Saiba o espírito humano a que fervor não falta,
que é tudo amor que o eleva ou beleza que o exalta!
e o ser, que faz melhor a dor que abjeta o ofende,
e que sobre o seu próprio abismo a fronte pende,
sinta que o amir é Deus pelas almas disperso
e a beleza a razão eterna do Universo.
(em Razão Eterna, nas Estâncias de um Peregrino)
Considerado por muitos como o terceiro melhor poeta do Simbolismo brasileiro, o gaúcho Eduardo Guimaraens (1892-1928) foi o autor de uma poesia multicolor, de sensibilidade fina, quase serena – mesmo em seus momentos mais melancólicos -, precursora, no que se refere à delicadeza dos sentimentos, de um Onestaldo de Penanafort e de uma Henriqueta Lisboa. Em sua estética nos deparamos com o curioso deságue das suas intensas leituras de Dante, Mallarmé e dos autores simbolistas belgas, como Maeterlinck. Apesar de toda a sua obra ser composta pela sua Divina Quimera, esta, por sua vez, é formada por cinco livros: A Divina Quimera, Poemas à Bem-Amada, La Gerbe Sans Fleurs (poemas em francês), Cantos da Terra Natal, Estâncias de um Peregrino e Rimas do Reino dos Céus. O fato de Eduardo ter conseguido, já aos 16 anos, a publicação de seu soneto “Aos Lustres” (ainda em um estilo mais parnasiano do que aquele que seria publicado em Cantos da Terra Natal) já demonstrava que o seu destino, à medida que o seu estro evoluísse, era o da eternidade literária.
Comparado ao movimento simbolista gaúcho, Eduardo Guimaraens foi amplamente superior. O que mais poderia ser posto ao seu lado – Filipe d'Oliveira – só deixou uma pequenina obra de poesia propriamente simbolista (Vida Extinta, de 1911), apesar da beleza pungente desta. Zeferino Brasil, o precursor da escola do Símbolo no estado, pecou por sua irregularidade, inclusive temática; o mesmo se observa na poesia de Alceu Wamosy, cujos acertos são grandiosos, porém; Homero Prates foi um grande poeta – detentor de um imaginismo florido – mas que nunca atingiu a altura da poética de Eduardo. O autor da Divina Comédia tem uma obra harmônica em beleza, e, ao contrário do que Massaud Moisés defende em seu História da Literatura Brasileira – Tomo IV, os seus versos livres não se configuram em um erro de escolha, pois evidentemente mantêm a qualidade geral encontrada na obra do poeta.
A Divina Quimera, obra de estreia de Eduardo, publicada em 1916, pode ser encarada – com exceção aos poemas em homenagem aos mestres do poeta – como um grande livro de amor, ao estilo de Vita Nuova de Dante. Quase todo o livro é desenvolvido na penumbra de um melancólico e resignado saudosismo amoroso:
CANTO DOIS – LIVRO I (na Divina Comédia)
Doçura de estar só quando a alma torce as mãos!
Oh! doçura que tu, silêncio, unicamente
sabes dar a quem sonha e sofre em ser o Ausente,
ao lento perpassar destes instantes vãos!
Doçura de estar só quando alguém pensa em nós!
De amar e de evocar, pelo esplendor secreto
e pálido de uma hora em que ao seu lábio inquieto
floresce, como um lírio estranho, a Sua voz!
E os lustres de cristal! E as teclas de marfim!
E os candelabros que, olvidados, se apagaram!
E a saudade, acordando as vozes que calaram!
Doçura de estar só quando finda o festim!
Doçura de estar só, calado e sem ninguém!
Dolência de um murmúrio em flor que a sombra exala,
sob o fulgor da noite aureolada de opala,
que uma urna de astros de ouro ao seio azul sustém!
Doçura de estar só! Silêncio e solidão!
Ó fantasma que vens do sonho e do abandono,
dá-me que eu durma ao pé de ti do mesmo sono!
Fecha entre as tuas mãos as minhas mãos de irmão!
A Divina Quimera, apesar de sua perspectiva amorosa, não deixou de trazer em seus versos as tão tradicionais – para a época - homenagens aos mestres do autor, fazendo com que os poemas “Túmulo de Baudelaire” (do poeta das Flores do Mal, que se diga, Eduardo foi um considerado um dos melhores tradutores para o Português) e “A Stéphane Mallarmé” configurassem em clássicos do estilo. Vejamos um dos casos:
A STÉPHANE MALLARMÉ (na Divina Comédia)
De que lábio fatal, de anjo ou demônio, vinha
essa harmonia estranha, esplêndida e secreta,
que a tua voz ardente e solitária, Poeta,
como um mistério obscuro e rútilo, continha?
Era, acaso, a visão celeste, linha a linha,
renascendo, através da tua insônia inquieta
ou, dos tempos ferindo a inércia hostil, a seta
infernal que num arco a tua mão sustinha?
Mas, do inferno ou do céu, que importa? É bela: e é tudo!
É bela a voz ignota à boca fugitiva
que, alto, sinistro e eterno, o Azul apavorou!
E é bela a mão febril que, a um gesto lento e mudo
do sonho ainda por vir a rosa rediviva
- tal a de um semeador magnífico – semeou!
Já em Poemas à Bem-Amada, apesar do que nos possa sugerir o título, a sua poética atinge outras elevações: a metafísica, até então rara, começa a se fazer mais comum, mesmo à sombra da constante perscrutação por uma Musa “bela como nenhuma”. Eduardo já começa a desenvolvernessa obra as suas colorações de poente que se tornariam tão intensas e particulares em seus seguintes livros e, essencialmente, a sua emoção começa a se tornar serena, no grau mais sugestivo, imagético possível, como nessa
EFUSÃO (em Poemas à Bem-Amada)
Pelas noites de inverno e quando baixa a calma
do esperado repouso, e a vígil quietude
do céu torna divina a humana solitude,
sente um exílio igual ao das estrelas a alma.
De tudo emerge então um desejo profundo:
ser feliz... E, surpresa, esta ânsia mal contida
de estreitar contra o seio a tristeza da vida
e perfumar de amor a miséria do mundo!
Ainda nos Poemas à Bem-Amada, Dante, inegável influência para o poeta, torna-se um alicerce estético nos tercetos de “Beata Beatriz”:
(…)
Nesse pio e celeste olhar benigno
será clara a candeia de óleo eterno
que há de dar luz pelo trevor maligno.
E, como Dante que passou o Inferno,
acharei a adorada Criatura
que amou o seu amor severo e terno.
E ante a doce Visão suave e pura
que minha voz cantou como tal fervor,
olvidarei a minha selva escura
e erguerei, como um lírio, o meu amor.
(no Cântico Primeiro)
Eduardo Guimaraens muito provavelmente atinge o seu ápice em Cantos da Terra Natal. É uma obra em que as temáticas teoricamente opostas (metafísica e materialismo, por exemplo) e versos em formas variadas, às vezes livres - mas sempre com perspectiva divinatória em tudo quanto existe – causam-nos a sensação melódica e imagética de uma serena missa composta pelo renascentista Giovanni Palestrina. Aliás, muito da alma poética de Eduardo perambula entre as divinizações presentes na Idade Média e no Renascimento e entre uma Modernidade em que a crise dos ídolos tornava-se evidente. O poeta, que pouco a pouco converteu-se ao Catolicismo – mas nunca chegando a ser um praticante -, talvez tenha sido um dos grandes cantores desse abalo do ethos dos símbolos que tempos antes eram considerados perpétuos; o próprio Amor que Eduardo celebra – imortal, superior ao tempo, um reflexo perfeito da Beleza que não morre -, é um dos exemplos evidentes.
Em vários aspectos, Cantos da Terra Natal é um dos livros mais perscrutadores de nosso Simbolismo, com alguns poemas de beleza imensurável. Os temas amorosos estão em melhor equilíbrio com outros, mas ainda de importância inestimável ao poeta:
DESEJO (em Cantos da Terra Natal)
Desejo, desejo vago
de ser a tarde que expira,
ser o salgueiro do lado,
onde a aragem mal respira.
Ser a andorinha que voa
e vai, ser o último raio
de sol... E o sino que soa.
Ser o frescor do ar de maio.
Ser o eco da voz distante
que além se extingue dolente
ou essa folha que, errante
ao vento, cai docemente...
Ser o reflexo disperso
dum ramo n'água pendido,
fluido e belo como um verso
que cante mas sem sentido!
Ser o silêncio, esta calma.
Breve momento impreciso.
Ser um pouco de tua alma...
Um pouco de teu sorriso.
Há, no pequenino “Inocência”, um diálogo com o poema “O Sol” do paranaense Emiliano Perneta, revivendo, de certa maneira, a percepção de renascimento universal de Sócrates. Enquanto o poeta de Ilusãonos canta:
Quando o sol aparece em ondas, a beleza
E a frescura que espalha é de tal natureza,
Tem um olhar tão bom, tão novo, tão jocundo,
Que toda madrugada é o começo do mundo...
Descreve-nos, cheio de sentimento cromático, Eduardo:
Inocência das cousas. Pura
suavidade
da alva que surge. Paz, frescura,
simplicidade!
Nitidez do orvalho. Profundo
céu. Ri-se a aurora...
Milagre. Dir-se-ia que o mundo
nasceu agora!
Os poentes de Eduardo Guimaraens são dos mais belos já descritos na poesia brasileira. Para Mansueto Bernardi, grande amigo do poeta e autor do magnífico prefácio da Divina Quimera de1944 (Poesia Completa), isso não passava de uma consequência dos crepúsculos gaúchos, vagarosos e profundos, que inspiraram por completo o poeta. Um dos exemplos é este
POENTE LAGUNAR (em Cantos da Terra Natal)
Sopra o vento frio...
Sopra o vento sul.
Brilha o céu azul
como um céu de estio.
Per de a relva a cor,
seca, amarelece.
Da luz, que esmaece,
mal fica o palor.
Bate agora um sino.
Vibram ondas no ar...
Não tarde o luar
e o céu é divino.
Nuvens de marfim,
ouro, cinza e rosa.
E a orla sinuosa
do horizonte, ao fim.
Último poente.
Sem sofrer, sutil,
agoniza abril
catolicamente.
Por flores, lilás...
Um responso – a calma...
Não há formas: há alma...
Baixa a noite, e a paz.
No silêncio, quando
subir o luar,
águas a brilhar...
Sombras sonhando!
Vão-se as aves... Tem
uma estrela a altura,
que, só, refulgura.
Breve, a noite vem.
Uma asa flutua,
há como um clarão...
E os charcos estão
à espera da lua.
No silêncio, quando
subir o luar,
águas a brilhar!
Sombras caminhando...
Vão-se as aves. Tem
uma estrela a altura
que, só, refulgura...
Breve, a noite vem.
Uma asa flutua.
Há como um clarão...
E os charcos estão
à espera da lua.
Ou, num caso mais célebre, que só mostra como Eduardo detinha um controle absoluto de seu engenho poético:
NA TARDE MORTA (em Cantos da Terra Natal)
Na tarde
morta,
que sino
chora?
Não chora,
canta,
repica,
tine...
Dos matos
Vago
perfume
sobe...
Na tarde
morta,
que sino
dobra?
Não dobra...
Canta
por simples
gozo
das coisas
belas
que apenas
vivem,
a esta hora
triste,
divina-
mente.
Das águas
mortas,
dos campos
quietos,
dos bosques
murchos,
dos charcos
secos,
dos cerros
claros
que se erguem
longe,
dos ninhos
No alto
dos galhos
tortos...
E sobre-
tudo
das cria-
turas!
Em Estâncias de um Peregrino, os temas com que Eduardo trabalha atingem o seu mais alto grau de variedade, mas a sua poesia já começa a apresentar vacilos não antes vistos. É curioso o aparecimento de cantos com cunho social (como em “Setembro de 1915”) ou relatando, como um legítimo viandante, acasos que aparecessem em sua jornada (“Carnaval” e “Bailados Russos”, sobre a passagem da companhia de dança do russo Nijinsky ao Rio de Janeiro). De certa forma, os seus dois melhores poemas - “Embalo Fúnebre” e “Fim de Viagem” -, que inclusive são o fecho do livro - configuram-se como um ponto final na espiritual caminhada da poesia de Eduardo Guimaraens:
EMBALO FÚNEBRE (em Estâncias de um Peregrino)
Sob os ciprestes,
dormem os mortos.
Dormem os mortos
à luz da lua.
Pálida lua,
gélida lua!
Soluça a boca
do que ainda vive.
Oram mãos postas
pelos que dormem
(silêncio!) o sono
da terra, eterno.
De boca em boca,
lugubremente,
passam os réquiens
pelos que dormem
sob os ciprestes.
Vaga a saudade
pelo silêncio
da noite fria.
Oram mãos postas
por quem não vive.
Pálida lua,
gélida lua!
Vê: também morto,
sinto o meu sonho!
Ora por ele,
Pede por ele.
Noite sem astros,
Ora por ele.
FIM DE VIAGEM (em Estâncias de um Peregrino)
Que vos importa ouvir a voz de um peregrino?
Pouco vale saber se cantei ou chorei;
se fiz mal, se fiz bem; se aceitei o destino;
se gozei ou sofri; se amei ou se odiei.
Sou uma sombra a mais no caminho divino...
E como apareci, desaparecerei...
Apesar da qualidade de muitas das suas Rimas do Reino dos Céus(Mansueto Bernardi inclusive chegou a cogitar que, se vivesse por mais tempo e mantivesse a temática religiosa em seus versos, Eduardo Guimaraens poderia ser “o poeta-estandarte dessa plêiade brilhante de poetas religiosos brasileiros formada, dentre outros, por Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Tasso da Silveira, Murilo Mendes, Vinícius de Morais, Francisco Karan, Durval de Morais Paulo Corrêa Lopes”), é-nos evidente que o mais essencial da poesia do autor da Divina Quimera não reside nesse tomo. Foi em Cantos da Terra Natal que Eduardo Guimaraens, que antes já se fazia um dos grandes poetas simbolistas do Brasil, revoou às eternidades literárias, principalmente por se tornar um dos mais profundos cantores das Belezas perenes, delicadas, quase imperceptíveis – por serem tão espirituais - ao ser humano moderno.
A discussão acerca da colocação de Eduardo em uma tríade suprema do Simbolismo brasileiro é complexa e arriscada, inclusive pela constância de análises pautadas em preferências regionais. Quando um movimento, em suas tantas vertentes, tem poetas do quilate de Emiliano Perneta, Gilka Machado, Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Da Costa e Silva, dentre tantos outros, soa-me como uma discussão vã a tentativa de, finalmente, equivalermos o Simbolismo a outros movimentos no que se refere ao fetichismo pela limitação do número de escritores relevantes a três. Suponho ser muito mais vantajoso à memória do movimento simbolista um reconhecimento não excludente de seus autores, consequentemente valorizando as particularidades artísticas e idiossincrasias de cada poeta. E, a partir dessa perspectiva, reconhecer finalmente que Eduardo Guimaraens não somente foi um dos maiores simbolistas brasileiros e da América Latina, mas também um dos mais regulares e profundos poetas de nossa literatura, fazendo-se necessário, diante do grande hiato da única edição de sua poesia completa (A Divina Quimera é, como dito, de 1944), um novo prélio editorial que contenha toda a obra do vate gaúcho.