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5 poemas de Julio Moncada - tradução de Lota Moncada

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Asalto

Estoy gastando ternura
en un país de miseria.
Gasto mi mano, mi sien,
gasto así mi levadura,
iluminando su pura
llamarada de tragedia.

Es un país de miseria
de mano callosa y dura.
Donde el pámpano madura
y al sur la lluvia se afila
y es un hacha que nos moja,
nos hunde y nos extermina.

He vivido ya treinta años
y agonizado otros tantos.
Un sordo tambor repica
sobre mis huesos cansados.

¡Pero no puedo impedir
que la ternura camine!
Tanta luz que hay en el hijo,
tanto cañón de fusiles,
tanto trigo, miel y mijo…

El yanqui asalta mi día,
sobre mi hora se encarama
como si fuera una rama
de dulce fruta vendida.
¡Y yo no puedo hacer nada
y me carcome la vida!

*
Assalto

Estou gastando ternura
num país de miséria.
Gasto minha mão, minha cabeça
gasto assim minha levedura
iluminando sua pura
labareda de tragédia.

É um país de miséria
de mão calejada e dura.
Onde a vinha amadurece
e no sul a chuva se afia
e é um machado que nos molha,
nos afunda, nos extermina.

Já vivi trinta anos
e agonizei outros tantos
Um surdo tambor repica
sobre meus ossos cansados.

Mas não posso impedir
que a ternura ande!
Tanta luz que há no filho,
tanto canhão de fuzis,
tanto trigo, mel e milho…

O ianque assalta meu dia,
sobre minha hora trama
como se fosse uma rama
de doce fruta vendida.
E eu não posso fazer nada
e me carcome a vida!

***
 
Habito un país distante

Vivo en un país distante.
Allí donde el otoño mueve el tiempo.
Habita mi alma fruta y pájaro;
mujer, hélice, recuerdo.

Todo lo que sea huida.
Todo lo que sea ausencia.
Abro la puerta cada día
para que pase la tristeza.

A veces muero lentamente.
A veces vivo silencioso.
Tengo la cábala que abre
un mundo claro y melodioso.

Como cuidador de estrellas
y fino pastor de la tarde
comprendo voces que no entiende
la sencilla gente del valle.

Cuando me muera me he de ir.
O he de volver. ¡Y quién lo sabe!
Bien sé que siempre estuve ausente
habitando un país distante.

*
Habito um país distante

Moro em um país distante.
Ali onde o outono move o tempo.
Habita minha alma fruta e pássaro;
mulher, hélice, lembrança.

Tudo o que seja saída.
Tudo o que seja ausência.
Abro a porta a cada dia
para que entre a tristeza.

Às vezes morro lentamente.
Às vezes vivo silencioso.
Tenho a magia que abre
um mundo claro e melodioso.

Como cuidador de estrelas
e fino pastor da tarde
compreendo vozes que não entende
o povo simples do vale.

Quando eu morrer hei de ir.
Ou hei de voltar. E quem é que sabe!
O que sei é que sempre estive ausente
habitando um país distante.



Laurel y decepción de Julio Moncada

Ya ves, Julio Moncada, no bastaba
con frente y corazón para la altura.
Sigues igual con tu desgarradura.
Igual, igual que cuando en ti empezaba

a florecer tu ciega levadura,
a crecer la semilla, a duplicarse
la sangre que mandaba levantarse
a nombre de la paz y la ternura.

Aquí estás como ayer, Julio Moncada.
Hoy más solo, más ciego, más perdido
con un clamor de patria calcinada.

Igual, tal como ayer, hoy perseguido,
igual, tal como ayer, Julio Moncada,
tu rama de laurel es el olvido.

*
Louros e decepção de Julio Moncada

Já vês, Julio Moncada, não bastava
com cabeça e coração para o momento.
Continuas igual com teu desgarramento.
Igual, igual que quando em ti começava

a florescer tua cega levedura,
a crescer a semente, a duplicar-se
o sangue que mandava levantar-se
em nome da paz e da ternura.

Aqui estás como ontem, Julio Moncada.
Hoje mais só, mais cego, mais perdido
com um clamor de pátria calcinada.

Igual, tal como ontem, hoje perseguido,
igual, tal como ontem, Julio Moncada,
tua coroa de louros é o olvido.

***   
 
Padre

Un corazón abierto de ventanal florido.
El gesto rudo y simple. La mano blanda y buena.
Y lo mismo que yo, unos ojos tan límpidos
que dicen lo que guardan sin mirarlos apenas.

Moreno como yo. Tiene mis mismos pasos.
Esa misma manera de mirar lo infinito.
Veo en su corazón como dentro de un lago
y a veces, me imagino que él es mi primer hijo.

Ahora, ya no hablamos. Desde que estoy crecido
nos apartan los mundos distintos de los dos.
Detrás de sus pupilas un indio pensativo
yo sé que hace diez años me está diciendo adiós.

*
Pai

Um coração aberto de varanda florida.
O gesto rude e simples. A mão branda e boa.
E como eu, uns olhos tão límpidos
que dizem o que guardam sem sequer olhá-los.

Moreno como eu. Tem meus mesmos passos.
Esse mesmo modo de olhar o infinito.
Vejo em seu coração como dentro de um lago
e, às vezes, imagino que ele é o meu primeiro filho.

Agora, já não falamos. Desde que estou crescido
nos afastam os mundos diferentes dos dois.
Detrás das suas pupilas um índio pensativo
há dez anos, eu sei, está me dizendo adeus.

***

Poema  III

Eh, buen viento capitán, y no temas
la maldición del Caleuche, sólo en las grandes islas
se podría encontrar en tu ruta. Navega
con todo el trapo suelto bajo la lluvia.
Pues vente de una vez. Deposita una rosa
en el cementerio de Panamá, ya sabes para quien.
Despídeme, si te dejan, despídeme del Pelado
que navegará robando motones y cabos y tarros de pintura
en el puerto del Odio.
Te espero capitán en el bistró de Auguste,
29 rue des Blanc Manteaux, junto a la estufa
con aire de perseguido, no puedes equivocarte
porque arrastro una nostalgia del carajo
y se me ve en los ojos, que cuando duermo lloro
intensamente, mi querido capitán.

*
Poema III

Ei, bons ventos capitão, e não temas
a maldição do Caleuche, só nas grandes ilhas
poderias encontrá-lo na tua rota. Navega
a toda vela sob a chuva.
Então, vem de uma vez. Deposita uma rosa
no cemitério do Panamá, já sabes para quem.
Se despede por mim, se te deixarem, me despede do Pelado
que navegará roubando polias e cabos e latas de tinta
no porto do Ódio.
Te espero capitão no bistrô de Auguste,
29 rue des Blanc Manteaux, perto da lareira
com ar de perseguido, não podes te enganar
porque arrasto uma saudade do caralho
e se vê nos meus olhos, que quando durmo choro
intensamente, meu querido capitão




Poemas de Julio Moncada, da antologia bilíngue, Habito um país distante. Tradução ao português de Lota Moncada. Organização, Ricardo Silvestrin e Lota Moncada. Editora Artes & Ecos, Porto Alegre, 2017.



Fotos:  a primeira com Juan Carlos Onetti (1978), grande escritor uruguaio, e a segunda com a filha Lota Moncada(1981), ambas em Paris, durante o seu exílio.





Julio Moncada, meu pai  - Lota Moncada

Julio Moncada, meu pai, nasceu em Santiago do Chile, a 12 de abril de 1919. Desde muito cedo se dedicou às letras, ao estudo, particularmente da poesia. Sua primeira publicação foi o livro Las voces(As vozes), por Ediciones Americanas Andes, em 1943. Nove anos depois, já no Uruguai onde moraria durante muitos anos, publica Destierro(Desterro), por Ediciones Helios, em 1950. Na dedicatória do livro, toda sua ternura:“Entrego este livro à ternura de minha mulher, Zulema, e a minha filha Lota, resumo do meu humano amor. Agradeço nele a amizade, a compreensão e o estímulo de muitas pessoas e esta obra vem a ser a concretização de uma grande soma de dores e esperanças que viverá por causa de sua vigência popular.” No prefácio o pedagogo e escritor uruguaio Jesualdo Sosa (Uruguai, 1905-1982) diz:“E o que há de fazer um poeta sem sua terra, em sua desterra, senão cantar, e o há de cantar senão suas causas e seus desencontros, os presságios e as desventuras? Isso e assim é todo poema de Moncada, um rapaz de trinta anos, a quem tenho visto animado embora com a água no pescoço; que tem um destino poético invejável e um acerto expressivo definido.”
Julio Moncada está inserido na Geração Literária de 38, na qual se destacam poetas e escritores do nível de Nicomedes Guzmán,Volodia Teitelboim, Andrés Sabella, Francisco Coloane, Eduardo Anguita, e alguns membros do Grupo La Mandrágora. Sempre no Uruguai, dividido entre suas viagens ao seu Chile natal, e seu trabalho como escritor e jornalista em Montevidéu, publica um poema em forma de livreto, La pena desnuda (A pena desnuda), como parte separada da Revista Agón, em 1958. Uns anos depois, não consigo precisar o ano exato, grava um disco formato pequeno, em 33rpm com o nome de “Julio Moncada dice sus poemas”  pelo selo Ediciones Ciudadela.
Sua última publicação em livro foi no ano de 1967, por Ediciones Del Angel No, em Montevidéu, uma belíssima edição de 150 exemplares numerados e assinados pelos autores, Julio Moncada e Enrique Fernández (autor das gravuras que ilustram o livro).
Além disso, milhares de notas, comentários, conferências, cursos, colunas de jornal, palestras e já no exílio, em Paris, colaborações com a Revista Araucaria de Chile, revista cultural publicada pelos chilenos no exílio: http://www.abacq.net/imagineria/arauca0.htm
Quando Salvador Allende foi eleito presidente do Chile, meu pai foi nomeado Adido Cultural à Embaixada em Montevidéu, fundando, nessa época, o Centro Cultural Chileno e promovendo e trabalhando sempre pela cultura e o intercâmbio.
Por ocasião do golpe militar de 11 de setembro de 1973 renuncia a seu cargo na Embaixada e parte ao exílio, primeiro em Buenos Aires e em seguida em Paris, onde morre a 19 de julho de 1983, aos 64 anos, depois de longa e dolorosa doença, especialmente agravada pela saudade e a impossibilidade de voltar ao seu amado país.


para cinza-hibrida: as cigarrilhas ...

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 Fabio Tesse
© Pedro Colon



não há dor no jogo de luz, nem no gris, ou no verde das relembranças de membranas musculares de parco espasmo e estrabismo. não há dor em desatino de bípede acéfalo, em libido e oficio destemido. não há dor em tanta metáfora... em náusea, no contrassenso instintivo ... e na recarícia da cópula, na recaída do sentido. no silêncio.... não há dor entre as labaredas que fazem o renascer da cinza-hibrida entre um cigarro e as cigarrilhas...









adrianazapparolié escritora

A FALSA CHINESA: poema novo de Roberto Bozzetti

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Foi entre as fileiras de poltronas vazias num  renitente  poeira periférico
que aquele velho senhor de antigas maneiras e já  à beira da última morada,
enquanto aguardávamos um filme que jamais começava nem começaria,
me disse do que teria sido a sua última paixão –
a derradeira, ele frisava
e me cravava os olhos rútilos e inexpectantes: a derradeira: –:

Era como se fosse uma chinesa e eu a conheci em Damasco, era...
não não era chinesa, era
uma beleza coruscante a que de suas pernas se irradiava
que mesmo à sombra das mangueiras do baldio onde eu sonhava sua casa,  
sonhando-a  em sua casa, não arrefecia
e não apenas as pernas mas sobretudo os olhos
 – não, ela não era uma chinesa, nem exatamente era como se fosse –
me olhavam presas de  desejo e piedade
e me era receptiva e generosa apesar de  sua boca inacessível se bem que sorridente tanto que acabamos muito nos afeiçoando
entre chocolates  e hortaliças (ah!.. o correr dos dias  provê os despistes
de todas as urgências), mesuras, guimbas  
e o deplorar da miséria que sempre povoou nossos arredores,  
fosse ali onde ela morava
- e é aqui perto, e por isso estou aqui neste poeira à espera apenas
de vê-la passar, eu que já estou mesmo à beira,  e uma deriva a mais ou a menos
não afetará meu certo itinerário –
neste subúrbio  que eu conhecia só pela janela do ônibus agora que não dirijo mais,
fossem os impulsos intrínsecos de sua nobre alma, e que também  me cativaram
logo em seguida  às pernas e aos olhos
como a Teresa de Bandeira, só que lá era um amor que terminava em corpo
gênesis às avessas antes de seu início e nem deu
para que os amantes se situassem, e sabe-se lá se desejariam,
em relação ao desengonço do mundo,  
quanto a ela no máximo a circunscrevi à minha alma em frangalhos
quem sabe se ela é donzela, quem sabe se ela namora,
em que cidade antiga se sabe lá onde mora
e desse jeito circunscrevê-la  é tudo o que posso
pois  que ainda quem sabe se talvez sobeje desejo já me falta a fibra
assim como nela nada falta, que a finjo chinesa numa Damasco impensável,
esconjurando-a,  se necrófila, disfarces do meu fracasso,
que juro sim de seu desejo ao meu emaranhado
pois percebia  pelo simples toque de seus dedos quando fortuitos me visitavam
uma vocação caligráfica que eu adoraria que me pontilhasse a pele
prospectando-a e perfurando-a poro a poro antes de me perdoar
valendo-se de  todos os bálsamos de Betania, Beijing ou Gileade
paciência, me digo, paciência,
- não serão seus delicados pés que virão a pisar-me e a perscrutar-me os chacras para restituir-me a vida eterna por  cuja perda pago a minha cota de não conseguir me apagar de todo o Paraíso -
quantas vezes me disse e por lá a procurei e mesmo
entre alamedas de velhas árvores calcinadas cheias de despachos e caçambas
no cemitério local
e era só que a encontrasse e lhe dissesse, desdenhando Isaías,  que o dia se levantaria,  
mais um dia feliz
e que eu lhe sorrisse e ao me retribuir ela me iludisse como se valesse
uma experiência mística
um galardão, um pódio, um milhão que me recompensasse a devoção
antes da devastação, dos bombardeios, das minas pelos campinhos de pelada
mais do que as promessas que me chegam via email
prometendo-me revigorar a performance sexual
logo ela que enxerga em mim um velhinho domesticado a cuidar
de gatos e samambaias, que apenas aprecia, como estas,
viver à sombra,  sem ter a malícia e a dissimulação daqueles, o sei porque ela
me disse, sem deixar de deixar que eu reclinasse a cabeça em seus ombros,
a cingisse  levemente acima dos quadris e lhe adivinhasse o túmido contorno
e o delicado aroma dos seios e por isso
é que não foi em Damasco não, eu já disse, assim como ela não era
chinesa e todas essas coisas também se passam sempre
como se fossem e como se não, mas é verdade que ela me disse que sou
a sua grande frustração pelo desencontro no tempo
o tanto que ela lamenta que eu tenha tido pressa em nascer ou será
que foi ela quem perdeu um bom tempo tentando entender a substância dos anjos
e como mais uma vez como sempre esse filme não começa
a única recompensa são essas anotações no vento poeirento da tarde arrabaldeira,
enquanto me lembro que estou mesmo à beira e se desfaz
a expectativa  mística nestes versos mal ajambrados que me ajudam a embaciar os  olhos
que não esperam outra coisa que não que alguém me leia e nem leve a ela
os esboços que lhe dedico caso não prestem
ou mais ainda: caso venham a prestar.

Assim ele fez uma pausa, que eu esperava breve, como se por instantes
fosse movido apenas pela necessidade de retomar o fôlego,
e quando eu dei por mim que seu silêncio já se estendia demasiado
- não sei se cochilei - foi que notei que ele se calara de vez
ou foi então o tumulto que súbito se instalou ao nosso redor
e não seria ainda a destruição e o desmanche, mas era
o cinema interditado, uma porção de gente a berrar
as mandíbulas de ódio a espumar sangue pelos olhos
e a viatura suspeita que o  havia recolhido a partir de uma denúncia
por uma parolagem sem propósito, sem assédio, sem sentido
algum.

"3 LUGARES", POEMAS ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

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RUA SEM DENOMINAÇÃO III

rua da estrela avenida circular 
rua uruçuí rua balsas rua guaporé

distante dos nomes que outrora evocavam 
usos costumes metáforas e tradições
quando poucos muros davam testemunho
às inúmeras ruas que tiveram seus nomes
esquecidos na poeira das homenagens
mudam-se tempos e vontades

rua desembargador freitas avenida miguel rosa
quintino bocaiúva arlindo nogueira francisco mendes

e distante do tempo e espaço destas vias
uma cidade se desdobra em seus limites
para que entre passos calçadas esgotos
e placas demarcando logradouros
encontrarmos o nome do silêncio
entrelaçado no alto desta esquina

tão anônima quanto os transeuntes que por ela transitam 
sob a ausência de nomes que ainda não incorpora
alheios sobrenomes aos que aqui habitam
o espaço em que plantaram suas vidas
  




TERCEIRA TRAVESSA DA RUA TRÊS

desconheço os que atravessam
a terceira travessa da rua três
jamais saberei de seus anseios
suas pequenas tragédias íntimas
ou o nome que dão às dores
e desejos que arrastam pelas esquinas

apenas sigo em silêncio
entre meio-dia e meia-noite
e se por um instante paro
e me perco em breve devaneio
é apenas pelo inusitado alento
da aliteração que nomeia esta via
ou a certeza da repetição dos dias




CACHOEIRA PIRAPORA

após os meses de estio
correm as águas transformando
o que restou do silêncio
em leito transbordante
entre pedras escuras

desliza seu caminho
seu consequente salto
anunciado pelo canto
líquido de seus passos

e o que há de reflexo
desenhado em sua face
corta em luz e lâmina
para que permaneça
em testemunho do que segue
pela vereda da mata
levando tudo que se lance
no tempo de sua queda
e torne a se lançar
após os meses de estio
à espera da próxima estação

  
__________________
Itinerário | A rua sem denominação a que se refere o poema encontra-se, não se sabe até quando, em no bairro Gurupi, em Teresina, PI. A Terceira Travessa da Rua Três, fica no bairro São Francisco, em São Luís, MA. A cachoeira Pirapora, que motivou o poema, é uma das cachoeiras que se encontram na zona rural de Viçosa do Ceará, CE.

Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, PI. É autor de Os intrépidos andarilhos e outras margens(romance) e as cinzas as palavras(poemas), dentre outros. É um dos editores da revista eletrônica www.desenredos.com.br

5 poemas de "Tempo de voltar" de Mariana Ianelli

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LIUBA

De um acorde acontecido entre um inverno
e um verão, do perfume da flor do manjericão
depois da chuva,da cura fina e fraca
em mãos de pluma fechando a pálpebra
de um olho que cegou,disso tudo
que não gera assunto, que é empenho
de tempo num átimo sem futuro,
como de um lábio ao relento osculando a lua,
se faz o amor, como se fosse deste mundo.


JULHO

Aqui os trabalhos não têm fim,
há sempre novas formas de juntar
cacos de coisas ocorridas no caminho,
há um deserto de senhas, sinais, indícios
mas hoje, hoje a lua é um acontecimento,
há um perfume de casa nos teus cabelos,
há uma flor de maio que rebenta em julho
e um cacho de uvas vermelhas lavadas
brilhando num prato que é pura concupiscência


ROSA DO DESERTO

Uma hora existe
na vida incógnita dos desaparecidos
em que os ataca uma vontade de carta
notícia pouca, por nada
(as palavras graves já todas prescritas)
só uma vontade burra de enviar
sinais para casa, uma juventude súbita
fora de estação, que não chega
a uma palavra expedida, e passa 
quase de nascença mentindo a si mesma
ter de repente intentado vida,
quase um passatempo de acordar comoção,
uma síntese de sais nas raízes
e passa, essa vontade passa, vai com a hora
como a palha que alguém fuma sozinho,
vai com a hora como um alarme falso de erupção,
escuridão a mais das notícias a menos
de como vivem, e de quanto se lembram,
quando (serpeando em fogo)
o passado lhes aparece
e os morde, e os trai,  e os excita,
a eles, os desaparecidos.


PARA OUVIR E ENTENDER ESTRELAS

São fogos em vozes e tantas vozes
quantas são as faces das gentes
e das épocas, cada uma com sua noite
em torno e dentro, com suas mortes
mais ou menos ardentes, suas almas
mais ou menos velhas, fogos em vozes
à janela ou como se nunca houvessem
brilhado, antes cobertas com vasos, veladas
debaixo de camas, debaixo de alqueires
e todavia brilhando por décadas, séculos,
milênios em que se cozem os tempos, fogos
em vozes, mais fortes no mais escuro, anãs
vermelhas, azuis, ilhas, candeias que (dizem)
só amando para ter ouvido capaz de entender.


DAS DORES

Sete adagas
no peito:
essa violência
da imagem
ninguém censura
que é para o olho
ver melhor
quanto custa
uma coroa
sem vontade
nem vaidade
minha ou tua
quanto de pena
quanta pena
quanto amansamento
por tortura
quanto céu sem estrela
para eclodir
isto que chamam
majestade
glória
graça
resplendor.


 "Tempo de voltar"é finalista do Jabuti, categoria poesia,  2017.



Mariana Ianelli, nascida em São Paulo, é autora dos livros de poesia Trajetória de antes(1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio(2005 – finalista do prêmio Jabuti), Almádena(2007 – finalista do prêmio Jabuti)Treva alvorada (2010) e O amor e depois(2012 – finalista do prêmio Jabuti), todos pela editora Iluminuras. No ensaio, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli (2013), da coleção Ciranda da Poesia, pela editora UERJ. Estreou na crônica com o livro Breves anotações sobre um tigre(2013),pela editoraardotempo, que também publicou seu mais novo livro de poesia, Tempo de voltar (2016 – finalista do prêmio Jabuti) e Entre imagens para guardar (2017), segundo livro de crônicas. Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude e menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba). Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, França, Hungria, Cuba e Argentina.

5 poemas de "Identidade" de Daniel Francoy

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LATITUDES

Fala-me Conrad de um tempo,
ou melhor, de uma latitude
que ultrapassada impede
qualquer regresso –
como se o destino de um homem
fosse descer por uma luz vacilante
degrau após degrau.

Sujamo-nos, não há outro caminho
que não seja ter as mãos sujas.
Sujamo-nos e são as mãos sujas
o último elo a romper-se.
Por elas passa o ouro conseguido
a um custo indizível,
o perfume de amores enlouquecidos,
as flores que colhemos quando
muito jovens ou muito cansados.
O último elo a romper-se porque
da luz mais gasta permanece o pólen.


CLARIDADE

Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes  vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D’Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem – é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito –
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.

 
SABER ESCAVAR
Havia terra neles, e
escavavam.
Paul Celan

Saber escavar, escavar sempre
a terra podre e depois escavar
a sombra espessa. Respirar fundo
a noite escura, a noite sem vento,
sem vestígios argênteos do luar
(mesmo um luar imundo, encardido
de poeira e fumo, não se percebe)
e sem murmúrio de mar diluído
nas negras artérias da madrugada.


ALEGRIA

Que improvável trazer
o dom da alegria.
Que clandestino trago
de vinho saboreio
na tarde que germina
– dulcíssimo perfume –
duras ervas daninhas
(pressinto na mandíbula
as raízes que quebram
as pedras, ascendendo).

E entre tanta alegria
e entre tanta doçura
que improvável trazer
a morte clandestina –
no homem a gravidez
dos terrenos baldios.
Que doído plantar.
Que doído deixar
de plantar: vivo ou morto
de mim nada precisa.


RODOVIA CÂNDIDO PORTINARI

1.

Quilômetro 1: os homens
jogam bola aprisionados.
Quilômetro 2: cuida-se
de passarinhos diz
a placa meio escondida.

2.

O lavrado campo de cana
é plano e amarelo.
Os lavradores assinalando o horizonte
são sombras magras na distância lúgubre
com uma leveza de pássaros negros:
campo de trigo com corvos
e os abutres que planam
tão perto do sol ofuscados incinerados
que no súbito voo descendente haverá
quem pranteie a queda de Ícaro.

3.

Repete-se o campo de trigo
com corvos com homens
no lugar dos corvos.
Na contraluz ontem eram
os lavradores no canavial.
Hoje foram os cárceres
roçando a relva bronze.
Um deles – chapéu de palha –
parou o trabalho, olhos
no ônibus a desembarcar
as suas mulheres e crianças
também elas transformadas
em corvos em voo cego e raso.
Com o chapéu de palha, parecia
o holandês em autorretrato:
os olhos feridos, lúcido, mutilado.

 Poemas de "Identidade",livro finalista do Prêmio Jabuti, categoria Poesia.
 

Daniel Francoy, nascido em 1979, natural de Ribeirão Preto. Participou da coletânea 4 Poetas na Net (Sete Sílabas, 2002), do número 1 da Revista Literária Agio(Editora Artefacto, 2011), da coletânea de poemas mixtape (doladoesquerdo, 2013) e, enquanto colaborador da Enfermaria 6, dos Caderno 2 e Caderno 3, bem como participará do caderno Modos de Escrever, no prelo. Teve poemas publicados nas revistas eletrônicas “mallarmargens”,  “Parênteses”, “Escamandro” e “Germina”. Em carreira solo, tem os seguintes livros publicados: Em Cidade Estranha/Retratos de Mulheres (Editora Artefacto, 2010), Calendário (Editora Artefacto, 2015), e Identidade (Editora Urutau, 2016), este finalista do Prêmio Jabuti – 59aEdição, na categoria poesia.

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SÉRGIO MEDEIROS

LENDO3 POEMAS 






















  
RÊMORA & PRIMEIRO LIVRO RÊMORA
Caules e Cordas ou Palmeiras e Caravelas

(do livro A Idolatria Poética, pgs. 22-24)




.








TERCEIRO LIVRO RÊMORA
Ninguém Pode Evitar Ser Filho do Urubu e da Fumaça

(do livro A Idolatria Poética, pgs. 57-58)




.






ATIVIDADES ESPIRITUAIS 
NA NOVA IGREJA DO BRASIL

(do livro As Emas do General Stroessner, pgs. 96-98)





















SÉRGIO MEDEIROS

É poeta, ensaísta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Publicou o ensaio "A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai" (Iluminuras) e traduziu, entre outros livros, o poema maia "Popol Vuh" (Iluminuras), indicado ao Jabuti na categoria melhor tradução, e a crônica histórica "A Retirada da Laguna" (Companhia das Letras), do Visconde de Taunay, texto escrito originalmente em francês. Publicou vários livros de poesia, como: "Mais ou menos do que dois" (Iluminuras), "Alongamento" (Ateliê) e "Totens" (Iluminuras). Seus poemas já foram traduzidos para o espanhol, o italiano e o inglês. Seu poema em prosa "O Sexo Vegetal" (Iluminuras), de 2009, finalista do Jabuti, foi publicado em inglês sob o título "Vegetal sex" (UnoPress/University of New Orleans Press, 2010). Colabora no jornal "O Estado de S. Paulo".











2 poemas de "Madrigaes tragicomicos" de Glauco Mattoso

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MADRIGAL VISUAL

O cego concretista appalpa o pé
e lê, no amendoim, nonsense, até.

Ninguem é mais poeta nem concreto
que o cego, que tacteia a dimensão
da lettra na palavra, avulso objecto.
Em cada grão palpavel, o olho são
não vê sentido algum, mas interpreto
eu, sem a luz do dia, a cor do grão.



MADRIGAL VERBIVOCOVISUAL

Um "O" debaixo de outro, de outro abbaixo
e accyma, em vertical eixo os encaixo.

Quem os dactylographa, ou os digita,
é um cego concretista, que na mente
ainda guarda as lettras e cogita
si em caixa baixa estão, visualmente
dispostas e allinhadas na restricta
medida do papel, sem luz nem lente.



Os poemas selecionados são de "Madrigaes tragicomicos" livro finalista do  Prêmio Jabuti 2017.




Glauco Mattosoé pseudonymo litterario de Pedro José Ferreira da Silva, paulistano de 1951. Bacharelou-se em bibliotheconomia pela Eschola de Sociologia e politica de São Paulo e cursou lettras vernaculas na USP sem collar grau, mas ganhou a vida como bancario até que a cegueira o invalidou profissionalmente. Publicou mais de cincoenta titulos,principalmente poesia satyrica e fescennina. Parou de compor sonnettos antes de completar seis mil, para dedicar-se a outros generos, comodecimas, oitavas e madrigaes, caso do presente volume. Tambem é auctor de um tractado de versificação e de um diccionario orthographico, este para systematizar a escripta classica do portuguez, a qual adopta por posição esthetica e politica.



Os ovos na água - Edhson Brandão

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Ilustração: Farnoush


[...] um estreitamento no peito: a vida.
C. L.

Tão perto de nada e conseguiu se perder. Clara não pensou nessas ruas ou lembrou de armadilhas, passos falsos e do perigo restrito a cada uma que pensa poder ser. Culpada de esquecer o conselho da mãe, não pôde muito com seus resultados. Nunca abandonar, não, uma panela no fogo.
Perto à hora do jantar, enxaqueca surgiu após o sono da tarde. O segredo da mistura é pertinente nos seus ânimos. Quase seis horas, Lucinha precisa ser pega na escola. Antes de tudo, Clara precisava escolher dois ou três ovos para pôr na panela. Soltar cada qual que afunda e emerge. Ovos crus fingem boiar. Acendeu o fogo baixo e pôs a panela para poder sair.
Na rua o vento feio fez voltar. É sempre necessário um casaco. Dois, outro para a filha. Elegeu quaisquer dois, encostou o portão. Soube de um atraso porque as vizinhas eram ouvidas em companhias. Acelerou o passo. Algumas a cumprimentaram: deu sorriso e aceno.
 Clara, o perfume chegou. Quer levar? – Carmelita apontou em uma janela verde, olhava com bom jeito.
 Depois pego, Dona Carmelita. Atrasada para buscar Lucinha!
Preparou-se para dobrar a esquina. A padaria fervilhava, os bons pães estavam por chegar. Clara precipitou uma olhadela pelo seu interior. Das almas conhecidas, nenhuma querida. À escola se chegava algumas quadras a frente. O mulheril se dissipava, o céu já era roxo. No único farol do bairro parou, fazia sinal fechado. Carros com gente, visões tristes. Quase um minuto, atravessou.
 Tia, a Lucinha está doente?
O menino moreno de franja lisa a tapar os cílios a surpreendeu. Vinha acompanhado da vó e estava parado a sua frente.
 Não, não está.
A vó do menino sorria, não sabia da conversa.
 Ela faltou hoje? Não vi ela não.
 Não viu?
O ventre de Clara borboleteou. Em meio segundo esqueceu onde estava, apressa que a seguia. O menino devia mentir, era sim um mentiroso, desses danados a enganar. Resolveu perder o assunto, abandonou o menino e a velha sem resposta. As ruas resolveram serpentear e os buracos das calçadas mal feitas despojaram saudações.
A escola estava quase toda vazia. Um inspetor, duas ou três crianças, poucas luzes acesas, cheiro de partida.
 Boa tarde, seu Guilherme. – buscava Lucinha nas faces das crianças. Eu vim buscar Maria Lúcia.
 Boa tarde, Dona Clara – o homem se fazia estranho. Eu não vi a Lucinha por aqui hoje.
 Não?
O homem negou mesmo habitando em seu peito um traço de piedade para aquela mãe. Se pudesse mentia. Entregaria uma calúnia que sabia, requentaria um coração. Não pôde, era justo demais. Clara agradeceu, desceu a escada vazia e nos portões da escola qualquer vertigem lhe passou. Cegou por duas ou três minúsculas horas. Olhou a rua, quem passava e o mistério de Lucinha. Planejou seguir até qualquer casa das amigas da filha, saber de alguma coisa. Percebeu-se burra e desajeitada. Outras pessoas lhe cruzaram dando sorrisos. Acordou lembrando os ovos.
Pegou o caminho de volta. Mirava o horizonte longe e hostil. Os braços cruzados abaixo dos seios, um vento eriçava os pelos da perna e a calma da culpa chegava. É assim a beirada do inferno, deduziu. Perto da padaria encarou a fila. Três ou quatro pessoas até sua vez. O pão estava bonito: redondo e amarelo. Pouca casca, nada queimado. Levou cinco. Pegou leite e queijo também. Pagou com uma nota só. Contou o troco meticulosamente. Saiu para o frio. Tinha noite. A casa da Carmelita era convidante, deixou-se entrar, pagou o perfume e escolheu outros cremes. Aceitou um café. Ofereceu o pão que tinha e comeram juntas. Saudaram a felicidade do lar, os benefícios das saladas e o cheiro de amaciante. Deixou Carmelita e, outra vez na calçada, teve dúvida para onde ir. Lembrou os ovos outra vez. A água fervia com fúrias. Logo mais os ovos estourariam e deixariam as gemas e claras disformes e sólidas.
Seguiu, seguiu, seguiu e foi.
Encostou novamente o portão, despencou com as coisas no chão. O choro veio livre e voraz: dono de cortar alma e estilhaçar a consciência. Clara queria se livrar das idiotices da sua ignorância. Como era fria! Como era inóspita! Que jeito de servir! Larga as peles, rasgar o avental e tirar os calços das cadeiras! O mundo não girava. A dor do engano fechava a garganta. Soluços, soluços, soluços. Não sabia os caminhos de volta. O relógio trai ao responder as horas. É cedo demais para pensar. Ela queria uma caixa de vidro para entrar e repousar. Ser só. Só ser. Aprofundar no vácuo da atmosfera e esboçar um qualquer viver. Insignificâncias bem-vindas. Era linda, era bela, tinha idade. Uma filha só.
 Oi, mãe!
Lucinha bateu o portão, o pai vinha atrás. A menina abraçou Clara e lhe entregou um dente. Depois um beijo e o diário do dia:
 Os médicos falaram que eu estou muito bem. Deram parabéns ao papai e a você!
Clara olhou a menina que sorria bem. Ela tinha vida, existia, estava ali. Bochechas rosadas e uma cara feita a sua. A cara de quem vê, sabe e depois desconfia. Abraça mas, ama. O marido sorriu e perguntou o que ela fazia ali sentada com sacola de pão e loja.
O que ela fazia?
Clara respondeu silêncio.
Até que voltou aos ovos. Despediu-se dos dois. Entrou para desligar o fogão. Nenhum ovo boiava na água.




Edhson Brandão, 1989, paulistano, exilado no ABC. Contista e novelista, explora os relevos da prosa porque não soube ser poeta. Publicou, sobre outro nome, Letra de Mão (Giostri, 2017), Ephemeroptera (Penalux, 2017) e está online no tumblr Peregrino de Mim. Outras coisas e nada mais. 

4 poemas de "Quase todas as noites" de Simone Brantes

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Die Aufgabe

Chegar em casa um pouco mais
do que cansada e puxar ainda assim
e aos poucos o fio longo da mortalha
até fazer da noite sair enfim um dia
dentre todos os dias a morrer na praia

***

Meus mortos não estão encarapitados
no alto das árvores
não são eles que balançam
os galhos quando eu passo nos dias de calmaria
não estão debaixo da terra nem voam pálidos
sobre minha cabeça debaixo do céu azul
Aparecem nos sonhos e desaparecem
quando são cinco ou seis da manhã
meus mortos são covardes
não têm coragem
de viver

***

1. 
Os amigos se encontram tantos anos depois,
os amigos começam a acreditar que os anos
não passaram de certa forma não passaram
ou que o passado está ali tão fácil entrar no
seu círculo encantado os amigos estão maravilhados
com isso e querem marcar outro encontro
os amigos voltam para casa pensando nisso

2.
Um dos amigos tem três lojas de móveis
um dos amigos tem uma loja de roupas
um dos amigos tem dois filhos
um dos amigos também tem dois filhos
os filhos de um dos amigos ainda estão
meio perdidos com suas escolhas profissionais
os filhos de um dos amigos já estão se formando
em medicina no final deste ano
o amigo quer fechar as três lojas de móveis
quando os filhos se formarem
o amigo quer abrir uma loja de
relógios relógios são mercadorias
mais fáceis do que armários modulados
e têm também mais valor agregado
o amigo pai dos filhos que ainda não se
formaram acha que tem ainda muito que trabalhar
os amigos só compram carros com airbags
os amigos moram em casas muito confortáveis
têm muitas histórias do comércio para contar

3.
A amiga é professora de português para
sobreviver
a amiga tem sobrevivido
o que falta aos amigos
não falta à amiga
a amiga tem tempo de sobra
embora seu tempo não sobre nunca
a amiga sempre precisa de
mais tempo
a amiga falou vagamente
nisso
O melhor da noite
foi que ela adorou
as histórias
do comércio

4.
Os amigos prometeram que não demorariam
trinta anos para se encontrar ademais os amigos
sabem que não terão todo esse tempo
os amigos já começam a fazer os cálculos do tempo
razoável que lhes resta e talvez pensem vagamente
que esse desejo de rever esses amigos faça parte
de um desejo de dar passos atrás de arrastar
o tempo para trás ou é possível que pensem
sem muita clareza que há ilhas poças largos
um pequeno enclave ou algo como dobras do tempo
aonde a morte parece não chegar os amigos quando
se encontram de certo modo visitam algo que parece
viver sem a sua presença que parece não depender
mais deles como os filhos que não param de crescer


A cor mais quente

               a cor branca

não sei qual é o cheiro que você tem
não senti seu cheiro mesmo tendo estado
tão próxima de você
em pé em uma conversa
ao seu lado sentada a uma mesa
não sei que cheiro você tem
embora desde um momento que abriu as
portas soltou todos os pequenos demônios
eu me aproximo e observo uma coisa
da qual nem me dava conta
sua pele tem a cor branca
a sua pele tem a cor branca
a sua pele tem a cor branca
a sua pele tem

              um gosto

não sei o gosto que tem a sua
pele
não sei o gosto do branco de sua pele
porém agora
já sei
ele tem um gosto
sua pele tem um gosto
sua pele tem um gosto
sua pele tem

               esses sons

pode-se ouvir algo quando alguém
toca a sua pele o branco de sua pele
podem-se ouvir
todos os sons
que repercutem
em sua pele
todo som acumulado
que ficou ali para ser comunicado
porém não ouço ainda bem
não ouço ainda bem
não ouço



 Poemas de "Quase todas as noites", finalista do Prêmio Jabuti 2017.



Simone Brantes nasceu em Nova Friburgo em 1963. Publicou dois livros de poemas: Pastilhas brancas (1999) e Quase todas as noites (2016), pela editora 7Letras. Publicou poemas e traduções de poesia em jornais e revistas como O Globo (Página Risco), Inimigo RumorPoesia sempre, PolichinelloRevista PiauíAction Poétique e Lyrikvännen. Participou de algumas antologias como A poesia andando: treze poetas no Brasil (Lisboa/Cotovia) e Roteiro da poesia brasileira. Anos 90 (São Paulo/Global).

O mapa - Vássia Silveira

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Ilustração: Gustave Courbet


Dedico-me atualmente a ler um mapa.  Sei que nele estão estampadas as fadigas do tempo, mas como é difícil, meu deus, delimitá-las se estão todas diluídas na carne mole e feroz! Aproximo-me, então, do espelho e acaricio os sulcos que pendem da árvore onde repousam os olhos, a boca, o nariz e miríades de inquietações. As lembranças aninhadas como uma crista de galo velho. Não seria mais digno se elas fincassem sua morada na face?
Duas portas fechadas e algumas palavras ríspidas assim o fizeram. Encontro-as ao redor da boca e ao vê-las o espírito se agita. Não há noite o bastante para velejar nessas águas, nem silêncio capaz de aquietá-las. Estão sempre lá, como bandeiras orgulhosas cravadas em território usurpado. E nada posso fazer senão dobrar-me, reconhecendo nessa presença uma sombra que avança sobre campo estéril.
Por toda a face soçobram sonhos. Uns dissimulados em manchas; outros em rugas finas que saltam ao menor indício de riso. Mas em ambos não há sofrimentos maiores do que um soluço na madrugada. Tudo muito previsível e suportável. Diria até que necessário, não fosse o fato de eu ter herdado de minha avó esta mancha negra que margeia os olhos e que a cada noite torna-se mais funda e irrevogável.
Penso na dureza das cicatrizes, mas o latido do ganso da vizinha evita que eu mergulhe mais fundo. Como é irritante esse cachorro! Há seis meses tivemos, eu e a dona dele, um entrevero no portão. Felizmente o episódio serviu para afastar da calçada de casa a língua ferina da mulher. Mas deixou-me sem paciência para o latido do cachorro – provavelmente porque me faz recordar, com antipatia, o timbre de voz da dona.
Silêncio. Finalmente o ganso se cala.
Volto então ao que para mim é ainda indecifrável. Esse desfiladeiro aberto entre o queixo e a base do pescoço. Que desilusões fincaram as garras na pele arrastando-as a ponto de deixá-las o que são hoje? Faço a pergunta e antes que perceba, lá estou eu contemplando novamente a imagem no espelho. 

Mas que despautério querer decifrar os sulcos! 

Os olhos obedecem à voz rouca e cansada, e pousam nas mãos. E elas, num gesto que não esconde certa resiliência, afagam a carne mole como quem brinca com um bicho de estimação.


Extraído de : https://todaquinta.blogspot.com.br/
 
 
 
Vássia Silveira é jornalista e escritora. Seus primeiros poemas em livro compõem o Balaio de Ideias(Editora Projeto, 2006), almanaque infantojuvenil coordenado por Sérgio Capparelli. É autora deFebre Terçã (poesias/2013), Indagações de Ameixas (crônicas/2011); e dos infantis Quem tem medo do Mapinguari? (2008) e Braboletas e Ciuminsetos (2007). Escreve o blog Toda Quinta (http://todaquinta.blogspot.com.br) e vive em Florianópolis. 

"SUBIR AO MURAL", DE RONALD AUGUSTO [3 POEMAS]

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entre montanhas o jequitinhonha serpeia
exsurge às vezes a areia branca do leito

depois o perpétuo eucalipto
enquanto um quietar ventoso embrulha
a intervalos o barulho de carros
e caminhões

ladeados pelo barro carmim
que sobe as encostas


***

o poeta que canta “a mulher isso a mulher aquilo”
eu deveria dizer o homem que goza do privilégio
de cantar “a mulher isso a mulher aquilo”

esse mesmo que, preclaro em sua condição de lobo bobo, se autoproclama
um degustador e entusiasta do vinho fino do corpo feminino
como se o conhecera como a palma de sua mão de punheteiro

aquele mesmo cujas metáforas gineco-anacreônticas
substituem por rebaixamento “a mulher isso a mulher aquilo”
que ele imagina cantar como ninguém, comer como ninguém

o decrépito que faz publicidade “a mulher isso a mulher aquilo” desses corpos
esse um uma espécie de cafetão e mentor do estupro edulcorado
essa coisa que as minas já calculam de longe a merda que vai dar

tão logo o traste trasteje “a mulher isso a mulher aquilo”
toada de toureiro calvo e renitente cuja arte perdeu o sentido
para muitas e para outros exceto para ele mesmo

abandona o canto a esse corpo que não te pertence
o erotismo de trocadilho, o estilo vinicius, a saliva
essa coisa toda que até agora só tem dado merda


***

octassílabos

erra em ondas meu pensamento
pelos ângulos do lugar
as paredes brancas de nada
um corte transversal, solar

as cortinas se mantêm feias
esse plissado industrial
essa cor, de ordinário, pálida
dão a tudo um quê de oficial

o rumor ar condicionado
piso de hospício sem ranhuras
ou de laboratório clínico
quadrículo infenso à cultura

no entanto aqui a estudantada
faz o exame vestibular
cumprindo seu rito de classe
visando além ser dr. k.

poucos negros, quase nenhum,
entre os que se curvam às provas
isso parece confirmar:
não deviam passar da porta


PARA INFORMAÇÕES SOBRE O LANÇAMENTO
(13/11/2017 em Porto alegre) CLIQUE AQUI


*    *    *

Ronald Augustoé poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro(2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com



"ALGUMAS LEITURAS #06", POR ANDRÉ LUIZ PINTO

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CONSIDERAÇÕES NOVAS
E UM JOVEM AUTOR COMO ESTOPIM
   
Nada mais difícil que tratar do primeiro livro de um autor: irrita a nossa preguiça, supura a nossa verdade. Diria que tratar de um desconhecido é um suplício, mesmo quando o outro se trata de um escritor, principalmente quando se trata de um escritor. Quem fala do outro se vê numa encruzilhada: ao mesmo tempo em que é preciso refletir sobre os novos, sobre o que escrevem, naquilo que fazem, essa é uma tarefa que quem a faz se sente incomodado. Quando se escreve sobre um autor canônico, a gente tem pelo menos em mãos, dos outros críticos, análises anteriores. O desafio não estaria em justificar o valor da obra, mas da crítica. Só precisaria nesse caso me preocupar comigo. Um tema que me atrai é sobre o ato de ler, o quanto a leitura constitui a essência da literatura. Por sinal, o meu ensaio então publicado na Mallarmargens, “Por uma outra leitura”, trata do assunto e, nesse sentido, tradução e crítica fazem parte dessa estrutura fundiária maior. Traduzir coaduna ler e escrever; nas traduções, há um misto de criação e de plágio, em reproduzir o mais fidedignamente o já escrito e em criar a partir dele. Emil Cioran em Aveux et anatèmes diz ter conhecido tradutores “mais inteligentes e interessantes que os autores a quem traduziam”. Segundo o filósofo, era “lógico: necessita-se mais reflexão para traduzir do que para criar”. Traduzir é um gênero de criação, uma forma de, mas em vários aspectos muito mais aberta, solidária, solícita ao outro. Tenho em mãos a belíssima tradução do texto de Michel Serres As narrativas do humanismo, último da tetralogia iniciada com Hominiscências. Imagino, no convívio com o texto de Serres, o tradutor quebrando a cabeça nessa ou naquela palavra... no fundo não se trata de um problema da língua francesa, mas do francês de Serres, como o francês entrava e saía do cérebro de Serres... Os cérebros e os seus labirintos... Ao traduzir, sempre traio aquele a quem jurei fidelidade. Talvez não seja por acaso que as juras e promessas acabem em traições, pois prometem mais do que podem, prometem para sempre, quando no máximo poderiam se comprometer até a morte... mas não é sempre assim? Prometo apenas ser fiel até o fim, mesmo que no fim eu continue vivo. A quem escrevo e de quem escrevo prometo apenas fidelidade a mim mesmo e sinceramente acho que pensando assim começamos bem. Na luta mais esganiçada contra nós mesmos colocamo-nos fieis e ordeiros.
Não há voto mais significativo que a mentira. Esse o interesse da tradução e crítica concernentes. A crítica deve se esforçar por se aproximar do outro, no fogo daquele sofrer. Mas antes fosse só isso: há também, conjunto à leitura, outras evidências. As apreciações sobre uma obra indicia o gosto de quem critica. Em entrevista para Cláudia Roquette-Pinto na revista O carioca, o poeta Armando Freitas Filho diz que um hábito entre os poetas brasileiros nas publicações das décadas de 1990 era escrever para um crítico específico, levando em conta o que este pensa sobre literatura. O escritor cede aos espertalhões. Em Do silêncio da pedra, Donizete Galvão (1955-2014) termina o livro com o texto “O poeta em pânico”, em referência a A poesia em pânico de Murilo Mendes. Misto de ensaio e desabafo o ainda jovem Donizete escreve sobre os enfrentamentos que o escritor passa nos primeiros passos na busca por reconhecimento:

“O poeta insiste: quer ganhar visibilidade. Quer chegar até as estantes das livrarias e das bibliotecas [...]. Extenuado pela tensão quase insuportável de construir uma obra, deve converter-se também em seu próprio agente literário [...] sem ter o menor jeito para essas tarefas”[1].

Luta desesperadamente pelo “tão falado ‘gancho jornalístico’”[2], submete-se a tantas obrigações, que o melhor é capitular para não sacrificar a vida. Armando mesmo, num poema emblemático de Números anônimos,escreveu como que a editar o mais novo enigma: “a poesia acaba com a vida”[3]. Em uma entrevista que me concedeu para a revista .doc, no ano de 1999, disse:

“Eu estava saindo um dia do meu emprego na Biblioteca Nacional, na Rua México, aí me veio essa linha, como geralmente me vem as coisas, tirei no caso o talão de cheque e escrevi no verso: ‘a poesia acaba com a vida’. O curioso é que não sei o sentido dela até hoje. Não sei se eu quis dizer que a poesia acabava com a vida, ou seja, acabava com a sua vida e impedia você de viver ou se a poesia acabava quando a vida acaba”.

Simbólico escrever uma frase dessa nas costas do talão de cheque. Como o oxigênio, necessário para a vida e fonte da velhice, os versos alimentam nossa carne na medida em que nos consome. Os ranzinzas chamariam esse prazer de vaidade, mas a vaidade também recai no talento de destratar aquele que cria, no poder divino das autorias. Outro ponto inconfesso do crítico quando diante de uma obra inédita está no autor ainda constituir um futuro desconhecido, um risco acadêmico. Os críticos preocupam-se com a própria imagem, abrem mão da saborosa felicidade de aprender com o novo. Literatura, biografia, historiografia são camadas que se perfazem. E no caso do monge beneditino Cícero Leilton leite, o poeta Tito Leite, com o recentíssimo Digitais do caos, não será por menos. Como beneditino, ora et labora. Mas assim como há em certos risos sardônicos mais escarpas que as caretas de algumas carrancas, há também outras formas de cansaço e reza forte. Laborar, por mais distante que esteja da noção escravocrata do trabalho (de tripaliare, torturar), não deixa de ter o seu suor; da mesma forma não existe um, mas muitos tipos de orações. O esforço que deve ser orar num poema, nuvens que mais protegem do que mostram esse deus absconditus. Uma maneira de alcançar essa proeza está em apostar na erudição como forma de ocultamento. E assim, os títulos das seções do livro de Tito Leite estão mais para sentenças teóricas que camuflam as sensações muitas vezes lúdicas, outras vezes sombrias de um fazer poético que arqueja e protesta: “um franco-atirador em algum lugar do oriente: a bala de fuzil tem design medieval. Fundamentalismo cego – intolerância bélica”; e, no trecho logo em seguida: “Os glóbulos dos severinos são perfumados de mirra e petróleos pilhados”[4].
O poeta é atento ao mundo. A solidão da oração reata a comunhão entre os homens, e já não sei se é o monge ou o poeta, mas um deles proíbe Tito Leite de desistir do mundo, um deles insiste para o outro Tito que para além dos muros das abadias há vida; e é ela mesma, a vida, que nutre o que está lá dentro. Além do mais, chamar a atenção para a intolerância e o fundamentalismo bélicos e os associar ao que Tito chamou de “design medieval” significa mais do que nunca ter a coragem de tocar numa ferida do catolicismo: o sangue que correu durante as cruzadas, os carbonizados nas fogueiras, as páginas apagadas pelo Índex. Parece que os monstros do século XX – de Guantánamo aos porões do DOPS – souberam com prodígio reproduzir às centenas o já praticado nas masmorras. Tanto a dizer e tanto sendo dito nessa estrofe, chamo atenção de novo para o início do poema: “um franco-atirador em algum lugar do oriente: a bala de fuzil tem design medieval”. “Um franco-atirador” e essa imagem a reconheço no sniper, o novo cruzado do Ocidente; mais que ao clero ou a qualquer outro nome na longa história de nossos dias, é ao Ocidente, o que se convencionou chamar de Europa a acusação tácita desses versos. Mas o poeta também não deixa de resvalar em outras temores: o beneditino toca na teologia da libertação, compreende que é insustentável seguir a trilha do capitalismo. Somam-se aos “glóbulos vermelhos dos severinos”, “a leptospirose” que “floresce no húmus da primavera sacrificada”, a “Chikungunya em câmaras de gás sem senha para paraísos fiscais”[5], tantos futuros pestilentos ditados pela depravação da ganância; nas palavras de Leite, “o absinto das elites, o aleijamento das massas”, “o golpe de um punhal contaminado pelo óxido ocre das empreiteiras”[6]. O Cristo que eu mais admiro: expulsa os vendilhões (os únicos nos evangelhos que mereceram a violência do próprio Cristo), enfrenta as potestades oficiais com ironia socrática (“Palavras tuas, não minhas”), com o cinismo de um Diógenes (“Dai a César o que é de César”) ou com um gênero de amor tão raro, só dele. Um aspecto no estilo da obra de Tito Leite cada vez mais raro na poesia é o recurso ao adjetivo. Diante de um medo extremo em errar, o poeta, o romancista, subservientes à crítica especializada, optaram por suprimi-lo. Os exageros são agora tidos como parnasianos. O mais é menos, para fazer jus ao arquiteto Van der Rohe... medo exagerado, costumo responder aos censores em estética que os únicos que nunca erram são os mentirosos. Novamente cito Cioran, lapidar sobre o assunto: “a diferença entre a inteligência e a tolice reside no manejo do adjetivo, cujo uso não diversificado constitui a banalidade”[7]. Tito Leite abusa dos qualificativos nas hipérboles e nas contradições: “místico errante”, “liberdade maltrapilha”, “felicidade transgênica”, “gozo cósmico” são alguns dos muitos sintagmas nominais que Tito abusa e que inundam Digitais do caos.
Mas nessa adoção está em curso a marca do que pode ser chamado de teologia negativa: d’Ele que “só vive pelos adjetivos que acrescentamos a Ele”[8]; d’Ele, quando só resta recorrer a qualificativos demasiado humanos. As referências de Tito Leite a San Juan de La Cruz, aos êxtases de Santa Teresa D’Ávila, ou mesmo ao gnosticismo neoplatônico de Mestre Eckhart, denunciam um poeta que busca o vislumbre daquilo que não se esclarece e de nada adianta, como sugere num de seus versos, usar “sapatos de chumbo para o vento não me roubar”[9]. Assim como os monges não são santos, os ateus acreditam em algo. Somos algum número no meio do nada. A preocupação, aliás, com códigos numéricos é uma tônica de Digitais do caos. Em “Escola de Atenas”, o poeta escreve “Platão tinha no número a forma de sua alma”[10], em “Teologia negativa”, “sob o peso da solidão é o meu número”[11]e em “Poder do ser” aludindo a Heidegger, “Longe do cálculo e do engenho atômico o deserto me madura”[12]. Heidegger é uma referência nos poemas de Tito Leite, chega a tomar como do próprio Heidegger uma citação deste sobre outro autor, Leibniz: “por que simplesmente o ente e não antes o nada?”. Porém, o numerário está longe de ser um tema às claras: mais do que ao cálculo, ao lógico, enxerga-se uma luta íntima, mas sangrenta contra a razão. Como os epicuristas que faziam do prazer um recurso para a vida felicítica, última peça dos deuses contra os nossos anseios, o místico pensa os atributos da lógica como um trampolim: “nas iluminuras que roubam a escuridão, o leviatã: santos triturados pelas mandíbulas da razão”[13]. Em alguns momentos, Tito Leite cede à língua bífida da filosofia. Contextualiza mais, analisa mais do que experimenta, por exemplo, quando escreve: “o ser estrangeiro do místico é o mesmo do poeta”[14], ou mesmo naquele que me parece o mais didático dos seus poemas, “Rito de passagem”: “Escreverei um livro sapiencial, onde a verdade arderá como uma bala de prata”[15]. Esse didatismo está mais para um refrigério à razão, como se as emoções a deixassem governar só mais um pouco.
Mas a poesia sabe mais do que o poeta o que há de perdulário no rosto da esfinge. A verdade se revela de forma a encobrir. Há toda uma tradição que trata do assunto: nela, é de forma oculta que se revela a verdade. Mentir, que consiste em uma das muitas formas de ocultar, servirá de instrumento para o seu anúncio. No poema “Sem ponto de vista”, começa escrevendo: “Não sou um religioso a ser catalogado em aprisco (sou da mística)”[16]; assim, quando o poeta anuncia e afirma ‘ser da mística’, uma categoria nele já se institui, ainda que não queira. Não há como não defender ou não ter ‘um ponto de vista’. A palavra exige o silêncio, por si só um contrassenso. O poeta quer falar. Estamos diante do mais alto exercício criativo. Recorrendo, à maneira de Leite, aos versos de Hölderlin citados por Heidegger, “Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva”, cabe perguntar: a poesia nos salva? Ela também não se enrosca nessa serpente chamada vaidade? Diz o Eclesiastes (1.2), vanitas vanitatum et omnia vanitas, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. É de manhã e a última estrela ainda se põe a brilhar... Só te peço alguma vaidade. Farás poemas, te sentirás importante, te darei alegrias... migalhas do meu pão. Ao lado do conhecimento, está a vida. Outra árvore seria o prazer. Terminar um poema é quase um orgasmo e a poesia está longe de ser um caminho tranquilo para o autoconhecimento. Schoppenhauer via na arte um caminho tão importante quanto a salvação prometida por Cristo e o nirvana anunciado por Buda, pois também elevaria o homem para além do mundo da representação. Mesmo Kant estava ciente da impossibilidade de o metafísico vir a ser conhecido senão através de um juízo que refletisse a experiência e a sua finalidade no mundo. Arte e moral cumpririam, cada qual a sua maneira, esse papel. Penso inclusive na moral como o caminho do meio e a arte, como já dizia William Blake (1757-1827), o do excesso; μετρονe ὕϐρις, comedimento e devaneio, pois o palácio da vaidade também leva ao saber. Mas há também excessos no campo da moral, de quem pretende tornar bela, inspirada, a própria conduta. São chamados de santos.
Crucificados ao longo da estrada romana em nome de algo que em vida nunca chegarão, espoliados, destrinchados de toda forma, reduzidos em jejuns inacabáveis a um farrapo, não muito distantes dos mestres hindus na Índia e mesmo dos samurais do Japão feudal que também esperavam pela morte, homens estetizam, pela resignação, o máximo de nossa moral, que constitui a superação da morte e a afirmação da liberdade. Não por acaso, Kant identifica no heroísmo uma virtude moral e ao mesmo tempo uma estética: “um homem que não se apavora [...] mas ao mesmo tempo procede energicamente com reflexão [...] nisso é conhecida a invencibilidade de seu ânimo pelo perigo”[17]. Na santidade, como nos heróis, há estetização moral, exemplaridade. Assim, se há vaidade nos santos, como não esperar nos poetas? Difícil explicar numa única resposta por que se insiste na poesia, e mesmo a razão para desistir dela. Outra figura, ao lado da de Cristo, admirada por Leite é a do Buda. O prazer e a sua superação ou, quem sabe, o prazer e a sua aceitação constituem outra água forte desse universo poético. Toca o erótico, como em Ab initio e que eu reproduzo na íntegra:


AB INITIO

Nau da
existência,
a substância
salina

Como sagrado é
teu sexo,
salgada,
a tua língua

Segredos de dunas
os seus olhos
sob a lua: lumes

Que se pólen
em acácia
lembram
um livro fecundo.


O erótico da criação, em especial, essa criação que fora o início de tudo, mais do que a um Deus masculino, que regula o caos ou ao demiurgo de Platão, que dobra a χώρα como um toureiro que domina a fera, diz respeito ao feminino, a uma Deusa, pois, acima das leis que se impõem e determinam o caos, ele/ela dança com os elementos. As imagens adotadas por Tito Leite são claras nesse sentido. Ele não trata do sol, mas da lua, não do mar, mas das dunas que, com olashermosas, galanteiam o universo. O próprio livro é preparativo para o mistério. Esse poema faz de Digitais do caos, “um livro fecundo”, impraticável, ambicioso. Vaidade necessária de quem quer e pretende, se me permitem, cito outro poema de Freitas filho, “estalar e crescer da terra contra as estrelas”[18], o próprio título Digitais do caos não deixa de remeter à ideia da carícia, essa intimidade baseada ao mesmo tempo no tocar e no não tocar, na mais pura e tensa especulação. É como carícia que o feminino fecundou o mundo, gestou o universo. Tito Leite soube no livro discernir com minúcia as incongruências da fé (“Amo todos os sentimentos que burlam a minha fé”, o poeta escreve em “Jardim da existência”), da mesma forma que eu também estou ciente das contradições do ceticismo que me invadem desde sempre...




[1] GALVÃO, Donizete. Do silêncio da pedra. São Paulo: Arte pau-brasil, 1996 (ah! Coleção poesia brasileira), p. 57.
[2] Ibidem, p. 58.
[3] FILHO, Armando Freitas. Números anônimos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994 (Poesia Brasileira), p. 65.
[4] LEITE, Tito. Digitais do caos, p. 22.
[5] Ibidem, p. 91.
[6] Idem.
[7] CIORAN, E. M. Breviário da decomposição, p. 34.
[8] Ibidem, p. 34-35.
[9]Digitais do caos, p. 24.
[10] Ibidem, p. 27.
[11] Ibidem, p. 24.
[12] Ibidem, p. 71.
[13] Ibidem, p. 81.
[14] Idem.
[15] Ibidem, p. 80.
[16] Ibidem, p. 72.
[17] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, p. 109.
[18] FILHO, Armando Freitas. Cabeça de homem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991 (Poesia Brasileira), p. 


*     *     *






André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975 no Rio de Janeiro. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela Uerj, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela Uerj o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou "Flor à margem" (1999), "Um brinco de cetim" (2003), "Primeiro de abril" (2004), "ISTO" (2005), "Ao léu" (2007), "Terno novo" (2012), "Mas valia" e "Nós, os dinossauros" (2016). Leia outros poemas do autor aqui e aqui.




Um conto de "Somos mais limpos pela manhã" de Jorge Lalanji Filholini

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O IRMÃO QUE A GENTE ESCOLHE

Preciso de ajuda.

Carlos me falou quando abri a porta. Ele, todo molhado, encolhido, quase corcunda, sapato de couro desbotado, magro, covas nas bochechas. Olhos escondidos na sombra. Levantou a mão direita como se pedisse perdão. Eu, com o óleo no fogo para as fritas, água para o macarrão, long de Stella, a camisa do Star Wars – Hanshotfirst, bermuda amassada com respingo de molho de tomate. No som do notebook um solo de Charles Mingus. Torrent baixava mais um capítulo do presidente Kevin Spacey. Seria uma noite perfeita, mas o irmão bateu na porta.

Preciso da sua ajuda.

O irmão que a gente escolhe. O irmão de viradas de noite no boteco, de desavença ideológica, de se abraçar quando aconteciam brigas nos relacionamentos de um ou de outro. O irmão sangue bom. O irmão dos negócios. O irmão do crime. O irmão que agora abre a bolsa e deixa cair

lápis

moedas

garrafa de água sem gás vazia

tampas coloridas de refrigerante

um guarda-chuva pequeno

mais moedas

Halls pela metade

papéis de Halls

e, finalmente, a carteira.

Passa o zíper. Sem sinal de animais em extinção.

Nem uma onça, meu irmão.

Me olha de baixo pra cima. Sou maior. Estou mais alto.

Ajuda.

Ele continua. Se ajoelha. O que aprontou? E agora, o que faço com o irmão que a gente escolhe?

Eles estão no meu pé. Fiz merda, e das grandes. Foi em São Carlos, entrei numa parada sem volta. Fugi com doze quilos de coca. Trouxe pra cá.

Porra! Como é que é? Aqui?

Fui cuidadoso, não sabem de você. Do nosso passado. Eu devia ter feito o mesmo, abandonado tudo. Como você fez.

Fiz! Larguei o assalto, assassinato, roubo de carga e distribuição de drogas.

Me ajude. Preciso. Se eu voltar vão me matar. Torturar. Queimar. Arrancar meus dedos, meus pés, meus braços. Meus dentes. Farão do jeito que fazíamos naquela época. Não devia ter entrado nisso, mas precisava de dinheiro.

Ele chora. Fizemos parte de um esquema bem desenvolvido, como pode ver. Eu era o cérebro. Depois do tiro na perna, culpa de uma 38 do gambé filho da puta, decidi parar. Treze meses de fisioterapia. Me dediquei aos livros, HQ’s, cinema, música e arquitetura. Abri uma construtora. Ele gastou toda a grana. Bebia muito. Apostava no animal errado. Voltou ao pó.

Entrou, arrumou o sofá e comeu o macarrão. As fritas ficaram para outro dia. Perguntou o que eu estava fazendo. Ia ver uma série. Ele não sabe o que é House of Cards e nem faz ideia de quem é Kevin Spacey.

Como não? Vencedor de dois Oscars. Kayser Söze. Os Suspeitos. Beleza Americana.

Preciso da sua ajuda.

O irmão que a gente escolhe. Mandei ele descansar.

Amanhã resolvemos tudo. Durma.

O café passando. O cheiro acorda o irmão. Assustado. Ainda pensa estar no pesadelo.

Senta e corta o pão com as mãos. Daqui a pouco sairemos e resolveremos as questões.

Que questões? Tô fodido! Eles vão me matar.

Relaxa. Não falo deles. Arranjei um lugar para você ficar. Mais seguro do que aqui.

Onde?

Você vai saber. Coma!

Descemos do carro. Ele mais lento. Preocupado. Não para de olhar para os lados.

Caminha. Me segue. Meu irmão sempre foi a minha sombra.

Porra, na rodoviária? Esse lugar é todo aberto. Ficou maluco?

Tranquilo. O busão já vai chegar.

Busão?

Pensou que ficaria aqui. Você precisa de um lugar isolado. Onde escondeu os doze quilos?

Em um Monza estacionado perto do mercado, na esquina do seu apê.

Certo! Me passa a chave. Eu cuido do resto. Ele confiou em mim. Me admirava. Queria ser eu, mas não conseguiu. Foi comigo que deu o primeiro tiro em um homem. Carregou corpos e os mutilou. Mais de quinze anos juntos. O irmão que a gente escolhe.

Me entrega a chave do carro. Passo confiança. Obrigado!

É o seguinte, vai se sentar naquele banco, o busão já tá chegando. Eu vou comprar as passagens. Fica logo ali, virando aquele guichê. Viu? Então, por favor, me aguarde aí sentado. Não! Não se preocupe. Vai dar tudo certo! Vou te ajudar. Você é meu irmão.
Sigo para o local que havia indicado. Dobro o guichê. Paro. Encosto na parede. Me escondo. Não quero ver.

O meu irmão aguarda no local em que pedi. Confia em mim. Veio me pedir ajuda.

Dois homens se aproximam dele. Cada um sacando uma arma. Sentam no mesmo banco. Ele olha na direção em que fui comprar as passagens. Nenhum retorno.

Tudo vai ficar bem. Você é o irmão que escolhi. Pensei nas frases. O irmão que a gente escolhe. O irmão que despachamos. O irmão que não queremos como estorvo. O irmão que escolhemos para dar aos porcos. Evoco um altar dentro de mim para pedir perdão. Mas os santos viraram os rostos.

Volto para o banco, meu irmão não está mais lá. Entrego as chaves para os dois armados. Explico a eles que o pó está dentro do porta-malas de um Monza estacionado perto do mercado do bairro.

Vejo levarem o meu irmão. O irmão que escolhemos. Que criei e mandei embora. O irmão que teve o seu fim porque fui eu que o trouxe para o começo.

O irmão que não tem mais jeito.

Posso, enfim, voltar ao Kevin Spacey e ferver o óleo para as fritas.




Conto de   "Somos mais limpos pela manhã" finalista do Prêmio Jabuti 2017, categoria Crônicas/Contos.


Jorge Ialanji Filholini nasceu na cidade de São Paulo, em 1988, mas reside há mais de 20 anos em São Carlos, interior do estado. Editor do site cultural “Livre Opinião – Ideias em Debate” (www.livreopiniao.com), lançou, em 2016, o livro de contos Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro), finalista do Prêmio Jabuti.

Quando nossa vida não nos pertence, o século não pode mesmo ter fim

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Por Marco Aqueiva

Como a história pode nos pertencer se somos alheios à própria história? Ou – dito de outro modo, agora afirmativamente – nossa própria história não nos pertence enquanto não formos donos da própria história.
Para sermos mais precisos, talvez devêssemos dizer que nossa vida não nos pertence. Quantos de nós, pobres homens comuns, não somos constrangidos a aceitar uma história predeterminada, imposta? Submissos estamos a uma ordem que controla todos os domínios da vida. Que existência podemos viver se somos o resultado de uma causalidade da qual – basta ter olhos para ver – ninguém escapa.
O contexto da época dá como mortas as utopias socialistas e libertárias. Pois sim, chegou-se mesmo ao fim da história! O contexto brasileiro criminaliza indistintamente a política e dá como certa uma ordem socioeconômica sustentada por uma mídia atrelada a essa ordem. Grosso modo, mantemos praticamente a mesma estrutura de poder do início de nossa experiência republicana, em que se digladiam dois brasis: o dos letrados e o dos excluídos. Integrar o Brasil é ainda (para uns e outros) uma balela. Baleia que brincava junto com os meninos não se diferenciava deles quando revolviam-se na areia do rio e no estrume fofo. Sua vida de animal doméstico não lhe pertencia, e sim a Fabiano. Quem de nós somos Fabianos e Severinos? Quem de nós não é mais que Baleia e as perseguidas preás? Nem você que está me lendo, nem eu, e mesmo assim, estamos presos a uma teia de relações e constrangimentos.
A história não nos pertence. Ela é escrita pelos vencedores, dizia com prazer incontido certo estadista. Recebemos a história oficial como se não estivéssemos corroídos por um estranho cheiro de liberdade. Como podemos encontrar novos caminhos para o mundo se o que supomos mundo já está terminantemente pronto e acabado?!


1917-2017: O SÉCULO SEM FIMé um livro comemorativo. Comemorar como uma tentativa de manter vivo o imaginário social de uma aspiração coletiva. Comemorar, nesse sentido, como a possibilidade de a ficção interrogar a visão que a sociedade tem de si mesma e da história. De fato, a literatura não liberta, mas pelo menos podemos manter por meio dela o espírito vivo. Todo poder à imaginação – podem dizer ainda os sobreviventes de algum outro sonho ardente.

1917-2017: O SÉCULO SEM FIM é uma coletânea que reúne 20 textos sobre efemérides centenárias comemoradas neste 2017. 

Os autores
Ademir Demarchi – Aurora Bernardini – Carlos Felipe Moisés – Carlos Pessoa Rosa
Fátima Brito – Flávia Helena – Henriette Effenberger – Joaquim Maria Botelho
José Antonio Martino – Luiz Bras – Manoel Herzog – Marco Aqueiva – Micheliny Verunschk  
Nathan Sousa – Nilza Amaral – Paulo César de Carvalho – Reynaldo  Damazio 
Silvana Guimarães – Simone Adami – Tarso de Melo – Vivian de Moraes





RONALD AUGUSTO EM LANÇAMENTO [13/11 - PORTO ALEGRE]

3 POEMAS DE JULIANA HOLLANDA

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suaves nos ladrilhos
cortinas de seda rasgadas
no rosto


*


notícias a gente pode entregar aos 4 ventos
costurar com palmas
velhas toalhas
começar desde o início
o tempo da criação

[arara na árvore que ainda não virou estante]
  
aquela que rodopia quando não há devir
marinheiro no mar como uma flor
inspiração e entrega

os marinheiros esculpiam réplicas do próprio navio
isso alguém me contou
e estava sorrindo


*


não há indiferença
quando parto
(retribuo o aceno)
a única coisa que peço 
é que eles sejam sinceros





*    *    *

Carioca de 1978, Juliana Hollanda atua na poesia desde 2005 (CEP 20.000, Ponte de Versos e etc). Além de fazer parte do trio de poetas "Madame Kaos" (com Beatriz Provasi e Marcela Gianini), também compõe a dupla "Ju & Juju" (com Justo D'Avila). Possui três livros publicados: "Acordei num Iceberg" (Ibis Libris, 2008), "Entre sem bater" (2010) e "Vertentes" (2012), os dois últimos, independentes, editados por Tavinho Paes para a coleção Heart.Action.

5 poemas de Daniel Osiecki

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ode ao caos

vim, vi e não venci.
olhei o relógio e não
                 parei.
vi as luzes dos faróis
no reflexo de seus óculos,
mas não parei.

perdi seu toque terno
e ávido por prazer que,
em meio ao caos,
me mata!

ode ao caos
no cotidiano de nós mesmos.
ode a nós
em nosso ser caótico.
não quero mais seu
toque terno e suave.

quero seu fel, seu ódio,
seu medo, seu desejo.
quero seu corpo aberto,
seu peito arfante
em estertores.

o resumo do caos em seus
olhos abertos sem vida,
que perscrutam
     o
            insondável.
insondável som do fel,
felácio sem seu sinal.
sinal subjugado de seu
         arsenal
suave e sonoro.

bebe de minhas entranhas,
de minhas vísceras
o caos de nossos corpos.
o caos que domina
    a pena
                que
nega
             e
mata              o
          poema.
o caos com seu corpo
liso em seu fim,
em sua forma
canhestra e casta,
deturpa o que fica
        à sombra
como o anjo torto de
          drummond.

não sai e não volta,
dama do caos.
não volta.


bestiário I

vejo três lágrimas
na taça de vinho.
duas pra mim
e outra pra você.

o tiro que ecoa no
meio da praça
atravessa e extravasa
a cabeça do notívago.

cai o corpo.
ergue a poeira
que esconde o sereno
noturno durante a serenata senil.

a urbe revolta em revoada
se esconde sob a marquise
do edifício tijucas
e pede mais ...

urbe revolta que pede e
chora, se espalha pela
boca que maldiz
quem por ali passa.

horda de crucificados
perdida no caos urbano.
o peso da cruz
não vale seu sacrifício.

queime-a enquanto
        é tempo.
não fique ao relento
esperando o perdão.

seu senhor lhe absolve,
lhe promete salvação.

olhe
       no
          espelho.
a lágrima secou!
  
fim do bestiário I


bestiário II

quando abro a porta
não me encontro.
vejo o vão
do vulto que não existe.
seu espectro se apodera
do discurso alheio,
envolto às bestas
da urbe moderna.
quando abro a porta
penso ver seu rosto
lúgubre e sereno
que chora sua perda.
sua perda no inverno
da província
que louva a criança
morta na esquina.
sua voz não sai da
garganta cortada pelo punhal infame.
o sangue escorre pelo chão,
o sêmen escorre pela mão.
o urro do homem moderno
é surdo. a cor do homem moderno é cinza,
e ele caminha estático.
quando abro a porta
da rua vejo o vão
de sua filosofia vã,
poeta da voz aldeã.
poeta sob prescrição médica.
lorax garganta abaixo,
caixão terra adentro.
alma da mãe que busca seu rebento.
quando quebro o espelho
me parto em fragmentos.
corto o que dá liga,
certo que dá rima.
um vulto na história
que esbraveja uma notícia.
furioso em sua morte,
perdido em sua vida.

fim do bestiário II


bestiário III

quero encher com versos de sangue
a brancura do papel.
quero gritar para
            deus?
você só existe no papel.

quero que me mate
e morra em seguida
para que na descida
         você
                  arranque
                                  o véu.
quero que veja o que vejo,
que beba o vinho, que negue o céu.
quero que suje as mãos,
que exorte a alma
de seu crucificado incréu.

aplauda o bobo,
alerte o insone
de que você já morreu.

quero que você me leve
para o lado
do perdedor,
pois lá a perspectiva
é distinta, é distante
e não cabe em um único
livro da estante.

quero que você se perca
em um idioma que já morreu.
me prenda em suas
pernas
                      em          seu            leito
                                                        com
                                                                                                           morfeu!

quero seus lábios abertos
com seu toque de
ternura.
vermelhos como sangue.
                 me
                               devore
                                                   na
                                                              sua 
                                                        
                                                                           loucura.


fim do bestiário III


v

você atira tudo que encontra em mim. 
vaso,copo,cuspe,coisas,versos, 
rimas,métricas,regras,vulva, 
vassalos,caralhos,bonecos,cigarros, 
baseados,garrafas,garotos,um jogo inteiro de 
baralhos,uma lança,um lance,uma louca,um 
louco,um par de alianças que encontra,seu sapato 
de dança que alcança a janela do vizinho que grita
 vendo o espetáculo do seu corpo aberto quando me 
fecho de volta pra dentro de ti.


Ilustração: Hugo Fernandes




Daniel Osiecki nasceu em Curitiba em 1983. Professor e escritor, publicou os livros de contos Abismo (2009) e Sob o signo da noite (2016). Fellis, seu primeiro volume de poesia, está no prelo. É mestrando em Teoria Literária.  Publica resenhas e crítica literária no Jornal Relevo e mantém o blog Távola Redonda (WWW.poesiatavolaredonda.blogspot.com).

3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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tempo I


eram as folhas verdes das bananeiras contra o céu azul. e
eram as folhas e os caules encurvados das muitas variedades de palmeiras contra o céu azul e as nuvens. e,
lá embaixo, era a espuma branca criada pelo choque das ondas azul-esverdeadas contra as pedras da costeira. das
manhãs às noites, iam transcorrendo assim os dias.


então numa certa noite bateram na janela de casa, acordando meu pai. um velho caiçara, morador da ponta grossa, havia morrido. o homem vivera da pesca e das roças de mandioca e banana. sabia caçar, remava com habilidade a canoa e remendava redes. e agora estava morto.
meu pai, junto com três companheiros, foi na mesma hora para a ponta grossa, subindo e descendo as trilhas dos morros, e de lá trouxeram, sobre uma tábua, no meio da noite, o corpo do morto, para ser velado na capela do itaguá.


meu pai contava que aquela foi uma noite estrelada e clara, da qual ele jamais se esqueceu.



tempo II


havia muitas coisas, um turbilhão delas, tantas
que nelas nos perdíamos, jovens,
indo e vindo, sem nos deter em nada, tudo
tão possível, o infinito diante de nós.


[e então, o tempo]


o vento balançando as copas das árvores
na praça em frente à minha janela, fazendo
viajar as nuvens por cima dos edifícios
é tudo o que importa agora.



tempo III

sentados nesta varanda, noite estrelada e sem lua, fria,
aquecidos por uma manta compartilhada e por
duas taças de vinho, olhando o céu. bem diante de nós,
uma estrela cadente passa no horizonte, queimando-se,
ardendo contra o oxigênio da estratosfera terrestre.
linda, não?, você me diz. e no escuro da noite, mãos
dadas, eu concordo.

mas não consigo deixar de pensar que,
por mais infinito que seja, a cada estrela cadente que risca o céu
o universo fica um pouco menor.





Imagem: foto do autor


*    *    * 





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, os livros de poemas Outubro/Dezembro As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros. E pela editora Descaminhos os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e Só uma estranha luz como pensamento.

Um conto de "O Sucesso" de Adriana Lisboa

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O ENFORCADO
   
Hoje em dia já quase não venho mais ao Largo do Machado. Esses aparelhos de ginástica com que dou de cara ao sair do metrô, por exemplo, não conhecia, e acho que foram colocados aqui na praça já faz alguns anos. Lembro-me de ter lido qualquer coisa a respeito no jornal. Hoje, com a chuva fina e gelada que cai, ao que parece ninguém se animou a vir se exercitar. As mesas de cimento onde sempre via os velhos jogando damas e cartas também estão desocupadas. Os pombos procuram abrigo onde podem. A igreja espia, lá do fundo, altiva e triste.
O trânsito circunda a praça, um lento escorrer de ônibus e carros, mas a praça em si parece estranhamente desabitada para além da trilha irregular de gente indo para a estação de metrô ou saindo dela, os guarda-chuvas desviando uns dos outros.
Dou pela falta das ciganas. Na época em que morei aqui, costumavam ficar na praça se oferecendo para ler a sua mão ou adivinhar seu futuro nas cartas. Na época, elas me irritavam. Hoje acho que teriam até me dado certo reconforto, como uma prova de que o meu passado não se esfarrapou de todo.
É muito raro passar por aqui. Atualmente moramos no Recreio e nossa vida é toda por lá, meu trabalho e o da minha mulher, a escola das crianças. Antes disso teve a longa temporada em Belo Horizonte. Mas nos anos 1980 morei num apartamento de quarto e sala aqui perto, na rua Bento Lisboa. Não foram tempos muito fáceis, a vida era dura. Fiz bem em aceitar o emprego em Belo Horizonte.
Penso em ir até a portaria do meu antigo prédio ver o que mudou nas décadas que se passaram – nesta cidade, algumas coisas começaram a mudar com rapidez desleal, às vezes não acompanho. Mas a chuva me faz desistir. Enfio o pé, desatento, numa poça d’água, minha meia fica encharcada. Merda.
Lembrar-me das ciganas me remete à minha namorada daqueles tempos, Simone, que se interessava por tarô. Sempre achei esse tipo de coisa uma grande bobagem, mas mesmo assim havia um conforto doméstico em vê-la tirar o baralho da caixinha já gasta, remexer nas cartas, colocar algumas em cima da mesa, virá-las para lá, para cá, mudá-las de lugar. Havia umas imagens curiosas. De vez em quando, ela erguia os olhos das cartas e me fitava meio de banda. Mas o que quer que as cartas lhe informassem a meu respeito era sem a minha chancela.
Simone dizia que tinha antepassados ciganos. Não sei se era verdade. Ela era meio maluca, verdade seja dita. Vê se pede pras suas primas pararem de encher o saco de quem passa ali no Largo do Machado, eu disse uma vez à minha suposta cigana. Não são minhas primas, ela me respondeu.
Nossa história foi uma história triste. Não nos separamos em bons termos. Tenho minha parcela de responsabilidade, mas a Simone era dramática demais. Tudo era sério, tudo era sim ou não, branco ou preto, ela não conhecia meio-termo. Fiquei sabendo por alto, anos depois, da sua morte num acidente de carro. Parece que aconteceu não muito tempo depois que nos separamos. Ela era ainda tão jovem. Não costumo revisitar esse assunto, não me faz bem, mas voltar ao Largo do Machado (frequentávamos a Adega Portuguesa, íamos sempre comprar esfirras e tabule no árabe da Galeria Condor, ela gostava de comprar saias indianas na butique Meu Cantinho) retorce alguma coisa no meu coração.
A chuva aperta. A meia encharcada dentro do sapato me incomoda. Espero até chegar à portaria do prédio aonde fui levar os documentos. Podia ter resolvido isso dos documentos de outro jeito, mas espero que a promoção saia até o fim do ano e até lá tenho que bajular o chefe. Sento num banco ali na portaria, tiro o sapato e a meia, torço a meia, calço de volta. Meu pé continua molhado, mas agora pelo menos já não afunda numa poça d’água a cada passo. O porteiro do prédio me observa.
Demoro mais do que pretendia com o cliente. Sei que agora, no fim da tarde, e ainda por cima com a chuva, o metrô vai estar um inferno. Resolvo fazer hora por ali, talvez comer alguma coisa, tomar um chope. A ideia de chegar em casa mais tarde não é ruim. Nem sei dizer quando foi que me tornei tão cativo da rotina, mas juro que foi involuntário. Penso na estranheza disso. De a gente se solidificar na apatia dessa linha de produção. E ainda ter que bajular o chefe.
Telefono à minha mulher e aviso que vou para casa um pouco mais tarde, que resolvi esperar passar a hora do rush porque ainda estou no Largo do Machado e com a chuva, ela sabe como é. Eles não precisam me esperar para jantar.
Considero ver se está passando alguma coisa que preste no cinema São Luís (quando eu morava ali tinha também o cinema na Galeria Condor, que depois virou igreja evangélica e hoje não faço ideia do que seja). Vou caminhando sob a marquise dos edifícios, passo por um menino distribuindo papeizinhos. Compro ouro ou coisa que o valha, imagino, mas quando pego um dos papeizinhos a coincidência me surpreende: Consultas de tarô. Orientação no amor, estudo espiritual, respostas para suas dúvidas imediatas.
Chego a sorrir. Vai ver as ciganas que antes andavam pela praça também melhoraram de vida e têm agora consultório privado. Leio o endereço, fica no velho prédio da Galeria Condor, Largo do Machado número 29.
Paro ali na entrada, diante da galeria. Que diabo, não estou fazendo nada, mentira por mentira dá na mesma ir ao cinema ou tirar tarô, não? Quem sabe não é também um modo de fazer uma homenagem, ainda que tardia, à Simone. Que era meio maluca mas não era má pessoa, e não merecia ter a vida interrompida tão tragicamente, tão cedo. Resolvo ir procurar a sala. Tomo o elevador até o quarto andar.
Abre a porta uma garota bonita e bem-vestida que não lembra em nada as ciganas de duas décadas atrás, e automaticamente ajeito o cabelo, o colarinho da camisa. Explico que gostaria de uma consulta, será que ela estaria disponível?
Quando?, ela pergunta.
Agora mesmo, se possível, respondo. Moro longe, no Recreio, mas peguei na rua aqui perto um papelzinho com o seu anúncio e me interessei.
No momento estou com uma cliente, ela diz.
Posso esperar.
É verdade, posso esperar, mas mais do que isso, acontece que de repente se tornou estranhamente importante que aquela garota bonita leia o que quer que haja para ser lido a meu respeito no tarô.
Ainda vai demorar um pouco. Meia hora, quarenta minutos, ela diz.
Olho ao redor. A sala de espera é minúscula e sem janela, mas há uma pilha de revistas num canto, ao lado de uma vela e um vaso com flores de plástico. Uma coisa de ferro na parede representando um sol e uma lua. Um vago cheiro de incenso.
Fico aqui lendo um pouco, se você puder me atender em seguida.
Tudo parece perfeitamente profissional. As frases: gostaria de uma consulta, estou com uma cliente, se você puder me atender em seguida. Sento-me na poltrona preta de couro falso, pego uma revista, começo a folhear sem prestar atenção. Vejo pilhas organizadas de cartões de visitas: outras pessoas oferecendo terapias alternativas ali na salinha. Toda quarta à noite, meditação transcendental. Certo, eu não imaginava que consultas de tarô dessem conta de pagar o aluguel.
Minha consulta dura uma hora. Assino um cheque e saio dali transfigurado. Não me lembro de muita coisa do que foi dito, à exceção dos comentários sobre uma carta particularmente interessante, o enforcado (na verdade um sujeito pendurado de cabeça para baixo, amarrado por um dos pés). Segundo a taróloga – Renata –, a carta indica uma situação de sacrifício pessoal por algo valioso: palavras como destino, iniciação, indecisão e renúncia ainda flutuam na minha cabeça como cupins ao redor de um poste de luz quando deixo o prédio. Plano bem-concebido que fica na teoria, diz também a Renata. Perdas, impotência, esse seria o aspecto negativo da carta. Por outro lado, há todo um aspecto muito positivo, possibilidade de mudança de vida, paz interior.
Saio de lá sonhando com mudança de vida e paz interior. Mais do que isso, saio de lá sonhando com a Renata.
Eu e minha mulher tivemos as nossas crises, algumas delas bem sérias, mas já faz algum tempo que nos ajeitamos sem maiores ruídos, pelo bem das crianças. Estamos casados há doze anos, exatamente o número da carta do enforcado no tarô – penso, eu que sempre achei esse tipo de coisa uma grande bobagem. Mas de repente, de uma hora para outra, estou aqui fazendo planos para marcar nova consulta com a taróloga Renata, para voltar ao Largo do Machado na primeira oportunidade, enquanto chacoalho no metrô até a estação Cantagalo.
Deixei o carro na garagem da minha irmã, em Copacabana. Nem subo para me despedir dela. Ponho uma música para tocar e vou pensando na Renata no longo trajeto desde o Corte de Cantagalo até a avenida das Américas, ainda estou pensando nela quando entro na minha rua, estaciono o carro na minha vaga de garagem, chamo o elevador e desembarco no meu andar, ainda estou pensando nela quando abro a porta de casa.
Na minha segunda consulta, quinze dias depois, quero falar mais de mim. Quero que a Renata me conheça. Na primeira, fui reticente, fiz perguntas genéricas às quais ela deu respostas genéricas. Agora, quero arrancar a minha alma de trás da pele e desenrolar para a Renata, tome, explique isto, por favor – e não precisa devolver depois. Por mim, ela pode estender minha alma no chão e pisar em cima, se quiser.
Essa consulta leva quase duas horas, aparecem em posições significativas a carta do mundo (desafio de enxergar algo que precisa ser encerrado) e da torre (momento iminente em que será preciso derrubar velhas estruturas). Renata está com os cabelos soltos, desta vez, cabelos negros e compridos como os da cigana que ela não é. Usa grandes argolas de prata e uma camiseta que delineia os seios, parecem bonitos. Está mais sexy do que da outra vez, e quero acreditar que não é por acaso.
No fim da consulta, ela me pergunta se eu gostaria de mais uma xícara de chá e obviamente que aceito, enquanto ainda debato comigo mesmo se devo ou não convidá-la para comer qualquer coisa ali perto. Ela traz a chaleira com água quente e a caixinha com saquinhos variados de chá. Depois traz também um pratinho com passas. Concluo que é melhor deixar o convite para a próxima consulta, hoje seria precipitado. De todo modo, temos tempo para conversar um pouco.
Então, ela diz, voltando a se sentar e ajeitando o cabelo atrás da orelha. Por que foi que você se interessou pelo tarô?
Ah, é uma longa história, respondo. Tive uma namorada, faz muitos anos – mais de vinte anos. Quase trinta, na verdade. Ela gostava de tarô, não era profissional, mas gostava de tirar para si mesma, para os amigos. Eu confesso que achava uma bobagem, achava que a pessoa ouvia o que queria ouvir nas tais consultas. Por exemplo, se a carta dissesse “é preciso derrubar velhas estruturas,” a pessoa sempre conseguiria encaixar isso no contexto da própria vida, era o que eu pensava.
Mas não pensa mais?
Você mudou a minha opinião sobre o tarô, digo, cheio de ímpeto. Quando estive aqui pela primeira vez eu ainda vinha com todo esse ceticismo, mas agora estou vendo as coisas de modo diferente.
E por que veio, então, da primeira vez? Já que achava o tarô uma bobagem?
Essa minha ex-namorada, nós tivemos uma relação difícil, no fim. Brigas feias, coisas de que não tenho nenhuma saudade. Depois fiquei sabendo que ela morreu num acidente de carro. Ela era muito nova, ainda.
Ah – que tristeza, lamento.
Os olhos amendoados da taróloga aterrissam nos meus. Ela parece tão doce.
Pego uma das passas do pratinho, levo à boca, mastigo. Doce. A aliança de ouro em minha mão esquerda incomoda.
É muito raro eu vir ao Largo do Machado hoje em dia, continuo. Minha vida é toda lá pelo Recreio e pela Barra, mas naquela tarde, há duas semanas, calhou de ter que vir até aqui a trabalho e fiquei pensando muito na Simone. Era esse o nome da minha ex-namorada, Simone. Quando um garoto me entregou o folheto com a sua propaganda na rua, achei que devia vir, que era um modo de prestar uma homenagem a ela. Não sei. É como se alguma coisa tivesse tomado a decisão por mim.
Renata se levanta, vai até a janela que dá para a praça.
A gente nunca sabe o motivo de certas decisões, ela concorda comigo. É como se fossem mesmo tomadas não por nós, mas por alguma entidade, algo externo à gente.
Levanto-me e me aproximo dela.
Preciso te dizer uma coisa, Renata. Desculpe se vai parecer meio súbito. Mas não consigo tirar você da cabeça desde que estive aqui pela primeira vez.
Ela não se vira para mim. Vejo-a de perfil e é óbvia a tensão em seu rosto. A situação não é simples, ela sabe que sou casado, mas não quero parecer leviano, como se fosse só mais um cara a fim de levá-la para a cama (imagino que deve haver muitos, aliás nem sei se ela é comprometida com alguém, deve ser). Estou genuinamente interessado na Renata, embora para além disso nada mais esteja claro para mim.
Volto a pensar na carta do enforcado, a de número doze – volto a pensar em destino, indecisão, renúncia, sacrifício, possibilidade de mudança de vida.
Como ela é bonita. Passo a mão de leve pelos seus cabelos, ela não se afasta: promessa. Estou a ponto de beijá-la, mas então ela volta para junto da mesa, começa a guardar o baralho.
Também tenho pensado muito em você, diz, sem me fitar nos olhos. Mas é preciso respeitar o tempo das coisas, tudo está acontecendo depressa demais. Acho melhor você ir embora, agora, e combinamos de nos reencontrar um pouco mais adiante. Há tantas coisas na minha própria vida pessoal que preciso definir, tantas coisas.
Você me telefona? Adoraria que telefonasse, digo.
Deixo o número do meu celular e, ao descer, flutuo no elevador como se fosse um menino. Vou voltar, é claro, para mais uma consulta, o quanto antes. Voltaria amanhã, se pudesse. Voltaria dali a meia hora.
Renúncia, sacrifício, indecisão. Entro em casa e naquela noite faço amor com a minha mulher pensando furiosamente na Renata. Aliás, não faço amor nenhum, tento identificar o amor no gesto mas depois de doze anos nosso amor virou uma digressão. Empresa Casamento Ltda, pelo bem das crianças. Quando exatamente é que a gente assina embaixo disso? Ou será que não assina, necessariamente – será que o de acordo é dado à nossa revelia, mais uma decisão que alguma coisa toma por nós?
Minha situação é a mais comum do mundo e eu sei. Sou mais um cinquentão de saco cheio da vida e da família, louco de vontade de experimentar algo diferente. Mas será que a minha mulher também não está de saco cheio?, eu me pergunto. Deve estar. Impossível não estar.
Penso no tarô, mais uma vez, quando acordo – momento iminente em que será preciso derrubar velhas estruturas, disse a carta da torre. Tudo faz sentido. Preciso rever a Renata logo.
Três dias depois ela me telefona, à tarde, e me pergunta se tenho um minuto. Fecho a porta da minha sala.
Claro, podemos falar.
Estive pensando em nós dois. Acho que precisamos nos ver de novo, ela diz.
Sim, também acho.
Já vislumbro a Renata entre os meus braços. Quero conhecê-la, saber tudo a seu respeito, mas podemos começar assim, ela entre os meus braços. Lembro-me da camiseta colada no corpo. Penso nas minhas mãos correndo por ali. Aliás, correndo não, penso nas minhas mãos se demorando ali. Sobre a camiseta, sob a camiseta, livrando-a da camiseta e do resto, com calma. Imagino o tecido raspando nos bicos dos seus seios. Depois decidiremos o que virá em seguida.
Você pode vir me ver na próxima semana? ela me pergunta.
Mas é claro, respondo. Claro que sim.
Na terça tenho clientes até as sete. Venha em seguida, teremos tempo. É possível?
Invento uma desculpa em casa e chego ao Largo do Machado com quase uma hora de antecedência, na data marcada. Difícil calcular o tempo que vai levar quando você se desloca no Rio de Janeiro, ainda mais quando tem que cruzar a cidade de uma ponta a outra. E eu não podia me dar ao luxo de chegar atrasado.
Ao contrário das minhas últimas duas visitas, hoje faz tempo bom. O Largo do Machado está de volta ao normal. As mesas de jogos estão todas ocupadas, uma dúzia de pessoas se reveza nos aparelhos de ginástica, há gente sentada nas bordas do chafariz desativado. Hordas de pombos sobre as pedras portuguesas. Não sei quem me contou, uma vez, que o nome Largo do Machado veio de um açougue que havia ali, com um grande machado na fachada, ainda no começo do século XIX. Lembro-me de que um pivete uma vez assaltou a Simone com um caco de vidro quando ela saía do Banco 24 Horas, ali do lado do supermercado. Faço hora andando pela praça, confraternizando com as coisas, penso mais uma vez em ir ver o meu antigo prédio e mais uma vez desisto: o meu passado não tem graça. Sobretudo hoje. Prefiro parar e ficar assistindo a um jovem tocando saxofone, durante uns instantes. Isso não se via quando morei ali. O Largo do Machado está bem mais ajeitadinho do que na minha época, mesmo com o mendigo dormindo junto ao chafariz. Em certas partes do Rio de Janeiro você se acostuma com os mendigos dormindo na rua, vai fazer o quê. Compro flores para a Renata num dos quiosques.
Espero passar um pouco das sete horas e subo.
Que bom que você veio, ela diz, ao abrir a porta.
Foi ótimo você ter ligado, respondo.
Entrego-lhe as flores e a abraço demoradamente, sinto seu perfume, mas sei que preciso ir com calma. Intuo que com a Renata é assim.
Hoje não temos o baralho do tarô entre nós. A esta altura, porém, já até comecei a pensar nas cartas como cúmplices. Estou pronto para mudar de vida. Poderia ser um adolescente com uma mochila nas costas e uma passagem só de ida para algum lugar na mão.
Renata me oferece o chá habitual, traz a chaleira com água quente e a caixinha com os envelopes para que eu escolha. Sentamo-nos à mesa, o tarô silencioso em sua embalagem – o tarô fica embrulhado num pano de seda, dentro de uma caixa de madeira, como já observei antes.
Cubro a mão da Renata com a minha. Ela não recua. Começa a falar de sua vida, a voz doce rimando com os olhos doces. Fala durante um bom tempo. Conta do trabalho, depois finalmente do coração. Tem alguém, como eu imaginava: um namorado de alguns anos, mas as coisas não vão bem entre os dois. Desde que entrei ali para minha primeira consulta, diz, sentiu uma conexão especial entre mim e ela.
Mas já me envolvi com um homem casado antes e sofri muito, ela adverte.
Vamos para a cama primeiro, depois pensamos no resto, tenho vontade de lhe propor. Estamos no Rio de Janeiro, no século XXI, a gente precisa fazer o test drive das relações, antes de pensar em qualquer outra coisa, não? Em vez disso, digo que sou casado faz doze anos e não é um casamento feliz. Já quase não há sexo entre mim e a minha mulher. Tantas vezes as pessoas continuam juntas só por causa dos filhos, acrescento. Sinto-me um imbecil ao dizer isso, mas ela faz que sim.
Era assim com esse outro homem com quem me envolvi. Gostei muito dele. Só que no fim ele preferiu continuar casado. A maioria prefere.
Outra história clássica, penso. Decido que vou me livrar dos clássicos de uma vez por todas, e vai ser já.
Tenho que tomar muito cuidado com os homens, diz a Renata, com um tom ligeiramente mais desafiador.
Sorrio. Garota adorável.
Não precisa tomar cuidado comigo, digo.
Você é casado. A história é a mesma.
Casamentos não são para sempre. Quem sabe o que o dia de amanhã vai trazer?
Me fala da sua mulher.
Ah. Eu preferia continuar falando de você.
Não, não, me fala dela. O que ela faz da vida, por exemplo.
É esteticista. Tem uma pequena clínica de estética no Recreio.
Deve ser bonita. Esteticistas estão sempre se cuidando.
Ela não é feia, mas de todo modo isso não importa.
Eu acho que sou muito ingênua com os homens, ela diz. Me envolvo rapidamente, me decepciono com a mesma rapidez.
Mas pode confiar em mim. É diferente. Estou interessado em você de verdade, não sou como aquele outro sujeito.
Ela sorri também, cobre nossas mãos com a outra mão. Afago-a. Acaricio seu pulso. Sinto seus ossos, a textura de sua pele fina.
Minha mãe, ela me diz. Minha mãe também era ingênua com os homens. Com você, por exemplo, ela foi uma idiota.
Recuo diante da afirmação estranha. A mãe dela, uma idiota comigo?
Ela morreu por sua causa, Renata continua. Mas você não sabia disso, é claro. Ela estava grávida quando você a deixou e sumiu.
Sua mãe estava grávida?
Sim, minha mãe, Simone, que gostava de jogar tarô, não foi o que você me disse? Que morreu num desastre de carro há muitos anos.
Recolho minha mão depressa, como se ela fosse uma gafe. De repente, está tudo errado. Plano bem concebido que fica na teoria.
Não sei se estou entendendo.
Não está? Explico, ela diz. Minha mãe estava grávida quando você se mandou sem deixar um único número de telefone.
Nossa relação estava muito ruim mesmo, difícil, eu não estava...
Mas isso não se faz. Você sabia que ela talvez estivesse grávida.
Renata abre a caixa do tarô, desembrulha o baralho, dobra com cuidado o pano roxo de seda. Embaralha as cartas e tira uma. Coloca sobre a mesa.
O louco, diz ela. O arcano sem número.
Se ela estava grávida, como você me diz, estava grávida – de você?
Ela morreu num acidente de carro, é o que dizem. A verdade é que ela se esborrachou de propósito. Por sua causa. E morreu, mas eu não. Ela estava grávida quando sofreu o acidente. Quando causou o acidente para nos matar a nós duas. Há exatos 28 anos.
Não tenho para onde olhar, então fico olhando para a carta do louco invertida sobre a mesa.
Fui criada pela minha tia. Que tentou de todas as maneiras entrar em contato com você, sem sucesso. Você desapareceu.
A Simone era uma pessoa muito difícil. Eu já tinha tentado me separar dela antes, era sempre um drama, ela aparecia na portaria do meu prédio, me perseguia, e...
Você sabia que ela talvez estivesse grávida.
Fico em silêncio. As palavras se retiraram em debandada. É verdade o que a Renata me diz: a irmã da Simone me telefonou uma vez, de fato, assim que eu e ela nos separamos. Disse que era possível que a Simone estivesse grávida. Faltava fazer o teste, mas era possível. Naquele momento pensei, com desespero, na hipótese de criar um vínculo desses com a Simone, para sempre. Um filho com ela! Foi quando aceitei o emprego em Belo Horizonte. Anos mais tarde, me contaram que a Simone tinha morrido num acidente de carro, mas não estavam a par dos detalhes e eu também não queria saber. Primeiro foi o choque, depois, confesso, certo alívio. Não devia haver criança nenhuma, do contrário eu teria ficado sabendo. Não teria? A gente sempre acaba sabendo dessas coisas, cedo ou tarde, não? Cedo ou tarde.
O louco é o arcano sem número, diz a Renata, depois do meu longo silêncio. Às vezes lhe atribuem o número zero. O zero é o número que não altera nenhuma adição. Na multiplicação, ele transforma tudo em si mesmo. Absorve os outros números. Veja aqui, no baralho que eu uso, o louco caminha sem saber para um precipício. Mas é uma boa carta. Gosto muito do louco. Está vendo que leva uma flor na mão esquerda? Isso significa que sabe apreciar a beleza. E esse seu andar descuidado e alegre é como o de uma criança à vontade no mundo. Veja que leva também um cajado, que pode representar a renúncia e a sabedoria. O louco sempre esteve fora das normas sociais, sempre pôde dizer e fazer o que lhe passa pela cabeça.
Ela desliza o dedo pelas bordas da carta. As unhas bem-feitas.
Penso na carta de número doze, o enforcado, o homem pendurado naquela posição incômoda, de cabeça para baixo, amarrado por um dos pés. Há um estouro lá fora, na rua, e pela janela vejo os pombos em revoada.
Depois me vem uma ânsia de vômito fortíssima, e é somente então, olhando para a minha xícara vazia e para a xícara da Renata, ainda cheia até a borda, que compreendo toda a gravidade do meu erro. Corro para a porta, que está destrancada, e dali para o elevador, que demora a chegar. Quando abre as portas, está vazio.

Aperto o botão do térreo. Sinto dores lancinantes no estômago. Preciso que alguém me leve com urgência ao pronto-socorro mais próximo. Cambaleio pela galeria, e quando chego à calçada ainda consigo ver um menino distribuindo papeizinhos: Compro ouro, pago na hora. As pessoas estão olhando para mim. Depois disso o Largo do Machado fica escuro feito breu, e já não enxergo mais nada, nem os pombos, nem os velhos, nem os quiosques de flores, nem as ciganas – mas essas já foram embora dali faz tempo.


Conto extraído de  “O Sucesso”, finalista do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas/Contos.
Foto de Adriana: Julie Harris



Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro. Romancista, poeta e contista, é autora, entre outros livros, dos poemas de Parte da paisagem e dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Um beijo de colombinaRakushishaAzul corvo (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent) e Hanói (um dos livros do ano do jornal O Globo). Publicou também algumas obras para crianças, como Língua de trapos (prêmio de autor revelação da FNLIJ). Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países. Seus poemas e contos saíram em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta. Morou na França, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos - onde vive atualmente, na cidade de Austin.
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