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A Crítica Social no "Amigo Devotado", de Oscar WIlde

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Oscar Wilde (1854-1900), escritor e poeta irlandês célebre por obras como O Retrato de Dorian Gray e A Importância de ser Honesto, sempre tratou, em sua prosa e em seu teatro, à sua maneira irônica típica, das mazelas e falácias da sociedade vitoriana. Isso, porém, nunca o colocou como um escritor social, preocupado com as questões referentes às efervescências e desastres humanitários daquele capitalismo britânico finissecular. É muito curioso notar que Oscar Wilde era quase um arquétipo do dândi à maneira de Des Esseintes, personagem de "Às Avessas", do francês Huysmans. A presença dessa consciência social - e do intento de representá-la em sua arte (principalmente quando para os Decadentistas a arte não tinha obrigação moral alguma, num deságue evidente do pensamente de Baudelaire) - não deixa de configurar-se como uma exceção e um ponto de extrema curiosidade na obra do irlandês.
  
Em seu conto "O Amigo Devotado" (também encontrado como "O Amigo Dedicado", como na tradução em que achei disponível para esse pequeno estudo) parece-nos evidente a crítica à sociedade de exploração do "homem pelo homem", como Marx havia descrito as relações dos meios de trabalho na sociedade capitalista. No decorrer da obra, fica evidente que a relação entre o Moleiro e Hans é a de um explorador e de um explorado, respectivamente. Cinge-os a vã expectativa que o explorado cria sobre o seu exploradorimersa nas ilusões de recompensa afetiva ou financeira (tal qual a relação de Capital). Evidentemente, a leitura que faço não é a única possível desse conto.

Antes, porém, da discussão sobre o tema, aviso-lhes que o conto pode ser lido por meio deste neste link(é necessário ter leitor de PDF) e por tantos outros na internet. Configura-se em um dos contos mais populares de Wilde, sem dúvida alguma.
Oscar Wilde, sob a típica perspectiva dândi.
(Créditos: Killadjectives)
Em primeira análise, no que se refere às imagens e aos símbolos, inclusive aos animais - envolvidos na narração e crítica da história -, podemos destacar que o único animal que apoia a atitude do Moleiro é um rato, que apesar de, no caso, estar em ambiente florestal - evidenciado por ser um rato d'água -, é símbolo de asco social. Hans, um "distinto" jardineiro, tinha por afeição “as flores”, o símbolo da pureza, do encanto - da parte mais fina de uma metaforização, enfim.

Claramente, há o desenvolvimento da tópica do egoísmo no decorrer da história, mas não é excludente ao fator social referido (aliás, é implícito). Sabendo-se que a sociedade do capital é baseada na mercadoria, em seus preços e valores (havendo "justiça de valores e preços") - lembrando sempre que o dinheiro é uma mercadoria -, em determinada parte do conto - a aguda e fatal - a relação do Moleiro e de Hans ficou baseada na troca de excessivos serviços do jardineiro pela troca de um quebrado carrinho de mão do Moleiro (que seria de nula utilidade), num claro regime de exploração, mas na maquiagem de uma "amizade devotada", acerca da qual o Moleiro se referia a todo momento.

A relação de Hans e do Moleiro sempre foi baseada na promessa da recompensa material - já que o Moleiro convencia que a parte afetuosa da amizade já estava sendo cumprida somente com as suas visitas eventuais (sempre na Primavera), muito embora nas épocas frias o jardineiro padecesse em abandono. Soa-me qual a relação de interesse e de exploração por domínio dos meios de conhecimento na sociedade contemporânea (veja que, aos olhos de Hans, o Moleiro sabia as regras da amizade devotada, como se existissem, de fato, tais normas e o Moleiro, na pompa de um abismo de falsas estrelas, ensinava ao jardineiro tais asneiras). O jeito pelo qual Wilde discorre sobre admiração de Hans pelo Moleiro nos lembra a admiração das classes baixas pelas classes altas, principalmente quando há tutelagem midiática e cultural, mesmo que seja essa classe alta que impeça o desenvolvimento do bem-estar social das classes mais baixas. Tais questões evidenciam-se neste trecho:

Algumas vezes, na realidade, achavam os vizinhos estranho que o rico Moleiro nunca desse nada em retribuição ao pequeno Hans, embora possuísse centenas de sacos de farinha armazenados no seu moinho, seis vacas leiteiras e um grande rebanho de carneiros com muita lã. Mas Hans nunca se preocupava com essas coisas e nada lhe dava maior prazer do que escutar todas as coisas maravilhosas que o Moleiro costumava dizer a respeito da solidariedade dos verdadeiros amigos.”

O culto ao material em detrimento da pessoa (e, claro, a falaciosa amizade devotada do Moleiro tem sérias provas - como se já não houvessem - que era motivada por interesses torpes) fica clarividente quando o filho do proprietário do moinho adoece e o Moleiro resolve pedir ajuda ao seu "sempre disponível" Hans, mas impede que o jardineiro usasse, numa noite tempestuosa, a nova lanterna do fidalgo. No deságue do conto, a posição de recuo em prol da matéria causou a morte daquele que cultuava, no final das contas, a essências das coisas.

E, na ocasião do funeral de Hans, a postura do Moleiro, agindo como se tivesse, de fato, dedicado-se de corpo e alma àquela amizade na qual foi tão somente o ente-vampírico, se podemos assim nos referenciar (ou seja, tão somente aquele que fazia o papel de explorador na relação com outrem), revela-nos uma terrível contemporaneidade, incluindo-se aí o grandioso cinismo que não raramente se faz presente nessas vinculações. Eis um trecho revelador:

"Posso firmar que fui bastante bom, comprometendo-me em dar-lhe o meu carrinho de mão e agora não sei realmente o que fazer com ele. Atravanca a minha casa e está em tão más condições que se o vendesse, não lucraria nada. Asseguro a vocês que daqui por diante não darei nada a ninguém. A gente paga sempre por ser generoso.”


Como pontuei no início deste pequeno estudo, essa é uma das várias leituras possíveis. Em uma rápida pesquisa pela internet, encontram-se outras interpretações que, muitas vezes, passam por territórios próximos, e, como já pontuei, intrínsecos (egoísmo, cegueira e falácia social e mora...). Ao contrário das obras normalmente divulgadas de Oscar Wilde, “O Amigo Devotado” não é somente um conto que pontua as grandes hipocrisias da sociedade vitoriana, ao gosto de um decadentismo britânico, ou que torna-se imerso, à maneira de Poe, na mística e na psicologia do desespero (como, por exemplo, no conto “O Crime de Lorde Arthur Savile”), pois configura-se, sobretudo, em uma obra na qual escutamos os rumores sociais que, de forma inexorável, assemelham-se àqueles que ouvimos nos contemporâneos dias.


Fragmentalidades do ponteiro em diário

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                                Dedicado a Arthur Boz


12 de julho
Tempo não se mede em ponteiro, Chronos
                             (embora mentira muito contada mil vezes se torne real)
mas em unhas, cabelos e sincronicidades
e ainda em marcas de expressar-se
pois ponteiro é faca de fazer puir
pêndulo eterno do instante presente
plano cartesiano em reflexo - jamais imagem
                             e o relógio devora até o deserto dos sapatos

½ de novembro
O relógio comeu minha infância, meus retratos
minhas encarnações passadas e os meus nomes
Roeu paixões, vestidos e verdades absolutas
e ainda mastiga assim meio de lado
aqueles sonhos inexistentes de se dizer
“começo na segunda”, assim como haverá
de devorar até mesmo aquele amor escuro
                                                 (de Joaquim)

22% de outubro
O relógio ampulheta a areia dos calendários

27 de março
Música é saber o tempo enquanto dança
metrônomo de sentimento anacrônico
é esticar a asa do relógio
                               pra fazer internidades

27 ¾ de março
Polirritmia é fazer o tempo perder a si mesmo

31 de dezembro
O inspiro antes do mergulho
pleonasmo do calendário
de contar o incontável
e medir infinitudes
Feliz ilusão nova, Einstein
muita prosperidade para o seu calendário
e para os ponteiros que contam suas
vicissitudes em frações temporais inexistentes
mas faça bom uso do seu tempo
pois se tempo é dinheiro fabricar relógios
                                                é (as)salto de vida.

Primeiro de Janos (ou 31¾ de dezembro)
tempo é matemática de se medir o nada
quarta dimensão de coisa alguma

17 de
Ampulheta é fazer cintura no tempo

30 de fevereiro
Não tenho tempo pra desperdiçansas
isso de deja vu é abrir janela no tempo
e o relógio envelhece até o lado escuro 

                                                   do silêncio

Só os três

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Charles Moreira, escultura digital, estudos de mãos


Vadinho é Edvaldo. Nome do avô. Homem forte que muscula no peso das coisas. Aparenta uns trinta anos. Ou menos. Suas mãos, tarântulas, sobem ágeis nos papelões do carrinho de supermercado. Carrinho furtado. De um lado o papel, do outro as latinhas; dependurado, o saco plástico de plásticos. Marrons, com nódoas pretas, as tarântulas são protuberantes nas articulações, como um improviso com amarração grosseira. Enfiam-se na lata de lixo pública, catam sem nojo ou pudor os copinhos de 200 ou 300 ml, escorridos de vitamina de banana com aveia, amendoim com coco, morango com amora ou tudo fruta. Todos naquele ponto de ônibus são atraídos para as vitaminas. Vadinho também. As tarântulas lhe oferecem um copo ou outro onde o olho do cliente foi maior que a barriga. Elas se posicionam, as duas, bem no alto, acima do rosto de Vadinho e ele já se acostumou tanto com elas que nem teme: abre a boca enquanto elas seguram o copo inclinado de modo a deixar descer a bebida doce e néctar.
Os transeuntes, sim, estes temem as tarântulas de Vadinho, e se afastam mais para o lado oposto de onde elas fazem a caçada. Uma latinha de coca-cola com resto, digna de um outdoor que brinque com algum filme de terror de sucesso, vira presa de duas tarântulas sujas, ávidas pelo xarope. Vadinho toma o que os bichos lhe permitem, até que jogam o alumínio no chão. Os pés de Vadinho, número de sapatos quarenta e quatro, caso os tivesse, mostram-se verdadeiros parasitas ressentidos a pisarem, raivosamente o cilindro. Vira nada a lata horizontal. As tarântulas, mais que depressa, pegam-na de volta. Vadinho é organizado.
Todo movimento é rápido e frenético. Agora elas abrem os dois sacos pretos. Tudo misturado: laranjas ocas, cortadas com o facão pelas metades, apenas casca e pista do suco que tiveram, mas amarelinhas. Uma das tarântulas, agora cítrica, sobe e coça o peito de Vadinho. Desce novamente e continua, ajuda a outra a separar os sacos plásticos e as garrafinhas pet. Um biscoito frito de polvilho, confiante de escuro e mal avisado, não se esconde, as tarântulas o abocanham para Vadinho. A boca mexe aberta e articulada. Vadinho tem alguns dentes bons, de antepassados. Come fazendo barulho e massa. Sua língua grossa mexendo elogia a refeição. Elas, envaidecidas, procuram como loucas, outro biscoito. Não há mais nada de comer. Mas, surpresa: um plástico bolha! Este são os dois olhos abertos de Vadinho que localizam. Ele se senta no paralelepípedo e oferece o brinquedo às duas.
Juntas, as tarântulas estalam as bolhas, uma por uma, por muitos minutos, em comum acordo e harmonia.
Vadinho aproveita para viajar longe, no tempo.




Adriane Garcia, nascida em Belo Horizonte/MG, em 1973. Historiadora, funcionária pública, arte-educadora, atriz. Escreve poesia, infanto-juvenis, contos e dramaturgia. Venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Paraná, Helena Kolody, com o livro de poesia Fábulas para adulto perder o sono. Escreve aqui.

BACIA DAS ALMAS - JANDIRA ZANCHI

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Lampshades Genesis by marbrure



chovia alguma noite por entre
as estrelas de minhas chamas
chamuscando no esco
ar da licença
de sobrevida –sobremesa
os frascos facínoras do tempo
esgotado e vacinado em
duas partilhas de espuma e esperança
nódoa de mágoa e virulência
em uma bacia de almas e flores
multi-cores arco-íris da praia,
uma dessas rosadas areias
de sereias e princesas

esquadros de lisas aragens
volteios vacilantes
no perfume das águas

esses rosas sem precisão
sorriso frouxo de valentias
certezas crucificadas que
antecedem aos reinos da paz

lanço-me ao arvoredo
com a imprecisão vaticina 
do nadar fraudulento
na coerência cartesiana
da redoma redimida.


Jandira Zanchi

3 contos de Cinthia Kriemler

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Ilustração : Raimundo de Oliveira


Filho

Bebeu três ou quatro goles de água. Como se quisesse hidratar a coragem. Não tinha o que dizer. Não encontrava o que pudesse dizer ao filho. Tinha ensaiado umas poucas, curtas frases. Mas não lembrava, agora, onde havia guardado as palavras. Quis recompor a memória entre um passo e outro. Passos lentos no corredor comprido. Voltou nos anos. Pegou novamente nos braços o corpinho pequeno do filho. Sentiu o cheiro bom daquela pele macia. E descobriu onde Deus tinha deixado os seus melhores anjos. As mãos de bebê incrivelmente fortes. Agarrando o dedo dele numa confirmação de posse. Noites de sono no sofá da sala. O menino no colo; ele, nas nuvens de um céu a dois. Cantando coisas idiotas que falavam de bois e de cucas. Olhos nos olhos. Para ver quem piscava primeiro. Pestanas com pestanas, para fazer cócegas, dar gargalhadas. Futebol com bola colorida. Bichos de pelúcia transmudados em monstros, dragões, cavaleiros. Robôs e carros de metal. Movidos à pilha, bateria e dinheiro. O dele, sempre esticado em milagre. Coisa de pai. Pai de zoológico, de piscina, de corte de cabelo no barbeiro. Coisa de homem. Dever de casa complicado — no tempo dele era mais fácil. Viagens de verão. Uma vez para conhecer o mar. Muitas outras, acampados no quintal, domando feras, caçando quimeras, cruzando o oceano das poças. O primeiro cabelo no púbis. Mostrado com vergonha no chuveiro. As primeiras perguntas difíceis. Feitas a ele, não aos amigos. Orgulho de ser pai e confidente. Um gole de cerveja escondido da mãe, só um. Para aprender em casa o gosto da rua. Faculdade de Engenharia. Como ele. No primeiro vestibular. Formatura com direito a viagem. Pra Nova Iorque, junto com a turma. Bolso esticado mais uma vez em milagre de pai. Dívida grande. Grandes expectativas. A ligação importante, chamando para o emprego dos sonhos — o primeiro sempre é. A ligação do hospital. Chamando para o pesadelo.
A água do copo acabou. Entrou no quarto sem frase na boca ou na memória. Olhos nos olhos. Nenhum dos dois piscou. Pegou nos braços o corpo semi-imóvel, semivivo do filho. Delicadamente. Sentiu o cheiro podre do acidente. Descobriu o que Deus fazia com seus melhores anjos. A mão incrivelmente fraca encostou no dedo dele. Esticou uma coragem do bolso da alma. E cantou cantigas de bois e de cucas. Até que seu menino foi brincar de infinito.



Arremate

Escuto o uivo do cão e por um momento quero voltar e abraçá-lo e lhe dizer que eu também preciso gritar. Mas se eu me virar sei que nossos olhares se encontrarão em solidão e ele vai me pedir que o leve comigo. Não posso. Não quero enganar o cão. Ele sabe. Lambeu tantas vezes meu rosto aguado de tristeza. Deitou-se em cumplicidade enquanto eu maquilava de afeto as máscaras. Foi um cão fiel. Caminhou ao meu lado, saltou feliz, abanou o rabo e latiu à porta. Mas foi também um amigo de silêncios prestados. Para onde vou não se leva um cão fiel. Apenas a carcaça dos erros e a pressa de esquecer o que é supérfluo: amor, decência, humanidade. Adeus, cão. Agora que fechei a porta entre nossos destinos, tudo fica mais fácil.
O caminho hoje está molhado. Eu prefiro assim. Não gosto quando os sapatos roubam o pó vermelho da estrada. Nem de deixar pegadas rasas que qualquer vento apague. Quando chove tudo é diferente. A caminhada afunda na abundância do barro e a terra se abre a um gozo de estocadas. É bom que ir seja em dia de chuva.
Talvez eu também chova se ainda souber. Talvez eu tente desfazer o nó que desoxigena meu peito. Talvez eu só sinta saudade. Do armário cheio de roupas compradas para ir onde nunca fui. Da estante com santos, duendes, budas e patuás exaustos de me negar pedidos. Da risada estridente dos filhos que não tive. Do verde intenso roubado a uma janela aberta. De cada homem ao meu lado sob o lençol do dia seguinte. Do cão. Talvez. Mas de uma coisa tenho certeza: quero gritar entre a agonia e o livramento. Porque é bom que ir seja em som. É justo que a alma se esvazie num vômito barulhento. Até que o ritus se complete. E tudo seja paz ou nada. Antes de tanto, porém, um arremate. Preciso de alguém que me faça um último favor. É que me esqueci de mandar soltar o cão. Se ninguém abrir a porta, ele vai morrer sozinho. De fome, de sede, de abandono. O cão, não.
  
  

Puta

  Ilustração :Jose Ignacio Prietro del Pico 
Cuspiu na pia. Junto com a saliva, os restos do sexo. Estremeceu. Não tinha nascido para aquela vida. Fazer dinheiro trepando é pra quem tem estômago. Lembrou de antes. De quando não contava as rugas e as unhas estavam sempre feitas e o perfume francês e as roupas eram recebidos de presente, pagos por homens importantes. E de quando cada encontro era uma festa de bebida e pó. “Cheira aí, meu bem”. E ela fungava tudo. Para aguentar as trepadas alucinadas, os tapas,as humilhações. Tinha que cheirar. E beber. Que o champanha e a vodca deixavam qualquer porra com gosto de importada.
Sacudiu a cabeça. Em seguida, estremeceu de novo. Dessa vez, mandou embora o tempo. Porra de madrugada fria! Porra de úlcera maldita que dói toda hora! 

Mas tinha coisa que doía mais. Os murros do cafetão; a penetração por trás, forçada, apressada, arrebentando tudo. Não se acostumava. As outras debochavam: “Onde já se viu, puta com frescura?” Pois ela era uma puta danada de fresca. Desconsentia. Negava. Argumentava. Depois fazia. Tinha medo de o freguês reclamar para o cafetão. Mas não entregava a bunda sem luta
Até que não é caro o remédio da úlcera. Só não adianta de nada. Vai ver é este conhaque vagabundo que está cortando o efeito dos comprimidos. Jogou na boca dois chicletes de hortelã. Testou o hálito. Retocou o batom vermelho e limpou os dedos na moldura de madeira apodrecida do espelho. Parou um instante pa-ra ver o coração rabiscado na parede. Não estava ali na semana anterior. “Marcelo ama Polaca”. Mais uma idiota achando que cliente se apaixona por puta. Polaca, Polaca, fica esperta! Deve ser menina nova. Tinham chegado umas catarinenses que ela ainda não tinha visto. Só gente bonita essas gurias do sul. Duro era trabalhar ao lado delas na rua. Altas, cabelos loiros, pele sem marcas. Droga! E ainda trepavam bem, as vacas. Atraíam os homens mais novos. Os melhores. Desses que transam com a puta falando poema e prometendo amor. Uns fodidos, isso sim!
Depois, ia sobrar para ela falar a verdade. Que puta não sonha. Que puta não faz planos. Que puta não fala de amor. E juntar os pedaços. Oferecer o pó, a pedra. Entregar o conhaque vagabundo. Estancar o sangue nos pulsos frios numa noite de navalha cega.
Porra! Quem será essa Polaca? Cuspiu no chão da rua. Estava ficando velha. Sentindo pena da menina do sul. Sentindo falta daquele antigamente de merda. A dor da úlcera queimando por dentro. O coração rabiscado na parede mostrando o pesadelo dos sonhos. O poema ausente em cada transa fazendo falta, finalmente.
Pegou os comprimidos na bolsa minúscula. Aquela desgraça toda ia passar.


Contos extraídos de  Sob os escombros (Patuá/2014).




Cinthia Kriemler publicou seu primeiro livro de contos, Para enfim me deitar na minha alma, em 2010, como projeto do Fundo de Apoio à Cultua do Distrito Federal.  Depois publicou Do todo que me cerca, em 2012, e Sob os escombros, em 2014, ambos pela Editora Patuá. É autora, também, do e-book Atos e omissões (novela policial). Escreve para as Revistas SAMIZDAT e Biografia como colaboradora fixa.
Seus textos em prosa poética falam de solidão, ingenuidade, crueldade, e da crueza das relações humanas em seus acertos, erros e dúvidas. Sua escrita não tem pudores de tema ou forma.
 

mecânica aplicada

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Da série "Anatomias" de Fernando Vicente (http://fernandovicenteanatomias.blogspot.com.br/)

/por Nuno Rau/



o óleo do motor do mundo, rícino
amargo que corrói o que se sente
enquanto corre nas cânulas, sempre
mais ardente à medida que os círculos
do inferno de catracas moem os fios
frágeis que unem as coisas à placenta
do sentido (imagens que o olho inventa):
o óleo afoga tudo com seu visco.
Poemas têm que ser uma ciência
ou manual da máquina do mundo
cão,  mecânica aplicada ao obscuro
trabalho do motor, sua falência
calculada pelos versos, areia
no engenho, vidro moído na veia.



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Onde começou o espiritismo? (em versos pentacaidecassílabos)

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Alguém sempre pergunta. Mas hoje é toda uma plateia;
Desconvexa, vibra atrás do vidro à luz de lampiões,
De chamas que lambem as bordas, sombras em vários tons

Pessoas bronzeadas como pavios de baleia
Encharcados de emulsão apropriada. Seus confrades
Levantam simultâneas mãos em uníssona baderna
No momento em que fraqueja seu século XVII!

Todos baluartes reportam abalo, a gravidade
Tomou um tombo tentando escapar do assunto, que aderna.
Mas como passar incólume um porte pela assembleia?

Ou na feira? Temei, deuses! O "Magus" não se reflete,
Aproveita esse profano lapso pra retroceder -
Breve, cada crença recalcitrará em seu poder!!

Oh, cúmulo da fama! Sabem que seus gotosos dedos
Afagam o milagre adormecido na ínfima coisa
Fazem prodígios encantados subir ladeiras íngremes
Mas tudo pela ciência - os duendes são extintos.

Doentes saltam dos leitos, mesmerizados de medo
Mesas girando cabeças pelo escuro, in extremis
Facis pulsat ad ostium, o mundo finda antes do absinto.


5 poemas de Barbara Leite

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 Ilustração: Michael Cheval



Para plantar lembrança


Não tem mais tic-tac
os relógios correm digitais
até o merthiolate
quando uso não me arde mais

Eu já não ouço o tempo
mas ainda sinto dor

Não tem mais telegrama
sentimento é virtual
e a música baiana
resumiu-se em carnaval
Eu já não mando cartas
mas ouço os filhos de Canô

E diante das mudanças – Ando
Diante das andanças –  Mudo
Diante das mudanças – Muda



Temporão


Num beijo que nem chegou a ser de amor
é onde estou agora

Era terra infértil de novo
e eu ali me semeando

Não sei que doença há nos meus olhos
e nos meus sentidos

Era superficial e fogo
e eu ali me semeando

Trovões e relâmpagos
alertavam da chuva
que não veio

Por que se injetou na dança, nos planos, nas ancas
se não era para durar?

Tudo o que é demais não cabe
e em silêncio recolhi as minhas sobras

Morri semente sonhando com podas



Furta-cor


Este é nosso saldo:

um vestido rasgado
promessas de orgasmos
momentos felizes

e o seu dom de cura
aguçando cicatrizes

O muito se instalou em mim.



Axé


Em festas e muros
em gestos e rasos

em rádios

Você me faz doer
até nas coisas por acaso

O volume exagerado
também é nosso retrato

Meu amor, como é que pode?

Nossa história relatada
em desamores de pagodes

Definitivamente não sou eclética a tal ponto.



Rosa Mosqueta


Das coisas que não lembro mais
com precisão
está seu cheiro

Falta de ponteiros

Escassez ou excesso
de desejo

Não sei e tanto faz

Preferiria saber seu cheiro
de cor e salteado

de terno, engravatado
em pele, descabelado

Aquelas promessas ébrias
feitas à beira do amar

Sem rosas

Esperar reconhecer seu cheiro
por acaso, incomoda

E seu almíscar será sempre intocável.





Barbara Leiteé administradora de empresas, produtora cultural, poeta e compositora. Décima esposa de Vinicius de Moraes, dançarina de coreografias estranhas. Participou de diversas antologias antes de publicar seus livros Caramelos e Almofadas -2011 e Esmaltes –nuances do amor demais – 2014, ambos pela Editora Patuá

2 POEMAS DE DEMETRIOS GALVÃO

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noite turva

(diálogo com uma monotipia, 2005,
do artista plástico gabriel arcanjo)


um casal emplumado
encarou a tempestade de ferrugem
com a ternura de um abraço profundo.
suportaram o assombro do céu e
os ataques nervosos.


bateram-se contra às águas e os ventos
como se o peito fosse de marfim e
a coragem, uma armadura impermeável.


(o baile cambiante das pernas
na regência dos trovões vorazes
seguia em compassos de pavor)


o império turvo do céu
rogava assombros em lastros
de serpentes luminosas.


o casal lutou na rinha feroz da noite
que não oferecia extremidade
ou margem para abrigo.


  
matadouro

(diálogo com o livro “entrega a própria lança
na rude batalha em que morra”
do poeta adriano lobão)


a província diz não aos seus filhos,
            é rude e árida, mesmo quando farta e molhada.
entoa liturgia de campo arrasado.


a província tem canto maldito.
            não hospeda sementes em seu leito.
exporta desertos para quem mal diz sua sina.
           

a província é geografia esquecida.
            nenhum coração palpita por seu mapa.
            nas suas rotas corre sangue de matadouro.


a província deflagra dizimações.
cultiva um cemitério farto.
sisuda e quente, cozinha a própria cria.





imagem:  monotipia, 2005, do artista plástico gabriel arcanjo



*    *    *





Demetrios Galvão, habitante da província de Teresina (PI), é historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de Tróia (2001), Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (previsto para 2014) e o cd Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico (2005). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi dos editores da AO-Revista (2011-2012). Tem poemas publicados em diversos portais e revistas. Atualmente é um dos editores da revista Acrobata. Email. 







Todos os ventos sobrevoam limites

A paisagem aberta: externa e extrema poesia - Danilo Barcelos

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Antagônico

Prostituto e puro
sigo o verso
que ainda corre
na linha fina
do papel pautado,
em equilíbrio precário
entre o tombo e o passo.

Leopoldo Comitti


Leopoldo Comitti traz com este novo livro, A mordida do cordeiro, mais uma vez, seu estilo marcante. Em uma obra poética que pretende, além de cantar o que de mais presente temos na vida, ressaltar o seu eterno passar, caminhando constantemente para o fim; o poeta traz ao verso a preocupação com o pensar, desenvolvendo uma atenta dissecação das possibilidades que temos ao nos relacionarmos com o tempo, com o efêmero e com a existência. Primeiro porque o poeta sabe que, para habitarmos o mundo, é preciso entender a morte e aceitá-la em tudo, seja nas coisas ou nos seres. Em conseguinte, porque tece, com delicada construção imagética, um tempo atomizado que se prolonga noite a dentro, no qual participa de tudo ao fazer participar os que miram, por meio de seu olhar, o movimento vital,  entre a luz e a sombra, imergindo-nos todos nas oposições próprias do viver.
A importância da figura da morte e das viscosidades da vida completam a lacuna que o poema constantemente dá nas suas repetidas imagens de tédio e nas cenas diminutas do cotidiano. Olhamos por este olhar que, sobretudo, percebe a morte diária, par da vida e que com ela caminha em tudo e para tudo.
Porém, há neste constante morrer uma preocupação com as pequenas formas de vida. Em alguns poemas de A mordida do cordeiro, há cenas de insetos em casa e na rua – a barata suja, as formigas sobre a mesa, as mariposas na luz, o verme no chão –, ou as flores que carregam feridas ou perfumes de vida e de morte, como tudo o mais que nos completa. Junto com os pequenos insetos, a sujeira humana, o vômito, a escatologia que nos faz vitais e imundos, sujos como tudo que é carregado de vida e como tudo o que eternamente está a morrer.
Neste mostrar a morte no todo dia, Leopoldo Comitti constrói um lugar de habitação, tendo na efemeridade a linha condutora, temática que sustenta o verso perseguido pelo poeta em seu papel pautado, chão onde se edificam os poemas. Esta efemeridade se percebe, acima de tudo, no e com o corpo.
Este, sempre ponto de partida para se pensar o co-habitar com a morte – seja no olhar especular do poema A Porta e o Espelho, que abre o livro; as mãos “sempre sem luvas” em Detergente; a carne rasgada pela palavra em 1970, a oração que emana do corpo em Prece – coloca-nos diante de um poeta que sabe que as experiências vitais estão, sobretudo, no corpo, em seu sentir e perceber tudo o que o rodeia.
Por meio do corpo e no corpo (humano e do poema), o eu lírico percebe e recebe os destroços do mundo, os elementos da construção de sua casa – “Talhei a casa / como quem confecciona / um terno, / nos detalhes doloridos de cada ponto.”, do poema Construção    (pois a morada, tal qual a roupa de todo poeta, é o poema). Faz, com isso, um retrato da Cidade antiga, na sua retórica muda, suas portas empenadas, imagem que surge em outros poemas com uma urbanidade recheada de um casario moribundo, como um imenso cemitério, permeado por todos os corpos que nela se encerram, nas rosas, nas bromélias, completando o espaço em branco da página com elementos imagéticos dispostos como um grande vitral.
Cantando os destroços, as viscosidades, Leopoldo Comitti cria uma rede que envolve o movimento da vida e seu constante caminhar em choque com aquilo que faz trombar o corpo contra o tempo e contra todos os múltiplos corpos que percebemos no mundo: nossa parcela mortal e efêmera. E tudo carrega um ar de podridão, de silencioso morrer, como a palavra que sangra blasfêmias e que sua fezes, que o poeta ousa apenas ouvir em Suores. 
A palavra, então, elemento-tijolo na edificação do poema, agulha com a qual o poeta costura seu texto nas linhas do papel e dos sentidos, é onde ele trabalha de forma atenta e meticulosa a tessitura desta teia, externa ao som e extrema no arremedo, no arremate.  A rede chega às sílabas, em alguns casos às letras (ou parte delas), no corpo da palavra que o poeta disseca, extrapolando a pele das aliterações. Produz outras imagens, como se em escada / esquina no já citado A Porta e o Espelho, criasse conexões com as partes das coisas, nas sílabas que as denominam, como se ambas – uma interna à casa e outra externa – partissem do mesmo lugar, que no poema é o espelho. O mesmo faz o poeta, ainda em A Porta e o Espelho com o  “r” em rua / quarto / porta / verme.
Isso também acontece com a letra “b” que sustenta tanto a “borboleta” quanto o “bêbado”,  uma como o eixo da noite que lhe gira em torno, e outro a girar em torno do poste, ambos do poema Vôo cego. A letra “b”, nas palavras iniciais das duas primeiras partes do poema,pilares internos às palavras, são também seu prolongamento: sai o bêbado da borboleta, porém inferior a ela, como a escada e a esquina são inferiores ao espelho que tudo inverte. De ambos, tanto da borboleta quanto do bêbado, parte o girar de tudo. Algo é sempre o centro de outro que gira em torno, e tudo acaba por girar em torno de outro elemento que gira, movimentando todo o texto e nos lembrando da circularidade de tudo, em seus movimentos e conexões. O movimento giratório de tudo sempre alheio ao que acontece, como as pessoas que não percebem as asas-pétalas que retornam ao pó, no chão da cidade, ao fim do poema.  Assim, Leopoldo Comitti trabalha o elemento sonoro e a palavra como elo que interpenetra coisas e seres, conectando-os uns aos outros nesta teia / rede que é o co-habitar, fonte irradiadora de imagens.
 Além disso, sabe-se o poeta parte de uma forte tradição literária, na sobriedade do verso cuidadosamente talhado, na invocação clara a Clarice Lispector no poema Entre Rosas e Baratas, a Cláudio Manuel da Costa em Labirinto, e a Carlos Drummond de Andrade em No meio do caminho, seja pelas imagens, pelas glosas ou pelos títulos por ele utilizados nestes textos. Desta maneira, o poeta edifica a irmandade compacta daquele que tem com seus predecessores mais que um respeito, pois percebe a necessidade de se conectar a eles pelo ofício que desempenha. Com esta busca, pretende dizer de forma única e particular, com “rabiscos pela superfície / da mesa redonda, dura e opaca” por meio de um verso que é sempre “sem sono”, como nos ensina em Insônia, edesenha imagens que nos remetem ao constante retornar ao nada que “se faz / prenhe de sentidos”, como nos diz na segunda parte do poema Epitáfio.
Outro elemento marcante neste livro é a presença da cor, demonstrando que o poeta pinta cenas, pensa em paisagens que nos provocam o pensamento, trazendo ao verso esta plasticidade emoldurada nas margens, no branco, nos silêncios. A leveza de uma pintura a que não escapa a importância da luz, sua constante luta e enfrentamento com a sombra, elementos indispensáveis e complementares na construção dos volumes e das densidades do que aqui é poetizado.
É a cor e o contraste entre luz e sombra que aparacem em versos como “É noite e dia / no clarão da noite seca.”, de Pela janela; “Vermelho de carne crua / meu dedo sangra em palavras / velhas. Calejada, a mão / ainda escreve sobre a linha.”, de Cardápio; “Depois de um verso rápido, / morrer um pouco pode ser / um bom começo / congelado em fotos / de mosaicos coloridos.”, de Sépia. A cor e os elementos de luz e sombra completam as imagens, como se também fizesse em seu livro um caderno de desenhos, um curso de pintura para os que desejam perceber as cores que, de fato, preenchem a vida, em muitas das vezes mais refletida que autêntica, seja na noite ou no dia.   
O constante contato do corpo com as vicissitudes, em imagens plásticas carregadas de cor, luz e sombra, de momentos pequeninos plenos em poesia – “ou no vão vazio / de uma palavra / que se evaporou / no suspiro exíguo / da água corrente / /       em ebulição.”; de Pró-epílogo–, dão aos textos imagens poéticas que refletem, do primeiro ao último poema, a construção de um olhar especular do mundo, seus duplos, opostos e interligados, como o cordeiro e o lobo  no poema que dá nome ao livro. O poeta sente-se mordido pelo cordeiro, “manso e cordato”, sabe que este tem o lobo como par em meio a perenidade da multidão e dissolve a fábula, trazendo a carnificina do tempo que tudo devora, mostrando o quão somos todos presas deste animal que nos espera à espreita, armando o bote sangrento e silencioso.
Ao costurar este pensamento sobre o mundo com palavras que lhe escapam nas pautas, o poeta faz, enfim, um belo dissecar dos pares sempre presentes – vida e morte, luz e sombra, dia e noite, Deus e Diabo, anjo e demônio, ser e coisa, presente e eternidade. Assim, Leopoldo Comitti, em A mordida do cordeiro, refaz o “habitar”. Este habitar poético que Eduardo Lourenço percebeu como fundamental em seu Tempo e poesia, e que Heidegger entende como uma maneira de ter com o mundo uma relação de pertencimento[1]só possível poeticamente. É neste sentido que todo o livro, atento a tudo o que pode fazer o leitor sentir-se parte e sentir as partes deste todo sempre duplo, transmite a percepção lúcida da finitude, dos limites do corpo e do tempo, do olhar e da palavra.  


[1]     HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão et alli. 5. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 125-141.



Danilo Barcelos é  doutorando em Letras  na Universidade Federal do Espírito Santo, poeta e escritor. 



4 poemas de Pedro Du Bois

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Classificar

Avento farinhas de mesmos sacos,
desfaço o bolo ainda quente, minhas mãos
crispam a forma na fornalha
da ignorância: não aprendo a lição
da humanidade no esforço de me lançar
ao centro da controvérsia; sou o resumo
do jornal de domingo em cadernos
imensuráveis; talvez me anuncie
em econômicos classificados: terça-feira
estou ofertado ao nada.
Compareçam.


Épocas

Sou arremedo de outra época
- o que me foi contado
  como verdade: sonhos
                   ilusões
                   grosseiras mentiras
             grotescamente transmitidas.

Arremedo e voz que ultrapassa
a coragem: voraz me apresento
na partilha
              e do deixado
              exijo o arremesso: ao largo
do tempo outra época me é cobrada:
          
           cada hora em dias da semana
               em mim as consequências
               em mim as doenças
                      e as curas repetitivas.

A figura do herói decomposto: homem comum
em vida no ato inopinado da leveza
com que a morte dita regras
em diferentes épocas.


Da Injustiça

Amaldiçoado em lágrimas
rasgo olhos ao horizonte

poente
inutilizo a noite
na chegada
em refúgio

(os cães ladram)

rememoro a hora
da notícia transmitida
palavra por palavra

revejo minha imagem
cristalizada
no congelamento
da lágrima depositada

(os cães farejam)

as dores se afastam
no distanciamento
necessário ao medo

o corpo estremece
ao se pertencer em dores

no horizonte hostil
da janela aberta
o futuro se depara
com a impertinência
do presente

(os cães comem)

afasto suas mãos das minhas:
o contato é lucidez
inoportuna na desesperança

a oração despercebida
rompe o silêncio
e se perpetua

afago o deslizar da hora
em horas subsequentes

(os cães se defendem)

murmuro o nada acontecido
e desacordo em sonhos

o retorno convive
com o fato
desproporcionado

revivo o outono em folhas
pelo chão

recupero a sanidade
e me faço cristal
de rocha esfacelado

(os cães se diferenciam)

sofro o instante
e gesto
o silêncio

o emudecer transmite
a incerteza da pergunta

na vastidão ampliada
da insensibilidade

(os cães desfazem)

posso perguntar
o que bem entendo:
mas não entendo

posso exprimir
a minha raiva:
mas não pretendo

posso aproximar
os olhos à fotografia:
mas não enxergo

(os cães confundem)

calendários dizem que os anos passam

o exercício diuturno de recuperar
o inconsciente e o aguardar
refulgente: recomposto

o exército lancinante dos ataques
distribui ossos que estalam

(os cães apavoram)

um dia destaco na pedra
o sinal: acordo

um dia acordo e na pedra
destaco o sinal

um sinal na pedra
é destaque quando acordo

(os cães se acovardam)

olho e enxergo
ouço e escuto
pego e sinto
levo à boca
e o sal amarga
o recesso de onde retirado

avaros dias de permanências
permanentes signos
aparentes esboços

o processo desarruma o fato
em procedimentos

(os cães arfam)

ouvidas as testemunhas
os peritos dizem
das especialidades

nada
nada

a improvável condenação
confundida em versos
na reversão da realidade

(os cães obedecem)

choro atravessar o espaço
desconsolado em fatuidades

remoço a fotografia
e me instalo diante
da orfandade

perder significa atos
ao despropósito
de continuar vivo

(os cães silenciam).


Esquecer

Escuro
   escuto
      esqueço

        (não morro antes de voltar
         à morte anterior)

         esqueço o véu
         que cobre seu rosto

escuto a prece
            o escuro se faz
no fastio de estar aqui:
                    sei agora.






Pedro Du Bois, poeta e contista. Passo Fundo, RS, 1947, residente em Balneário Camboriú,SC. Vencedor do 4º Prêmio Literário Livraria Asabeça, SP, com o livro  Os objetos e as coisas( Editora Scortecci, São Paulo, 2005).Editor-autor, com diversos títulos publicados artesanalmente, em tiragens mínimas, não comercializáveis. Textos publicados em diversos sites e blogs de literatura. Teve publicado, em 2009, o livro A Criação Estética, poemas, Corpos Editora, Portugal.



 

5 poemas de Chris Herrmann

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Butterfly 1 by Richard Robert



Até me perdi
naquele papo cabeça.
Até me encontrei.



Alma passarada
Vejo e ouço você
em tom arco-íris



Um haikai guilhermino...

Seus lábios me contam
silêncios e mais compêndios.
Sorrisos apontam.



Dusseldorf

O espelho diz-me sorridente
Da poesia doce e veemente
Que tu trazes no peito
Refletindo-o direito
Tua face contente
Sob o céu quente
Saudade mente
Dor mente
Do seu
Dorf
Dor
D+
+



Espelho de mulher

Atravessa
o outro lado
sem príncipe,
nem consorte.
Apreende
a vida,
luta, briga,
e a devolve
sem suporte.
É nascente
refletida
de dores,
amores
e glórias.
Amadurecida,
pura-mente
sorridente,
que com
ou sem sorte,
aprendeu
por si só ser
mais forte.





Chris Herrmann (Christina Magalhães Herrmann) nasceu no Rio de Janeiro, estudou Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Música e Piano no Conservatório Brasileiro de Música (CBM). Desde muito jovem começou a escrever poemas e compor músicas, como Em Busca do Paraíso(para Piano), Voo Celeste e Viking III (as duas últimas em parceria com Roberto Oliveira Costa), entre outras. Em parceria com Byafra e Paulo Ciranda teve vários poemas musicados como Diga-me, O Homem que não Chora, Teu Beijo e Do Jeito que Você me Olha. Em livro publicou Voos de Borboleta - Coletânea de Haicais, prefaciado por Leila Míccolis - Editora Protexto – 2009. Participou de antologias e coletâneas como Poetas pela Paz e Justiça Social - Antologia Poética - Editora Alcance – 2007, Poetas do Café Volumes 1, 2 e Haicais, Poetas do Café Vol.3, Pássaros-Poetas e Trovadores - 3 obras em 1, Antologia Poética - Espanha, 2007, Poesia do Brasil - Vols. 5 e 7,antologia oficial do XV Congresso Brasileiro de Poesia, Saciedade dos Poetas Vivos Digital - Vol. 1 e 4 - Blocos Online.

Vivendo com sua família na Alemanha desde 1996, ela também trabalhou como web designer e tradutora do Inglês e Alemão para o Português.. Em Novembro de 2007 foi nomeada Consulesa do Movimento Poetas del Mundo em Dusseldorf, Alemanha.  Desde 2009 dedica-se ao trabalho social na Alemanha junto a idosos e deficientes físicos utilizando a música. Em 30 de novembro de 2012 a Sra. Herrmann formou-se na pós-graduação ´Musikgeragogik´ (pedagogia musical no trabalho social com idosos) pela Universidade de Münster, Alemanha. Home Page: www.christinaherrmann.com


11 haicais de Alvaro Posselt

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Ilustração: Bruno Marafigo


*
Viver, eu suponho,
é chicotear a realidade
montado no sonho


*
O poeta é brando
Trabalha, arma uma batalha
quando está sonhando


*
Faltou parede
Entre um bonsai e outro
estendo minha rede  
     

*
É hora do banho
De lambida em lambida
o gato dobra de tamanho


*
Curitiba nos maltrata
Hoje eu saí de blusa
ao invés de regata


*
A fila anda
O pai não sabe mais com quem
a filha anda


*
Lenore, mas que estorvo!
Do poema de Poe
deixei escapar o corvo


*
Pôs silicone
De trompete
virou trombone

               
*
Hoje vai ter missa
Farão parte do sermão
Bashô, Buson e Issa


*
Pernas, passos, pressa –
A pipa do piá prende-se
na ponta do poste

     
*
Lua de outono –
Dorme o bêbado na praça
todo iluminado


*Haicais do livro "Um lugar chamado instante", de Alvaro Posselt.





Alvaro Posselt (Curitiba/PR, 1971) é professor de português e poeta haicaísta. Publicou Tão breve quanto o agora (2012) e Um lugar chamado instante (2013). Contato: alvaroposselt@yahoo.com.br








2 poemas de Tess Gallagher por Miriam Adelman

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A ausência

Escrevo isto por vingança
que é uma mágoa que se profere ao eu
em nome de outro. Tem a ver com
criar um motivo   o que é
uma ausência não pouco parecida
com uma arma. Um homem atirou
num oceano atrás da minha casa.
Foi um ato de coragem. Os pássaros
se libertaram porque era minha
varanda com um oceano atrás.
Ele reconheceu um alvo que
apareceu, seus punhos soltos
à espreita. É essa a maneira
dos alvos, um tão bom quanto o outro
até você decidir. O oceano estava lá
assim como a arma que reconhecia o
oceano e o desejo do homem
 de se ausentar     o que é
uma forma de começar de novo. Eu
escrevo isto como vingança    e a palavra
porque nada tem a ver. O motivo
se esquece. O homem atirou.


 The Absence

I am writing this out of vengeance
which is a hurt given to the self
in the name of another. It has to do
with becoming a purpose
which is an absence not unlike
a gun. A man fired one
into an ocean in back of my house.
It was an act of bravery. The birds
went free because it was my
back porch and an ocean
behind it. He knew a target
when he saw one, those fists loose
in his eye. That is the way of targets,
one as good as another until
you decide. The ocean was there
and a recognition of the gun
for the ocean and the need too
of the man to leave himself out
which is a way of beginning
again. I am writing this
out of vengeance and the word
because has nothing to do
with it. The reason forgets
itself. The man has fired.



Seda preta

Ela estava limpando – isso sempre
nos resta – quando encontrou,
na parte de cima do armário, o velho
colete de seda que ele usava.  Ela me chamou
para vê-lo, desenrolando-o com cuidado
como se alguma coisa viva pudesse
cair dele.  Então o estendemos
sobre a mesa da cozinha alisando
as rugas, nossas mãos pesando até
ele voltar à sua forma sobre a formica
e as pequenas pontas que indicariam
os bolsos ficarem lisas.  Os botões estavam todos
intactos.  Estendi meus braços e ela
passou as grandes cavas da manga
por eles. “Isso é algo  que nunca tive desejo
de ser”, disse ela, “um homem”.
Eu fui para o banheiro para ver
como me veia nesse brilho, nessa
 tristeza. Sinos de vento desafinados
na alcova. E ela que  começou
 a chorar pelo que eu me afastei
contra a luz da pia onde a porcelana
tinha fixado seu olhar. É hora de acudir a ela
pensei eu, com essa outra parte da mente,
e fiquei imóvel.


Black Silk

She was cleaning – there is always
that to do – when she found,
at the top of the closet, his old
silk vest. She called me
to look at it, unrolling it carefully
like something live
 might fall out.  Then we spread it
on the kitchen table and smoothed
the wrinkles down, making our hands
heavy until its shape against  Formica
came back and the little tips
that would have pointed to his pockets
lay flat. The buttons were all there.
I held my arms out and she
looped the wide armholes over
them. “That’s one thing I never
wanted to be”, she said, “a man.”
I went into the bathroom to see
how I looked  in the sheen and
sadness.  Wind chimes
off- key in the alcove.  Then her
crying so I stood back in the sink-light
where the porcelain had been staring. Time
to go to her, I thought, with that
other mind, and stood still.



Tess Gallagher, do livro Instructions to the Double (Graywolf Press, 1976), com versão de Miriam Adelman.


Paisagem e pântanos - Diogo Cardoso

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Odd Nerdrum - Three Name Givers

__
Amei o porco guardado nos olhos da mulher. Era janeiro e a nascente de tudo era fora das chuvas. Amei o porco e ele amava a traça no homem em mim. Vivíamos de desespero e água, e o esquecimento nos nutria a fome. Era janeiro e como não haveria de ser se o sol queimava as águas guardadas no verão? Era um rosto num olhar e ao novo já era outro o mesmo rosto. E eu era traça, pulga, ranúnculos e fibras. E ainda assim, água, amei o porco nos olhos da mulher guardado.


__
Por duas vezes gritei e o que saia de minha boca eram raízes extremas. Duas vezes, não mais que duas. Da primeira, sete aves visitaram-me os lábios e com a certeza de quem assassina, comi-os todos. Farto, sentei as raízes em minha desolação. Não podia mais ser grito, não podia – queria apenas o silêncio perpétuo dos ânus venais. Isso foi há muito tempo, quando ainda os deuses nasciam com os pés atados à terra e as árvores eram tecidas de carnes mortas infantis. Da segunda, padeço ainda hoje das raízes saídas do sexo e do sonho impossível dos voos de pássaros dos quais sinto toda a fome.



CONTO DE DENISE RAVIZZONI

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Billy Corgan, O Martelo e O Vermelho



“Oh Lord I’m ready now / I’m ready, ready to know / Ready to learn...”
Os versos vinham de algum lugar perto, bem perto. A voz familiar, as palavras quase amigas. A canção de Billy Corgan saia de alguma janela do prédio em frente, atravessava a rua e abria caminho no ar para que eu a seguisse.
A tarde sufocava, não dava trégua, não permitia uma respiração tranquila. E eu ali, olhando e olhando. Parecia assistir a um cena de filme, uma imagem já bem conhecida. Isso produzia em mim uma sensação estranha, como se o filme em questão me deixasse soldada à poltrona de algum cinema hipotético enquanto aparecia na tela, cinema que só existia num canto de memória de anos e anos, um passado jogado num canto qualquer.
Imóvel, observo o fio colorido e espesso avançar pelo piso. É esta a cena em que reconheço o rosto que me assiste a uma distância curta. O homem de olhos estranhos inclina o rosto para a esquerda e sorri com candura, quase encantado. Parece hipnotizado por alguma cena de seu próprio cinema hipotético. A cena sou eu, ali deitada, incapaz de emitir um som sequer. Sei que me olha como nunca fez antes. Lembro bem agora. Muitas e muitas vezes ele pousou os olhos sobre mim, nunca os olhos de agora, nunca essa expressão. Estende a mão e, ainda sorrindo, passa os dedos de leve sobre minha testa, afastando uma mecha de cabelos que insiste em despencar pela face e balançar irritantemente sobre o nariz. Ele tem uma boca de lábios secos, mas macia, e dela ouço sair as palavras uma voz doce que diz:
- Calma, tudo vai ficar bem!
Não tento responder. Não tento gesto algum. Permaneço na cena, na minha e na dele. Dois filmes dividindo a mesma imagem, mas com interpretações diferentes. Agora estou ocupada em lembrar como cheguei ali, o que fiz para estar estendida no piso gelado, só as pernas sobre o tapete macio numa posição esquisita, a cabeça de um jeito desconfortável quase apoiada no ombro, braços estendidos para cima. Sei que está calor, um calor sufocante, porque estou com meu vestido leve, o que gosto de usar sem roupas de baixo quando fico em casa nas tardes de verão. Uma roupa fresquinha, gostosa, leve. E porque ele está só de jeans, nenhuma camiseta ou sapatos. Mas o engraçado é que não tenho a sensação física do calor. Não transpiro, embora sinta os cabelos molhados no início da nuca. Não saberia explicar o motivo, mas exatamente nesse momento sinto uma lágrima grossa se formando, depois escorrendo feito lava quente do meu olho para o chão. Vejo a gota larga se espalhar um pouco bem perto do fio colorido que agora aumenta a espessura e torna-se mais viscoso. Ele anda para um lado e para o outro. Carrega alguma coisa na mão direita, mas não identifico. Não sei se o dia está claro demais, mas a luz atrapalha minha visão. Ele percebe a lágrima e se aproxima. Fica de cócoras, bem perto, e diz:
- Não, não chora. Olha, você é tão linda... não quero que você chore. Sério. As coisas acontecem de um jeito estranho as vezes, perdemos o controle, mas não quero que você chore. Estou aqui com você. Vou ficar do seu lado até o fim, até o fim!
A voz é quase comovida, treme um pouco no final da frase. Está emocionado. Também estou, embora não seja capaz de explicar o motivo. Os pensamentos se misturam, não consigo ordenar as idéias de forma clara. Talvez se me levantasse, ou fizesse algumas perguntas, mas não posso. Ouço mais um trecho da canção, que conheço bem. Arriscaria dizer o número do apartamento de onde sai a tal música. Arriscaria até cantar umas frases se a situação fosse outra. Não agora. Agora não. Tento fechar os olhos e só então percebo a dor, oca como uma caverna, na parte de trás da cabeça perto da orelha esquerda. Dor quente. Entendo que a dor tem alguma relação com a desordem dos pensamentos e com o fato de eu não reunir forças suficientes para um gesto qualquer. Também sei que é a dor que produz este clarão nos meus olhos, e não o sol forte da tarde quente entrando pela janela. Fechar os olhos é impossível. Tentei, juro que tentei. A náusea foi forte demais e agora sinto o gosto amargo na boca e tomo consciência do líquido escorrendo da boca. Mesmo assim consigo cerrar um pouco as pálpebras e, por um segundo, recupero o foco. Pouco, mas o suficiente para identificar o que ele tem na mão. De olhos abertos, noto que as cores estão confusas, mas sem dúvida é o martelo, o mesmo que entreguei a ele pouco tempo antes para que colocasse na parede o quadro que eu havia terminado naquela manhã. Talvez ele tenha visto o movimento dos meus olhos, talvez tenha adivinhado o que passava agora pela minha cabeça. Endureceu um pouco a linha da boca e interrompeu novamente sua caminhada nervosa e incessante de um lado a outro da sala para chegar bem, bem perto. Dessa vez senta-se no chão, coloca a mão sobre o meu ombro e aproxima o rosto para falar ao meu ouvido.
- Meu bem, não me olhe assim. Eu juro que não queria, amor. Mas você não devia ter me pedido para colocar o quadro. Justo este quadro. Vi você ali, tão linda, tão excitada com o trabalho pronto, fazendo planos, dizendo que levaria a pintura para a galeria na manhã seguinte... Meu bem, o homem retratado ali não sou eu. Você não devia, não devia...
Ele começa a chorar como um bebê faminto, não em soluços, mas em uivos tristes. Um choro sentido, lamentoso. Consigo ver o telefone no chão, a poucos metros dele e de mim. Está caído, o fone fora do gancho. É inútil o meu esforço, sei que não vou alcança-lo. Penso na moça do filme, com o estômago cheio de comprimidos perguntando para alguém do outro lado da linha se acreditaria que espíritos poderiam usar telefones. O pensamento seguinte é um misto de horror e vazio. Vejo e reconheço o martelo, o meu martelo, agora muito perto dos meus olhos. A parte chata da peça de ferro tem um mix estranho de sangue, cabelos e pequenos cacos brancos que parecem ossos. Meus ossos? Meu sangue? Positivamente, meus cabelos. Fios longos castanho avermelhados empapados de sangue. Só então percebo que o fio colorido no piso à minha frente também é vermelho e engrossa a cada minuto formando uma poça de líquido grosso. Sangue, o meu sangue. Enquanto ele chora, ouço ainda a canção que vem ao meu encontro e me deixo levar pela melodia. Sei porque não posso me mover. Sei porque ele chora. Sei porque meus pensamentos estão desordenados e falhos. A náusea some e consigo fechar os olhos. A canção vai ficando distante, distante...
“Oh Lord I’m ready now…”




*    *    *





Denise Ravizzoni olha o mundo como quem espia do buraco de uma fechadura sob uma lente verde. Gosta de miniaturas, caleidoscópios, fotos em branco e preto e apartamentos antigos e amplos. Gaúcha, mais de 40, viu muitos filmes, leu muitos livros, escreveu uns poucos. Em 2009, lançou a coletânea de contos sobre mulheres, "As muitas que me habitam" (Multifoco, RJ). Dois romances na conta dos livros escritos, muitos e muitos e muitos textos aí pela rede. Email.






Nebulosa - Adri Aleixo

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Wide Out - James Turrell

Naquele tempo eu singrava flores, olhos de deserto que avistam angra. Silentes, pidões. Eu singraria também suas dores. Todas, uma a uma inclusive as mais tolas. E você me trazia Sirius naquelas noites loucas e longas em que  nos sobravam preguiçosas manhãs travestidas de orvalho. Nus. Assim andávamos, dançávamos. Apenas o amor e a luxúria nos cobriam. Às vezes alguma renda me vestia, se íamos à cidade para buscar algum unguento ou produto de necessidade e então éramos transpassados por algum olhar estrangeiro de inveja ou cobiça. Passada a tensão, era certo o regresso ao lar e à temperança costumeira. Envoltos, sempre envoltos pelo tule e a quem do menor mosquito ou incômodo.
Mas aquele que disse que cicatriz não sangra, nunca viu uma nebulosa ou nunca delirou sob o sol. Até as iguarias matam. É tudo uma questão de dosagem e não de veneno. Os excessos, a falta... sempre. O pensamento, tão irredutível maneira de enlouquecer.  A sucessão dos dias, tão perfeitamente emparelhados. O sol sempre nascendo a leste e se pondo a oeste. O equilíbrio, a tranquilidade e o amor, não seriam a mais terrível matéria para a perdição? Para que se esconder das pessoas lá fora? Se estão todas elas aqui em nossas cabeças, despertas uma a uma. À espera de um pequeno clique.



Salvatore Quasimodo por Helio de Freitas Puglielli

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Aleksandra Waliszewska

Áries*

A estação se mostra
no lânguido fluir dos céus
nova ao vento,
amendoeira que clareia
aéreos andares da sombra,
nuvens de sombras e milho:
e recompõe vozes sepultadas
nas margens, valas
dos fabulosos dias de graça.

Toda vegetação se esgalha
e uma ânsia empolga as águas remotas
de gélidos louros desnudos deuses pagãos;
e eis que se levantam do fundo entre os seixos
e numa cambalhota dormem celestes.


Ariete**

Nel pigro moto dei cieli 
la stagione si mostra: al vento nuova, 
al mandorlo che schiara
piani d'ombra aerei 
nuvoli d'ombre e biade: 
e ricompone le sepolte voci 
dei greti, dei fossati, 
dei giorni di grazia favolosi.

Ogni erba dirama, 
e un'ansia prende le remote acque 
di gelidi lauri ignudi iddii pagani; 
ed ecco salgono dal fondo fra le ghiaie 
e capovolte dormono celesti. 



*Versão de Helio de Freitas Puglielli.

**Poema de Salvatore Quasimodo. Acque e terre (1920-1929) - Tutte le poesie. 




Helio de Freitas Puglielli, jornalista e professor aposentado da UFPR, também traduziu poemas do escritor italiano contemporâneo Gio Ferri, publicados por Wilson Bueno no jornal “Nicolau” (anos 90).





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