Oscar Wilde (1854-1900), escritor e poeta irlandês célebre por obras como O Retrato de Dorian Gray e A Importância de ser Honesto, sempre tratou, em sua prosa e em seu teatro, à sua maneira irônica típica, das mazelas e falácias da sociedade vitoriana. Isso, porém, nunca o colocou como um escritor social, preocupado com as questões referentes às efervescências e desastres humanitários daquele capitalismo britânico finissecular. É muito curioso notar que Oscar Wilde era quase um arquétipo do dândi à maneira de Des Esseintes, personagem de "Às Avessas", do francês Huysmans. A presença dessa consciência social - e do intento de representá-la em sua arte (principalmente quando para os Decadentistas a arte não tinha obrigação moral alguma, num deságue evidente do pensamente de Baudelaire) - não deixa de configurar-se como uma exceção e um ponto de extrema curiosidade na obra do irlandês.
Em seu conto "O Amigo Devotado" (também encontrado como "O Amigo Dedicado", como na tradução em que achei disponível para esse pequeno estudo) parece-nos evidente a crítica à sociedade de exploração do "homem pelo homem", como Marx havia descrito as relações dos meios de trabalho na sociedade capitalista. No decorrer da obra, fica evidente que a relação entre o Moleiro e Hans é a de um explorador e de um explorado, respectivamente. Cinge-os a vã expectativa que o explorado cria sobre o seu exploradorimersa nas ilusões de recompensa afetiva ou financeira (tal qual a relação de Capital). Evidentemente, a leitura que faço não é a única possível desse conto.
Antes, porém, da discussão sobre o tema, aviso-lhes que o conto pode ser lido por meio deste neste link(é necessário ter leitor de PDF) e por tantos outros na internet. Configura-se em um dos contos mais populares de Wilde, sem dúvida alguma.
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Oscar Wilde, sob a típica perspectiva dândi. (Créditos: Killadjectives) |
Em primeira análise, no que se refere às imagens e aos símbolos, inclusive aos animais - envolvidos na narração e crítica da história -, podemos destacar que o único animal que apoia a atitude do Moleiro é um rato, que apesar de, no caso, estar em ambiente florestal - evidenciado por ser um rato d'água -, é símbolo de asco social. Hans, um "distinto" jardineiro, tinha por afeição “as flores”, o símbolo da pureza, do encanto - da parte mais fina de uma metaforização, enfim.
Claramente, há o desenvolvimento da tópica do egoísmo no decorrer da história, mas não é excludente ao fator social referido (aliás, é implícito). Sabendo-se que a sociedade do capital é baseada na mercadoria, em seus preços e valores (havendo "justiça de valores e preços") - lembrando sempre que o dinheiro é uma mercadoria -, em determinada parte do conto - a aguda e fatal - a relação do Moleiro e de Hans ficou baseada na troca de excessivos serviços do jardineiro pela troca de um quebrado carrinho de mão do Moleiro (que seria de nula utilidade), num claro regime de exploração, mas na maquiagem de uma "amizade devotada", acerca da qual o Moleiro se referia a todo momento.
A relação de Hans e do Moleiro sempre foi baseada na promessa da recompensa material - já que o Moleiro convencia que a parte afetuosa da amizade já estava sendo cumprida somente com as suas visitas eventuais (sempre na Primavera), muito embora nas épocas frias o jardineiro padecesse em abandono. Soa-me qual a relação de interesse e de exploração por domínio dos meios de conhecimento na sociedade contemporânea (veja que, aos olhos de Hans, o Moleiro sabia as regras da amizade devotada, como se existissem, de fato, tais normas e o Moleiro, na pompa de um abismo de falsas estrelas, ensinava ao jardineiro tais asneiras). O jeito pelo qual Wilde discorre sobre admiração de Hans pelo Moleiro nos lembra a admiração das classes baixas pelas classes altas, principalmente quando há tutelagem midiática e cultural, mesmo que seja essa classe alta que impeça o desenvolvimento do bem-estar social das classes mais baixas. Tais questões evidenciam-se neste trecho:
“Algumas vezes, na realidade, achavam os vizinhos estranho que o rico Moleiro nunca desse nada em retribuição ao pequeno Hans, embora possuísse centenas de sacos de farinha armazenados no seu moinho, seis vacas leiteiras e um grande rebanho de carneiros com muita lã. Mas Hans nunca se preocupava com essas coisas e nada lhe dava maior prazer do que escutar todas as coisas maravilhosas que o Moleiro costumava dizer a respeito da solidariedade dos verdadeiros amigos.”
O culto ao material em detrimento da pessoa (e, claro, a falaciosa amizade devotada do Moleiro tem sérias provas - como se já não houvessem - que era motivada por interesses torpes) fica clarividente quando o filho do proprietário do moinho adoece e o Moleiro resolve pedir ajuda ao seu "sempre disponível" Hans, mas impede que o jardineiro usasse, numa noite tempestuosa, a nova lanterna do fidalgo. No deságue do conto, a posição de recuo em prol da matéria causou a morte daquele que cultuava, no final das contas, a essências das coisas.
E, na ocasião do funeral de Hans, a postura do Moleiro, agindo como se tivesse, de fato, dedicado-se de corpo e alma àquela amizade na qual foi tão somente o ente-vampírico, se podemos assim nos referenciar (ou seja, tão somente aquele que fazia o papel de explorador na relação com outrem), revela-nos uma terrível contemporaneidade, incluindo-se aí o grandioso cinismo que não raramente se faz presente nessas vinculações. Eis um trecho revelador:
"Posso firmar que fui bastante bom, comprometendo-me em dar-lhe o meu carrinho de mão e agora não sei realmente o que fazer com ele. Atravanca a minha casa e está em tão más condições que se o vendesse, não lucraria nada. Asseguro a vocês que daqui por diante não darei nada a ninguém. A gente paga sempre por ser generoso.”
Como pontuei no início deste pequeno estudo, essa é uma das várias leituras possíveis. Em uma rápida pesquisa pela internet, encontram-se outras interpretações que, muitas vezes, passam por territórios próximos, e, como já pontuei, intrínsecos (egoísmo, cegueira e falácia social e mora...). Ao contrário das obras normalmente divulgadas de Oscar Wilde, “O Amigo Devotado” não é somente um conto que pontua as grandes hipocrisias da sociedade vitoriana, ao gosto de um decadentismo britânico, ou que torna-se imerso, à maneira de Poe, na mística e na psicologia do desespero (como, por exemplo, no conto “O Crime de Lorde Arthur Savile”), pois configura-se, sobretudo, em uma obra na qual escutamos os rumores sociais que, de forma inexorável, assemelham-se àqueles que ouvimos nos contemporâneos dias.