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The Windmill, de Jules Dupre |
Abandono
Orquestrados na noite enluarada,
coaxam sapos... cantam grilos...
piam pássaros noturnos...
Gemidos de amantes
vêm de páramos distantes,
trazidos pela brisa...
Súbito,
da janela escancarada no universo,
ressoando pela noite esplendorosa,
ouve-se a primeira gargalhada.
Calam-se as vozes.
Ecoando pelos vales,
só se ouve a gargalhada.
Riam os deuses zombeteiros,
riam do que sou sou,
riam do que um dia
decretaram que eu seria,
trilhando caminhos traiçoeiros,
tropeçando nas garrafas,
sob o sol ou sob a chuva,
virando calendários...
Bebi todas.
Afundei-me no esgoto das intolerâncias,
me atolei no pantanal dos preconceitos,
estrelas brilharam sobre meu corpo na sarjeta,
o sol me queimou a face adormecida.
No estertor desta vida que se finda,
sob este luar de prata,
só me cercam os vultos das garrafas...
Vazias as garrafas...
Vazia a existência desvalida.
CANAÃ
Nenhum reflexo do sol
no fio das enxadas, foices e facões.
Não brilham os olhos dos fabianos
na retirada dos meios urbanos,
expulsos pela globalização.
Urubus pontilham o céu sem nuvens.
A paisagem é graciliana.
Mãos encardidas caçam piolhos aninhados
nos emaranhados dos cabelos infantis.
Na terra seca se ajeitam, com pouco sobrevivem.
Uma voz comanda, António Conselheiro.
Biblicamente faz brotar esperanças:
terra para os Sem-Terra.
Do árido chão há de brotar o verde.
Canaã.
O sol é uma bola dourada no poente.
Trilham os caminhos, os poucos trastes carregando.
O calor não ameniza, chuva nenhuma.
Se chovesse, uma copa de árvore bastaria,
habituados todos a pontes e viadutos.
António Conselheiro sabe incluí-los sem conflitos.
Teto para os Sem-Teto.
O canavial farfalha verdes esperanças.
Canaã.
Calor sufocante... estrada poeirenta...
Abre sulcos, o suor, na poeira dos rostos,
queimados pelo sol...
Miragem? Os olhos se encantam:
ali o verde das lavouras, pomares e jardins.
Trabalho sobrando para todos.
Contrato nenhum é preciso.
Folhas verdes são mensagens de esperança.
Canaã
Pela ardência dos caminhos, vêm os marginalizados,
mendigos, meninos abandonados, mulheres desvalidas...
Repete-se o milagre da multiplicação dos pães.
Jorra o vinho de tonéis nunca esgotados.
Vinho e pães igualmente repartidos.
Canaã.
E vieram de carro os profissionais liberais,
e a cidade se encheu de doutores;
vieram de avião os empresários
e o azul do céu foi se tornando cinza;
vieram de helicóptero os banqueiros,
e cifrões se infiltraram até nos corações;
vieram nos mais variados veículos, os políticos
e com eles a corrupção;
vieram os corretores
e os bens anônimos tiveram possuidores:
Com-Terra, Com-Teto, Com-Emprego.
O farfalhar dos canaviais se enfraquecia
entre as vozes midiáticas.
Canaã?
Casebres, fumaça, urubus, lixões...
Crianças nas ruas, pedintes nas esquinas...
António Conselheiro é uma pálida lembrança.
Flores do campo crescem na humilde sepultura,
onde pousam borboletas azuis.
Canaã?
Nenhum reflexo do sol
no fio das enxadas, foices e facões.
Não brilham os olhos dos fabianos
na anti-retirada dos meios urbanos...
Do infortúnio de Sísifo
Sou múltipla no tempo.
Múltipla na conduta, no amor, na aparência,
múltipla na rejeição, nas preferências,
em fortalezas e fraquezas se alternando...
Em que buraco do tempo se escondeu
a menina de franjinha na testa,
casaquinho cor-de-rosa de tricô,
sorrindo para o Céu e a Terra?
Onde a que ansiosa esperava Papai Noel,
que gordo e barulhento chegava de repente
e um presente deixava na véspera de Natal?
Em que fiapo do tempo implacável
se escondeu para sempre a aluna nota dez
de inesquecíveis professores nota onze?
Em que momento se perdeu a noiva sonhadora,
ao lado do noivo sério, jurando amor eterno,
como se eterno fosse o amor?
Quem é esta mutável criatura,
qual Sísifo pelos deuses condenado,
sua pedra para o alto arrastando,
buscando a infinitude nos filhos, na Arte,
e um sentido para a vida, nas perguntas sem resposta?
Paralelismo
Despercebidos, silenciosos,
foram se infiltrando nas portas
sem que eu nada percebesse.
Geometricamente se multiplicavam
naquelas noites de eróticos festejos,
quando aos milhares eu podia vê-los
sob a noturna luz das arandelas,
cumprindo festivos sua função maior:
perpetuar a espécie.
Leves, imponderáveis, em esvoaçante
nuvem que se dissipava ao mais leve sopro,
aqueles ínfimos insetos voadores me atraíam,
ignorante ainda dos meios que os nutriam.
Até descobrir que se alimentavam
dos recônditos de minhas belas portas
e tive que optar de imediato
pela morte deles, réus inocentes.
O tempo escorreu em muitos anos.
Invisíveis cupins de certa forma,
de minhas cartilagens, músculos e ossos,
mais e mais se alimentam a cada dia.
Sou agora uma velha porta carcomida
aos poucos devorada pelos cupins da vida
sem que eu nada possa contra eles.
Redenção
Só nós dois, eu e você, mais ninguém.
E a primavera chegando com leves odores,
em formas e cores jamais entrevistas.
De longe, a música, em cordas de sonho.
Nossos corpos liberam emoções reprimidas
de homens e mulheres de todas as eras,
beijos e abraços perdidos no espaço,
sonhos suspensos na dor das partidas...
Das plagas distantes no espaço e no tempo,
qual murmúrio de água cantante,
chegam lamentos de tantos amantes,
gerando arrepios no corpo e na alma
No enlevo do momento único,
no breve encontro, viver a eternidade.
No carinho, redimir a humanidade,
dos sonhos de amor um dia desfeitos.
* Maria Apparecida Sanches Coquemala é colunista de O Guarani, jornal de Itararé - SP -, cidade onde reside. Autora de Pulsar, Círculo Vicioso e oÚltimo Desejo, engloba vários gêneros em sua obra. Participa de antologias, selecionada por meio de concursos, no Brasil, Portugal e Itália.