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Conversa com o escritor Vinícius Lima em Londrina/PR
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"A reinvenção da língua em 'Rocketman', de Rique Ferrári", por Alexandra Vieira de Almeida
A reinvenção da língua em Rocketman, de Rique Ferrári
Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Temos diante de nós um livro dialógico, um encontro de artes que se mesclam no desenho da beleza. O livro de poemas Rocketman (Patuá, 2017), de Rique Ferrári contém 39 poemas e 22 ilustrações que constroem combinações inusitadas entre desenho e imagem poética. Os primorosos poemas deste autor gaúcho são desenhados imageticamente, aliando a forma ao conteúdo. As ilustrações de tatuadores famosos encerram uma variedade de estilos que tangenciam a linguagem da poesia, pois diante de nós, temos desenhos que falam, que discursam com nosso interior mais secreto. O casamento entre poemas e ilustrações se dá através do virtuosismo que cria linguagens em preto e branco ou de forma colorida, mostrando a ideia de contenção ou transbordamento dos sentidos. As ilustrações belíssimas destes tatuadores famosos nos apresentam o quanto o intercâmbio entre as artes pode ser produtivo, unindo o figural ao lingual.
O título do livro que é homônimo à música de Elton John, Rocketman, nos vem revelar a solidão de um ser que anda entre os povos. O sujeito em meio à multidão. A canção de Elton John fala de um homem que foi ao espaço e se sente só com saudade da Terra. O livro de Ferrári é dividido em três partes que se relacionam pelo seu teor cotidiano, mas que são bem diversas entre si, deixando cair por terra o mito de que o verdadeiro livro tem de ter uma unidade temática bem fechada. Rique Ferrári traz no seu livro a riqueza da pluralidade temática ao abordar diferentes aspectos da realidade. A primeira parte, “América”, aborda o lugar, a delimitação do território externo, qual sua visão sobre o que o circunda, que foi a experiência do poeta em viagens por países da América do Sul, percebendo detalhes nunca antes vistos no seu confronto com o outro. O poeta aqui em questão nos salienta como o geográfico irrompe no tempo da poesia. O tempo da sua poesia é dual, revelando a ambiguidade da forma. Ele faz versos longos que ao mesmo tempo explana de forma ágil e não mecânica.
O poeta por ora aqui estudado vai do mínimo ao máximo com extrema facilidade, dominando os estilos variados de se poetar. Na segunda parte, intitulada “Amarelo”, temos haicais fantásticos, traduzindo o humor das pequenas coisas. Rique Ferrári reinventa a língua, fazendo-nos lembrar dos versos de Cecília Meireles que disse: “A vida só é possível/reinventada”. A poesia dele não tem quase pontuação nos levando ao fluxo da consciência de suas confissões criativas e originais. A pouca pontuação nos vem falar da urgência do transbordar das palavras e dos afetos que não criam uma pausa, mas um jogo frenético como o próprio real se mostra para nós. A agilidade em meio a versos longos é o equilíbrio perfeito de seu intenso paroxismo.
O autoconhecer-se para ele é também um olhar para fora e não apenas para dentro, pois o espelho é seu reflexo de dentro para fora e de fora para dentro. A música de Elton John expõe a solidão de um homem no espaço. A terceira parte do livro de Ferrári se chama “Rocket Man”, um único poema longo por sua extensão, que ao contrário da primeira parte, uma viagem exterior, vem nos falar de uma viagem interior do eu lírico que supervaloriza a humanidade que reside em seu ser. O poeta gaúcho fala de temas tradicionais e essenciais (das regiões que percorreu) numa linguagem poética. Aborda o nosso cotidiano e dos outros de forma complexa. O seu virtuosismo apresenta imagens inusitadas e impactantes, produzindo um livro que dialoga com a tradição e com o pós-moderno. Eis o intenso paroxismo de sua poesia que ricamente dialoga com as várias linguagens, sendo também cosmopolita ao utilizar também a língua espanhola e inglesa. A literatura de Rique Ferrári busca complexificar, desafiar o leitor para novos e originais sentidos.
Com combinações complexas e nada fáceis, seu livro aponta para imagens opostas que se juntam numa relação dinâmica e imprecisa, trazendo para os leitores o mistério da própria poesia. Com temas perenes, escreve sobre a transitoriedade das coisas, o esfumar-se nas entrelinhas do tempo. O conteúdo sendo universal em uma forma vanguardista cria um elo rico e magistral em seu livro. O desenho que se mostra em sua poesia imagética e ao mesmo tempo confessional nos apresenta o malabarismo linguístico que produz saltos imensos no seu dom de poetar. No poema “Rocket Man”, a terceira parte, temos uma belíssima ilustração em que o homem desenhado em preto e branco abre sua roupa para deixar sair de seu interior vários planetas em tom azul. A poesia aliada a este desenho começa assim: “-daqui pode-se ver a cidade voadora/e se estivermos juntos, estaremos completamente in.” Este adentrar-se no outro nos vem dizer da intensidade do mundo em nosso interior. O outro e nós não nos calamos. A comunicabilidade da linguagem entre os seres nos faz planetas que giram ao redor de um único centro, a massa vermelha de nosso coração, que pulsa, apesar da agressividade do mundo. De sutilezas se faz essa viagem para dentro do nosso corpo que interroga o externo, mesmo que esse esteja a anos-luz de nós, em outras vastidões, como se nosso ser buscasse a imensidão do universo. Nós, em preto e branco, precisamos abrir a chave da solidão claro-escura para saltarmos todos os planetas azuis, ou seja, a multiplicidade se expande no nosso centro escolhendo a via da linguagem comunicativa. Parece isto a nos dizer o livro de Rique Ferrári como um todo. Assim, a unidade questionadora de seu livro percorre todo o esqueleto estrutural de sua obra, apesar de apresentar poesias variadas e, ao mesmo tempo, dinâmicas entre si.
Portanto, o desenho criado por sua poesia plural e complexificadora dialoga com as ilustrações mais belas e comunicativas, relacionando o imagético e o linguístico. Seu livro é uma raridade em meio à poesia contemporânea, algo diferente em nossa costumeira forma de criar versos. Seus versos labirínticos nos vem falar de uma busca incessante que se mostra entre o dentro e o fora, o tempo do ser e o geográfico. O tempo-espaço de uma presença inaugural de se estar no mundo, de se experienciar o que nos circunda. Assim, seus poemas juntamente com as ilustrações destes famosos ilustradores revelam o belo jogo das artes que não se anulam, mas se fiam numa rede inclusiva de sugestões e maravilhamentos. A partir do desenho, ele reinventa a língua, produzindo uma obra ímpar em nossa literatura.
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Alexandra Vieira de Almeidaé poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.
Autor do livro Rocket Man, Rique Ferrári nasceu em 2017, versão beta de um sujeito nem aí. É empresário, sommelier, professor, especialista em arte pré-colombiana, filósofo, neologista na língua portuguesa e espanhola, dançarino, colecionador de pedrinhas da rua, campeão gaúcho de skate amador, mágico, churrasqueiro, piadista, voluntário de ONG, dupla de bocha do Adair, marido de aluguel, jardineiro, poeta, beijoqueiro, mentiroso e tal.
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três poemas de Eber Inácio, do livro "sangue nos olhos"
mão planta
inocente indecente inocente indecente
por isso é preciso enfiar as mãos na garganta e arrancar com as unhas o esmalte da palavra amor
agir o amor
mesmo eu sendo planta
eu sou planta
eu sou verde
O meu peito é verde. O meu pau é verde. A minha casca é verde.
mas estou indo pro baile que arde
recarregue meu Riocard
deixa de ser covarde
e vá lavar este Tupperware direito
e venha sonhar comigo
a vida tá foda, Johnny
quem é o inimigo, Johnny?
não digite o código de barras, Johnny
saia do XVideos, do Grindr, do Chaturbate
e bate uma pra mim
é só uma planta que está crescendo aqui
verde
verde
choveu, eu desisti
fez sol, eu derreti
mas deixe o ventilador ligado e venha gozar
não! Não venha querer tirar esta mancha com Vanish
são apenas vestidos, perucas e plumas
me deixa ir pra casa
sozinho e mal acompanhado
sem peruca, sem vestido e sem plumas
despeluncas
deixa ser quem eu sou:
um comediante torto
verde
planta
tá afundando, Johnny
vou segurar tua asa
não me pergunte nada
o meu nome
como estou
e como eu matei os meus filhos
a cova já está aberta para os amantes da liberdade
tira o pé da terraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aceite o meu amor
Mas tira este palito nojento da boca seu rato
enfia o Facebook no rabo
estou falando contigo
saia do Instagram me olha
te darei abrigo
lá fora há uma guerra que está envenenando nossas almas
os canhões estão famintos
mas eu sou vitória-régia
não sou de mi mi mi que meme
o amor não medirá o número dos seus seguidores
você ainda quer prova?
aqui está ela
a minha mão a minha planta a minha mão planta
Ela está livre. Livre e limpa.
* * *
O bem-estar diante de uma catástrofe natural. Uma coragem subterrânea assola meus vírus. Dizer a eles: estou empossado do mais puro sangue animal. Incorporado por anjos e por um halo precioso de tão bom. Minha alma cheira a hortelã fresca. Meu sorriso e meu corpo não me abastardam. Meu corpo tem uma verdadeira e perplexa admiração por mim.
* * *
peixaria
VAMOS FAZER UM FREELANCER
LANCHE DE BALCÃO
QUERO O APREÇO DO TEU
NESTE MOMENTO
TENHO PESSOA PELA METADE
A KILO
MEIA-ÁGUA
PUXADINHO DO OUTRO
PERTO E LONGE DE PESSOA
PESSOA/ ELA TODA/ COM TODAS AS LETRAS QUE A PALAVRA TODA PREENCHE
ME TORNARIA TORNADO/ MUNDIAL VÉSPERA DE NATAL
O PESO FRICCIONA O AMOR PARA DENTRO DE MIM
ABRE O JOGO
O LEGO
O AQUAPLAY
O QUAL É A COR DO SEU NAMORADO
MAS TEM QUE SER AGORA
O LIMO DAS HORAS ME AMOLA E PRODUZ CORTE
É QUE PRECISO DE VOCÊ AGORA
MESMO QUE ESSE AGORA SEJA EM MINÚSCULO OU EM SEPARAÇÃO DE SÍLABAS
PORQUE VOCÊ APARECEU NO MEIO
AO CORTE E COSTURA AO DESALINHAR MINHA VESTE
FITA MÉTRIQUE-ME
É QUE SOU DADO A PESSOA QUE ME ALARGA
EM CUMPRIMENTO NA METRAGEM
TUA FORMAÇÃO DE FRASES PAUSAS E EXCLAMAÇÕES FOMENTOU FONEMAS
ME RASPOU
PESCOU-ME
POR ISSO QUERO TEMPERAR CONTIGO
ESCAMAR OS PEIXES
A SEPARAÇÃO DOS ESPINHOS
E O ESCAPE
TUA PEIXARIA ESTAVA ABERTA E EU, SEMANA SANTA, ENTREI
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Eber Inácioé poeta, ator, dramaturgo, palhaço e arte educador. Nasceu em 1967 em Volta Redonda (RJ). Em 1990 muda se para o Rio de Janeiro. Um dos criadores do Buraco da Lacraia show e do grupo de palhaços Roda Gigante que atua em hospitais. Escreveu dezenas de peça para teatro. Como poeta participou ativamente do CEP 20000 e do Fala Palavra. Publicou a cartonera Preces e o jornal Relâmpagos.
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Um capítulo de "Dentro de um peixe sangrado", romance de Marcos Samuel Costa
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Fotos de Eder Jean |
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Nossa casa era como um ninho de japiim. As redes ocupam todos os lugares daquele lugar de nome estranho, não sabíamos dizer nosso lar. A morada de cada um é pesada demais. Outras vezes, leves. Lúcia entrava em casa com um bravio de fogo ainda vivo, levava ao fogão de barro, procurava entre as panelas pretas a que melhor poderia cozinhar o peixe. Corria no quintal e pelava algumas ervas, com sal e água cozinhava o peixe. Fim de tarde ou início de dia? Estávamos em qual parte do mundo naquela hora? Eu a observava sem parar, havia uma ocupação nos meus olhos que buscavam meus irmãos. Era fim de tarde, pois papai chegava porre em casa e queria quebrar cada parede da casa. Mamãe olhava a imagem impressa numa folha, era um santo. Acredito que a imagem olhava de volta para ela. Ajudava-lhe como podia. Mamãe pensava muito em um santo real, queria uma imagem de verdade. Achava que assim os milagres seriam mais rápidos. Sonha dentro de si. E eu a observava. O Zé entra pela porta e desequilibra tudo, tinha nas costelas ou talvez nas costas, um peso que não sei muito bem. Ele era torto em sua maneira de ser. Mas era quem mais demostrava afetos por mim. Era fim de tarde na vertigem dos meus olhos. Lembro-me da rede que tínhamos que tirar, corro, não espero papai chegar. Vou chamando um por um dos meus irmãos.
A caminho da beirada passamos por cimas das folhas caídas do açaizal, pulo por cima de umas, piso em outras, ao que entendemos por certo, o melhor seria era evitá-las, pois os escorpiões dormiam em sua parte de vazio. O mesmo acontecia com o coração de papai? Deixava os insetos habitarem seus átrios? A impressão era que todos nós dormíamos um mesmo longo sono, e que despertar era uma forma de morrer. Pedro foi quem primeiro entrou na canoa, Zé vinha logo atrás, Tati ainda muito pequeno segurava minha mão. Saiamos juntos atrás da rede. As folhas que desciam com o rio eram nosso termo. Limpar a rede dava um trabalho árduo. Só não estava conosco nosso irmão mais velho. Puxávamos a rede com a força que nossos braços eram capazes de ter. Inventávamos mais um pouco de força e puxamos na fé de haver peixes a ser coser nela. A primeira escama brilhante era vista. Refletia em nossos olhos e como resposta refletia ao rio. Éramos uma sincope. A entonação de luzes a beira duma noite a cair. Assustávamos a nós mesmo, e fazíamos a tarefa com mais agilidade. Dentro da canoa os peixes e as redes, as folhas com seus tamanhos todos. Uma chamou a atenção, vi que até os peixes lhe olhavam, guardei no cós do meu calção.
Já estava nos olhos da mamãe o reflexo das escamas dos peixes, que refletiam em nossos olhares e depois de volta ao rio, a fim de completar o ciclo nos olhos dela. Ela já sabia ter a farta alegria de poder ter no peito o orgulho que é comer no dia seguinte. A rede ficava suja na canoa.
O dia começava cedo. Papai era quem acordava a casa. Pedi que Lúcia lhe fizesse o café o quanto antes. Queria que toda aquela juntada de descarto soubesse servir-lhe de bom grado. Acordou e foi ver a canoa, queria ir ver um conhecido ainda nessa manhã. Viu a rede cheia de folhas e pedaços pequenos de pau. Voltou para casa, no caminho pegou um talo. Saiu a queimar nossa pele com sua raiva. Queimava de nós qualquer espírito de preguiça. Papai era o próprio juízo final? Minhas costas inchavam. Meus pequenos dedos se ocupavam a tirar as folhas de entre as armadilhas daquele invento.
Vinha no vento ou multiplicava-se com o nascer do dia – vigor nas veias. Semoventes nas horas, o barro acompanhava nossos pés, amarelados e frágeis. A pele de nossa transparência morena. Córregos desciam com força, meus pensamentos aonde? Na criação dos fenômenos invisíveis ou dos visíveis? Papai sempre dizia de seu sonho de ter um boi. Poderia eu roupar um bovino a ele? Nessa minha cabeça de outrora era o erro quem dominava. És tu diziam as folhas. E depois na contradição negavam. Corria sem parar duma ponta a outra daquele bosque insano. Devia ir ver mais os parentes.
Descia a escada dos fundos da casa de minha avó, e ela na beira do jirau. Nos olhos dela as lembranças do mel de cana que faziam no engenho. Falava da avó preta que atravessou de muito longe. Dela os olhos brancos eram como luzes. Negra. Negra e forte. Nunca virá nem um homem tão forte quanto aquela preta. Deu a luz a todos nós. Seus olhos eram dos dias de maré alta? Ou vinham juntos da maré morta? Ambas? Ambos os dias?
Nos segredos que tinham a serem meus, um era de felicidade. Fazia nas raras horas de distração meu barco de miriti. Será dele a próxima descida da ribanceira quando a chuva fizer da várzea braços de rios? Descerá como rã? Não saberá viver sem meus dedos brutos a lhe consertar talas? Ou saberá viver nos concertos dos bichos ao escuro dos rios? Desconhecerá a festas das mucuras? Abraçará sem força o candiru?
Minhas costas ardendo me dizem algo. Trago a boca as unhas dos pés, fico a roer. Uma folha passa lentamente por minha memória. Pego um terçado e me sinto disposto a derrubar todo o verde. Saberão sofrer minhas dores?
Lúcia pegou uma faca para cortar o peixe. O peixe aberto era um poema ao sol. O sal devagar penetrava a carne branca, buscava a transparência e atravessava os olhos. A escama crescia como um fruto. Minha irmã como terra. Saberá ela crescer passarinhos e descer ao poço a juntar amuré? Os meninos estão em algum lugar distante. A distância parecia ser algum tipo de substância precisa nos dias. Um fermento ao crescimento. Acorda era esticada. Um de nós amarrava o barco de nossa condução. Era o sonho de seguir a maré. Chegar até a baía. O ir a pé até a Mangabeira. Voltávamos a nós mesmo. Como uma canção leve no fim de tarde. O coro dos anfíbios. Rãs no meu coração abriam clarões. Tombavam a densa mata do medo. Uma aleluia entre os fantasmas. Não se sabia muito de proximidade, eram as palavras ditas no silêncio que nos aproximavam. Porém, de quem? De nós mesmos? A palavra era um fogo sem combustível, quase magia dentro da cobra. Caminhando os pés chegavam perto. Uma sombra descia com a fraca luz entre as folhas de palmeira. Era tio Bento. Papai e mamãe estavam fora. Vinha olhar os sobrinhos. Tinha uns olhos cuidadosos sobre minha irmã. Na calada um fruto seco estourava numa árvore sem definição. O camarão a secar no paneiro ao lado da casa. Os pés seguiam sobre a falta de descrição.
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Marcos Samuel Costa é natural de Ponta de Pedras - Ilha de Marajó - Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social UFPA e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. É membro correspondente da Academia de letras do sul e sudeste paraense e da ASPEELPP-DJ. Autor dos livros: Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), Titulado amor (editora Literacidade, 2014), em coautoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux 2016). Participou de mais de 20 antologias literá¬rias, entre elas I, II, III & IV Anuário de Poesia Paraense e publicou nas revistas Mallarmargens, contemporArtes, Marinatambalo, Gueto e etc. E mantém o blog Someplace (2008-2018) onde divulga sua produção. E faz parte da equipe editorial do Jornal Crescendo.
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Resenha de "A face serena", de Maria Valéria Rezende – por Krishnamurti Góes dos Anjos
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Foto: Gazeta Web |
A face serena que um exemplo de vida nos mostra
Krishnamurti Góes dos Anjos
Definições há de sobra para o conto literário, definições que em sua maioria são irrelevantes. Fiquemos com a elementar: narrativa ficcional de reduzidos limites. E assim, encontramos “A face serena”, último livro da escritora Maria Valéria Rezende recentemente publicado pela Editora Penalux. Do alto de sua maturidade de vida e experiência literária, a autora reuniu 37 breves narrativas das mais variadas temáticas e múltiplas técnicas ficcionais, que se misturam e se enredam de forma a compor um ciclo narrativo completo, e a que podemos chamar simples e diretamente de a vida humana, reafirmando na obra aquilo que Jorge Luís Borges escreveu sobre o Conto literário: “El cuento, por su índole sucessiva, corresponde intimamente a nuestro ser que se desenvolve em el tiempo”.
Há textos que – pelas referências de ambientação que trazem -,nitidamente foram escritos em um tempo recuado, não relativos às memórias da infância ou juventude, mas aqueles que trazem certa configuração cênica dos anos 80/90. E imaginamos que para essa edição a autora muito provavelmente efetuou fusões, transfusões, acréscimos, cortes e sobreposições. Aproveitou frases ou ideias, mesmo que reduzidas a um filete de água. “Nuestro ser que se desenvolve em el tiempo”. Muito bom, o resultado “atualizado” é simplesmente admirável.
Positivamente Rezende segue o dito de Tchekhov, para quem “os quadros íntimos é que importam porque em suma revelam o aprendizado humano”. Suas ficções surgem umas vezes de um teor anedótico, embora com mensagem simbólica devidamente registrada como em “Uma pequena morte” e “A vingança”, outras vezes de teor espectral, como são “Salvação” e “Um fio negro”, ora intimistas e nutridos de silêncios cúmplices como acontece nos excepcionais “Eclipse” e “Educação”. Ora de narração objetiva como encontramos em “Requadrilha”, na verdade uma paródia bem humorada do poema (Quadrilha) de Carlos Drummond de Andrade ou impressionista como é “Chuva”, no qual a sertaneja Maria do Desterro após o enterro de seu filho recém nascido, é acometida de um estado de espírito de iluminação impressionista, ao refletir sobre vida x amor x morte e não casualmente é o conto que abre o volume. São textos em que surge ao leitor aquele insight existencial que verdadeiramente identifica o texto literário de qualidade, independente das classificações que queiramos moldar, sobretudo em um momento de contestação de gêneros, de desestruturação ficcional e morte das chamadas vanguardas como o que estamos vivendo.
Mas há também textos que poderíamos chamar – memorialísticos -, porque claramente forjados na experiência de vida da autora que consegue remanejar a memória onde o tempo deixou uma pátina responsável pela visão nova de um objeto, das pessoas, da situação ou do conflito básico. A esse propósito veja-se Cada noite”, “Ao fim do mundo” e “Naquele tempo...”. Já em “Valete de copas” e “Gato e ratos” encontramos a realidade tangenciada pela intuição interpretativa se transfigurando e se recriando sob forma de situação simbólica.
A autora também dá o seu testemunho ficcional sobre esse nosso viver hodierno onde vai propagando-se e difundindo-se através da reprodução infinita, o desconcerto, o desnorteio e o desvario do ser e das suas relações. Atuando como uma verdadeira intérprete de pequenos mundos de individualidades varridos por situações aflitivas, há espaço para a introspecção isolada de fatores externos condicionantes e a moldura do meio geográfico e do momento histórico. Um verdadeiro ficcionismo psicossocial. E é assim que encontramos o homem sombra, o homem néscio que é o Nonato de “Conto de Natal”. O homem que perde a capacidade de sonhar, levado pelas circunstâncias da vida sem a menor reação. Observe-se o individualismo, o “cada um por si”, que se estabelece em certas relações conjugais como lemos em “Clichê”. Reflita-se sobre a possibilidade de, num mundo como o nosso, de desconfiança e de ninguém sabe nem quer saber quem é quem, as ocorrências de serial killers estarem camuflados na pele de uma “inofensiva velhinha” que assassina suas vítimas com um martelo de bater bife como está em “A marca. Sinta-se o desvario que vai no “suicídio” de uma Daisy Margarida - dançarina (prostituta) da Boate Pirilampo, no conto “Laudo”, ou o desvario sem precedentes de uma Aurélia, do conto “Tudo pela beleza”, que termina sendo outra coisa diferente de um ser humano de tanta plástica e implante e malhação que impõe ao seu próprio corpo pela busca da tal “beleza”, meramente exterior. E finalmente o supra-sumo do absurdo – e que já vem sendo defendido por imbecis do mundo inteiro - que é o conto “O muro”, onde se forja um perigoso metabolismo psicológico e as personagens se desdobram e assumem caráter coletivo. Transcrevemos trechos:
“Hoje fecharão a última brecha do muro. Já não haverá mais passagem alguma, nem um buraco para espiar de um lado para outro, nem uma frincha sequer por onde possa minar algum fluído, já nada nem ninguém poderá entrar ou sair. Há que escolher agora de que lado permanecer. Quem ficar lá dentro será para sempre, dizem eles, para sempre. A altura do muro, cuja beirada chega ao mesmo nível que o topo do morro que ela cerca, foi calculada para que ninguém possa ultrapassá-lo, já que eles têm certeza de que nenhum dos que ali se encerram é capaz de voar”... “Este é o primeiro muro desse projeto. Os planos incluem mais de uma centena deles. Seria a solução, dizem, haverá paz no mundo atual”.
O escritor Machado de Assis é citado textualmente em dois contos de Rezende: “O perfeito bibliotecário” e no memorável “Da Lapa ao Cosme Velho”, onde a criatividade da autora atinge as raias de recriar a gênese do conto “A causa secreta” de Machado, contada por ele mesmo. Muito bem Machado escreveu in: “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”, Publicado originalmente em O Novo Mundo de 24/03/1873: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Com efeito, Maria Valéria Rezende vem se destacando – e não é de agora, nem de ontem, são décadas, que renderam à autora 3 Prêmios Jabutis e um Prêmio Casa de las Américas -, como uma das vozes mais significativas da literatura brasileira contemporânea. Assim como a personagem Benvinda do conto-título “A face serena”, Maria Valéria Rezende planta em seus contos sementes que estão a germinar, a pulsar nos misteriosos meandros das entrelinhas em ambiguidades, ambivalências e impressões fortalecidas na emoção muitas vezes dedilhada. Ela lança um olhar plácido e esperançoso “dirigido ao horizonte, a um ponto desconhecido do futuro”, onde, acrescentamos nós, afinal consigamos ser mais humanos.
Em tempo: para os que quiserem conhecer um pouco mais da exemplar trajetória de vida da autora, recomendo muito vivamente a leitura da entrevista de Maria Valéria Rezende ao Le Monde Diplomatique, vejam lá - não custa absolutamente nada ler - disponível em: https://diplomatique.org.br/o-vasto-mundo-de-maria-valeria…/
Livro: “A face serena” - Contos, de Maria Valéria Rezende. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2018, 158p.
ISBN 978-85-5833-302-3
ISBN 978-85-5833-302-3
OBS: LINK PARA COMPRA E PRONTO ENVIO:
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Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Revista Subversa,Jornal RelevO, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.
Vivendo atualmente na Paraíba, Maria Valéria Rezendeé nascida em Santos (SP), em 1942. Escreve ficção, poesia e é também tradutora. É formada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia. Entre as obras publicadas estão, “O voo da guará vermelha” (Objetiva, 2005), publicada em Portugal e na França, além de duas edições na Espanha (espanhol e catalão). Ganhou o prêmio Jabuti em 2009, na categoria infantil, com “No risco do caracol” (Autêntica, 2008) e, em 2013, categoria juvenil, o romance “Ouro dentro da cabeça” (Autêntica 2012).Também ganhou o Jabuti de melhor romance e livro do ano de ficção com Quarenta dias (Alfaguara, 2014). Em 2017, seu romance “Outros Cantos” ganhou o Prémio Casa de las Américas (Cuba), o Prêmio São Paulo e o prêmio Jabuti (3º Lugar). Participa do Movimento Mulherio das Letras.
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Oficina de Biografia e Escrita Literária com José Castello em João Pessoa/PB
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Arte: Alessandro Berzuini |
Oficina nº 004/2018 - Sesc Arte da Palavra - Oficina de Biografia e Escrita Literária "Literatura e Existência" com José Castello
A arte da biografia é traiçoeira. Por isso, biografar é, um pouco, imitando os detetives clássicos, fazer uma investigação à meia luz. Aprender a biografar é interrogar a respeito de quem somos. É repetir e exercitar a velha pergunta: quem sou eu?
Realização: 13 a 17 de agosto, das 18h às 22h
Local: Auditório da Fecomércio (atrás da C&A) – Rua Des. Souto Maior, 291 - Centro, João Pessoa - PB
Vagas disponíveis: 25 (vinte e cinco)
Inscrições: https://docs.google.com/forms/d/1JQ61f38FTfMa7dlRDr9kvtSBrW-cWx-2Yy7Dks-wY78/viewform?edit_requested=true
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José Castello (Rio de Janeiro, 1951) é escritor, jornalista e crítico literário, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente mora em Curitiba e escreve para o jornal O Globo. É autor do livro Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão, que recebeu o prêmio Jabuti de Melhor Ensaio e Biografia em 1995. Seu romance Ribamar venceu o mesmo prêmio na categoria Melhor Romance em 2011.
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A alma encantadora da FLIP, por Rosângela Vieira Rocha
A ALMA ENCANTADORA DA FLIP
por Rosângela Vieira Rocha
A 16ª FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty– realizou-se no período de 25 a 29/07. Foram cinco dias inteiramente dedicados à literatura, sua principal atração, e às artes de modo geral: música, teatro, ópera, performances, ilustrações. Reside aí a diferença essencial entre a FLIP de 2018 e as anteriores. A Festa deste ano integrou, de maneira mais forte e democrática, várias formas de expressão artística.
As mudanças introduzidas no ano passado pela curadora Josélia Aguiar, jornalista baiana radicada em São Paulo, que desde 2017 desempenha a função, mantiveram-se e se expandiram. Sob sua curadoria, a Festa foi repensada, redesenhada e adquiriu novo formato. Além da programação oficial, que não se realiza mais dentro da Igreja Matriz e sim sob um toldo – ao lado do toldo onde fica o telão com setecentos lugares, em que a entrada é gratuita – foi oferecido um elenco de atividades paralelas nas vinte e duas casas alugadas pelas editoras (em 2017 havia sete). A paridade de gênero do ano anterior foi mantida – dezesseis escritores e dezessete escritoras – e registrou-se a participação crescente de autores negros, correspondentes a 30% do total de convidados.
Homenageando Hilda Hilst, poeta cuja obra só foi reconhecida após sua morte e que nos últimos anos vem sendo bastante estudada nas universidades, a FLIP surpreendeu pela riqueza da programação, tornando difícil a escolha do que assistir. Temas recorrentes na obra de Hilda, como amor, morte, sexo, finitude, Deus, nortearam as programações – tanto a oficial como a paralela – mas também buscaram atender à pauta atual, privilegiando o feminismo, a violência contra as mulheres, a discriminação racial, a imigração, a homofobia.
Na noite de abertura, a atriz Fernanda Montenegro interpretou durante uma hora texto de autoria da homenageada. Em seguida, houve a apresentação de uma ópera da compositora, musicista e artista multimídia Jocy de Oliveira.
No dia seguinte, iniciou-se, entre os participantes que enchiam as pacatas e bonitas ruas da cidade antiga, a procura quase febril da programação das casas, que apresentaram, ao mesmo tempo, mesas de debates interessantes para todos os gostos.
Ao contrário de 2017, em que fui sozinha a Paraty realizar o sonho antigo de participar da Festa, dessa vez estava com um grupo de escritoras amigas de Brasília, o que tornou tudo mais divertido e animado. No ano passado, não conhecia a cidade e fiquei numa pousada longe do Centro Histórico, onde se realizam as atividades, motivo de transtorno para mim, que tenho problemas nos joelhos. Caminhar pelas ruas de Paraty, cheias de desníveis, não é fácil. Depois da experiência de 2017, estabeleci como prioridade, na escolha do local de hospedagem, a localização. E dei sorte, pois reservamos, com bastante antecedência, uma pousada em frente ao toldo do telão gratuito.
Quanto à programação, estabeleci dois critérios de seleção: o tema, em primeiro lugar, e a procedência dos debatedores, pois é muito mais difícil ter acesso aos escritores estrangeiros. Tive de abrir mão de ouvir celebridades brasileiras cujas opiniões me interessam e inclusive das quais compartilho, em alguns casos, mas é impossível escolher sem perder algo no caminho.
Gostaria muito de ter assistido à mesa “Barco com asas”, do programa oficial, com importantes debatedoras, entre as quais Maria Teresa Horta, cuja participação não foi presencial e sim por vídeo gravado. Uma das escritoras portuguesas mais importantes da atualidade, autora – junto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa - das Novas Cartas Portuguesas, de 1972, que apresentou ao mundo os horrores da ditadura e da colonização, livro que ganhou o mundo. Elas ficaram internacionalmente conhecidas como “as três Marias”.
Vou comentar apenas as mesas a que assisti e uma da qual participei, como debatedora, na Casa do Desejo, alugada por iniciativa de Eduardo Lacerda, editor da Patuá, com quem publiquei o meu último romance, em 2017, intitulado “O indizível sentido do amor”. A maioria das casas foi alugada por editoras pequenas, independentes, que se cotizaram e compartilharam o espaço para discussões e venda de livros.
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Foto: da página Casa do Desejo no facebook |
“Amada vida” foi o nome da mesa composta por Djamila Ribeiro e Selva Almada, cujo debate foi aberto com performance de Bell Puã, artista pernambucana. Feminista negra com uma notável facilidade de expressão, Djamila falou sobre a violência contra a mulher negra e a literatura de resistência. Selva Almada, jornalista e escritora argentina, é autora do livro “Garotas mortas”, que narra a história de três assassinatos de mulheres no interior daquele país, em épocas diferentes, cuja autoria nunca foi conhecida. O que os crimes têm em comum é o fato de todas as mulheres terem sido mortas em casa, o que põe em dúvida a ideia de que o perigo está na rua, como secularmente vem sendo ensinado às mulheres. Para ela, faltou uma vontade real, por parte das autoridades, de desvendar o mistério dos crimes.
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Djamila Ribeiro, intelectual e feminista negra |
“Poeta na torre de capim”, com Lígia Ferreira e Ricardo Domeneck, foi para mim uma surpresa, na programação oficial. Desconhecia o grau e a extensão da importância do poeta Luiz Gama, único escritor que foi escravo, vendido pelo pai aos dez anos de idade. Gama deixou um legado notável e diversificado – entre poemas críticos, satíricos e matérias jornalísticas - além de ter inaugurado as formulações do que viria a ser chamado de “causa negra”. Foi um abolicionista importante, pioneiro na luta pelos direitos civis.
“Obscena, de tão lúcida”, com Juliano Garcia Pessanha e a moçambicana/portuguesa Isabela Figueiredo, autora de“Gorda” e “Cadernos de memórias coloniais”, foi outra mesa atraente. Irreverente, expansiva e bem-humorada, Isabela fez brincadeiras e falou longamente sobre seus livros, especialmente o de memórias, impressionante obra que conta a experiência da autora em Moçambique, sua terra natal, no período da descolonização, com a queda da ditadura portuguesa e a independência de Moçambique. Filha de portugueses colonialistas, teve dificuldades em descobrir e construir sua real identidade, o tempo todo em conflito com as duas situações: a dos pais e seus conterrâneos, que depois da queda da ditadura foram hostilizados e alguns literalmente massacrados, e a dos moçambicanos, que tampouco a consideravam uma compatriota.
Da riquíssima oferta de temas da programação paralela, assisti a um debate e a um longo e belo depoimento.
Desde o início da Festa, eu esperava com ansiedade a “Mesa sobre a maldade”, tema que me interessa especialmente, na Casa de Não Ficção Época & Vogue, com as escritoras Selva Amada, já citada, a francesa-marroquina Leila Slimani, autora do maravilhoso e surpreendente “Canção de ninar”, cuja personagem principal é uma babá, e a Dra. Ana Beatriz Barbosa e Silva, psiquiatra e psicanalista, conhecida por escrever sobre temas complexos em linguagem acessível ao grande público. Slimani falou em francês, com tradução simultânea, sobre o desprezo pelo corpo das mulheres e a universalidade do machismo, que, para ela, é “inversamente proporcional à universalidade do feminismo”. “No Marrocos – declarou - “o corpo da mulher não é dela e a virgindade é sacralizada. São seiscentos abortos por dia”. Ainda de acordo com a escritora, que citou Simone de Beauvoir, nós, mulheres de todo o mundo, temos uma experiência comum, mas ainda não conseguimos nos organizar.
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Leila Slimani e eu |
Selva Almada falou sobre os problemas políticos que enfrentou em seu país depois da publicação de“Garotas mortas”. Várias escolas compraram exemplares da obra, mas um senador conservador chegou a apresentar um projeto de lei proibindo sua comercialização. A escritora foi alvo de ameaças e enfrentou forte oposição de alguns setores. Felizmente, o projeto não foi aprovado, o que pôs fim à polêmica.
Quem recebeu o maior número de perguntas foi a Dra. Ana Beatriz, provavelmente por ser mais conhecida pela plateia, que escutava o debate dependurado nas janelas, na rua, pois a sala estava superlotada. A especialista falou sobre o significado de sociopatia e como muitos políticos, estrangeiros e brasileiros, apresentam fortes traços de comportamento sociopático. Carismática e vivaz, contou um episódio que arrancou risos da plateia. Ela ficou encarregada de elaborar o laudo pericial do criminoso que recebeu o nome de “maníaco do parque”. No primeiro encontro que tiveram, na penitenciária, na companhia de dois policiais, ele lhe sugeriu que ordenasse a saída deles, pois “assegurava que nada lhe aconteceria”. Uma bem-humorada resposta resolveu o impasse, pois Ana Beatriz lhe disse que, sendo portadora de TOC e tendo feito todas as perícias de sua vida com dois policiais, se mudasse alguma coisa seria incapaz de realizar o trabalho. Sem saída, o rapaz ficou calado.
Passando por acaso por uma rua, encontrei a escritora Carola Saavedra na porta da Casa Bondelê, onde daria, logo em seguida, um longo depoimento a Anna Monteiro, entrevistadora experiente e conhecedora de sua obra. Resolvi entrar e participar da atividade, que foi uma das mais atraentes da FLIP. A escritora falou sobre o seu novo romance, “Com armas sonolentas”, cujo título foi retirado de um poema de Sóror Juana Inés de la Cruz. O livro, polifônico, conta a história de três mulheres que vivenciaram o exílio e o abandono, o desencontro de idiomas e de lugares. Surpreendeu-me a fala de Carola, muito intensa e emocionada. Uma apresentação inesquecível, para mim.
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Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”, durante seu depoimento |
Na Casa do Desejo, participei, como debatedora convidada, da mesa intitulada “Paralelos entre o golpe de 1964 e 2016: o papel da arte na resistência”, com os jovens escritores Rodrigues Novaes de Almeida, autor do livro “Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos”, e editor da revista Gueto; Wilson Alves Bezerra, autor de “O pau do Brasil” (poemas) e a ilustradora Sylvia Soares, que lançou o livro “Às vezes as pessoas não vão com a minha cara”, contendo seus desenhos das personagens do golpe.
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Na mesa da Casa do Desejo. Quem fala é Rodrigo Novaes de Almeida |
Foi a minha primeira apresentação na Festa, e valeu a pena. A sala era pequena e por isso não dispunha de muitos lugares, mas estava lotada e ninguém saiu durante a discussão. Rodrigo Novaes de Almeida falou, emocionado, sobre a situação atual do país e as perdas sofridas em diversas áreas. Wilson Bezerra leu alguns poemas de seu livro e Sylvia Soares contou que os desenhos de sua obra foram feitos durante o período que antecedeu à saída da ex-presidenta Dilma Rousseff.
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Com os debatedores na mesa da Casa do Desejo. |
Falei sobre “O indizível sentido do amor", cujos temas centrais são morte, perdas, luto, cortes nas trajetórias pessoais e ditadura militar. Contei resumidamente a história do meu marido, ex-preso político, que morreu em 2012, e como sua vida foi afetada pelas torturas a que foi submetido e as perseguições que sofreu. Senti um grande interesse do público pelo tema.
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Mariana Basílio, que lançou Tríptico Vital e eu, na Casa do Desejo. |
Por último, gostaria de acrescentar que o título dessa crônica, “A alma encantadora da FLIP”, faz clara alusão ao livro “A alma encantadora das ruas”, do jornalista e escritor João do Rio, o criador da grande-reportagem no jornalismo brasileiro, de quem sou grande admiradora. Tomando como base os homenageados da Festa em 2017 e 2018, respectivamente Lima Barreto e Hilda Hilst, deixo aqui uma sugestão: por que não homenagear também João do Rio, que revolucionou o jornalismo no país, cronista formidável, que escrevia com as vísceras? Fica aqui a ideia, na esperança de que algum dos organizadores da FLIP dela tome conhecimento.
Rosângela Vieira Rochaé escritora, professora aposentada do Curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, jornalista e advogada. Tem doze livros publicados, para adultos e público infantojuvenil. Seu último romance, “O indizível sentido do amor”, foi publicado pela editora Patuá, em 2017.
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Editora Ibis Libris celebra 18 anos com lançamento coletivo na Travessa Botafogo
Acervo pessoal |
Ibis Libris, editora especializada em poesia, celebra 18 anos com lançamento coletivo na Travessa Botafogo
Poesia vende bem. Quem disser que é mentira deve conhecer o percurso da Ibis Libris, uma das mais antigas editoras brasileiras dedicadas à poesia. Seu aniversário de 18 anos será celebrado dia 16 de agosto, na Livraria da Travessa Botafogo, com lançamento coletivo de 18 títulos de vários autores que fazem parte dessa história, entre eles, sua fundadora e também poeta Thereza Christina Rocque Motta. “A poesia me abriu todas as portas, me levou aos melhores lugares e me trouxe as melhores pessoas. Devo tudo à poesia”, diz a autora.
Ao longo de quase duas décadas, a Ibis Libris lançou 430 livros, a metade deles de poesia. Alguns títulos tiveram bastante êxito, como o estudo São Jorge – Arquétipo, santo e orixá (2009), que rendeu entrevista no Programa do Jô e vendeu toda a edição. Outro achado foi A dança dos sonhos (2011), único livro de poemas de Michael Jackson. Os direitos de publicação foram adquiridos por mil dólares, quantia baixa considerando a fama do autor. “Qualquer livro que ninguém quer custa mil dólares. Ninguém sabia da existência do livro”, conta a editora experiente.
Sua experiência como editora se consolidou quando um amigo do sarau Sexta de Palavras, que se reunia às sextas-feiras numa sala do Museu da República, pediu que ela revisasse seu livro de poemas. A essa altura, Thereza já havia lançado de forma independente três livros de sua autoria, Joio & trigo (1982, 1.500 exemplares vendidos) e Areal(1995, 1.000 exemplares vendidos) e Sabbath (1998, edição de 1.000 exemplares). Ela não apenas revisou como também prefaciou o livro do amigo. Ao fim do processo, ele sugeriu: “Agora, crie uma editora e publique meu livro”. Quatro dias depois, ela fundou a Ibis Libris.
As demandas não pararam mais. Ativa frequentadora de saraus poéticos – como a Ponte de Versos, que começou na Livraria Ponte de Tábuas, no Jardim Botânico e durou 15 anos, e o Corujão da Poesia, evento itinerante há mais de uma década no Rio de Janeiro –, Thereza não apenas promove seus livros como prospecta novos autores. Também saíram por lá nomes importantes da poesia contemporânea como Astrid Cabral, Neide Arcanjo, Afonso Henriques Neto, Dirce de Assis Cavalcanti, Sylvio Bach, Antônio Torres, Adriano Espínola, Pedro Lago, entre outros.
Atualmente, há poetas publicados pela Ibis Libris em Paris, Belém do Pará, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Brasília e outras cidades brasileiras. As vendas acontecem através da loja virtual da editora e da distribuição em redes como Cultura, Travessa e e-books na Amazon. Quanto à crise que assola o mercado editorial mundial, com perda de leitores no mundo todo para redes sociais e canais de streaming e livrarias indo à bancarrota, Thereza é enfática: “Já houve outras antes e nunca desanimei. Enquanto vender um livro, continuarei vendendo. E quem disser que poesia não vende, é porque não vende poesia. Só vende se estiver à venda”.
A festa no dia 16 tem entrada franca. Planos para o segundo semestre de 2018 em diante são engordar os catálogos do selo infantil Bisbilibisbalabás, atualmente com onze títulos, do selo jurídico Ibis Juris, com dois títulos, e a criação de um novo selo destinado a livros acadêmicos (teses de mestrados e doutorados) e de filosofia, chamado Bennu, “ave egípcia que corresponde à Fênix grega”. “Daqui a 20 anos estarei com a poesia, porque ela sempre esteve comigo. A poesia nunca me abandonou”. Vida longa e voos cada vez mais altos à pródiga e generosa Ibis poética.
Serviço
Jornalista responsável: Valéria Martins, valeriaoasys@gmail.com, 21 99804-9184
Ibis Libris Editora – https://ibislibris.loja2.com.b r/
Rua Pereira Nunes, 395 cob. 1701, Vila Isabel – Rio de Janeiro – RJ, CEP 20.541-022
Tels.: 21|96580-0499 / 3546-1007
Lista de livros e autores presentes no lançamento coletivo dia 16 de agosto, a partir das 19h na livraria Travessa Botafogo:
1. Vidigal, Beto Dornelles
2. Vida paixão amor e morte, Fernando Py
3. Caderno de Clara Maria Joana, Beatriz Chacon
4. Retas oblíquas, Roberta Lahmeyer
5. Florinha, Daisy Justus
6. A China: ecos de uma viagem, Dirce Cavalcanti
7. Dia a dia, Dirce Cavalcanti
8. Por acaso, Renato de Alvarenga
9. Borboletas de papel, Liliane Balonecker
10. Um amor, William Soares dos Santos
11. Rarefeito, William Soares dos Santos
12. Ultramar e outros mares, Alice Monteiro
13. Manual de cianotipia e papel salgado, Fabio Giorgi
14. Para fabricar asas, Carmen Moreno
15. Lições de sábado 2, Thereza Rocque da Motta
16. O amor é um tempo selvagem, Thereza Rocque da Motta
17. Minha mão contém palavras que não escrevo, Thereza Rocque da Motta
18. O sol não dança sem nuvens, José Mario Ramos
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"Feminino", série de ilustrações de Felipe Stefani - parte 2 de 4
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Felipe Stefani é poeta, fotografo e artista plástico. Nascido em São Paulo, trabalha como ilustrador e professor de desenho livre. Já ilustrou muitos livros de outros escritores e também seus dois livros de poemas já lançados: “O Corpo Possível” (2008), pelo coletivo Dulcinéia Catadora e “Verso Para Outro Sentido” (2010), pela Escrituras Editora.
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"asas para cair e vida para morrer" - poemas de Carvalho Filho
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Arte de Salvador Dalí |
MISERANDO
Quando me falta rima
Não faço rima.
Quando me falta rima
Não faço rima.
A rima pode ser faca
A rima pode ser frouxa
A rima pode ser riso
Rímel risonha pancada
Não quero rimar
Não quero metrificar
Não quero ritmar
O que eu quero
O que eu realmente quero
É nada querer e tudo poder
Quero asas para cair
E vida para morrer
Quando me faltam rosas
Uso os espinhos da cerca
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Arte de Argyle Plaids (Flickr) |
BAGACEIRA OU DIABOS
A navalha ao pescoço faz tremer.
Desce elegante, ceifando a barba,
Tornando liso o chão de mato.
Se a mão erra, acerta a lâmina
O indefeso pescoço.
A vida é um barbear contínuo
E bem mais perigoso.
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Arte de Amy Judd |
BIRUTA
Um soneto macabro de asas negras
Uma nênia vagando pela campa
Certos mitos antigos pingam sangue
Os novos mitos se vestem com capa
Catorze versos são colunas jônicas
Elevando-se com justa beleza
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"City of Drawers", de Salvador Dalí |
Se fiquei tristonho
E me fiz tristeza,
Se fiquei cansado
E me fiz cansaço,
É que me contenta
Estar descontente
E não sorrir sempre
Que o mundo me fere.
Minhas rimas retas
Me deixaram torto,
Repleto de arestas;
Repleto de sonho.
Vez por outra rimo,
Vez por outra cismo.
Não me cabe rima
Melhor do que raiva.
Pois a raiva cava.
De improviso tento
Florir o momento.
Em tudo que vejo,
Porém, acho lágrimas.
Há tempos as asas
Estão recolhidas.
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Arte de Mihai Criste |
Para não mais lamentar as horas comidas
Não me redijas um poema
Não me entregues tua bondade
Não me contes teus sonhos
Não me interessam teus tesouros
Não me apraz tua boa-vontade
Se antes eram cultos
Agora são curtos
Tu ofereces o melhor de ti
Mas o melhor de ti é coisa pouca
É coisa que se perde com o tempo
O melhor de ti alimenta a zombaria
Agora é tarde para aos céus subir
Mais vale cavares tua tumba
O joio e o trigo se abraçam
Se de fato és trigo pouco importa
Não me fales de coração
O coração é um moribundo sonhando vida
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Carvalho Filho: Pseudônimo de Francisco das Chagas Souza Carvalho Filho, nascido em Parnaíba em 16 de outubro de 1988. Poeta e contista, colaborador do Jornal O Piagüi Culturalista. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Ganhou em 2010 o concurso de poesia do 2º SALIPA-Salão do Livro de Parnaíba. Conta com artigos publicados na revista Desenredos. Participou das coletâneas Tratado Oculto do Horror (coletânea de contos) pela Andross, em 2016, e Carnavalhame(coletânea de crônicas e poemas) em formato e-book, 2017.E-mail: francisco.carvalho88@hotmail.com
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4 poemas de "Ficção, 3%", novo livro de Rafael Zen
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Série de Jonathan Wolstenholme |
circunscrições sobre a oratória líquida
o que a boca aprende pela língua?
um caroço de garganta, uma palavra-pedra,
um desapego total quanto à ordem
cronológica dos fatos
minuto adentro o que
antes tivera sido um corredor
de largas possibilidades:
então havia terminado o amor,
mas como propriamente terminá-lo?
a boca já se doía em úlceras,
assustados como quem chamasse a
extrema unção ainda vivos,
o futuro dolorindo de possibilidades
ambos ensaiando outras vozes,
buscando novas mortes,
e contornando o tédio com a presença pueril um do outro
ambos decepcionados
pelo que se revelava o habitual,
uma corrente de estímulos cada vez mais ralos,
água cada vez mais morna a saciar menos
e menos a sede
contentemo-nos então com essa
torrente mínima
pois que no meio da tarde,
sem razão aparente,
começou-se um acúmulo de provocações
navegavam-se a esmo
cheios de más intenções
e eis que ela se doeu um pouco:
descobriu-se impossibilitada de fugas
alinhemos a memória
que está para o leito assim como um
baú de relíquias ao explorador de destroços
confiemos portanto nesse
mapa incerto há muito traçado
e se nos acostumamos a seguir
a rota da cultura do acúmulo
não coloquemos a culpa nos discos e romances
assumamos portanto uma ignorância total
sobre nosso próprio corpo
(recordemos que na prisão da carne jaz o espírito)
discursemos sobre esse rio de contingências,
a preamar pulsante:
não sabemos mais quando parar
e portanto continuamos cada vez mais pungentes,
pouco a pouco menos confiantes
eis que ambos achavam-se no meio da sala
(no meio da vida)
sem rotas de apoio e
desconfiados da própria capacidade discursiva,
incertos da imersão da palavra-eco sob
qualquer tipo de solo, calaram-se de tão
ocos
era qualquer coisa digna do estio:
a morte dos rios não é a mesma que
nossa própria morte porém enfim morre-se
ambos emudecidos ouvindo a casa
sobreviver à noite, voltemos à gênese
do desassossego
uma única lembrança vívida
a se acavalar pelas vísceras – ele havia
aberto novamente sua única ferida
agora exposta
transbordar-se agora
de quê e em qual momento?
o percurso já perdera seu próprio prazo
tudo abundantemente custoso e complexo,
uma algiba mínima de ilusões a ser carregada
na envergadura do peito
ele já havia passado um café denso
e esperava-a sentado na mesa da cozinha
mastigando um pedaço de ontem
olhavam-se como se pela primeira vez
depois de um susto, sem qualquer intenção
de reparo
apaixonados pela correnteza de imagens,
um ensaio para a ancoragem da afluência,
parados e no entanto n’um escoamento de desassossegos,
ensaiavam fugas dentro da boca cerrada
como se
assumindo-se vários
assumissem-se de abismos e grotas,
únicos e no entanto similares pela
emancipação das vazantes
já admitiam dentro de si uma confluência de cios
diversos projetos sustém-se além do ancoradouro:
no fim nem notavam aonde a areia encharcada perdia pé
derramavam-se de lastro,
a densa procura pelo horizonte pênsil,
tomavam a terra inteira de molências,
pondo ao fim qualquer possibilidade de cova
cada um sua onda em linha reta,
testando a densidade do licor fluido:
água alcoólica de tantas direções que em
nenhuma se resume ou se contenta
um constrangimento total
tomava a casa de flutuações possíveis
descobriam então que o rio era fraco,
que no final estancavam-se n’um reservatório escasso,
no final a geração do fluxo, sem contingentes
decidiram-se de quietos,
acima das cabeças apenas a cintilação parcial
de um ou outro sol minguante
nem dava tempo para a sintaxe da seca
para um dia,
quem sabe,
pelo correio de mensagens:
uma torrencial de verborragias
signo
o desejo é a
necessidade que
enlouqueceu
significado
a cobra controla-se por
todo o tempo : exceto quando
prestes a abocanhar a presa,
ao deixar que um desejo
- há muito reprimido -
tome posse de tudo,
vai abrindo a mandíbula
rasgando-se ela própria,
e quanto mais dor sente
mais sabe-se retomando as rédeas
da metade víscera,
rasgando a lateral dos lábios
como se o grito
ecoasse pelos tecidos nervosos
e quanto mais sangue,
mais entrega, quanto mais
compulsão mais pulso,
rasga-se para, no mínimo,
profanar-se um pouco.
rasga-se somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
sentir-se viva.
sangra somente para
saber-se cobra.
significante:
seis e quinze da tarde,
engarrafamento na curva,
há um corpo caído no asfalto,
e nosso olho fixo no morto
como se fôssemos nós
livres no chão,
em pleno
voo.
a escrita comporta a filologia românica,
e agora façamos a crítica histórico-literária
da poesia local:
quais circunstâncias rodeiam
a integridade da tradição maior?
língua criada no coche?
permissões e mais permissões
à língua. mestres da retórica: seus
tratados técnicos fragmentam
e tornam vulgar o corpo-verbo
e dialetos.
criemos a inestética do verso,
mentira e montagem,
palha, eco.
que da pedra faça-se um percurso
que resultará ou não em pó,
calcário sonhando a teoria
da modernidade.
o texto como dispositivo:
vetor de discursos.
texto-pronto.
lorem
ipsum.
conto de Ares
surpreendeu-se
gostava do jeito que o peão
colocava os ossos de galinha na boca:
chupava-os com voracidade,
era luxúria
pegou-se cogitando que
contasse tudo ao analista,
sobre as fraquezas, os desmaios,
fogo em mato alastrado,
sobre desejos íntimos
e olhares públicos
incêndios sem feridos,
vagões vazios e combustíveis fósseis
ao reto, nos olhos, um oásis árido
os lábios queimando ao sol e sobre eles
pele e nervos, óleo:
queres um guardanapo?
entreolharam-se
dois bois,
colhões e uma batalha de conhecimentos:
hiroshima mon amour e o jeca
interrompem-se do fogo,
emasculam-se
brasa final de fósforos,
o desejo torna-se minúsculo,
carvão no tórax, dermatites,
heterofagias.
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Rafael Zené educador, escritor e pesquisador. Possui graduação em Comunicação Social, especialização em Comunicação e Semiótica, especialização em Literatura Contemporânea e Mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos. É coordenador e professor do curso de Publicidade e Propaganda na UNIFEBE (Brusque/SC), além de coordenador do NPCC - Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Cultura. Em 2018, coordena a coluna jornalística Zona Autônoma no site do Jornal O Município, além do UNIFEBE DEBATE. Como escritor, publicou os livros: A Questão da Andorinha (2012 / Poesia), Corpo Oral (2015 / Contos) e Leito Invisível (2015 / Poesia). Atualmente, trabalha em novo livro de poemas intitulado "Ficção, 3%". Pessoalmente, prefere quando arde-se em literatura artivista - é onde amplia seus afetos.
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Mulheres que Escrevem Poesia: Lançamento de zines + aula inaugural
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Lançamento de livros no Rio de Janeiro: Carla Diacov e Nina Zur
A Editora Cozinha Experimental e A MESA orgulhosamente convidam para a festa de lançamento dos livros de poemas A MUNIÇÃO COMPRO DEPOIS, de Carla Diacov e A CHANCE DO CORTE, de Nina Zur + leitura com poetas convidados.
ONDE:
Espaço A MESA: Rua Jogo da Bola, 119, Saúde - Rio de Janeiro. O ateliê e a praça ficam no Morro da Conceição, logo acima da Pedra do Sal (consultar o mapa).
QUANDO:
Dia 17 de Agosto de 2018, às 18:00 horas
DETALHES:
Os livros serão vendidos em valor promocional no dia do lançamento. Cada um estará custando R$25,00. Aceitaremos cartões de débito.
* Na praça teremos uma musiquinha, com cerveja à venda e o tradicional churrasquinho da Dona Graça *
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Leituras de A munição compro depois:
Leïla Danziger, Ricardo Domeneck, Juliana Travassos, Lucas Matos, Daniela Mattos e Julia Ramôa.
Leituras de A chance do corte:
Julia Klien, Leonardo Marona, Ana Carolina Assis e Maria Bogado.
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Curso “Poesia e Infância: Lirismo, Gagueira, Horror”, de Marcelo Reis de Mello, começa amanhã na UERJ
Curso "Poesia e Infância: Lirismo, Gagueira, Horror"
Mediador: Marcelo Reis de Mello
Dia / Horário: Terças-feiras / 16h-19h
Onde: Centro Cultural da UERJ
Início: 14 de Agosto
Término: 23 de Outubro
Valor da inscrição: 10 reais
Inscrições: https://goo.gl/forms/7EwJIlui21Jhmohr2
RESUMO DO CURSO
O curso propõe a leitura e o debate de poetas recentes, sobre e a partir dos quais pensaremos um recorte da relação entre infância (infans = sem fala) e poesia. A começar pelos “garranchos visuais” de Guilherme Zarvos, onde certa ternura infantil (das cores, dos traços) convive com a violência e a distopia. Depois três poetas-artistas onde a infância se manifesta na experiência do desterro, impossibilidade de dizer: Paul Celan, Mira Schendel, Leïla Danziger. Por fim, dois poetas argentinos e um artista mineiro: Tamara Kamenszain (O eco de minha mãe), Arturo Carrera (Niños que nacieron peinados) e Farnese de Andrade (Em busca do tempo).
MÓDULO 1 – Morrer e Zombar
> Apresentação do curso
> Algumas noções de infância na poesia
> Delírios Líricos: A poesia de Guilherme Zarvos
> Os garranchos e dedicatórias de Guilherme Zarvos
> O personagem Guilherme Zarvos
MÓDULO 2 – Gaguejar, Apagar
> Poemas selecionados de Paul Celan
> Trabalhos selecionados de Mira Schendel
> A poesia verbal e visual de Leïla Danziger
MÓDULO 3 – Falar (ABC) e Falhar (AVC)
> A poesia de Arturo Carrera: entre a morte da mãe e a do pai
> A poesia de Tamara Kamenszain: o eco da mãe
> Farnese de Andrade: o horror à infância.
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IV Encontro com a Poesia do Mundo, no Centro Cultural São Paulo
Convidamos a todas e todos para participar do IV Encontro com a Poesia do Mundo, que será realizado no Centro Cultural São Paulo - CCSP no dia 28 de agosto, das 18h30 às 21h30, na Sala Jardel Filho. Concebido em um formato de sarau de poesia, o evento reunirá 12 poetas para uma roda de conversa. Participam desta edição: Alexandre Pilati, Annita Costa Malufe, Chantal Castelli, Dalila Teles Veras, Diana Junkes, Fabio Weintraub, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Renan Nuernberger, Ruy Proença, Tarso de Melo e Vera Lucia de Oliveira.
A concepção original é de Vera Lúcia Oliveira, poeta, tradutora e professora da Universidade de Perugia, na Umbria, Itália e nesta edição tem curadoria de Vagner Camilo, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e Deise Getúlio de Melo (CCSP). Os Encontros com a Poesia do Mundo (Incontri con la poesia del mondo) já tiveram três edições, no Brasil e na Itália, reunindo poetas de diferentes partes do mundo. Desses Encontros, resultaram já duas antologias bilíngues, reunindo a produção de poetas de países diferentes. A segunda antologia reúne a produção de 16 poetas e foi organizada por Alexandre Pilati e Eloisa Pilati, e está disponível para download gratuito neste link: https://goo.gl/oiskuv.
Link para o evento do CCSP: http://centrocultural.sp.gov.br/site/eventos/evento/iv-encontros-com-a-poesia-do-mundo/
O evento é gratuito e sem necessidade de inscrição prévia. Haverá emissão de certificado aos participantes.
A concepção original é de Vera Lúcia Oliveira, poeta, tradutora e professora da Universidade de Perugia, na Umbria, Itália e nesta edição tem curadoria de Vagner Camilo, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e Deise Getúlio de Melo (CCSP). Os Encontros com a Poesia do Mundo (Incontri con la poesia del mondo) já tiveram três edições, no Brasil e na Itália, reunindo poetas de diferentes partes do mundo. Desses Encontros, resultaram já duas antologias bilíngues, reunindo a produção de poetas de países diferentes. A segunda antologia reúne a produção de 16 poetas e foi organizada por Alexandre Pilati e Eloisa Pilati, e está disponível para download gratuito neste link: https://goo.gl/oiskuv.
Link para o evento do CCSP: http://centrocultural.sp.gov.br/site/eventos/evento/iv-encontros-com-a-poesia-do-mundo/
O evento é gratuito e sem necessidade de inscrição prévia. Haverá emissão de certificado aos participantes.
*Texto retirado de:
https://www.facebook.com/events/261799131211923/?notif_t=plan_user_invited¬if_id=1534151475840124
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quatro poemas do livro "Acúmulo", de Lilian Sais
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Arte de Dorothea Tanning |
kintsugi
reparos de ouro
esses caminhos de rios
tatuados nos seios
pelas vias
do tempo
e do afeto.
é pele marcada
e ainda é pele,
paredes da casa
que habito
sem quitar,
que encobre
entranhas
mas revela
as intimidades
mais íntimas:
na ponta dos dedos,
a identidade,
na cicatriz da testa
a criança levada
do tempo em que
eram muitos
os lugares
à mesa,
na mancha do antebraço
o cigarro apagado
ali mesmo
em espirais
de desespero.
sobrevivente de mim mesma,
pele-palavra que grita
o mapa do percurso,
inventário maior
da vivência:
embriaguez & denso vazio
fome & cansaço
excitação & vício.
não,
não há nudez
incólume
![]() |
"The Housewife", de Frederick Walker (1871) |
[sem título 2]
ninguém reparou muito
nela:
sua mais que os poros,
olha pela janela
com seu único vestido
(ele é bordado)
pega nas cortinas
que ela mesma teceu
(pois tem mãos.
mãos que seguram.)
dedos sem anéis,
pescoço sem colar,
orelhas sem brinco
(mas seguram, seguras,
as mãos)
uma mulher sem adornos,
é fato,
ninguém reparou muito
nela:
fazia bolo às claras,
mas sorrateira
colecionava livros
para ler no meio
da tarde.
há anos não tinha vagina
nem voz, era apenas
mãe
nora
esposa
exemplar.
![]() |
"Automat", de Edward Hopper |
eis a vida: produzir,
primeiro apenas fluidos,
dos olhos, sistema excretor,
para depois mais,
produzir objetos, relatórios,
projetos, máquinas,
massa, fumaça,
nota fiscal paulista,
produzir, o dicionário diz,
transitivo porém direto,
data: 1446,
que belas maçãs produziu
aquele macieira –
o dicionário diz,
produzir para comprar
o que o outro produz,
porque um mesmo
ser não produz
de tudo,
é certo,
produzir dores:
a topada no pé,
a mensagem
sem resposta, a mão
suja –
infecção gastrointestinal,
produzir material
para munição
(apreendido
em algum lugar
nesse exato momento),
é certo,
produzir como a marvel,
a netflix, a HBO,
na velocidade que se come
e se dorme e se quer viajar
e ler e vestir,
e se nada mais der certo,
produzir poemas,
esse vício, essa mácula,
esse consolo torto
ao qual me rendo
enquanto em algum ponto
entre o quarto e o sofá
você exerce seu pleno direito,
justo, inteiro e irritante
de não mais se lembrar de mim.
![]() |
Foto de Hong Yi |
negação (poema da série homem-clichê)
mais ou menos quando eu disse
- te amo
e tive como resposta
- hoje vou cortar as unhas
me ocorreu como
é excessivo o branco
do teu figurino,
como caberia bem
ali, três dedos
abaixo da gola,
uma mancha
de café amanhecido
ou placenta
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Lilian Saisé doutora em Letras, pesquisadora e escritora. Coeditora da Revista Libertinagem, de arte e literatura erótica, e uma das fundadoras da plataforma de ensino e difusão cultural Literartéria, lançou seu primeiro livro de poemas, “Acúmulo” (Ed. Patuá), durante a FLIP 2018, na Casa do Desejo.
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Carta a Vlap, poema em prosa de Jorge Lucio de Campos
[a Italo Calvino]
Querido Vlap:
Hoje dormi tanto e tão tarde que vi no céu a lua e uma estrela se beijarem tensamente. Tive uma vontade louca de bater com a cabeça nas paredes, mas me contive. Uma galinha apareceu no parapeito e me espiou por um longo tempo. Fiquei sem ação diante de sua indecisão. Ao acordar, uma vizinha ficou regando o jardim, mas não pude ver seu rosto. Ela estava de amarelo e se confundia com o sol. Por mais que tentasse explicar a cena, seu vulto tornou-se inconcebível e, na medida que a admirava, não pude chegar a um consenso. O que será que torna tais situações embaraçosas? Quando voltei a mim, já não sabia do que se tratava. Vislumbrá-la me fez bem, mas, como te disse, não pude chegar a um consenso. Talvez sua silhueta se pareça com a de outras pessoas e a mangueira d’água possa ser um visor de equipamento ou um tiro de canhão mais amável que de hábito. De qualquer forma, hoje dormi tanto e até tão tarde que bebi uma Coca-Cola e sentei num pneu velho no canto do quarto de modo a parecer comum.
A cada um de meus movimentos, ouvi, contudo, um barulho de correntes que se arrastavam pelo chão. Em minha insônia, achei algumas coisas a partir de outras e, além delas, um caminho livre me conduziu para a janela de onde eu vislumbrava a mulher regando o jardim e a galinha beliscando o parapeito. Juro que fiquei indeciso, para não dizer perplexo, com tantas referências. O quarto parecia uma teia e meu olhar se perdeu dentro de casa, em meio a alfabetos e números: “Eu te amo... Eu te amo...” foram as únicas palavras que consegui balbuciar diante da vaca pintada no papel de parede e da cadeira de balanço e das barras de sabão ao lado da banheira e do espaguete derramado no prato sobre a mesa e da garrafa onipresente de Coca-Cola entre as caixas de cereal nas quais não havia o que fazer.
Com todo afeto,
Vlop.
In: Desimagens (Bookess, 2018).
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Lançamento da antologia "Simultâneos Pulsando" acontece dia 25, em São Paulo
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Ilustração de Polly Nor |
O lançamento da antologia SIMULTÂNEOS PULSANDO - UMA ANTOLOGIA FESCENINA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA, organizada pelos poetas Fabiano Calixto e Natália Agra, será no dia 25 de agosto (sábado) às 16h na Biblioteca Mário de Andrade, que fica na rua da Consolação, 94, no centro da cidade de São Paulo.
No dia, teremos a honra e a alegria da leitura de alguns poetas participantes da antologia. São eles:
Bruno Brum
Cláudia Sehbe
Fabio Weintraub
Francesca Cricelli
Gabriel Felipe Jacomel
Guilherme Gontijo Flores
Jeanne Callegari
Júlia de Carvalho Hansen
Leonardo Gandolfi
Maíra Mendes Galvão
Marcelo Ariel
Natalia Barros
Pedro Tostes
Rita Barros
Sergio Mello
Simone Brantes
Sofia Mariutti
Victor Hugo Turezo
Zhô Bertholini
Todos estão convidados. É só chegar e se aconchegar.
Será bonita a festa.
Apareçam!
Viva a poesia!
Convite feito pela editora Corsário-Satã
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horizontes capturados na poesia - 4 poemas de Ivy Menon
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Arte de José Roosevelt |
abismo e fogo
por vezes me habitam
in_constâncias aos milhares
vivo de tentação em tentação
os rios enfurecidos que de mim fluem
não me estancam a sede de estrelas
sonho constelações inteiras
com a mão em concha para bebê-las
meus olhos almejam conheceres
singularidades que me esteiem
acordo música
horizontes de sentido
lugares próximos
línguas conhecidas
barro que me molda a sina
e fogo que me purifica
ao entardecer sou outra
liquefeita
perco-me no caminho
quedo-me cometa errante
correntezas marinhas
seres abissais
incoerências absorvem-me
vulcão in_ativo
abjeta mornidão
alteridade
constelações estelares
caricata de mim mesma
desprezível
rarefeita
amor e medo de amar
eis-me
:
cisterna aberta
as palavras invadem-me
arde em mim a sina de ser Poeta.
de onde vim
as portas não se abriam
cedo
o passo corrido
empurrou-me mundo à fora
não convinha ser livre
e fui
tão livre quantos meus pés
a desandarem por entre os cafezais
meninos
ri primeiro
antes mesmo de sair o sol
bem antes de a capa de neblina
encobrir-me os caminhos
eu gargalhava choros
nem metade do que sou
seria
sem os rios a banharem-me a insônia
a inundarem-me os porões
a saciarem-me os olhos secos
rasos de peixes
quentes de pedras nuas
ausentes de correntezas
refém da fome e da sede
o amor de onde vim
nada tem de hoje
as cordas que prendiam porteiras
perfumadas de flores de laranjeira
trançadas de solidão
trouxeram-me à tona
coleciono dores
e des_ilusões de todos os tamanhos
sangro terra vermelha
distante das minhas raízes
perdi-me
não tenho mais para
![]() |
"Garden in the Valley of Clinging Vines", de James McCarthy |
verbos e joaninhas
desandei a_penar versos
de leveza quase não me sustento
a pena pesou à mão
não fosse a rudeza da vida
a me desafiar a sina
teria desistido da poesia
a crua intrepidez da desventura
a pedra bruta que clama lapidação
as letras desordenadas a quererem ser
a terra partida pela semente
que insiste voltar à luz
tudo exige pressa de encantos
amanheci cheia de dedos
o teclado em branco
esqueci caligrafia
sonho alargar estacas
entender a escolha dos versos
não há vida fora da Palavra
deito-me a espreitar olhos de mandrágoras
líquidos mansos que se derramam sobre mim
clamo por verbos e suas conjugações
as joaninhas não anseiam inspiração
chovem asas coloridas lá fora
acasalam-se em meu jardim
![]() |
cortinas
amanheci nublada
não havia previsão de chuva
o céu escuro cerrou -me o cenho
e as possibilidades
abri cortinas
ansiava que chovesse poesia
há tanto céu entre a terra e os versos
leitos de rios doidos de correntezas
anzóis que anoitecem nas margens
armadilhas em todo o caminho
e versos não caem dos ares
nem as letras se derramam no papel
aprendi plantando rosas
e tamarindos
pode ser que do suor
e das lágrimas
me escorram sentenças de vida e morte
pode ser que poeta
eu peneire o vento
ignore nuvens
e
da poeira do tempo nasça Poesia
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Ivy Menon, poeta, advogada, pós graduada em Filosofia e Teoria do Direito, Bel. em Teologia, nasceu em Cornélio Procópio, o Norte Velho do Paraná. Boia-fria até os 20 anos, Ivy, desde pequena, amava os livros e os bancos da biblioteca. Depois de sair da roça, trabalhou em O Diário do Norte do Paraná, em Maringá, onde deu início em uma carreira de jornalista autodidata. Atuou em jornal e assessorias de comunicação, tendo sido, inclusive responsável pela Seção de Impressa do Tribunal do Trabalho, em Cuiabá. Chefe do Cartório da Justiça do Trabalho, de 2010 a 2013, ano em que se aposentou. Hoje, mora numa chácara, no meio das araucárias, na zona rural de Rio Negro, região metropolitana de Curitiba. Em 4 de dezembro de 2006, venceu o I Concurso Carioca de poesia promovido pela Associação Brasileira Cultural de Apoio à Cidadania (Abraci) que contou, entre as parcerias, com a Academia Brasileira de Letras (ABL), Como prêmio, teve publicado seu primeiro – e único - livro de poesia, “Flores Amarelas”. Ocupou a Cadeira nr. 31 da Academia de Letras de Maringá. Este ano, foi uma das classificadas no Prêmio OF FLIP, na categoria Poesia.
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"e eu aprendi a amar as praças" - 5 poemas de Ana Paula Olivier
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Imagens: Brooke Shaden |
De propósito, deixei a cidade
Não, não devolvi o livro
Quem sabe você atravesse o país
E em tempos de golpes
Venha buscar o Trevo
dos meus braços
Quem sabe
Eu, você e Orides
Num poema
de pedras e metais
Aqui a vida está impossível
Venha buscar teu livro.
"Fecha a luz
apague a porta"
me chame pelo meu nome
é vedado o apelido
na casa da poeta
me chame pelo meu nome
troque de roupas comigo
de cama
de abrigo
use minha touca
Deixe-me ver pela tua janela
troque de nome comigo
troque os signos
os dígitos
os ritmos
da tua dactilográfica
memória
e se não vem ao caso
sonhe comigo
amiga é casa.
a essência vem antes do nome
teu perfume
inominável
pela casa
teu perfume vem antes das palavras
fálica
gatos
asas
teu silêncio serpenteia minha calma
líquida
ávida
aprendi a acordar cedo
tomar banho de sol e morrer tarde
pois esse amor me lembrou
que a vida é um palco:
- põe tinta nos cabelos!
- pinta os lábios!
que a vida é prática
- cozinha o arroz, faz o mercado!
Esse amor me lembrou:
- As plantas precisam de água!
E eu aprendi a amar as praças
E os galopes da chuva
que, às vezes, a tarde
inunda a cidade.
Três dias arrumando a casa
até você chegar
o bairro em festa
a alegria da campanhia
tuas mãos, eu já sabia
desalinhando meus cabelos
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Ana Paula Olivier nasceu em Natal (RN) em 1971 e está radicada em São Paulo (SP) há dezesseis anos. É licenciada em Letras pela Universidade Potiguar (UNP-RN) e é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC (SP). Têm diversos prêmios literários e participação em antologias poéticas. Desde 2006 é professora de ensino superior (Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Infantil, Produção Textual e Formação de Leitores – (Letras e Pedagogia) e doutoranda. Infinito sobre o peito foi lançado em São Paulo e na Flip – Hilda Hilst – Casa do Desejo. A Escritura Desejante de Hilda Hilst será seu próximo livro pela Editora Penalux.
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