A última vaca do mundo
pasta na santíssima paz
do que já não existe.
Goteja leite sobre a grama
porque agora nada germina –
o que está está,
nenhum avião vai cruzar
o tão estreito braço de céu
entre duas bordas de pasto
que amadureceu para universo.
No meio, calada,
a última vaca do mundo.
Agora dura para sempre
este naco de capim
anterior ou próximo.
Agora dura para sempre,
“tudo que morreu, morre
ou ainda vai morrer”,
rumina a última vaca
do mundo.
DUAS COMPOSIÇÕES DESOLADAS
I.
De onde venho trago
costume de escavar nas
tripas da vontade quando
calha de ser brusca queda
meu dia prisioneiro de
maré baixa no impossível
rochoso do aqui termina
tudo, pelo menos você
tentou, eticétera, é triste.
O desejo nasce do estômago
para jazer sempre famélico,
fedendo na consciência.
II.
Olham-se por tempo
demais direto nos
olhos tão sem querer
que silenciam gesto
palavra mundo tudo
só no longo mirar.
Olham-se tão sem
querer tão sem amor
sem saber que não se
notam que ninguém
mesmo nem liga e
soa um trovão.
Começa a chover.
ELOGIO À DERROTA
(a um hamster caolho, há muito defunto)
I.
Muito do Hagakure,
meu amigo,
acabou datado como os cabelos
e a honra daqueles senhores
orgulhosos demais
para serem seus vizinhos
em Sorocaba, Tatuí,
São Paulo, Presidente Prudente
ou qualquer município
minimamente decente
nas últimas semanas
deste verão perdido.
O que tento dizer é
(dois-pontos)
ponha uma pedra
para sempre sobre
tsujigiri mas
lembre-se da morte,
porque tem coisa que
sai de moda mas
você para sempre vai
transcender a consciência
direto pro todo domínio
de coisa nenhuma.
II.
Pense na morte porque
do parto ou do café
que esfriou é um pulo,
de sua mãe não restou
nada desde a mudança
e daí para trás é apenas
suposição desnecessária.
Pense na morte durante
sua cagada matinal –
após o primeiro cigarro
antes do pão com manteiga –
enquanto é tudo suspenso
sobre o dia e sobre a louça.
O dia não existe,
aliás,
e sentido não passa de
superstição besta
(dois-pontos)
pense na morte porque
qualquer caminho é o caminho.
(pontuar para além seria preconceito)
III.
Pense nela
agora que não quero mais palco –
após a comunicação falhar
toda palavra é só passatempo.
O que tento dizer é que
Sal Buscema e Dostoiéviski,
Vincent Price ou Baudelaire,
urgente se faz que
dê tudo na mesma.
IV.
Só pense na morte
chegada faz tanto
agora que você partiu
há pelo menos dez anos.
Você estava correto quando
fugia da gaiola na madrugada
pelo simples querer o lado de fora.
V.
Ultimamente só desenho retratos
que acabam sempre, todos, no lixo.
Mas não me arrependo.
Abraços e recomendações carinhosas,
não deixe nunca de não ser.
EU E VOCÊ
Quando acontecer
e vai acontecer,
tão certo quanto
é certo que aquela estrela
já foi para o saco
enquanto dinossauros
ainda cagavam seus cocôs
que agora são coprólitos,
de tudo sobre o solo
sob nossos quatro pés
queimar como se
o porvir fosse piada
de criança um pouco lenta
e depois restarmos ossos
egoístas porque tão secos
de carne sonho e sangue,
de toda possibilidade, portanto,
espalhados sobre a vasta
fritadeira incogniscível
do fim de tudo,
quando Hélio soprar aquela pluma
(ou vai saber qual acidente mais grave
e tão mais definitivo nos abaterá),
a minha coisa alguma
e a sua coisa alguma
entralaçadas por todo o nunca
é tudo que posso prometer.
*
Irrefreável,
minha senhora,
carcomido pela noite
passada em plena estrada –
noite longa sem foda
nem sono e muito
menos cama nossa
sob teto de um quarto
Irrefreável,
caralho,
carcomido pela noite
quente roída por
sobressaltos e relâmpagos –
noite dura seca morta
gritada feito um soco
por semanas de fome
daquilo que não era
direto no peito deste
que humildemente assola
seu passeio tranquilo pela
vida impoluta dos que
não são tão proscritos
Irrefreável,
chuchuzinho,
carcomido entre os olhos
por dentro e pelo fundo
com uma talvez fúria
com talvez um desespero
que afago em meu bolso
entre bom-dia e como-vai
NIHIL
no pênis humano falta um osso
se levarmos em conta a maioria
dos mamíferos e dos primatas e dos símios
(nunca superiores porque não há nada de
superior num cóccix que não haveria
numa cauda nem no córtex
que depois de mergulhado na
água quente com talvez algum azeite
é só proteína e gordura
e tostado é carbono
e fragmentado até
a última partícula
não é nada além
de todo o resto)
no pênis humano falta um osso
e o que sobra é o pênis humano
pedaço de pirâmide auto referida
bloco de sentido numa pilha
de blocos de sentido que montamos
porque se não há sentido
não há homem não há
equação apenas universo mudo
sem nome bater de palmas
que zune no vazio
energia que esmurra energia
matéria não é nada que
não energia condensada
só energia sem pênis ou
osso ou um macho que
nomeie o mundo para
afirmar o pênis ou o dono do pênis
dá tudo na mesma sem
aliás afirmação alguma
o pênis humano pouco importa
segurem suas calças senhores
o pênis humano é um naco
de carne que pende de
um naco de carne que
confraterniza com outros
nacos de
segurem suas calças senhores
carne quase sempre com pênis
pendurados em cascata
quase infinita de
pêndulos minúsculos
segurem suas calças senhores
tão minúsculos aquém ou além
de seu domínio inventado que
agora segurem muito bem
segurem suas calças agora
aproximados contra o cosmo
e contra todo esse nada
são tudo menos
homem calça e pênis
muito menos
que merda nenhuma
Galeria: Hermin Abramovitch
Marcelo Pierotti nasceu em Tatuí e vive em Sorocaba, cidade que escolheu como sua. Já morou em outros aglomerados humanos no interior e por algum tempo em São Paulo, de onde fugiu com o filho pequeno há pouco. É autor de poemas espalhados por revistas como Raimundo e Escamandr, do livro Domingo no Matadouro (publicado na primeira Coleção Patuscada, da Editora Patuá) e de mais alguns outros volumes que podem (ou não) ser publicados logo mais. Gosta de algumas coisas e desgosta de tantas outras como, por exemplo, falar de si.