Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live

Roberto Bozzetti: DUAS PROSAS DE OUTONO

$
0
0


Tenho destratado fantasmas ao longo de todos estes anos, nas várias espeluncas onde calhou que nos encontrássemos.  Quase sempre desperto quando eles chegam, mas nem por isso posso dizer que já tenha aprendido a reconhecer de pronto o momento em que de mim eles se acercam.  Já pensei algumas vezes em registrar os ruídos que emitem – ou que deles emana – ou a sua seqüência, mas em vão, quer esse registro hipoteticamente se fizesse por meio da memória,  quer eu os gravasse num aparelhinho hoje ao alcance de qualquer um.  Se estou naquele estágio entre sono e vigília ou mesmo se francamente acordo súbito, a memória não tem sido capaz de reter nada que me possa ajudar nisso.  Sem saber sequer identificar o primeiro som, o que tentar registrar, e mais,  o que procurar ouvir,  uma vez hipoteticamente registrado?  Mas também não lhes dou, a eles, os fantasmas, ou que nomes queiramos atribuir-lhes, maior importância quando parecem materializar-se à minha frente assim que levanto os olhos do livro que esteja lendo ou quando, no escuro, insinuam seus contornos – inexistentes – no tíbio claro da brasa do cigarro que eu estiver queimando.  Me fitam, em geral estúpidos, e mais de uma vez pensei se ao me fitarem esperavam de mim que de alguma forma eu os reconhecesse. Acho que é isso. Mas nunca conferi, nunca reconheci nenhum. Nunca tive a menor curiosidade de saber por que me apareceram, a mim – e com a freqüência com que me aparecem. Mas em geral o que na seqüência acontece é que acabo  mesmo perdendo as estribeiras. Invectivo, vocifero contra eles, que se vão! que se vão a assombrar hotéis de cinco estrelas ou mansões de milionários, residências oficiais de altos mandatários ou próceres políticos, mas aqui, porra?!  já não basta eu ter que me hospedar neste pardieiro, porque,  afinal de contas, estou vivo e, pra variar,  duro, e ainda tenho que ficar aturando espírito de gente morta que acha que vai me impressionar – ao dizê-lo, atribuindo-lhes tão tola intenção,  me sinto canalha, já que não sei por que de fato me aparecem – e  que só o que consegue é me tirar do meu sono já de natureza leve e que depois tanto me custa  reatar, uma vez rompido? Fodam-se, senhores mortos, penadas almas, sumam... aqui eles geralmente já não mais estão, espero que de alguma forma tenham caído em si, ou no abismo ou nos paraíso que lhes caiba, ou seguido meu raivoso e terrenal conselho.  Fica apenas um certo receio de que definitivamente desistam de mim.

 

 

Eis que justo no momento em que lia a respeito de insetos passeadores sobre folhas de livros, um daqueles bem estranhos que antes já me havia chamado a atenção volta a fazê-lo.  Não que ele tenha atravessado qualquer página, numa demonstração metalingüística desabusada e óbvia, mas porque estava ali, ao lado do livro, arrastando penosamente uma das pernas – mas nem mesmo foi isso que me chamara a atenção de início.  Fora o fato de que ele era inacreditavelmente  bonito.  Parecia-se com um marimbondo, mas o formato da cabeça lembrava o das moscas.  Era esguio e negro, muito negro na armação estável do corpo mínimo, e suas asas, cintilando em prata e vermelho vivo, formavam uma belíssima composição contra o verniz escuro da escrivaninha, ainda mais sustentada pelo arame negro de suas pernas.   Impressionado com sua galhardia, esqueci o que eu estava lendo e fiquei acompanhando atentamente seus movimentos, que ele me parecia inquieto.  Foi então que notei que puxava de uma perna.  E que isso limitava bastante sua desenvoltura e mesmo talvez o impedisse de voar.  Diante do meu nariz, vi como a perninha esticava-se, mas não se recolhia toda.  Deduzi que ele sofria e fiz com que subisse numa folha de papel, para que eu pudesse conduzi-lo para fora não apenas do escritório mas da casa.  Ao mesmo tempo em que tão empenhadamente procurava ajudá-lo, pensava que diabos fazia eu a tentar livrar um pobre inseto da morte dolorosa, talvez nem isso, mas lenta e penosa, pelo menos a meus olhos, já que eu me deparara com ele a um palmo do meu rosto.  Na hora não pensei mas agora, ao escrever, penso em Aristóteles, que diz que o belo supõe senso de proporção, não sendo possível haver beleza em algo desmesuradamente grande ou pequeno por demais, visto que não conseguimos assim ter noção do todo nem do uno.  Se o inseto não estivesse a arrastar-se penosamente em minha escrivaninha não o teria notado;  como o fez, ali estava eu propondo-me salvar-lhe a vida.  O amor à beleza redimia-me, embora eu não soubesse, e ainda não saiba exatamente, de quê.  Mas a sensação, com cujo nome não chego a atinar,  durou pouco, porque esta paisagem palustre que habito é povoada por muitos sapos e assim que dei a liberdade extra-portas à minha cintilante criatura um sapo sem maiores cuidados estéticos abreviou-lhe qualquer sofrimento que ainda viesse a experimentar.

Eduardo Guimaraens: o Poeta da Perpétua Beleza

$
0
0
Saiba o espírito humano a que fervor não falta,
que é tudo amor que o eleva ou beleza que o exalta!
e o ser, que faz melhor a dor que abjeta o ofende,
e que sobre o seu próprio abismo a fronte pende,
sinta que o amir é Deus pelas almas disperso
e a beleza a razão eterna do Universo.

(em Razão Eterna, nas Estâncias de um Peregrino)

Considerado por muitos como o terceiro melhor poeta do Simbolismo brasileiro, o gaúcho Eduardo Guimaraens (1892-1928) foi o autor de uma poesia multicolor, de sensibilidade fina, quase serena – mesmo em seus momentos mais melancólicos -, precursora, no que se refere à delicadeza dos sentimentos, de um Onestaldo de Penanafort e de uma Henriqueta Lisboa. Em sua estética nos deparamos com o curioso deságue das suas intensas leituras de Dante, Mallarmé e dos autores simbolistas belgas, como Maeterlinck. Apesar de toda a sua obra ser composta pela sua Divina Quimera, esta, por sua vez, é formada por cinco livros: A Divina Quimera, Poemas à Bem-Amada, La Gerbe Sans Fleurs (poemas em francês), Cantos da Terra Natal, Estâncias de um Peregrino e Rimas do Reino dos Céus. O fato de Eduardo ter conseguido, já aos 16 anos, a publicação de seu soneto “Aos Lustres” (ainda em um estilo mais parnasiano do que aquele que seria publicado em Cantos da Terra Natal) já demonstrava que o seu destino, à medida que o seu estro evoluísse, era o da eternidade literária.
Eduardo Guimaraens: Relevância em quase tudo que produziu.
Créditos: Sacrário das Plangências 
Comparado ao movimento simbolista gaúcho, Eduardo Guimaraens foi amplamente superior. O que mais poderia ser posto ao seu lado – Filipe d'Oliveira – só deixou uma pequenina obra de poesia propriamente simbolista (Vida Extinta, de 1911), apesar da beleza pungente desta. Zeferino Brasil, o precursor da escola do Símbolo no estado, pecou por sua irregularidade, inclusive temática; o mesmo se observa na poesia de Alceu Wamosy, cujos acertos são grandiosos, porém; Homero Prates foi um grande poeta – detentor de um imaginismo florido – mas que nunca atingiu a altura da poética de Eduardo. O autor da Divina Comédia tem uma obra harmônica em beleza, e, ao contrário do que Massaud Moisés defende em seu História da Literatura Brasileira – Tomo IV, os seus versos livres não se configuram em um erro de escolha, pois evidentemente mantêm a qualidade geral encontrada na obra do poeta.
A Divina Quimera, obra de estreia de Eduardo, publicada em 1916, pode ser encarada – com exceção aos poemas em homenagem aos mestres do poeta – como um grande livro de amor, ao estilo de Vita Nuova de Dante. Quase todo o livro é desenvolvido na penumbra de um melancólico e resignado saudosismo amoroso:

CANTO DOIS – LIVRO I (na Divina Comédia)

Doçura de estar só quando a alma torce as mãos!
Oh! doçura que tu, silêncio, unicamente
sabes dar a quem sonha e sofre em ser o Ausente,
ao lento perpassar destes instantes vãos!

Doçura de estar só quando alguém pensa em nós!
De amar e de evocar, pelo esplendor secreto
e pálido de uma hora em que ao seu lábio inquieto
floresce, como um lírio estranho, a Sua voz!

E os lustres de cristal! E as teclas de marfim!
E os candelabros que, olvidados, se apagaram!
E a saudade, acordando as vozes que calaram!
Doçura de estar só quando finda o festim!

Doçura de estar só, calado e sem ninguém!
Dolência de um murmúrio em flor que a sombra exala,
sob o fulgor da noite aureolada de opala,
que uma urna de astros de ouro ao seio azul sustém!

Doçura de estar só! Silêncio e solidão!
Ó fantasma que vens do sonho e do abandono,
dá-me que eu durma ao pé de ti do mesmo sono!
Fecha entre as tuas mãos as minhas mãos de irmão!

A Divina Quimera, apesar de sua perspectiva amorosa, não deixou de trazer em seus versos as tão tradicionais – para a época - homenagens aos mestres do autor, fazendo com que os poemas “Túmulo de Baudelaire” (do poeta das Flores do Mal, que se diga, Eduardo foi um considerado um dos melhores tradutores para o Português) e “A Stéphane Mallarmé” configurassem em clássicos do estilo. Vejamos um dos casos:

A STÉPHANE MALLARMÉ (na Divina Comédia)

De que lábio fatal, de anjo ou demônio, vinha
essa harmonia estranha, esplêndida e secreta,
que a tua voz ardente e solitária, Poeta,
como um mistério obscuro e rútilo, continha?

Era, acaso, a visão celeste, linha a linha,
renascendo, através da tua insônia inquieta
ou, dos tempos ferindo a inércia hostil, a seta
infernal que num arco a tua mão sustinha?

Mas, do inferno ou do céu, que importa? É bela: e é tudo!
É bela a voz ignota à boca fugitiva
que, alto, sinistro e eterno, o Azul apavorou!

E é bela a mão febril que, a um gesto lento e mudo
do sonho ainda por vir a rosa rediviva
- tal a de um semeador magnífico – semeou!

Já em Poemas à Bem-Amada, apesar do que nos possa sugerir o título, a sua poética atinge outras elevações: a metafísica, até então rara, começa a se fazer mais comum, mesmo à sombra da constante perscrutação por uma Musa “bela como nenhuma”. Eduardo já começa a desenvolvernessa obra as suas colorações de poente que se tornariam tão intensas e particulares em seus seguintes livros e, essencialmente, a sua emoção começa a se tornar serena, no grau mais sugestivo, imagético possível, como nessa

EFUSÃO (em Poemas à Bem-Amada)

Pelas noites de inverno e quando baixa a calma
do esperado repouso, e a vígil quietude
do céu torna divina a humana solitude,
sente um exílio igual ao das estrelas a alma.

De tudo emerge então um desejo profundo:
ser feliz... E, surpresa, esta ânsia mal contida
de estreitar contra o seio a tristeza da vida
e perfumar de amor a miséria do mundo!

Ainda nos Poemas à Bem-Amada, Dante, inegável influência para o poeta, torna-se um alicerce estético nos tercetos de “Beata Beatriz”:

(…)

Nesse pio e celeste olhar benigno
será clara a candeia de óleo eterno
que há de dar luz pelo trevor maligno.

E, como Dante que passou o Inferno,
acharei a adorada Criatura
que amou o seu amor severo e terno.

E ante a doce Visão suave e pura
que minha voz cantou como tal fervor,
olvidarei a minha selva escura

e erguerei, como um lírio, o meu amor.

(no Cântico Primeiro)

Eduardo Guimaraens muito provavelmente atinge o seu ápice em Cantos da Terra Natal. É uma obra em que as temáticas teoricamente opostas (metafísica e materialismo, por exemplo) e versos em formas variadas, às vezes livres - mas sempre com perspectiva divinatória em tudo quanto existe – causam-nos a sensação melódica e imagética de uma serena missa composta pelo renascentista Giovanni Palestrina. Aliás, muito da alma poética de Eduardo perambula entre as divinizações presentes na Idade Média e no Renascimento e entre uma Modernidade em que a crise dos ídolos tornava-se evidente. O poeta, que pouco a pouco converteu-se ao Catolicismo – mas nunca chegando a ser um praticante -, talvez tenha sido um dos grandes cantores desse abalo do ethos dos símbolos que tempos antes eram considerados perpétuos; o próprio Amor que Eduardo celebra – imortal, superior ao tempo, um reflexo perfeito da Beleza que não morre -, é um dos exemplos evidentes.

Em vários aspectos, Cantos da Terra Natal é um dos livros mais perscrutadores de nosso Simbolismo, com alguns poemas de beleza imensurável. Os temas amorosos estão em melhor equilíbrio com outros, mas ainda de importância inestimável ao poeta:

DESEJO (em Cantos da Terra Natal)

Desejo, desejo vago
de ser a tarde que expira,
ser o salgueiro do lado,
onde a aragem mal respira.

Ser a andorinha que voa
e vai, ser o último raio
de sol... E o sino que soa.
Ser o frescor do ar de maio.

Ser o eco da voz distante
que além se extingue dolente
ou essa folha que, errante
ao vento, cai docemente...

Ser o reflexo disperso
dum ramo n'água pendido,
fluido e belo como um verso
que cante mas sem sentido!

Ser o silêncio, esta calma.
Breve momento impreciso.
Ser um pouco de tua alma...
Um pouco de teu sorriso.

Há, no pequenino “Inocência”, um diálogo com o poema “O Sol” do paranaense Emiliano Perneta, revivendo, de certa maneira, a percepção de renascimento universal de Sócrates. Enquanto o poeta de Ilusãonos canta:

Quando o sol aparece em ondas, a beleza
E a frescura que espalha é de tal natureza,
Tem um olhar tão bom, tão novo, tão jocundo,
Que toda madrugada é o começo do mundo...

Descreve-nos, cheio de sentimento cromático, Eduardo:

Inocência das cousas. Pura
suavidade
da alva que surge. Paz, frescura,
simplicidade!

Nitidez do orvalho. Profundo
céu. Ri-se a aurora...
Milagre. Dir-se-ia que o mundo
nasceu agora!

Os poentes de Eduardo Guimaraens são dos mais belos já descritos na poesia brasileira. Para Mansueto Bernardi, grande amigo do poeta e autor do magnífico prefácio da Divina Quimera de1944 (Poesia Completa), isso não passava de uma consequência dos crepúsculos gaúchos, vagarosos e profundos, que inspiraram por completo o poeta. Um dos exemplos é este

POENTE LAGUNAR (em Cantos da Terra Natal)

Sopra o vento frio...
Sopra o vento sul.
Brilha o céu azul
como um céu de estio.

Per de a relva a cor,
seca, amarelece.
Da luz, que esmaece,
mal fica o palor.

Bate agora um sino.
Vibram ondas no ar...
Não tarde o luar
e o céu é divino.

Nuvens de marfim,
ouro, cinza e rosa.
E a orla sinuosa
do horizonte, ao fim.

Último poente.
Sem sofrer, sutil,
agoniza abril
catolicamente.

Por flores, lilás...
Um responso – a calma...
Não há formas: há alma...
Baixa a noite, e a paz.

No silêncio, quando
subir o luar,
águas a brilhar...
Sombras sonhando!

Vão-se as aves... Tem
uma estrela a altura,
que, só, refulgura.
Breve, a noite vem.

Uma asa flutua,
há como um clarão...
E os charcos estão
à espera da lua.

No silêncio, quando
subir o luar,
águas a brilhar!
Sombras caminhando...

Vão-se as aves. Tem
uma estrela a altura
que, só, refulgura...
Breve, a noite vem.

Uma asa flutua.
Há como um clarão...
E os charcos estão
à espera da lua.

Ou, num caso mais célebre, que só mostra como Eduardo detinha um controle absoluto de seu engenho poético:

NA TARDE MORTA (em Cantos da Terra Natal)

Na tarde
morta,
que sino
chora?

Não chora,
canta,
repica,
tine...

Dos matos
Vago
perfume
sobe...

Na tarde
morta,
que sino
dobra?

Não dobra...
Canta
por simples
gozo

das coisas
belas
que apenas
vivem,

a esta hora
triste,
divina-
mente.

Das águas
mortas,
dos campos
quietos,

dos bosques
murchos,
dos charcos
secos,

dos cerros
claros
que se erguem
longe,

dos ninhos
No alto
dos galhos
tortos...

E sobre-
tudo
das cria-
turas!

Em Estâncias de um Peregrino, os temas com que Eduardo trabalha atingem o seu mais alto grau de variedade, mas a sua poesia já começa a apresentar vacilos não antes vistos. É curioso o aparecimento de cantos com cunho social (como em “Setembro de 1915”) ou relatando, como um legítimo viandante, acasos que aparecessem em sua jornada (“Carnaval” e “Bailados Russos”, sobre a passagem da companhia de dança do russo Nijinsky ao Rio de Janeiro). De certa forma, os seus dois melhores poemas - “Embalo Fúnebre” e “Fim de Viagem” -, que inclusive são o fecho do livro - configuram-se como um ponto final na espiritual caminhada da poesia de Eduardo Guimaraens:

EMBALO FÚNEBRE (em Estâncias de um Peregrino)

Sob os ciprestes,
dormem os mortos.

Dormem os mortos
à luz da lua.

Pálida lua,
gélida lua!

Soluça a boca
do que ainda vive.

Oram mãos postas
pelos que dormem
(silêncio!) o sono
da terra, eterno.

De boca em boca,
lugubremente,
passam os réquiens
pelos que dormem
sob os ciprestes.

Vaga a saudade
pelo silêncio
da noite fria.

Oram mãos postas
por quem não vive.

Pálida lua,
gélida lua!

Vê: também morto,
sinto o meu sonho!

Ora por ele,
Pede por ele.

Noite sem astros,
Ora por ele.

FIM DE VIAGEM (em Estâncias de um Peregrino)

Que vos importa ouvir a voz de um peregrino?
Pouco vale saber se cantei ou chorei;
se fiz mal, se fiz bem; se aceitei o destino;
se gozei ou sofri; se amei ou se odiei.

Sou uma sombra a mais no caminho divino...
E como apareci, desaparecerei...

Apesar da qualidade de muitas das suas Rimas do Reino dos Céus(Mansueto Bernardi inclusive chegou a cogitar que, se vivesse por mais tempo e mantivesse a temática religiosa em seus versos, Eduardo Guimaraens poderia ser “o poeta-estandarte dessa plêiade brilhante de poetas religiosos brasileiros formada, dentre outros, por Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Tasso da Silveira, Murilo Mendes, Vinícius de Morais, Francisco Karan, Durval de Morais Paulo Corrêa Lopes”), é-nos evidente que o mais essencial da poesia do autor da Divina Quimera não reside nesse tomo. Foi em Cantos da Terra Natal que Eduardo Guimaraens, que antes já se fazia um dos grandes poetas simbolistas do Brasil, revoou às eternidades literárias, principalmente por se tornar um dos mais profundos cantores das Belezas perenes, delicadas, quase imperceptíveis – por serem tão espirituais - ao ser humano moderno.


A discussão acerca da colocação de Eduardo em uma tríade suprema do Simbolismo brasileiro é complexa e arriscada, inclusive pela constância de análises pautadas em preferências regionais. Quando um movimento, em suas tantas vertentes, tem poetas do quilate de Emiliano Perneta, Gilka Machado, Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Da Costa e Silva, dentre tantos outros, soa-me como uma discussão vã a tentativa de, finalmente, equivalermos o Simbolismo a outros movimentos no que se refere ao fetichismo pela limitação do número de escritores relevantes a três. Suponho ser muito mais vantajoso à memória do movimento simbolista um reconhecimento não excludente de seus autores, consequentemente valorizando as particularidades artísticas e idiossincrasias de cada poeta. E, a partir dessa perspectiva, reconhecer finalmente que Eduardo Guimaraens não somente foi um dos maiores simbolistas brasileiros e da América Latina, mas também um dos mais regulares e profundos poetas de nossa literatura, fazendo-se necessário, diante do grande hiato da única edição de sua poesia completa (A Divina Quimera é, como dito, de 1944), um novo prélio editorial que contenha toda a obra do vate gaúcho. 


dentro

A Gaveta - Chico Lopes

$
0
0
Ilustração : Mimus Vitae



- Estou apaixonada.
Pensou alto. Olhou ao redor para se alguém a ouvira falando sozinha, mas o bar estava quase vazio. Tranquilizou-se. “Estou apaixonada”, continuou, mas agora só em pensamento e repetiu a afirmação para si vezes sem conta, como uma oração, um pouco como se ela ainda não tivesse a convicção devida e precisasse ser reforçada para que fossem eliminadas as suas margens de perplexidade.
“Estou apaixonada”, e bebia um café vagarosamente. De repente, o pequeno ato lhe pareceu solene, as coisas precisando ser fruídas com cuidado, com adoração. Pensou que a palavra “esmero” resumia a maneira com que segurava a xícara e bebia. Era delicioso e era exasperador, havia naquilo algo intensamente bom, mas quebradiço. Tremia. Sofria dos nervos, não saía sem calmante na bolsa. Fosse como fosse, estava viva e era bom estar viva, mas, meu Deus, poderia ser menos delicado, menos solene. “Tenho medo”.
Ele já era mais para maduro, tinha um começo de calvície, mas os poucos cabelos pareciam tão macios, tão leves, tão suavemente pretos! O melhor, porém, era o segredo: não contara a ninguém, nem mesma a Anita, o que estava sentindo, quemera o que sentia. O segredo completo lhe dava uma sensação de superioridade mística, de exclusividade transcendente, “sou uma sacerdotisa, guardo o deus que ninguém viu.”
Olhou para as mãos – era preciso que estivessem limpas, limpíssimas, tinha hora na manicure e usaria aquele esmalte rosa muito peculiar que vira nas unhas de uma freguesa outro dia. Impecável, era preciso estar impecável. Gostava do adjetivo: sintetizava com perfeição a claridade do dia de abril, a limpeza das ruas, as flores da chuva de ouro no calçamento, o vento discreto, as conversas e risadas dos corretores ociosos na esquina da praça, o cheiro de carne com batatas em alguma panela nos fundos do bar, um assovio, vago ruído de torneira mal fechada, pardais, lembranças de um trecho de concerto para piano e orquestra de Schumann, vida, vida, e Ele.
                                                   

Tinha os olhos bem pretos, mas luminosos – sim, há escuridões radiantes, as minas, os poços, buracos sem fundo em cujas paredes luzem obscuras pedras preciosas. A boca opulenta, oferecida, quase obscena pela grossura dos lábios, mas nobre. Um bigode preto, preto, pretume denso de alguma relva ônix num vale de maciez sobrenatural, algo do luxo, do conforto de um assento particularmente negro de coche mortuário. O bigode. Orelhas pequenas, nariz um pouco rapace, queixo bem rijo. O mesmo preto de sonho nos pelos do peito.
Subitamente, teve uma palpitação muito forte, persignou-se, tinha medo dessa intensidade de amor. “Estou completamente perdida”. Era querer mais que a vida, era compactuar com alguma estranha legião de idólatras que descessem ao esgoto em busca de excrementos de ouro.
Saiu rapidamente do bar. E, na rua, de novo ficou feliz. Pensou no jogo de buraco marcado para a noite na casa de Anita, na biblioteca a reabrir na segunda-feira, no dever de ir à missa das oito com a mãe. E pensou em homens inúmeros, vagos, erráticos: o menino insinuante, vulgar, da floricultura, que estaria fazendo agora seus 17, 18 anos; o gerente do cine Esmeralda (era sabido que carregava mulheres para o escritório dos fundos); o açougueiro Nelson, com o boné puxado sobre o olho, cravando olhares carniceiros sobre mulher qualquer que lhe pisasse no estabelecimento; o frentista do posto, o bancário, o corretor palitando os dentes, o gesto de um, o sorriso de outro, ancas, pernas, shorts, pelos, risadas, braguilhas contra as quais os olhos não podiam lutar.
Anita lhe dizia: “Eu passo mal, você sabe. A gente só adivinhando, só querendo... Não te contei ainda? “ – e vinha a história da mulher do proprietário do hotel Star, que não perdia viajante bonito, surpreendida com o vendedor de enxovais pelo marido, ajoelhada. “E o sujeito se levantou pelado e alegou que não tinha nada a ver com aquilo... Pode haver coisa mais indecente, querida?” – Anita quase gritava, rindo. Adorava enumerar os mais pavorosos detalhes, obrigava-a a tapar os ouvidos, a correr para outro aposento.
Horríveis, todos os homens. Mas, não, não havia ninguém como Ele. Com Ele, nenhuma dessas atrocidades: haveria dor, pois era um macho, mas o êxtase compensaria. Ninguém saberia. Ninguém, exceto ela, o conhecia. E tremia porque seria hoje à noite.

                                                                
A missa acabada, telefonou para Anita dizendo que não iria ao buraco, “estou indisposta, cansada, uma dor de cabeça... vou tomar um analgésico, ler um pouco, depois dormir...” “Você só me dá canseira, hem? Não te convido mais...” Dona Palmira via um programa humorístico na televisão. Seu Olavo, o vizinho de parede-meia, ouvia alto uma transmissão de futebol.
Muito barulho para seu gosto. Era questão de ter paciência. Com o silêncio de lá pelas onze, onze e meia, Ele viria. Foi arrumar alguma coisa na cozinha. Ouviu um pio de pássaro desconhecido, começou a balbuciar uma Ave Maria. Tão nervosa, deixou espatifar-se um prato; a mãe acorreu para reclamar e ajudá-la a recolher os cacos, achou-a pálida, esquisita. “Não é nada não”, garantiu, mas estranhou a própria voz: era e não era a sua. Parecia-lhe deformada, involuntária, a voz de uma Beatriz maligna, independente, nem um pouco humilde, nem um pouco respeitosa, nada do que se pensava a seu respeito e era forçado por seu comportamento previsível. A “boa moça” nada podia contra aquela força que parecia misturar desprezo, zombaria e uma avaliação implacável, obscena, de si mesma. Precisou ir olhar-se no espelho para verificar se o rosto não estaria um pouco retorcido. Nada. Graças a Deus, era ela ainda. Linha por linha.
E então? Cessaram os ruídos. Agora ouvia apenas a tosse da mãe, uns vagos automóveis passando longe, um vento algo mais pronunciado na espirradeira junto à janela do seu quarto. Abriu-a. Acendeu um cigarro, dos que fumava escondida da mãe. Havia um cão magro lamentando do lado de fora do portão. Alguma ave noturna ruflou rápido por sobre a casa. Estava impaciente. Ia da janela para o interior do quarto e daí voltava para a janela. Não teria sido melhor se houvesse cancelado o encontro? Mas, não demorou para que a sombra familiar, densa, apontasse na esquina, como de hábito. Mantivera-se lá, íntima e desconhecida, até a noite de hoje, para a qual fora marcada a aproximação. Ele fez um sinal, ela assentiu.

Enquanto a mãe chorava incontrolavelmente na sala, mas ainda achando voz para explicar, contar feitos e virtudes da filha, oferecer café, perguntar de doentes e ausentes, Anita andava pelo quarto. Dona Palmira em nada tocara, supersticiosa. Anita via a janela aberta, o criado-mudo, o abajur, o guarda-roupas, tudo perfeitamente em ordem. A morta estava impressionante: cabelo arrumado, cara branca, branca, um jeito de querer sorrir na boca, o vestido azul turquesa (Anita sabia que era o seu favorito, o “de ver Deus”, como ela brincava), batom, unhas feitas, um esmalte que nunca a vira usar. “Estava indisposta, com dor de cabeça”, ela ouvia dona Palmira dizer no corredor, “...e não se queixou comigo, Anita que me disse. Quebrou um prato. Coitada, a aparência não era boa”, e de novo os soluços, os gritos. “Era cardíaca, sempre suspeitei que fosse cardíaca. Mas o Dr. Calixto dizia que era só nervosismo.”
Anita olhava para a cama. E sempre atentando para cada pormenor do quarto, sentia que tudo ali era incomodamente correto, limpo, organizado; pensou que havia naquilo um asseio exagerado, mas, bem, Beatriz sempre fora um tanto maníaca em questões de limpeza e ordem. Maçante às vezes, por que não pensá-lo, embora estivesse morta? Arrependeu-se do pensamento, imaginando que ela o ouviria. Foi à janela e olhou para rua, para a esquina.
Não era estranho que quisesse ficar ali, que o quarto a atraísse como um santuário obscuro? Poucas vezes entrara nele, Beatriz era ciumenta de sua privacidade, mesmo com ela, a melhor amiga.
Subitamente, interessou-se pela penteadeira com uma curiosidade incomum. Aproximou-se do móvel. Era perturbador pensar que haveria um olhar, ainda que fosse o olhar de uma morta, às suas costas, para censurar essa indiscrição compulsiva: abrir a primeira gaveta. E Dona Palmira, não poderia entrar a qualquer momento? Não: chorava e tagarelava na sala.
A gaveta não continha nada exceto uma fotografia, e bem grande. Não, não era uma fotografia, mas um recorte de revista. Mostrava um homem extremamente sedutor, um quarentão, camisa entreaberta no peito, um cigarro nos dedos, encostado a um poste de uma esquina manifestamente falsa, um cenário.
Era uma propaganda de colônia masculina. A imagem era de um realismo quase ideal, de um preto e branco que oferecia tudo, a precisão técnica podendo ser classificada como impecável. Impecável, caiu nas mãos de Anita, o recorte feito com o capricho típico de Beatriz. “Que homem!”, Anita suspirou, apalpando o peito, e fitou o rosto no recorte longamente. Teve a impressão de que seu olhar era correspondido com ardor, com familiaridade, pelo do fotografado.
Dobrou o recorte cuidadosamente e enfiou-o na bolsa, olhando para a morta como a pedir-lhe desculpas. Deixou o quarto. Tinha uma expressão perfeitamente digna, conveniente, compungida, para falar com Dona Palmira e os presentes, que esperavam lá embaixo a chegada do caixão. Exultava com seu segredo. Saberia ocultá-lo.

(de “Nó de sombras”)

Chico Lopes



6 poemas de Jeferson Bandeira

$
0
0
Ilustração : AquaSixio




astuto marinheiro

foi em noites lilases de conchas e algas
flutuando em mares ecos de sereias
e de harpas em sinfonia de nuvens cordas soltas

que te disse: espera-me.

ainda eu tinha um pouso,
indeterminada insônia,
era natural que minhas setas já tivessem
alvejado o lóbulo de corações inexperientes em mares.

e fui, como astuto marinheiro,
arrastando as plagas
de territórios beijos vaporizados,
carícias mínimas.

eis que o grande lobo do mar rugiu no peito-mor.
hoje apenas me resta dizer: esqueça-me.

o feitiço jogou as velas contra o rochedo.



apenas uma ilusão

por que querer da lua
um rosto, um aroma, uma identidade?

fazem juras eternas,
empunham sentimentos etéreos,

e para quê?

quem cobrou o quê?

é apenas alguém que se afoba,
come segundos com tamanho ímpeto.

na desordem dos sonhos,
caça escritos em papel carbono
para estampar um amor,
mais puro suborno,
entre almas ausentes de adorno.

no branco da lua não há o que vê

- nem se vê nada –

é apenas uma ilusão sequer escapulida do casulo.



*
tuas asas, fênix, travadas nas cinzas.
poeta da musa, caíste em desuso.
o belo arquétipo, as inalcançáveis musas,
a arte pela arte, a forma pura, enxuta e sublime
desabaram do trono, tiveram o cetro quebrado, o pedestal violado.

olha, ó irmão das letras, o redor nos chama, nos clama,
não ofenda a linhagem - o rebanho ao qual se insere.
deixe os doutos, os senhores da lei, a deslocada arcádia,
lime seu cinzel, mas o teste na língua: a poesia lhe deve sangrar;
comungue da dor de teu povo, respire dessa fuligem,
absorva o que polui corpo, alma e futuro,
depois devolva a natureza em seus versos,
recicle todo ato perverso, não tema a esfinge de concreto.

é hora de repatriar o universo literário,
é hora de criar um rebanho novo, sem receio do matadouro,
dispa-se dessas vestes que mascaram seus estigmas,
é hora de partir rumo a novas ideologias,
ideologias que nos façam viver, não fenecer nesse estapafúrdio
“Paraíso na Terra”.

poeta, poeta, poeta, não se orgulhe de tal título,
se não passa uma noite em claro, se não se flagela enquanto escreve.

poeta, não está distante do que escreve,
porque cada palavra lhe insere, ferra, marca e estampa.
não se iluda com louros, homenagens, adulações,
seu valor está no ser desvalido que se levanta,
na garota que não beija o freguês,
que não tem tempo nem amor para abraçar o filho,
que passa as madrugadas num paupérrimo berço de uma viela escura e a perigo,
longe da inexistente lembrança de um pai,
que traído pelo insucesso de um coito interrompido não quis interromper a adolescência.

a fuga seria um remédio, poeta, mas teu mal é incurável.

é, poeta, seu almejado feito imagético não deve passar de um fardo poético:
um feto estético que surge no asfalto e embasbaca os transeuntes.

mas ninguém o envolverá em tecidos valiosíssimos, muito menos o aplaudirá,
terão repulsa, e é bom que a tenham, porque sua escrita infecta, revela,
e é sentindo na pele que nos livramos de falsos moralismos,
de hipócritas compaixões, de vãs tristezas que nunca serão nossas
porque as lançamos sobre os outros e endossamos para que assim permaneçam.

é, poeta, seu poema é infecto,
não há beijos idealizados, abraços roubados, arroubos de paixões,
pele, seda, sede, espasmos, ereções e orgasmos.

poeta, seu poema é vírus; não é socialite, mas mero indigente.
poeta, não te posso levar ao estrelato, apenas te rogo uma prece:

que cada um de teus versos voe longe e de amor nos infecte, urgentemente.



Nada idílico mundo

Surge como acordes marítimos, dissonantes ecos,
feita da espuma que forjou Afrodite:
forma de mares nunca antes navegados.

Gestaram-te as profundezas dos tapetes que fizeram deslizar as naus aquinas,
e louvores aos teus bustos rendem cegos olhos sob inebriante fulgor.

Avisam-me que te provocar é precipitar um maremoto,
depois se ver largado ao volume de tuas ondas.

Solto-me, desprezo as lições de astúcia de Odisseu,
deixo a adaga do canto perfurar e se assentar em delírio no coração,
levar-me ao desmaio, e então me encontrar desacordado nas areias de teu domínio.

O ato de acordar é renascer, é captar outras linguagens, é decifrar as águas salgadas da volúpia.

Pérola, vulva, arca de imensuráveis espasmos.

Meu corpo é despojo de teu amor.
Meu corpo pegajoso desse teu orgasmo, que me tatua tua história de aventuras.

Meu corpo em tua alma, meus olhos vagando como restos de um navio imerso.

Gritam-me "tolo, ignóbil, infante", como que não aprendo a lição através do tato,
nesse quadro negro já marcado pelos sulcos do pungente giz.

Digo-lhes que tento, arrependo-me de não ter feito de tudopara mergulhar nessas águas
e não ter mais que me secar nesse nada idílico mundo.



Gênese

Como arrancar de meus versos,

a dente,
a faca,

sem dores ou efeitos adversos,

a poesia que aflora,

decanta,
encanta,

feito o ontem no agora?


Pinço em tua retina

o sal das horas,
o sol das docas,

o vislumbre na mina.


Caio nos veios de tua alquimia,

babo,
bebo,

desteço o tapete da conquista.


Alcanço a constelação de tua pupila

lustro,
construo,

me edifico: sopro que molda a argila.



Nós

Há algo no teu sorriso,
que por ser impreciso
é tudo que preciso.

Talvez não entenda
que sempre me renda
ao que em ti é fenda.

Oriundo de um ventre,
se ouço um: - Entre,
meu corpo se prende.

Só não me critique,
se para mim é chique
ouvir-te um: - Fique!




Jeferson Bandeiraé natural de Curitiba/PR. Nascido em 1980, é professor e escritor. Para ele, a vida de professor e escritor se resume a ensinamentos e aprendizados, e é daí que se tiram os melhores resultados. Escreveu Agonias Ilustradas (2012), é um livro-baralho, composto por 108 micronarrativas. Recentemente participou de uma antologia de poemas chamada Vozes de uma alma, a qual está em trabalhos finais de diagramação.

 

13 POEMAS DE JACINTO FABIO CORRÊA

$
0
0









TRAPEZISTA

Cena 1: a pequena plataforma
sustenta meus pés.

Cena 2: expectativa. Grande distância
para alcançar o trapézio.
Mas alguém, em breve, do outro lado,
o lançará em minha direção.

Cena 3: Preparativos para o salto. Um passo à frente.
Vento leve. A coragem para o vôo. Impulso.

Cena 4: Mergulho. Corpo no ar. Pés sem chão.
Minhas mãos se abrem à espera do encontro.

Cena 5: O trapézio não me é jogado.
Instante de angústia. Desequilíbrio na respiração.
Cambalhota desengonçada no espaço.
A elegância do salto espelhando
a deselegância do tombo.

Cena 6: Alguém, por motivos desconhecidos,
manteve o trapézio nas mãos.
Por amadorismo, esqueceu que existe
apenas um único momento-exato
para que tudo saia perfeito.
Por indelicadeza, não me deixou receber
um aplauso que era meu.
Por temer a altura, reteve consigo a salvação.

Cena 7: a rede ameniza a dor.


(do livro Entre dois invernos, 1989)







  
ANTROPOLOGIA

Na janela que fechava
tornava-se proibida
a entrada das águas.
Tanto que chovia.
Mas entre a minha dor e a de Deus
prevaleceu o conforto seco de meu pranto.

(do livro Cenas nuas, 1990)




ASAS

O corpo dobrou-lhe as pernas.
Ia-se o menino.
Não mais via os faróis
que fingiam não vê-lo
atropelado e morto.
Da fotografia no jornal
tive medo de que recolhessem
sua alma encolhida
para estudos.

(do livro Jogos urbanos, 1992)








FOLCLORE

Não tenho o que dizer a mim mesmo.
Náufrago de memória roubada, rezo
cantando tangos e sambas
entre a Buenos Aires e a Carioca.
Perdido na Uruguaiana
não sei com que sabor ou ritmo
me enganar.

(do livro O derrame das pedras, 1994)




PEDAÇOS 34

Não mais tecerei compromisso 
nem mesmo com o que há de melhor.
Me permitirei uma liberdade estranha e vulgar
exercício de um tanto da dor
acrobacia de um esforço sem tamanho.
Terei trabalho.
É que em meio a toda pressa
não sei esquecer o bilhete de metrô em casa.

(do livro Pedaços, o parasempre da hora, 1996)







SUMÁRIO

Quando fecho as portas de meu sonho
protejo o que esqueceu em mim.
Viro pai e mãe do que não se transforma
e fica
tornando-se parte do futuro que se anuncia
e não chega.
Cumpro a profecia
colecionando objetos de pouco valor
adquiridos em feiras de antiguidade.
Tudo em mim combina com facilidade
Muitas vezes, sem querer, danço tango
ao som de um arrastado bolero.
Muitas vezes, quando posso, sou feliz.
O circo
o riso à distância
o eco do aplauso
tudo em mim é passível de sonho jamais desfrutável.
Não sei como suporto saber
da existência do contorcionista que me rouba gestos.
Tropeço na aurora do dia e peço desculpas.
Quando olho para trás de tudo me vejo.
Todas as vezes que morro
me enforco com a corda do horizonte
e fico
como que à cruz, esperando o sol se pôr.
Apenas para ser maternalmente salvo pela lua
e confessar :
o amor que ficou não cabe no tempo.

(do livro O diário do trapezista cego, 1999)





CONTÍNUA

A sombra não possui ossos
e ainda assim sustenta
corpos, costumes e convivências.
A sombra não possui rugas
e ainda assim tomba
costas, culpas e curvas.
A sombra descansa no breu
mas nunca dorme
A sombra é o cão que guarda
mas nunca rosna
A sombra não é geométrica verdade
A sombra não é amiga
A sombra não passa em roletas
A sombra não passa de uma memória exilada
A sombra só se veste com o sangue divino
A sombra só se despe em réquiem alheio
A sombra não vale a luz que a mantém
A sombra não vale o chão que pisa.
Eu já não possuo uma sombra.
O que se vê a me seguir nas calçadas
como numa estranha procissão de mudas beatas
é a alma, em seu constante e frenético movimento,
à cata da moldura exata para o nosso auto-retrato no mundo.

(do livro Poemas casados, 2003)








POEMA DE MADRI

Madri me pede olhos felizes.
Não posso.
Dou-lhe quase silêncio
a gemer em sua honra.
A cidade amanheci morta
para horas ou séculos depois
vê-la nascer noturna e iluminada.
Madri tem de mim a poesia mutilada
roçando no pouco ar
a minha dor estrangeira
numa terra sem mar
a chorar arcos, orvalhos e frio.
Fora de mim não há latidos ou exílios
tudo parece caber nos jardins da memória.
Na rua ninguém segue
o meu cortejo de sangue coagulado em tons de escarlate
porque ninguém sabe
o que é perder mortos e enterrar monumentos.
Cega e triste Madri.

(do CD Sinais urbanos, 2005, com canções de Paulo Corrêa)
  



VIGÍLIA

Seu corpo já voltou
e adormece cansado do mundo
no quarto que parece tão distante.
No sofá da sala
mantenho-me a postos
flutuante ante o abismo da madrugada.
Aqui ficarei
até o seu desejo voltar
pés descalços, sapatos na mão
e um pedido de perdão
enrolado no jornal do dia.
Isso não são horas de chegar
nem de pedir itinerários ou explicações.
Apago o último abajur
e recolho-me sem ler as manchetes.
A sua alma ou a minha
varre a casa em silêncio.

(do livro Poemas caseiros, 2007)







LASCÍVIA

Quem ele pensa que é?
Redentor de mágoas
Feitor de milagres
Criador de destinos?
Será que se acha Deus para me reinventar humano
encharcar minha pele de febres
abençoar meu gozo com estrelas
e me fazer perder o chão e o bom senso ao reconhecê-lo Deus?
O que quer este Deus de barro
em seu andor de luzes frescas
procissão secreta pelas ruas da cidade
a levar meus olhos para o porão do mais profundo desejo?
Vai ver é Deus ao avesso
que nem se preocupa em cuidar desta alma
a pressentir cheiros devastadores
a confessar crimes não cometidos
a correr perigos desnecessários
alma que é capaz de mentir por um gemido banal.
Não, não pode ser o Deus
que mora nas bíblias torás corões evangelhos,
nos rituais sacrifícios salmos presságios
não o Deus que aprendi a amar e a temer sobre todas as coisas.
Não, possui pêlos e instintos selvagens
sorri como uma tarde quente da adolescência
é meio leopardo meio potro
índio demais para ser o todo poderoso.
É Deus nada, mas tudo pode
sorvete no frio missa sem altar carnaval em abril
até inibir velhinhas com carinhos obscenos em mim.
É Deus sim, se fosse apenas um homem
não lembraria tantos atalhos em meu corpo
ao menos esqueceria datas
nem se importaria em meu prazer ser sempre sagrado.
E o que fazer com este Deus de flor
tesa aberta primaveril rosa cravo peninsular
a me invadir de breves mares a cada beijo?
Pelo sim, pelo não, Deus
balbuciado na oração do santo do dia
para que Deus o conserve Deus
nestas intermináveis horas de lascívia.

(do livro Poemas simples, 2007)

  



PROMISSÃO

À noite, enquanto todos dormem

cubro os solos com palha
desenho flores e casas ribeirinhas
afago iaras e curupiras à beira-mar
ajeito a fantasia de bate-bola das estrelas
sopro nas árvores as franjas palmeiras
escovo as costas caboclas das montanhas.
Na quietude de cirandas sonhadas
coroo tupã deus do universo
em trono de lua enfeitada por bambus e bananeiras.
Ainda não é tarde para amar este país.

(do livro Silenciário, 2010)








(sem título)

Faço poemas para os maus indícios
intolerância aos ventos
embarcações fadadas a naufrágios.
É para essa gente desgovernada de paixões que escrevo
ainda que eu apenas escondido as viva.
Sou o porta-voz do caos amansado
inofensivo aos que pouco temem: somos iguais.
Não há praia, somente rebentação
o centro, por excelência, em espirais.
Meus versos abençoam os maus agouros
e rezam pelas melancolias.
Nada tenho contra as luminosidades
mas só visto a manhã com os trapos da lua nova.
Sou eu o navegante sem bússola
certo em seu destino de conhecer
os algaços que recusam a beira.

(do livro Casa de Algaços, 2012)




O INDEVIDO

Prazeres e amargores se misturam
no azeite denso da memória.

O que semeei no corpo amado
provei rascante em mesa alheia:
fui de quem o suor só exalava pedras de sal.

O que de fato floresceu
rompeu as fronteiras da alegria temperada
e me entornou o aroma de mais querer.

O desejo obrigou-me a regar o indevido
porque apenas no indevido posso manter intacto
o sabor que o outro não mais reclama.

(poema inédito, 2013)








Fotos: Arte de Jess Riva Cooper




*    *    *






Carioca de 1960, Jacinto Fabio Corrêa, é poeta, jornalista e publicitário. Publicou seu primeiro livro "Entre Dois Invernos", em 1989. Jacinto já lançou onze livros de poesia, dentre os quais, "O Diário do Trapezista Cego" (1999), "Silenciário" (2010) e "Casa de Algaços" (2012); lançou também o DVD "Um diário para dois" (2008) e o CD de poesia e música "Sinais Urbanos" (2005), com o compositor e cantor Paulo Corrêa.






F E M I N I L I D A D E

$
0
0
F E M I N I L I D A D E

                                                  
A dominação é extremamente ambígua.
Despedimo-nos a cada encontro e eu não me acostumo.

Eu, que de mim sei tão pouco, repleta de velhas certezas azedas onde tudo dorme, sei.
Sei que no momento em que o permito total determinação sobre mim, total controle. No momento em que deslizo e faço com que, autenticadamente, os desejos dele me sejam autorais.
No momento de maior subordinação... Eu o tenho em minhas mãos!


E me desconheço no mais puro de meus dejetos.

Trajetória de Jediel Gonçalves

$
0
0
Ilustração: Pedro Martinelli



                                                            retilíneos
Nesta alameda onde já dormem os         carvalhos,
ouvem-se passos do espírito, mais que presença de sombras,
ouvem-se os passos do pensamento, mais que passos.

  
Ao longo desse caminho.
Ecos
que a memória inventa depois
      extingue:

  
Nesta              calçada maravilhosa do agora,       
                             praça revigorante do nunca,                     segue
a caminhada numa pinguela perigosíssima

desequilibradíssima
sigo cavalgando minha bicicleta
entre um som e outro de cada sílaba.

  
Em mim, ao redor de mim, através dos meus olhos
                                                                                                   ouvidos
                                                 atrás dos meus ombros,
passos avançam
                                                                  pedir     passagem
e se dirigem a uma bilheteria para em busca de uma
pr’algum lugar
que, de repente, se dispersa numa curva
                                                                       rarefeita do ar


Ficam
                                               numa geografia
alguns nomes de lugares ali
                                                           cheia de complexos
                                               mas vazia de contornos.

  
Nomes de pessoas
                                          no istmo
desaparecem no intervalo       de palavras.
O sol caminha      entre os escombros
confusamente
nascido da estreia dessa página.
Surgido
               de minhas falas,
                        o sol arrasa os campos.
  


                                                             o meu nome
O sol reluz                  o meu rosto,
                      resplandece
varanda     
    balcão              numa ribanceira
            dependurado                          interna   interior.




 Jediel Gonçalves

3 poemas de Rita Barros

$
0
0


Céu de dias tristes I

faço big planos
[quimeras de pequenos recursos]
tomando chá em segredo às 4:44

                        : seguir com êles

                        : cantar em silêncio

                        : salgar a pele e os olhos
                        [a terra o chão o deserto]

                        : sentir seu perfume nas frestas
                        [maresia de vidro moído]

esfrego muito
os vidros sujos do trem
                      ...é inútil
continuam embaçados

os olhos esfrego os dois
as lentes dos óculos
- quiçá o vapor da infusão?
novamente as janelas

[                                  ]

penso se seria
a ausência de ½ luz
na película fumê
            a outra metade dela
            na paisagem
a gordura passageira dos dedos
ou a fuligem do carvão
ou ainda
esse clima opaco

[                                  ]

- parece que são meus olhos

concluo.



Céu de dias tristes II

vejo uma menina chorando e uma mãe impaciente
refletindo na cabina ao lado

- não sou eu

                        mesmo assim, Mermaid
                        é um espanto essa alegria esbranquiçada
                        contida na acromia da luz dos dias tristes

                        é um espanto
                                    que mal cabe na íris
                                    que mal atravessa sua contração óptica

                        espanto: nadar contigo
                        e cantar modas surdo-MUTE
                                    para liras em transe

                                    porque quanto mais fundo eu perfuro a água
                                    costurando suas frestas
                                    mais água há no fundo mais água

penso então
no fundo de cada xícara da casa

                        se não temos assoalho na piscina
                        as borras bem poderiam ser
                                               azulejos de grande utilidade!

                                                             sonho           : com domadores de ursos
                                                                                   : e coelhos
                                                                       : e phantasmas

que aparecem nos espelhos […]

concluo, não posso [.]

            [:] seguir com êles





La Pavlova

Virginia
           
                        queimando só num cinzeiro lotado de guimbas

ensaia um movimento aéreo
uma ação

algo acontece no interior de uma brasa

há quem queime apenas
um cigarro em trinta
anos trinta rígidas pérolas
e há quem desconheça até
o gosto do papel nos dedos nos lábios
um regalo

                                   uma vez

trouxeram-me
embrulhada num papel
de seda ou de pão não
me recordo uma noite uma
pequena caixa de madeira
com uma canção menor ainda dentro
que escuto atenta

                                   agora

num porta-jóias
uma bailarina
dança e fuma

                                   comigo

tragando fundo sincronizando
pares de silêncio meditativo

[Ella sou eu?...]

sim, trazemos nos lábios coreografados
longos cigarros
Virginia Slims

nos dedos nos lábios
regalos

[You've come a long way, baby.]

sim, e nos dedos finos e longos
cigarros Virginia Slims
esculpem anéis de éter

e na fumaça que decanta danças
com aros rodopios piruetas
o ar parece tão
eterno





Sketch para o segundo ato de "Dália" - A ária do perfume gigante.

$
0
0
Então ela cheirou as axilas
Fez notar que era pardo
Nas sombras o vestido dourado
Estalou o pescoço com seu charme

Entrementes, mealhava o vento
Com a lua rubra uma galhada nua
Do mesmo tipo que subjuga os camponeses
O espanto de pertencer
A um anúncio de coisas pra pessoas

Sente a imagem ilustrativa dessas:
Uma dúzia pode comprar, se forem boas
Mas a cor desbota, porque foi impressa
Numa revista de 1967.

Sente-se agora, o veludo de um sofá
Ponha-se na pele do amante
De Yasmin Kfouri, a favorita do Xá.
Cimitarras voando, o clima anda tenso:
Te abaixa pra debaixo do tapete.

Se aspira escapar dessa ratoeira,
Até a poeira eu espero que te respeite.
Pois voltando: noite roçante, lua no vento,
Mentes seguintes, mulher se esfregando
Turbante de braços, um bilhão turbulento!

Então ela endireitou o pescoço e disse:

"Amarelo Chanel, meu filho,
Esfregue esse brilho
Em meus olhos de cobalto
Em sua boca de contralto
Soa a trompa do arauto
(O som que ensina que passou o mais pesado que já se viu)

Em outra página, a revista vende a tempo
Um óculos barato; não percebo por causa
Das lentes de contato.

Um jeito sombrio de cheirar sertão adentro,
Depois do curtir do meio-dia, sobressai
A nota subalterna da fragrância:

Perdemos sua chance,
Mas na iniciativa eu não roubei nada.

Nem sua peneira elétrica!!!

Esfregue o brilho
Em meu nariz de prata
Viajando de trem-bala a Illinois
Sentimos o acrílico noir
No véu passante da brisa divertida
Quero ver seu busto
Sem blusa, quero armar na vida
Contigo a posição
Invertida da medusa.

Enumera os circunstantes:

Ilauma, Epêntese, Chemindufô, minhas irmãs
Esperam na varanda com rendas 
Viemos da feira de Rapina Grande

Fantasmas rondam os sulcos
Dos rostos sob custódia.
Assinam secretamente
"A Gazeta do Monsenhor"
Aconselhando seus fieis
A circuncidarem todas as mulheres do Brasil!

Isso tudo sob a sombra do mesmo azul
O descanso da pedra na piscina,
Concentrado ainda em close
Universal de seu olhar dentro da pose.





Surgem vários confetes de gaivota, cintilando:

Somos alternadas, amplas e encolhidas
Ostras ao vento - nem merecemos a digna presença
De vossa posição. Só surgimos de esguelha
pra voltar a vista à arregalada escuridão.


E ela arremata:

Entre candelabros,
Ele entendeu o que eu dizia
Na face de todas essas pessoas.



E o lugar?
Onde esperar daqui pra frente?






Como vender caro
Um perfume gigante?



Aborto - Jorge Xerxes

$
0
0

Produção Independente 9aborto0;
Esboços e Pseudo-Poesias para Semi-Analfabetos,
Excêntricos e Enfermeiras.
Alessandro Teixeira Neto (a.k.a Jorge Xerxes)





3 POEMAS DE SCORRSKI

$
0
0








"Criadortura"


Esse que escreve é demoníaco

eu não sou nada, não sou vida
nem suspiro
sou choro e sou razão
esquecidos no interior da
própria pele defeituosa

quem me pertence não sabe
sobre o que penso
e o que penso ninguém sabe o
meu porque

quem me domina amanhece
criando
e eu criatura discordo de mim
dou risada
me acho palhaço
antecipo a beleza desgarrada
no espelho
me acho mais do que não sou
e
menos do que é meu

e ele que pensa
não me deixa pensar

eu sou marionete com fios
moles de consciência
não consigo dizer não

e só tenho aquilo que jogam
nos meus braços

se quero beber, não posso
se gosto de sexo, como verdura que passa
se quero falar, os palavrões não me tem
e não tenho, na totalidade, a voz ou pensamento

mas recrio a vida desses
que passam os olhos por mim
e aposto que gostariam
por um minuto
ter o controle que da tua janela do 12°  andar
nem as nuvens lhe obedecem

mas calma
a minha criatura
é meu criador

somos um apenas
a diferença é que eu penso
por ele e por ti
vivo o que tu não podes
bebo o quanto tu não aguentas
e encontro a felicidade
e o podre do mundo
que tu não imaginas

meu criador é melancólico
e minha criatura é divina

sem mais

bom dia, mundo
em um espirro
sou o personagem
e personagem o meu mundo





Caras


Eu conheço um cara
que conhece outro cara

esse outro vive falando coisas
sobre
morte e vingança

ele é sobrinho de um cara
que é matador de aluguel

e esse cara está prestes a se aposentar
porque não quer destruir lares
mas ele conhece vários outros caras
que conhece o chefe da gangue do outro bairro

e esse cara vendia carros roubados

um dos carros roubados era de um escritor
que não tinha sucesso

o cara que recusava seus textos
era pau mandado
por mais que gostasse do que lesse

e esse cara nunca gostava

e tinha outro cara que não deixava
os textos serem famosos
porque o cara que publica
conhece um cara que bebe muito
e ri de tudo

e onde eu moro
sempre dois caras bebendo na calçada

eles conhecem outros caras
e esses caras lhe fornecem cerveja de graça

Tentei me mudar diversas vezes
mas tem um cara que é corno
e deixa eu me aliviar todas as quintas
com sua digníssima esposa

e tem o cara que cobra o meu aluguel
e tem as vizinhas que me olham tomando banho

tem o cara que deixa a cidade imunda

tem o cara que compra jornal na esquina
e é sempre o primeiro a entrar na tabacaria

tem o cara que é triste
mas finge ser feliz com aquele…
aquele brilho plástico nos olhos

tem o cara que fuma

tem o cara que mexe com as enfermeiras
quando vão indo para o trabalho

tem o cara que só retira a bicicleta de dentro de casa
coloca na calçada
e se escora
para olhar as garotas que desfilam com as pernas de fora
e botas tapando as canelas

tem o cara que pinta seu portão

tem o cara que não liga para nada disso

e tem eu





Descobridor


Descobri que é a própria felicidade que não me deixa ser feliz
porque ela não me deixa ser livre
ela não obedece as minhas vontades do íntimo
e assim a felicidade se torna amargura
ácido de lágrima, de silêncio
de inexpressão

Descobri que é a própria felicidade que me faz ficar perdido
quando encontro aqueles olhos redondos por trás das lentes
e que não posso falar tudo o que eu queria
porque engasga o atropelo, o arrepio
e é assim em todas as vezes que o coração ressuscita

Engoli com força, a seco
que é a própria felicidade que me cerca as atitudes
todas as vezes que arrisco a sorte por um talvez
mas o que me afaga a alma é um sim que não nasce
e enterra de vez no fundo do abismo

Descobri que é a própria felicidade que gosta da minha tristeza
porque me mantenho preso no que nunca existiu
contrastando com a atitude quebrando o gelo
e a adoração por olhos do peito iluminado

Entendi que a felicidade me faz sofrimento
uma dor amargurada de incertezas
mesmo que por ela evolua um milagre
dizendo o que carrega a alma transparente
então minha intensidade vira poeira
por querer que a lei de alma em mais encanto
e cobrir o véu da carne com inconstante poesia
pois, em água que emana a felicidade
nascerei novamente com a ela ao meu lado
para demorar a retornar o derradeiro pranto






Fotos: ngari.norway (flickr)



*    *    *



Scorrskié contista, poeta, romancista e roteirista. Nasceu e mora em Porto Alegre, Rio Grande do Sul onde segue sua formação acadêmica em Letras/Língua Portuguesa e Literatura. Por curto tempo foi colunista de blogues literários onde extravasou sua abnegação pelas reações momentâneas das pessoas que o circulavam tanto nas ruas quanto em seu próprio pensamento, em criação problemática. Lançou "Momentos de um Mundo Sentimentalizado e Sacana" (contos, 1a. edição/ 2011, em processo de reedição) e "Escolhas" (2012, também sendo reeditado), e "Poemas de Inspiração e Delírio" (março, 2014), todos de forma independente. Atualmente trabalha no romance autobiográfico "Falta de Ar" (para 2015), que também será lançado de forma independente pelo selo "Boêmia Urbana". Publica regularmente em seu blog.








"O Pai dos Carniceiros" conto de Lisa Alves

$
0
0





"Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver. Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal." A Rosa do Povo - Carlos Drummond de Andrade



Lá fora o tempo lava o sangue outrora derramado – é ele, o tempo, o pai das moscas e de todos os carniceiros. Consegue vê-los? Eles percorrem a cozinha enquanto eu amacio a carne. A vida é como o curso de um rio muito íntimo e perigoso. Eles começaram a zombar de você, consegue ouvir? Risos aptos a ultrapassar a sustentável matéria das três grandes filhas de Gizé. São vozes com aptidões, vozes permanentes, vozes que sussurram em meu ouvido maldizeres e cautelas, vozes que percebem o oponente se aproximar e já aparelham a ratoeira meses antes, vozes que manipulam todas as marionetes do poder e constroem leis e santos. Sempre que olho para eles noto um vulto em sépia refletido por seus trajes corroídos e fétidos. Já se volveram em um quadro ancestral onde os personagens ficam memorizados pelas roupas e pelo cenário registrado. Quantas vezes você eternizou uma pessoa apenas de um foco? Tem gente que nunca muda para os nossos olhos, tem gente que mesmo alterando a cor continua em sépia ou em preto e branco. O Egito só existe para mim em formato de areia, até deslembro que é um elemento do continente africano. Os dois são assim também: focos, dimensões, uma breve descrição em um conto que não sabemos se é de terror ou apenas uma versão crítica de um fragmento histórico.

Porém, tudo nessa vida possui dois lados, é certo que um lado transporta maior peso, maior extensão e contenta mais alguns que outros. Eu nunca demonstro aborrecimento real, são vozes, reverberações, prefiro mudar de assunto, ligar a TV, temperar mais uma carne – aliás, o congelador já está sem espaço. Por outro lado fico feliz, pois se não fosse por eles, eu estaria só. Viver sozinho nunca foi um calvário, mas durante a velhice precisamos compartilhar o que sobrou, mesmo que seja uma sopa de rancor, os péssimos hábitos ou o cheiro de urina que empesteia a casa. Mateus e Marcos são minhas moscas, meus amigos, meus velhos santificados, homens que resguardam antigas idéias. Além do mais, gosto da ilusão de possuir dois apóstolos me escoltando incansavelmente. Recordo da nossa primeira semana juntos, seguiam-me infatigáveis: do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para a varanda, da varanda para o sótão – uma verdadeira marcha. E além das perseguições cantavam feito dois Black birds domesticados. Não sei cantar direito, fico sem fôlego, coisas da idade. Surge um tempo que nossas cordas vocais só prestam para maldizer, gritar de dor e pedir socorro. E eu? Bem, eu precisava saber um pouco mais sobre aquelas criaturas, necessitava me orientar sobre os dois sujeitos que de um dia para o outro entraram em minha vida. Sujeitos vindos de outro tempo, sujeitos que trouxeram todas as justificativas para os meus erros, sujeitos atemporais, sujeitos que passaram a viver dentro de mim e tornaram-me uma dimensão de pensamentos. E assim eles permaneceram, até que um dia passei a não conseguir mirar o resto dos meus dias sem as duas pestes. Existir sem eles é como ser sem a lembrança do que fui, do que construí ao longo da vida. Essa casa, esses móveis que nunca se agitam, essas telas que compõem minhas vitórias, essa mesa que sustenta meu copo de café, nada seriam se não tivessem mais do que um espectador. Só somos quando alguém diz que somos, não adianta apenas pensar que é. Você pode até não vê-los, você pode até crer que estou alucinado, pois a longa idade faz isso com alguns, mas não comigo. Eles são a prova que nessa vida nada do que cometemos é uma ação solitária, até nossos crimes mais ocultos são versados por várias mãos. A criminalidade lá fora é uma responsabilidade coletiva. Se tenho animais de estimação? Não aprecio. Eles também não gostam de mim. Deve ser meu cheiro, um cheiro que nasceu com a velhice. Uma vez arrisquei criar um gato, conseguimos nos aturar por uma longa semana, na outra encontrei o bichano enforcado no quarto dos fundos. Até então não tinha conhecimento sobre felinos suicidas. Crianças? Igualmente não gosto. Elas também não me adoram. Deve ser meu hálito, um hálito que chegou com o nascimento. Contudo, já tentei criar uma, atingimos a marca de um ano, no outro ela morreu. Mateus e Marcos contaram que a menina tinha um péssimo hábito de prender a respiração até ficar roxa. Eles são sujos e maliciosos, mas sabem das coisas, não posso ser injusto. Plantas? Nem pensar! Elas também não pensam. Uma vez ganhei um bonsai de brinde e aquela relação não foi muito benéfica, a planta envelheceu aceleradamente. Rememoro apenas de topar com um pouco de terra revirada e nenhum bilhete de despedidas da miúda árvore. Não sei se vai conseguir compreender, mas viver assim não é de todo mal – todos os dias a escuridão atravessa meus olhos e não rezo por rajadas de sol. A verdade é que não preciso de “um lugar ao sol”. Todos os dias desperto sem o medo de ser penalizado por algo que fiz. Todas as sentenças já me foram proferidas conscientemente e o juiz não é um senhor letrado e comungado, e sim minha própria voz – uma voz que dita somente as penas de minhas ações e não do que deixei de produzir. Se eu possuo a consciência limpa? Limpa talvez não, mas tenho a higienizado todos esses anos. Fale-me de algo permanentemente limpo nesta vida, meu jovem? Até mesmo suas invenções novas abrigam rastros de sujeira, essa felicidade ingênua estampada em suas faces de “povo livre” omite um egoísmo do mais puro grau e não menos perverso. 
Esses dias um dos seus picharam a frente da minha casa “Aqui mora um torturador”. Eu ri com a contradição, pois não existe nada mais torturador do que rotular alguém. Indague a um judeu se foi agradável caminhar com uma estrela no ombro e ser apontado pelos seus vizinhos como um torturador de Cristo. O tempo passa e prossigo assistindo ao renascimento de antigas idéias – e ainda me denominam conservador. Éramos jovens, mais jovens que você, muitos não tinham nem estudo e viram nas forças armadas uma chance de se tornarem alguém. Então surgiram alguns homens engravatados, homens respeitáveis, homens da política, juízes e donos do petróleo e articularam sobre uma ameaça: uma arma vermelha, um monstro que devorava miúdos e deflorava as moças de família. Sinceramente não me comovi pelas criancinhas, mas eu amava uma moça de família. E mesmo assim criaturas como você obstinam em me julgar, surgem com suas máscaras moralistas crendo sucesso na emboscada por um idoso ou como você gritou na minha porta: “Um dos Monstros de 64”. Não esperava por isso, não é mesmo, meu imponente jovem? Está sentindo dor? O nó foi violento? Você me divertiu, sabia? Um homenzarrão mangando de justiceiro à custa de um “indefeso” velhinho. Você não tem vergonha? Agora aí: derrubado, constrangido, enlaçado e não pode fazer sua justiça com as próprias mãos. Nessa hora o que fazer sem as mãos, não é mesmo? Você presume que eu gosto de torturar pessoas? Olhe para mim! Agora responda: você pensa que gosto de perder o meu tempo supliciando um verme? Escute e aprenda: eu e os meus fomos soldados de uma causa, evitamos a praga comunista, evitamos que sua mãe, suas tias, sua avó virassem vadias nas mãos daqueles porcos. Olhe para isso, você me fez babar de raiva! Eu não sou um criminoso, possuo muitas medalhas, nunca abandonei uma missão, nunca deixei de abater um alvo, nunca traí meus subalternos e muito menos meus superiores. Fui o primeiro soldado brasileiro a ganhar competições internacionais de resistência. Olhe para minhas medalhas! Confesso que tinha prisioneiro que já não sabia se era janeiro ou dezembro, se era dia ou noite e essa capacidade de perturbar a mente humana me fascinava mais do que as torturas físicas. Tocar o que fere a sanidade humana, converter o claro no escuro, desmanchar a fé na vida, violar o direito de ir e vir, cuspir no inimigo que não tem face – essa era a forma de me vingar daqueles que pretendiam destruir nossa ordem e nosso progresso. Você teria feito melhor? Estaria na marcha ou no pau de arara? Você não estava lá, é novo demais. Porém saiba que a sociedade apoiou nosso “golpe”, éramos verdadeiros heróis da pátria, a sociedade denunciava os movimentos e nós fazíamos nossa parte. Assim como o povo alemão apoiou a higienização que Hitler fez na Alemanha, o povo brasileiro entregou qualquer suspeito de subversividade. Você compreende? Quer ir embora? Pobre menino. Deveria ter pensando antes de bater na minha porta com desaforos e ameaças, deveria não ter subestimado o velho que passou mais tempo fazendo treinamento militar do que você soma em vida. As pernas estão dormentes? Sabe o que eu adoraria ver agora? Amaria ver lágrimas percorrendo esse seu rosto de porco com medo do abate. O congelador está cheio, contudo há sempre um espaço sobrando para carne nova: carne fresca, carne sem cicatriz moral e que carece urgentemente de ser higienizada pela lâmina da verdade, pela lâmina da ordem e do nacionalismo. É isso o que falta nesse mundo de hoje: lâminas higienizadoras, fôrmas, regras impossíveis de serem retroagidas. Uma coisa aprendi com um oficial naquela época: uma pedra polida jamais retorna à forma bruta. Você quer ser reconstruído? Precisa de novos olhos? Diga que sim ou começo a lapidação agora e sem anestésicos. Diga que sim, senão corto a tua língua e sirvo para esses dois demônios evangelizadores que vivem comigo. Diga que sim, senão frito essa sua mente subversiva com eletrochoque e amanhã não lembrará mais uma linha sequer da sua maldita bíblia vermelha! Quer saber? Tenho nojo de você – um monte de nada com coisa nenhuma. Você é um invisível. Eu pelo menos marquei, plantei ódio, serei para sempre uma erva daninha na lembrança de muitas almas. Por bem ou por mal, como queiram me julgar, eu ajudei a escrever algumas linhas da História desse país. A sua geração pegou tudo pronto e mastigado, prefiro pegar na mão de um porco comunista daquela época do que nas mãos de vocês. Geração de merda! Precisam sentir fome para aprender a manipular uma arma, não sabem se defender, acham que sair pelas ruas com plaquinhas vai resolver a vida comunitária. Você pensa mesmo que ninguém sabe quem mora nessa casa? Quanta ingenuidade bestial, meu Deus! Eu falei que você me faz rir... Nós continuamos no poder, seu merda! Isso mesmo: continuamos e continuaremos. Você, seu pai, sua mãe, a vadia de sua namorada, todos vocês colocam um dos nossos no poder desde então. E nós dessa vez desarmamos vocês, colocamos sua geração no bolso e temos a opção de esmagar ou deixar mofar. Tem alguma preferência? Silêncio! Os dois se aproximam, tenho a sensação de que anseiam um contato. Querem conhecer você. A sorte está ao seu favor, criança! Gostaria de sentir a lâmina dogmática dos meus hóspedes? Deseja algum versículo antes da reforma? Deseja iniciar a revolução pelos olhos ou um verdadeiro milagre pelo corpo? Mateus pediu para dizer-lhe que “a candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz”. E Marcos conta que “onde quer que entrava, ou em cidade, ou aldeias, ou no campo, apresentavam os enfermos nas praças e rogavam-lhe que os deixasse tocar ao menos na orla da sua roupa; e todos os que lhe tocavam saravam”. Eles querem curar sua alma, intentam jogar no “mar” esse espírito de porco imundo e vermelho. Você é um sortudo. Não grite! Você não compreende seu tolo? Isso que flui é apenas o vermelho saindo dessa sua carne contaminada de doutrinas impuras e malignas. Não vê a perfuração em seu coração como um antídoto? Não percebe que suas entranhas são desenhos indecentes e só fazem mal para o seu espírito? O que é a dor da morte, se nascer também é um rompimento agressivo de um ser dentro do outro? Tenha a decência de morrer feito um homem e não como um porco grunhindo desse jeito, isso é nojento! 

Percebe, agora já não é mais um Vermelho? Lamentável, pois já não pode mais falar... Parece mais belo e mais cândido nessa alvura do descanso eterno. Silencioso assim é melhor e bem mais civilizado, tornou-se tão puro quanto os gatos e as crianças que repousam no jardim.



Conto de Lisa Alves extraído de O Monstro de 1964 Fotos do corpo do jornalista Vladimir Herzog, morto após torturas no DOI-Codi de SP, em 25 de outubro de 1975. Crédito: Reprodução / Arquivo Nacional



            

Três Poemas de Caio Cardoso Tardelli

$
0
0
I

Caminharei, um dia, entre as essências,
Tão repleto das celestes essências,
Que julgarei-me em perpétuo silêncio,
Na propagação do meu próprio silêncio.

II

Quando voltavas, minha alma,
E o céu brilhava aquela calma
Dos céus diamantinos,

Decerto não cria nos desatinos
Que trazias nessa tua ensalma
De remotos peregrinos...

Quando voltavas, minha alma,
Já era morta a breve calma
 Dos sonhados destinos...

E desde que sobre os finos
Caminhos do Tempo se espalma
A sombra de nossos hinos,

É que tu retornas, minh'alma,
Trazendo nos passos, sem calma,
Os meus passos pequeninos...

III

ESTRELA-IRMÃ

O passado é a estrela-irmã de minha alma...
Que triste infinito nos separa, contudo!
Se para ele o olhar arrasto, tão sem calma,
A funesta cintilação observo em tudo!

É o meu ser que no universo se espalma,
Como um desabar da saudade agudo...
Parece-me um perene funeral da alma
Que cada vez mais me põe volátil e mudo...

É, talvez, um cirial fulgor que me chama
Nos meus velhos passos, em rutilar profundo,
Na morta esperança transfeita em flama...

É, talvez, um luar a fulgir moribundo,
Elevando o encanto que já não se derrama
Para jamais seus caminhos abrir ao mundo...


4 poemas de Rogério Fernandes

$
0
0
 Ilustração: Douglas Humphries



a primavera de allen ginsberg

ferida oculta pelo tecido azul da camisa
e algumas notas enroladas num barbante
madrugada em frente à estação de trem
e alguns balões vermelhos despencam da janela

doze tiros de cachaça, algumas doses de gim
(o vagabundo que roubamos na quarta)
e o olhar atento da outra boca sem dentes
sabemos que dentro em breve a alegria
de estarmos estirados no frio, surpreendentes,

não bastará para estancarmos o rancor
que rescende de seus olhos vermelhos de fósforo
e tocar em seus dedos e lamber a cria, ou
balançar em seu corpo - melancólico monolito -

pode represar o suave olor de água morta
- uma noite para amarmo-nos secos -
enquanto os carros nos ignoram, cor acinzentada,
passamos o dia sonolentos, escravizados, quedamo-nos
como gafanhotos, devoramos o verde de nossos ventres
e tolhemos os melhores vinhos na língua e na acidez
de nosso abandono.

2

vão fluindo para debaixo da cama despreparada
os sabores, o passado, o dia seguinte, a fotografia
o gozo, a anedota, os afazeres, o cismo,
abandonam nossos corpos como alimento esquecido
fixam-se na lajota umedecida

como sibila, o azul esvaecido dá lugar a noite
e novamente, como as letras de um livro velho
vou desaparecendo totêmico
enraivecido, terno, com os joelhos dobrados

é sonho, na verdade. é rio, na verdade. almejo
o outro lado, na verdade. eu rio, na verdade.
não estou aqui, na verdade. o homem, na verdade.
a pele sem vinco, na verdade.

a menina, feita de papel e música
sábia cicatriz calada, risca os olhos de lua
envolvida nas matemáticas do som
ela vive e grita, gritemo-nos

e no retorno do grave, quem me vai de um lado ao outro?
da boca, algumas estações, de primavera, verão, alguns
invernos, diversos outonos acarinham a boca que entre
lábios quer falar orientes e morrer cinematograficamente

ela poderia deixar verão e produzir o pão do próprio afeto
não posso oferecer mais do que cano de aço frio
e o mastigar do fruto de seu grande lábio

uma cadeira grande, pintada à mão, algumas notas
de perfume no banheiro, roupas, talheres, camisas,
um pote de oceano pacifico transbordando
comiseração, quadrinhos nostálgicos e luvas.

como em psicologia o sofrimento vai mais longe
que o preto que usamos nos olhos, 
até formar asas na ponta dos olhos. num puxar os olhos
em que atrás da cabeça desce o castanho crespo que encaminha o desenho
para o fim.


o enforcado

se quando estiver presa ao momento de seus catorze anos
com tanta fé em seus amores e livre com suas roupas coloridas
amanhecida sob a pele do fascinante amante e o tempo regurgitar
outros catorze tempos em cima e encontrar afinal outra que
lhe ensine o que terapias transcendentais ou paraísos temporários
não puderam e se no corredor do hospital tiver vontade de
fugir para casa, mas, antes, adormecer por doze horas, e acompanhar
o sol nascer enquanto outra de você retorna bêbada, num fundo
de mar salgado demais. se, justamente você, aprender enquanto
mente ao telefone sobre a cicatriz em sua nuca, como se soubesse o som
de alguns pássaros e mesmo se insistir nas cores que são e somem,
assim, se acima da multidão da pequena loja de horrores [as preces
numa entorpecida e concentrada sala] insistirem em chupar suas calmarias
e a alegria for por demais [alucinaste, pagaste as contas, comeste a
comida sem sal, cortaste as unhas, aprendeste a dançar] em seus catorze anos.

e todos aqueles meninos que perderam as armas na lama e os
feriados que deixamos de visitar seus pais, se o ocaso a fizer mudar de deus e
esconder todos os livros atrás da cortina e atacar com palavras duras os
pastores de sua consciência e a criança que fora sua primavera operar
demasiado o gozo de seu outono e o sangue e o semáforo e a prata
e todos os outros momentos em que adormeceu no cinema. se quando
gostar do meu papo, minha sanha, meus olhos, os restos que levo, as
miçangas que lhe darei de presente, o livro do outro, os cabelos da antiga
noiva, o terno azul, as alfazemas, o lábio perfurado, as pedras, o truco mal jogado, o beijo de /outrora
e quando, e se houver, paz naquele quarto, enquanto lhe perfuram a mente
com dentes horrendos  e o seu verbo elétrico salpicar verbos intransitivos
e o trânsito de seu último diálogo não for mais do que aquilo sobre o que nunca
falamos.
se quando lembrarmos do enforcado em seus doze suspiros sobre o tapete
vermelho e as outras cartas da ilusão
e  você acender um cigarro e pegar um ônibus para um bairro o mais distante
e lá sentir outra aparência, numa dor tranquila, [se, em lágrimas, seus olhos sentirem saudades]
já terão partido. as cores, seu pai morto no longo adeus daquele tempo.
as dores, sua noite selvagem não termina. e, ah, minha dor, tranquilize
seu coração fleumático, não cruze as pernas em seu cubículo das nove às seis.
se depois [foram tantos anos] as situações do metrô, com tantas pernas,

e as mensagens dos acalantos que não formaram nascentes em seu coração…

misteriosamente desperta em silêncio e não reconhece o cheiro de seu café
o gosto de sua maçã, as marcas na bunda, o corte de cabelo, o saldo no banco.
se quando estiver presa ao momento de sua luta e o cruel demônio
que lhe chama pelo nome em frente ao espelho lhe cegar,
devolva a gentileza com um beijo.


*
e migro sempre à sentença da vida
mera vivência do instante, aplauso liberto, banco, tigre,
cegueira, campo, rima. venha comigo, mostrarei a
engrenagem segunda – aquela mais adiante confunde-se
com o ocaso. minha cicatriz revela a ti

a formidável face da pedra e do sal
oceano encontrado, margem de ópio,
longo encontro no abismo. pacífica tormenta
na escuridão
teus desvelos à meia luz –


equilibrista

ali
só tens pés, mãos
braços também
rasgos, tensão, palavra surda, letra rúbia

pés saltados, crus sapatos de madeira
curvas de puro risco, e então...
outra volta num canto, espaço redemoinho
amarela, preta, vermelha, azul-neutra
/ alguém procura /
num susto / um cajón rasga o ventre de ébano
percussão a encharcar a terra
e já és vermelha, eras opaca?
/ num desenho estequiométrico/
entre tuas irmãs, irmãos
- cabelo apertado / puxando a ranhura da testa
e séria
e risonha
e dolorida
- mãos objeto - 
- um bastão, um pente, uma escova
restos de um navio, um astrolábio, ferrugem de carro
uma fúria
coisas que fuzilam as entranhas da cidade /aqui estamos/
cansada, voltas friamente ao gesto
agora perdida, antes cheia de barro
grega, bebe do sangue, espanhola, grita e transpira
as luas e barcos em seu vestido
as frutas, os desenhos desmemoriados
sonâmbulas ao longo da praia, velas apagadas
naquela madrugada seu nome
o de outros, num papel de caderno
insiste em estar aqui / obstáculo encalacrado /




 
Rogério Fernandesé poeta, escritor e cronista. Autor de Incensário(Editora Patuá, 2011), dá aulas de literatura brasileira e conclui doutorado sobre Machado de Assis na FFLCH/USP. Edita a Opiniães, revista dos alunos de pós-graduação do DLCV/LB e escreve no blog O incensário (www.oincensario.wordpress.com).
Contato: r_fernandes_santos@yahoo.com.br


Galeria Chico Lopes

$
0
0

A Ronda





 O Guardião e a Entrada para o Mar
       Curiango e Telhados               




Senhores da Noite



 Tango de Angel



 Janela de Leitura




                                                          Comtemplação do Outono




Rimbaud                                                                                         Kafka







 








                                                                                                        



Graciliano


 
As telas de Chico Lopes tem uma mistura pessoal do expressioismo de Munch e Van Gogh com o surrealismo de Max Ernest, Magritte e outros pintores, criando um mundo pictórico bem seu, repleto de pássaros, paisagens noturnas de pequenas ou grandes cidades povoadas por figuras solitárias e enigmáticas. Nas últimas décadas, os óleos de Chico Lopes passaram a incorporar colagens de rostos de atrizes, atores, escritores que admira, cartazes de cinema e letreiros publicitários.

GUME DE GUEIXA - JANDIRA ZANCHI

$
0
0


 Ilustração: Leonardo MAthias



VÉSPERAS

A negra sombra do fio da lua
assombrou a serpente em
sua cauda de fantasia,
amava-te em frases perjuras
espiava-te senhor do amanhecer
e esquecia-me sobre o sol
- verde véspera –
das notícias malevolentes
que me levaram
santa pontífice navegadora
a espiar enviesada
uma suave passagem
semáforo e sombra
fugas fugazes do meu ser.
No dia demarcado te darei
três pontas da flor amarela
nave trevo entressafra

Minhas mãos enfraquecem
e não se formam
no molde cor de marte
que se arrasta na encosta

aqui no árido vale da morte
os ventos se envaidecem
de nuvens e grinaldas
tules de aspargos e
vazadas aspirações .

Malvada maldita colheita
estimo em cem tantos mil
os passos que contei
chamuscando os seios
nas setas indiferentes

................mas te aguardo com
tamanha contenção de euforia
que quase rezo em
cima de duas afrontas
a certeza do amor.

Vácuos de luz me acompanham
na reforma os vestidos e as vésperas
quatrocentos arroubos de incertezas
......... era quase já tanto tanto tarde
mais dia e muita pouca noite
eram tropeços trôpegos do silêncio
no seu colar de gestos e enfoques....


FAVORITA

O mistério não cede
ele sobe desce.

As três flores da geração passada
Curvaram o boreal de divergências.
Público e privado – quantas vertentes
vértices vacâncias exprimiu teus lábios.
Independência – morte
sugerida em 120 flexões.
Enquanto cursava discursava
a ponte desligou o último beijo
- nos prepararam cem mil milhas
de vidas mal vividas.

Noite e calor – quem parte ?
O que vence se distraiu, o
espelho turvo eram as águas
do rio dourado e sujo – brincalhão.

O Barco passava ao largo
- ajuste de contas –
te devo alguns cem mil réis,
me deves uma esperança
redonda e não jocosa.
Estou na porta aberta
rumo ruminante
ao futuro branco
esfarelado de reticências
pós vontades

que humano tolo
não interroga a estrela
mas tenta devorar
a entranha do outro.
Não falo mais verdades
as palavras enrubescem
frente ao fronte.

Fulmino esse momento branco
As cores coradas da manhã de Sábado
Desconheci o amplamente reconhecido

Seguro por hoje o novecentos.
Se parto? Quedo-me em teus braços.
Espero por teus olhos que engoliram
dos meus a corrente que enfurecia
essas entranhas de medusa
e Madona aborrecida.

Ah, os compassos e seus componentes,
quem eram e por que vieram?
Nunca soube imprimir a
expressão balbuciada do outro.
Me diziam que era um aparte
apostei na briga
esvaziei a intriga.

A branca montanha que se nos oferecem
distancia abaixo o desvio das faces.

Não percebi, porque foi sem muito
entender que vesti a túnica
creme cor de amarelo
se me basto...
ignoro a tal corrente
me deram a folha e seu perfume
namoro essa macia visão na água.

Estúpida estúpido espetáculo
sombras na noite vieram se despedir
acenei-lhes com o envelope branco,
dentro a alforria e vinte e sete
pares de ímpares.

Saí pela manhã, era o 1º dia da liberdade,
os códigos estavam mornos
se já sabes e inventas
sela o selo do silêncio.

No 1º dia na 1ª missa
conjunto de hóstias na cabeça
a cabaça vazia e feita
- vi as malas que partiam para
um rumo desconhecido e certo –

Tão quente e favorita
a menina guardou na
caixinha de madrepérola
suas jóias turcas
azuis e ametistas

luz e dia sombra alta
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.

- e recomeça-se na quinta hora
quando definir-se a margem –
te veremos com três lances
de cores e momentos
és fria e fácil e farta
fulmina-te no fado fascinante
de tuas últimas facetas agrimensuras de noite e circo
é teu e vela-o
os frutos, que nascem em grupos,
terão seus pés amarelos
azul anil e açucarado

te reúnas, por 5 ou 6 vezes,
com sábios e alfarrábios
satisfazes esse silêncio
de sonatas e sonetos.


GUME DE GUEIXA

Sou uma única mulher
quando a trombeta anuncia
um inverno sem tropeços.

Os legionários da palavra
espiam sua falta de dados
como me fiz por nenhum motivo
conheço o luxo de ser nua e insofismável
inquestionável é a questão
e o próximo dia.
Também invoco nas santas armações
da luta contínua por porto algum
as desculpas estilhaçadas em farpas
dos ausentes cansados em dentes de ogro.

Mas me canso descanso de meu fel.
Ardia na boca do estômago a fúria da pretensão
– esqueci-a retaliada no sofá branco e bagunçado –
deve haver algo melhor do que essa faca
gume de gueixa
a ponta de prata que rebola a qualquer ultraje
para dentro através da margem.
e porém... como dizia tenho azia
dor de baço e um cansaço...
aí retomei a pena e o pó dos livros
a lide das pernas e a busca do pão
pensei no amor como um condimento vespertino
dos enfeites adiei o aprumo

e por três ou quatro minutos
dos restantes sorri e adormeci
ali ao pé do carvalho planto, morena,
serena e de orvalho em pé e sombra
afogada e deslumbrada
– o nome daquele é o mesmo deste?
Estes os problemas e sua função.



ANUNCIAÇÃO

O sonho e suas sete partes de dúvidas
as esperanças e suas intoleráveis
vertentes de lixo e dor
maresia maré morena
a agonia esquecida
que fatos eram aqueles
que remavam e vexavam
o desanuviar certeiro
do esplendor?
Joguei-os em meio aos cadernos
mal elaborados
maltrapilhos ensanguentados
nu e decidido o poente da terra
a anunciação do demover solícito
- era plano e mácula
e nada me dizia a respeito
do que forma e se conforma.

era oriente na face oeste da lua –
divisei o pranto e o exílio
e fui-me vencida
em meio ao luxo da vitória.


JANDIRA ZANCHI


Poemas de Gume de Gueixa (Editora Patuá,2013)




O SOL BRILHAVA, SEM ALTERNATIVA, SOBRE O NADA DE NOVO

$
0
0
“O SOL BRILHAVA, SEM ALTERNATIVA, SOBRE O NADA DE NOVO”[1]



Hoje não tem música.
(leio Murphy).

Sinto-me engolida pela nostalgia de um sonho que poderia ter sido. Sempre achei que as coisas apodreciam mas não imaginava que, no caminho, elas azedavam. Que a saudade que se realizava via presença contínua do outro ausente se transformava em ódio e reivindicação por um tempo perdido. Li que ela, a saudade, quando não compartilhada, tem sabor de solidão. Acho que nunca me senti tão só. Sinto saudade (até) dos devaneios que tinha e que me foram roubados pela devastadora realidade me apresentada pelo outro.
Descobri, também, que o amor tem avesso.
Não o meu. Não ainda o meu.


Ontem também não teve música.

Há cenas proibidas para menores que insistentemente são apresentadas às crianças.
(Transgressões deviam ter limite!)
Uma criança tinha dores de cabeça.
Bom seria se lá, na cabeça, só houvesse dores. Na minha há dores. Na dele, além disso, havia um penetra de quatro centímetros.
Daqueles intrusos ditos malignos.
Tentaram tirar esse malvado à força mas, como um belo exterminador do futuro, ele irá se recompor rapidamente e ainda aproveitará a fase de crescimento do menino.
Existem penetras birrentos. Odeio birra!

Sequer um tango tocou quando disseram que ele (ainda) tem mais dois anos de vida. 10? Terá dez então quando o penetra der um golpe de estado?
" Dez!"
Geralmente é uma expressão acompanhada de música.

(...)

A música acabou.






[1]Beckett, Samuel. Murphy. p. 5. 2013
Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso 

O rato - Cinthia Kriemler

$
0
0
Ilustração: Vicent Van Gogh


Nunca tivera um animal de estimação. Nem em criança. Nada de cães, gatos, passarinhos, tartarugas. Por isso se desconheceu naquele desejo desenfreado de ter para si um rato. Bicho feio, cinza, cheio de bigodes sombrios, dentuço. Ele mesmo tinha sido dentuço em criança... Será que... Não, não era isso. Identificou-se com o bicho por outro motivo que não sabia qual. Não importava. Decidiu: queria o rato; teria o rato. Encurralou o animal num canto, o mais gentilmente que pode, e entre pedidos de desculpa e pedaços de queijo conseguiu prendê-lo em uma caixa de sapato em cuja tampa havia feito pequenos furos. Dia seguinte, saiu cedo e foi para a loja de animais. Olhou, olhou, mas não comprou a casinha de vidro transparente cheia de buracos simétricos para entrar o ar. Pensou na quantidade de luz e calor que o material devia concentrar. Teve pena do bicho. Claridade demais para um ser das sombras! Deixou o pequeno dentro da caixa mesmo e começou a alimentá-lo com tudo o que havia lido que um roedor pudesse gostava.
A casa improvisada foi instalada em cima da cômoda do seu quarto. A cada três dias, removia o bicho para outra caixa, nova e limpa. Era a única ocasião em que se viam. Cara a cara. Cara a focinho. E ele confessou a si mesmo que já amava Carrapato. O nome caíra bem. A intimidade caíra bem. Na verdade, era ele quem não desgrudava do animal, mas gostava de pensar que a recíproca era verdadeira. Ele precisa de cuidados, de um lar melhor. Amanhã eu vou ver isso. 
Levou o rato ao veterinário na manhã seguinte, evitando os olhares surpresos da maioria dos clientes.
— Não, ratos não tomam vacina. A gente pode fazer uns exames de sangue para investigar a saúde dela — disse o doutor. — É uma fêmea.
Saiu de lá carregando, finalmente, a casa de vidro de dois andares e rezando para que o exame de sangue não acusasse nada. Mesmo sem saber por que, sentiu-se desconfortável com a notícia de que Carrapato era uma fêmea.
O animal pareceu ficar feliz com a nova casa. Adaptou-se logo ao novo lar e em pouco tempo já dava voltas na escadinha circular colocada no segundo piso. Ele teve certeza de que havia feito a coisa certa. Agora, podia enxergar o bicho comendo, bebendo, brincando, dormindo. Companhia dia e noite.
Não se dava bem com gente, essa massa complicada e cheia de humores e vontades e dissimulações e ódios. Definitivamente, as pessoas o assustavam. Não que elas prestassem a atenção a ele. Nem o notavam. Mas era a mera possibilidade de um dia o notarem que o apavorava. A cada vez que um olhar mais prolongado cruzava com o seu na rua, no mercado, no ponto de ônibus, sentia os pelos dos braços e das pernas se eriçando como se tivesse levado um choque. Deixava de pegar um ônibus, virava uma esquina antes do quarteirão de casa, desistia de comprar leite e pão, mas fugia assustado para bem longe daqueles olhares pousados. Por isso, preferia a noite. A ausência da luz enjoada do sol o acalmava e confirmava a invisibilidade que escolhera para si. Quando o breu tomava o céu, abria as janelas de casa e se sentava no jardim iluminado por apenas duas lâmpadas instaladas em um canteiro. Às vezes cuidava das flores, que plantara num desenho ousado, e da pequena horta doméstica onde algumas verduras brotavam bem cuidadas. A pouca iluminação permitia que sombras engraçadas fossem projetadas na parede branca da fachada da casa e nos muros altos que faziam limite com a esquina da rua, à esquerda, e com a casa de um vizinho, à direita.
Naquela noite, sentou-se ao sereno e colocou ao seu lado, sobre um banco alto, a casa de vidro. Primeiro, Carrapato agitou-se, mas de repente ficou muito quieto, como se a noite o tivesse acalmado. Ou não. Assustado, ele achou que o animal poderia estar passando mal. Abriu a porta da casinha, ansioso, e pegou bichinho, segurando-o bem em frente ao rosto. Viu os olhos brilhantes, maliciosos, quase ao mesmo tempo em que levou a mordida. Não gritou. A dor maior foi por dentro. Dor de mágoa, de surpresa. Soltou o animal e levou a mão rapidamente ao rosto. Sangrava no nariz, onde os dentes afiados tinham se fincado. Carrapato aproveitou o momento e fugiu. Desconsolado, desorientado, sofrendo, ele não sabia se procurava o bicho ou se cuidava de si mesmo, prática incomum. Relutou por mais de uma hora até perceber pelo tamanho do inchaço no rosto que teria que ir a um hospital.
— O que houve? — perguntou a enfermeira na triagem.
— Mordida de rato.
— Capturou o animal?
Capturar? Engraçado pensar em Carrapato como um animal de captura. Não, ele não sabia onde o bicho estava. Queria saber. Mas não naquela noite. Sob o efeito das injeções que precisou tomar, dormiu um sono pesado.
Pela manhã, acordou cheio de culpa. Eu devia ter procurado por ela ontem mesmo! Nem percebeu que chamou Carrapato de “ela” pela primeira vez. Vasculhou todo o jardim, procurou nos bueiros perto de casa, nas latas de lixo, mas nada. Depois de muito tempo, exausto, convenceu-se de que o bicho tinha ido embora. No quintal, pousou a casa de vidro no canteiro e, mais pela saudade que pelo hábito, limpou o bebedouro, o comedouro e trocou o forro do fundo daquele latifúndio de dois andares. O nariz ficou curado. A crença nos bichos, nunca mais. Nocauteado pelo que acreditava ser uma grande ingratidão, deixou de comer, de beber, de tomar banho. Evitou mais ainda o sol, a luz das lâmpadas e até mesmo os espelhos. Abandonou as noites de sereno, as flores e as verduras. E convenceu-se de que os animais eram exatamente como os homens, desprezíveis, egoístas, interesseiros. Sem vontade de pensar ou de sentir mais nada, encolheu-se na cama imunda de cheiros e fluidos, até que primeiro morreu, depois deixou de respirar.
No quintal apagado, sem sombras na parede, dois olhos pequenos e maliciosos brilharam na noite. O focinho de bigodes sombrios cheirou insistentemente o ar, procurando por algo. Na casinha de vidro abandonada no canteiro, escondidos em um ninho bem construído no segundo andar, oito filhotes amontoados abraçavam-se no sono dos recém-nascidos.

Cinthia Kriemler

 de Sob os escombros (Patuá,2014)

Título Mexicano

$
0
0
Introdução

Essa é uma peça independente
Feita pra ser lida no lugar da outra
Quando a audiência ficar impaciente.
Entrega, é verdade, algo do enredo
Intrigas são contadas pela metade

Um covarde é acolhido indistintamente
Em suas andanças em sociedade
Por sarrafos corrugados sem sovacos,
Um peão atrás de um medalhão,
Garanhão da mulher-jóia
Até ficar flácido, derreter conjugado
Na saliva como ácido em sua língua
Morta da Silva de sonsa
Que já abocanhou tanto concurso. Tá na mão?
Deu tempo? Então deixo vocês voando,
Libertos pra ver o que houve
Enquanto isso.


TÍTULO MEXICANO, o propriamente dito

Um otário odiava as brincadeiras da polícia
Até que ele foi preso, e descobriu
Que comparadas com aquilo, eram uma delícia.

Quase as compradas a quilo, acolá, da boîte
No estádio superfaturado da Grana Nova
Esquecendo a grama enrolada de lado
Num canto qualquer dos escritórios
Movidas a elástico,
Salas que andam sozinhas pela planta baixa
Enquanto não sobem o pé de feijão

Da semente até a invaginação.

O recém-perdido na cadeia
Quando sai da nuvem espessa, pra chupar,
A gigante sacaninha enfia-lhe a cabeça
No seu pote de nutella, em vez do polegar.




Corta prum enterro onde só há encarregados
Armadilhados em trabalhos beligerantes
As baias abstratas de escritórios
Entorpecentes
São casas em cartões em seu jogo de tômbola.

Acendem um monte de neon à noite
Pra avisar do cabaré aberto
A nuvem agora brinca em volta
Escapando de um cadillac ervilha

- E escuta o fantasma desse grito:
Quem foi o favorito a me dar indulto,
Visitar meu jugo nesse filme antigo?

É o capitão Bueiro Bueno, vai explodir
Com seu rastilho e séquito,
O espocar de todos botijões do castelo
O fogo chega às fitas de vídeo
Inflamáveis por censura e falta de uso
Repare no título mexicano,
Só vai passar no cinema em dois anos

Quando as descobertas
Forem meras lembranças humanas
Espalhadas por carcaças de motores
Zunzum de um monte de máquinas e fofoca,
Bocas criando dentes, mossas em amassados,
Palavra essa com ternura em excesso,
Excelsa no contato com tal quadro.


Interlúdio I - Crime na Pista

Está na lista, entra pela frente
Amanhã sai na capa da revista
Menos comum é nascerem tampinhas
Na ponta do seu mindinho
E nem precisava,
Ninguém apontou pra lua.

Nem precisa indicar quem disse:
Papo animado, é fato discutir crendices
Caldinho amigo com baralho e batatas fritas

Culpar a pilha do outro, que sumiu no pilequinho
Por formação de matilha.

Está na pista, mercenária?
Entra pra guerrilha logo, que vai chover

Serviu de presságio, olha que mágico,
Aquele navio engolido por um avião,
Jogos de batalha fria, sinto,
Pisei na merda, vim correndo te dizer.


Interlúdio II - 'Meu dinheiro não é capim'

Cantemos todos no provador
Trocando roupa por fantasia
E por mais troca, é assim
Que a banda toca,
Como apenas um mindinho de mulher
Pode discar, até por engano,
O celular de um assassino de aluguel

Voltar ao capitão do time,
Virar casaca ainda por mais roupa.
É assim que se prepara no vestiário
A área do árbitro: um time,
Dois tímidos campeões.


Com tanta referência automotiva,
É claro que a Gislaine
Vai gastar a onda do ácido
Fazendo o Otário coitado de palhaço de rodeio
Montado numa gilete.

Depois se vestem como os outros,
Não são ninguém, não viram nada
E escapam da bagunça feita pela farra
Antes das cinco da manhã
Uma com o outro pela mão

A essa altura, fica crível que nem saíram de casa
Nem se viraram na cama dela
Pra ver a hora
E ainda estão sonhando com a porra toda.


________________________________

Todo o elenco de apoio desse poema
(i.e., os coadjuvantes do eu-lírico)
Organizaram um bota-fora na cantina
Pode escrever no cartão. São dez reais,
Mas deixa um lado inteiro pra Gislaine.
________________________________


Viewing all 5548 articles
Browse latest View live