro para me vingar, e depois o Diabo se vingou de mim, em mim, na minha mãe e nos meus irmãos. Nesse dia eu corri do inferno e no dia seguinte, na sala de livros, decidi matar o Diabo. Não seria uma morte cruel, como as que eu fantasiava para ele todos os dias, porque eu não queria ver ele morrer, eu queria o Diabo morto!
Eu, a indecente, suja, nojenta, rasgada, roxa, muda, lesma inútil, não queria voltar para casa depois do terror da noite inferno passada. Não queria ver a cara de paraíso dos outros. Queria morrer, mas se morresse, iria para o inferno eterno e nunca mais veria meu pai. Por isso resolvi matar o Diabo, assim teria tempo de pagar meus pecados e finalmente dormir nas nuvens.
Escureceu, ninguém deu por minha falta, voltei para casa e o Diabo dormia virado de costas para a burra da minha mãe. Matando o Diabo, eu fugia, e ela podia ser burra e feliz com a ninhada de infelizes longe daquele inferno, enquanto eu pagaria os pecados e depois encontraria meu pai. Uma faca de cozinha no peito, ele arregalou os olhos e me agarrou o braço. Foi virando água e me largando len... ta... men ...t... ... ... e. Roubei o saco de pão na cozinha (mais um pecado para pagar nessa vida desgraçada), corri e subi na mangueira da esquina, a esperar que o inferno final se armasse lá em casa com gritos e polícia. Silêncio.
O que eu não sabia é que a vida é um formigueiro de infernos e que o Diabo me perseguiria, agarrado no meu braço com os olhos assustados, para sempre. Fugi, mas a fome, a rua, a chuva, o sol, o frio, me transformaram no Diabo e eu não conseguia terminar de pagar meus pecados. Jamais chegaria no céu, meu pai se esqueceria de mim ou rezaria para que a Diaba que ele um dia chamou de filha, nunca mais aparecesse na sua frente. O mundo me fodia, fodia, fodia, de todos os jeitos, todos os lados, todas as formas, cuspia em mim, na porca, nojenta, fedida, burra, Diaba. Numa noite, sem dormir, com medo do Monstro que matei, percebi que inferno maior que esse não havia, que o inferno estava na minha cabeça e de lá não sairia sozinho.
Por isso deixei que um homem sorridente me fodesse pela última vez, por um saco de suspiros. O que eu farei depois? O que devia ter feito desde o ínicio, mas burra que sou, não percebia: Abrir a minha cabeça com a faca ainda suja de sangue do Diabo, tirar aquele ninho de enxofre lá de dentro e encher o vazio com suspiros. Os suspiros, resto de céu que sempre esteve na minha vida, me levarão até meu pai, com quem dormirei nas nuvens, a esperar o dia em que minha burra mãe e a ninhada façam o mesmo.
O formigueiro continuará aqui embaixo, misturado aos sangues da faca.
Priscila Lira (Pitanga/AM,1991) é uma poeta e contista amazonense radicada em Curitiba, aonde faz mestrado em literatura (UFPR). Tem um e-book publicado, Manual de Feitiçaria, disponível no Scrib e no Camaleo e um livro de contos no prelo: Os quinze dias de Zózima no Jardim da Morte.