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Lançamento em São Paulo de "Gosto de Osso" de Paulo Pignanelli

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Serviço:
Livro: Gosto de Osso
Editora: Singularidade
Lançamento: 01/09 a partir das 19 hs
Local: Negro Café: Rua Oscar Freire, 2284, Pinheiros, São Paulo.


Conheça 2 poemas do livro:

Magnólias

Quando
te entornas de luz
amadureces

Pele
polpa encarnada
doce gineceu

Ocre
apodrecida

a terra te devora


Marginal

À noite
os cães vigiam
o escuro

A lua livre
vaga solta
acima dos muros




5 poemas de "Animal extremo" de Prisca Agustoni

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1.

Faz tempo nos observamos através das janelas.
Esses quadrados no horizonte, espelhos pendurados no ar, enfileirados como crianças à espera do recreio.
Telas na minha direção, onde nada acontece.

Um homem migra em silêncio da primeira para a segunda janela, o celular na mão.

No andar de baixo, duas silhuetas que gesticulam, as cortinas fechadas, me lembram que a vida é a maior das ficções. Há fantasmas, sem dúvida, no vão da escada do prédio.
Nas janelas internas também.

O mundo, às vezes, acena. Basta inserir a senha correta: dá sinais de vida, curte meu sorriso, some outra vez. Apoia-se na sacada da janela que dá para minha mesa, minha cama, o festim do corpo, roça meus lábios

apesar dos vidros.



2.

Temos pele de vidro
e desejo de sobra

resta saber se não trinca
a pele sob a mão e seu tato:

as carícias como peixes
cobrem-nos de escamas.

Temos sorrisos e vidas
emolduradas

caso seja necessário
substituir meu vazio pelo teu

e enfiar-te no meu mundo
como roupa nova.

Temos palavras prontas
e livros que embelezam as estantes

caso seja necessário
inventar uma nova sabedoria

uma mera troca, rápida
como apertar essa tecla

e tudo deletar.
 

3.

As janelas estão sempre abertas: as pessoas acenam, simulacros de um roteiro por escrever.

São ligeiras, as personagens dessa existência trêmula. Procuram aconchego, a fascinação por um cílio, um gesto, uma ruga inconfessa. Corpos de gesso flutuam num mundo sem peso nem suor.
Cruzamos nosso olhar pelo monitor, as palavras tremem como folhas secas caídas num poço.
Alguém envia um abraço, um poema, uma fotografia. A água do poço estremece e as folhas desaparecem.

Em outro ponto, alguém fecha as persianas, e apaga-se a luz do seu estar ali, vigilante, agarrado à onda que nos mantém, contra o abismo das latitudes e da força de gravidade,

cúmplices, apesar de tudo. 



4.


Meus dedos deslizam ágeis
produzem vibrações
sobre teu desejo

há curvas, linhas retas
regiões perigosas no corpo
que não posso alcançar,

  palavras e zonas de sombra
contidas na distância
que preciso acionar.

É quase um jogo
meus dedos na tela
enquanto as crianças
pulam amarelinha
no pátio da escola

bem agora.

 

5.


Apesar de tudo, nos contemplamos através dessas telas, invisíveis aos olhos do mundo.As janelas do prédio em frente se apagam aos poucos, engolidas pela noite,

 enquanto as outras, ilhas no arquipélago do meu quarto, permanecem ligadas.

Volto àquelas onde sempre haverá alguém disposto a enviar algum sinal de vida.
Um amigo toca à porta,
acende uma vela,
constrói um barco de papel

ou quem sabe, à sua maneira, apenas pede socorro

Galeria: Ralph Gibson





Prisca Agustonié poeta, tradutora, ficcionista e autora de literatura infantojuvenil. Vive entre a Suíça e o Brasil, em Juiz de Fora, cidade onde trabalha como professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal. Escreve em italiano, francês e português. Acaba de publicar dois livros de poesia no Brasil, Casa dos ossos, Macondo, 2017 e Animal Extremo, Patuá, 2017. Antes disso, publicou em 2016 o livro Hora Zeropela Patuá  e em 2015 a coletânea em francês Un ciel provisoire pela editora suíça Samizdat, de Genebra. Recebeu em 2013 o Premio do Governo Suíço para a poesia para a elaboração de um projeto literário (em italiano).
 

5 poemas de "Contramaré" de Samara Volpony

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Ilustração: Brenda Waworg

à memória de um rio

há um rio morto em meu rosto no meu asco
no meu grito
em minha bocahá um rio seco
há um rio sepultado em meu peito
– pântano de açoites– de escombroe espanto esterio é feito
há um rio morto em meu rosto brejo semacordes
na sedeque aosolhoslava
e no peito doshomensdispersos:
  lama lodo larva


decreto

em minha língua há uma rima fria
um versoque me abocanha interdita de minha pátria desconhecidadosmeus
estapalavrame acompanha entre meusdentes
há uma loucapalavra que me engole
um grito que me estrangula estrangeirade tantaspátrias pelosséculose línguas proclamo:
minha palavranão tem censura.
   

tarântulas

meu estômagoocoroncavazios
não há dente que triture nem mandíbula que suportetão vilalimento
o útero secochoraa saudadedo filho que não vem
– não há raízesque me finquem nestaterra deserdada!
até astarântulasmansamente atravessema rua e povoamo quarto comsuacarade desdém.
eu, porém, inútil
entre teiasque me fazemrefém guardo útero e estômago
que não tiverama sorteque as   tarântulastêm.


testemunha

asviaspor onde passo compõemmeusrastros sobreascalçadasdo tédio nascemfloresamarguradas
a cidadedorme o sonorancoroso dasespécies
cruae angustiadaseguea vida e eu permaneço
– testemunhaimóvele efêmera da bruta existência.



contramaré
(musicadopor Gildomar Marinho)

na ordenaçãodaságuas me exponho
qual Narcisoa semirar e seamar à exaustão
miro-me no espelhoesculpido à tua imagem
nasturvaságuas:
nossaordenação
ah, esterio encravadoem meu peito ai, esterio vazandoem meusolhos
a desaguar
no caisdasnossasesperas
qual palavrahaveráde enganar o tempo?
que palavratua não seperderá?
quaispalavrasvãshaveremosde cantar?



Autora do livro de poemas Contramaré (Patuá, 2017), Samara Volponyé o pseudônimo de Samara Laís Silva, artista nascida em Arari/MA, à beira do rio Mearim, no dia 28 de agosto de 1990. Coautora do livro Poesia Arariense: coletânea poética em rede. Vencedora do 4º Concurso Internacional Poesia Urbana, promovido pelo Centro Universitário de Brusque – UNIFEB e 2ª colocada no 2º Concurso Internacional de Poesia da Casa de Espanha. Tem poemas publicados na Revista de Literatura e Arte – Walking In Briarcliff, no livro da Tribo/2017-2018 e nas edições 11 e 12 do Jornal de Poesia Contemporânea ‒ O Casulo.


NOVO LIVRO

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NUNO RAMOS




[ADEUS, CAVALO]

4 TEXTOS












1.
A máscara branca


Parecia muito velho por trás da máscara que uma sequência de cremes ia deixando branca. Para cobrir a calvície, seu assistente trouxe uma tiara de onde pendia, até a cintura, um manto aveludado. Quando se levantou, as mãos trêmulas, ocupou todo o camarim, surpreendentemente alto.

Darei a entrevista em cena, pronunciou gravemente, e seguiu para a sala de relaxamento, onde costumava adormecer antes de iniciar a performance. Girando o polegar na lateral da própria testa, o assistente piscou para o repórter.

Tinha tempo, agora. Passeou entre as coxias e as grutas aveludadas do velho teatro até encontrar seu lugar. Quando pousou os olhos no programa, onde metade do rosto do ator estava impressa, as luzes diminuíram e uma campainha soou. O teatro encheu-se dessa energia suspensa que centenas de adultos liberam ao sentarem-se silenciosamente no escuro, como crianças obedientes. Uma trompa veio das coxias; ruídos de uma cortina se abrindo, de passos e mecanismos arrastados; algo tombou e o palco acendeu-se.

O ator estava deitado. Vestia um quimono. Flocos parecidos com neve caíam sobre ele enquanto o resto do tablado permanecia intacto. Fazia gestos sutis com a mão e a perna direitas, pequenos tremores, como se saísse de uma convulsão. Então, levantou-se de um salto. Sua estatura, que espantara o jornalista no camarim, surpreendia agora toda a plateia. Mesmo entre as enormes cortinas de veludo do velho teatro, parecia imenso. Colocou-se na posição de largada para uma corrida de cem metros rasos, levantando a cabeça para olhar à frente. Em seguida, efetivamente largou. Correu desajeitadamente, sempre seguido pelos flocos de neve, até o proscênio. O jornalista espantou-se com a violência daquela máscara que vira de perto. Agora enxergava ali as penas de um pássaro desconhecido, a textura e a mobilidade de um cortinado rococó.

Fui um rouxinol, uma pedra, um peixe carnudo na corrente fria.

O silêncio prolongado em seguida à frase, dita de modo pausado e grave, pesou sobre todos. Estendeu os braços. Suas mãos, de tão largas, pareciam tocar as extremidades do palco. Dobrou os joelhos e caminhou num largo círculo, executando uma sequência tai chi. Então, bem no centro desse círculo, abandonou os braços e a cabeça, relaxando completamente, dobrando os joelhos e deixando a máscara cair. Sua boca, flexionada para baixo, indicava desprezo ou repreensão. Com a mão direita levantou a tiara, soltando a frouxa cabeleira e mostrando as laterais da calvície. Envolto agora, como uma múmia, em tiras de gaze fina, abriu os botões na altura do ombro, derrubando o quimono e pisando sobre ele enquanto caminhava até a pontinha do palco. Um leve sorriso pousou em seus lábios. Com os braços em arco sobre a cabeça, ergueu todo o peso do corpo na ponta do pé descalço, enquanto suspendia a outra perna até que ficasse paralela ao chão. Olhava fixamente para nós, sem qualquer vestígio de dor. Apoiando novamente os pés, numa lenta e larga mesura, pronunciou a última palavra que diria naquela noite – Obrigado. Voltando as costas à plateia (a neve continuava a cair sobre ele), mostrando as nádegas alvas que as fitas de gaze já não cobriam, caminhou para o centro do tablado enquanto as cortinas de veludo se fechavam. Menos de dez minutos tinham se passado. Não ocorreu a ninguém bater palmas, vaiar ou dizer alguma coisa. Com as luzes ainda apagadas, uma plateia incrivelmente dócil arrastou-se para fora no mais perfeito silêncio.







 RAMOS, Nuno — Só Lâmina







2.
Cavalo


(Desmaio aparente. Um bar. O velho apoiado na fórmica bege. Um pouco de chuva escorre por sua pele enquanto caminha na calçada. Fala baixo e para dentro, mas com uma empostação tão perfeita que todos parecem compreender.)

O bege dessa fórmica

(gesto lento e majestoso)

sou eu. Tenho a voz de um cavalo. CAVALO CONTINÊNCIA

Minha garganta é cheia de rosas. E muco. Ouça: vou contar. Mas fora, completamente fora

(gesto, apontando as coisas ao seu redor)

do tablado. Que palavra! Não digo nada ali. Nunca mais. Eu, o mizão do Nelson Cavaquinho. Uns restos de tabaco. Moedas. Uns restos de umas pétalas no bolso. Calma. OK. Mas é isso.

(pausa)

É isso. Os restos de um coro. Ouça, amigo. Pedaço de um caniço CAVALO TROLOLÓ

pensante. Órfico, grego. Pedaço de uma haste que sofre e lembra.  Ali à minha frente. As ervas que crescem na duna. O antigo verão. A umidade da praia. Os dois se aproximaram. Seguiram a mesma pessoa. Ela. Parecia feliz em caminhar à frente deles. Até que uma luz enjoada, amarela, cobriu os corpos dos três enquanto rolavam na areia. Ok, estrelas. Neblina também. A noite veio e a ruína ao fundo tornou-se uma casa deserta de vidros quebrados. Sonhou com aquilo. Dormiu longamente. Eu. Apagou. Apaguei. Deixou os dois sozinhos. Eu deixei. Saímos depois pela praia. A umidade da praia. Eu e ela, depois. Mas ele já tinha provado seus CAVALO VISÃO

mamilos. Longamente. Agora ela era uma assombração e eu a consolá-la. Senta aqui. Malditas estrelasNeblina também. Os ombros pra frente. As omoplatas. Me deixa. Mas eu nem toquei você. Toque agora. Eu quero.Não posso. Toque assim mesmo. Toque sem querer. Não possoAlô e adeus simultâneos. Pegue agora. Toque neles. Aperte eles. Mas ele já pegou em meu lugar. Foi a ele que você amou. Desgraça. Eu não queria. Me deixe aqui

(gesto)

olhando as ok, estrelas. Vá para casa. Não posso. Me toque. Não posso. Então não faça mais nada.

(Senta no meio-fio. Gesto lento até esticar as pernas sobre o asfalto. “Põe essas pernas pra dentro, velho. Onde você mora?”.)

Ele teve ela em meu lugar. Mas eu podia

(pausa)

encená-los. Que palavra! Que palavra! Cheira a veludo, poeira, bolor. Bambolina, plateia, lanterninha. Podia imitá-los. Recebê-los em meu

(gesto, o braço direito se erguendo como uma saudação)

corpo incomum. Moro aqui. Exatamente aqui. Você vai me roubar?

(Enquanto sobem, repara que a fórmica do lentíssimo elevador tem a mesma tonalidade do balcão onde o ator estava. “Vou colocar você na cama, velho”.)

Na cama, não. Na banheira. Ali. A torneira é assim mesmo. Vai. Abre. Abre meu cinto, também. Eu pago.

(gesto)

Ó que cheio de rugas. Esquenta isso. É meio marrom, mesmo. Ferrugem. Cheio de dobras. Meu Deus! Era tão esguio. E pulava feito um cavalo empinando. Algo assim. Isso. Exatamente. Um pergaminho elegante, todo esticado.

Pronto para. Aqueles papéis. Cuidado. Vou ler pra você. Agora. Olha. Eu pago.

(atira as roupas num canto)

Sou eu o pagante, agora. Que palavra! Um peixe carnudo na água fria, já disse isso? O mizão do violão do Nelson Cavaquinho. Uma voz, todas elas. Um cavalo. Eu podia encená-los. Esfria isso. Vou ler pra você.

(gesto, a água da banheira até o peito, a mão com um maço de papéis apoiada na borda, como o Marat, de David)

Cuidado comigo.

(dorme)








RAMOS, Nuno — Só Lâmina







5.
Noite de estreia (“O cerejal”)


Plantamos o cerejal na luz. Cuidamos dele todos os dias. Para que nosso servo o comprasse; para que ficasse com ele; para que depois o derrubasse. Havia terra no palco. Uma montanha de terra.

(gesto, jogando água da banheira para cima e virando alguns barquinhos)

Aqui. Na luz. Pisávamos a terra, nossa terra, com o devido temor e reverência – como verdadeiros proprietários. Árvores enormes se espalhavam pelo palco, como se tivessem nascido lá. Mais de vinte cerejais floridos, os troncos enraizados furando o tablado até o chão do teatro. “Mamãe querida! Eu te abençoo. Você ainda tem seu coração! Puro, belo, bondoso. Plantaremos um outro jardim, mais esplêndido do que este.” E demos início à derrubada antes que nosso servo o fizesse, proprietários raivosos diante da ruína. Lançamos os troncos sobre as tábuas do palco, raízes para cima, com grande estrondo. Nenhuma árvore ficou de pé. A plateia assustada afastou-se das primeiras filas. Atiramos pazadas de terra sobre ela. Comemos as cerejas de boca aberta, cuspindo longe os caroços, tentando atingir as pessoas. Consumimos todo o cerejal na estreia, antes que nosso servo o fizesse. De modo que nunca houve uma segunda apresentação.








RAMOS, Nuno — Só Lâmina







15.
Adeus, cavalo


O jornalista enxergou afinal o que tinha diante dos olhos: um velho seminu e enrugado, encolhido na extremidade do colchão, fitando a parede. Vamos, é hora de dormir, disse, temeroso, enquanto empurrava seus ombros para baixo. Cobriu-o com o edredom que encontrou aos pés da cama, enfiando as bordas cuidadosamente sob seu corpo, e esperou até que parasse de tremer. Fechou seus olhos como se faz a um defunto, murmurou boa noite e saiu do quarto, sorrateiro. Chegando ao saguão, esperou que o portão abrisse e conferiu se o bloco de anotações estava no bolso. A cidade acordava. Ergueu a mão para um táxi. Adeus, cavalo.











NUNO RAMOS

Nasceu em 1960, em São Paulo, onde vive e trabalha. Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo, é pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Começou a pintar em 1984, quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7. Desde então tem exposto regularmente no Brasil e no exterior. Participou da Bienal de Veneza de 1995, onde foi o artista representante do pavilhão brasileiro, e das Bienais Internacionais de São Paulo de 1985, 1989, 1994 e 2010. Em 2006, recebeu, pelo conjunto da obra, o Grant Award da Barnett and Annalee Newman Foundation.

Dentre as exposições individuais que fez, destacam-se, em 2010, as produzidas na Gallery 32, em Londres, Inglaterra; no Galpão Fortes Vilaça, em São Paulo, Brasil; e no MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil. Em 2009, apresenta Mar morto (Soap Opera 2) na Galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro. Em 2008, participa do projeto Respiração, da Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, com a exposição Pergunte ao. No mesmo ano, Asa branca, Funarte, Belo Horizonte, Brasil; Fodasefoice, Galpão Fortes Vilaça; Bandeira branca, CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília, Brasil, e Galeria Bernardo Marques, Lisboa, Portugal. Em 2006, Ai de mim! , Galeria Fortes Vilaça, São Paulo; Vai, vai, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo. Em 2004, Morte das casas, CCBB, São Paulo e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 2003, O que são as horas?, MAP - Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte. Em 2002, Luz negra, Galeria Fortes Vilaça, e Terra da sede, Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo. Em 1999 e 2000, realizou a primeira retrospectiva de sua obra, apresentada no Centro de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, e no MAM, São Paulo, respectivamente. Ainda em 2000, ParaGoeldi 2, Casa Vermelha, Curitiba, Brasil. Em 1996, As vezes, reconstrução da galeria da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, Brasil, com modelo 10% menor que o original e em seu próprio interior; e ParaGoeldi, AS Studio, São Paulo. Em 1995, 46ª Bienal de Veneza, Itália; Milky Way, Brooke Alexander Art Gallery, Nova York, EUA. Em 1994, Montes, Sesc Pompéia, São Paulo. No final de 1992, apresenta, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, 111, obra produzida sob o impacto do assassinato de 111 presidiários na invasão da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, ocorrida em outubro daquele ano. Também em 1992, expõe no Centro de Estudos Brasileiros, Assunção, Paraguai.


Nas exposições coletivas de que participou destacam-se, em 2010, a XXIX Bienal Internacional de São Paulo. Em 2008, De perto e de longe - Paralela 08, Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo; e God Is Design, Galpão Fortes Vilaça. Em 2005, 5ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 29º Panorama de arte brasileira, MAM, São Paulo. Em 2004, Afinidades e diversidades, Projeto Carlton Encontro com Arte, São Paulo - exposição conjunta com o americano Frank Stella, influência importante em sua obra. Em 2003, Novas aquisições 2003 - Coleção Gilberto Chateubriand, MAM, Rio de Janeiro, e Marcantonio Vilaça - Passaporte contemporâneo, MAC/USP - Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Em 2000, O trabalho do artista, Instituto Itaú Cultural, São Paulo; e a exposição itinerante Ultrabaroque - Aspects of Post Latin American Art, Museum of Comtemporary Art, San Diego, EUA/Museu de Arte de Porto Rico, Porto Rico/Chicago Cultural Center, Chicago, EUA/Atarazanas, Valência, Espanha/Forth Worth Museum of Modern Art, São Francisco, EUA/Museum of Modern Art, Walker Art Center, Mineápolis, EUA. Em 1999, Por que Duchamp? , Paço das Artes, São Paulo. Em 1997, Fronteiras, Itaú Cultural, São Paulo. Em 1994, Mácula, XXII Bienal Internacional de São Paulo. Em 1992, Latin American Artists of the 20th Century, Sevilha, Espanha/Centre Pompidou, Paris, França/Colônia, Alemanha/MOMA - Museum of Modern Art, Nova York, EUA. Em 1989, XX Bienal Internacional de São Paulo. Em 1988, Brasil já, Museum Morsbraich, Leverkusen; Sprengel Museum Hannover, Hannover; e Galeria Landergirokasse, Stuttgart, todos na Alemanha. No mesmo ano, Modernidade, Musée de La Ville de Paris, França, e MAM, São Paulo. Em 1986, 2ª Bienal de La Habana, Havana, Cuba. Em 1985, Casa 7, MAM, Rio de Janeiro, e MAC/USP, São Paulo; XVIII Bienal Internacional de São Paulo. Em 1984, 2º Salão de Arte Contemporânea em São Paulo - Prêmio de Aquisição, São Paulo.


Nuno Ramos também trabalhou com obras ao ar livre em que o elemento natural - o mar, a rocha, o solo, o tempo - era parte integrante do trabalho. Aqui, destacam-se Iluminai os terreiros (2006); Marémobília, Marécaixão e Minuano (2000); Calado e Dois irmãos (2003); Cabreúva (2001); Fornalha (1997); e Matacão (1996).

Como escritor, publicou Sermões (2015), Junco (2011), O mau vidraceiro (2010), Ó (2008), Ensaio geral (2007), O pão do corvo (2001) e Cujo (1993).

Como cineasta, roteirizou e codirigiu com Clima, em 2002, os curtas-metragens Luz negra (ParaNelson 1) Duas horas (ParaNelson 1) . Em 2004, roteirizou e dirigiu o curta Alvorada. Roteirizou e codirigiu com Clima e Gustavo Moura o curta Casco, também em 2004, e Iluminai os terreiros, em 2006.

Recebeu em 2009, o Prêmio Portugal Telecom de Literatura por Ó. Em 2006, ganhou o Grant Award da Bernett and Annalee Newman Foundation; o 2º Prêmio Bravo! Prime de Cultura, Artes Plásticas - Exposição; e o Prêmio Mário Pedrosa - ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. Em 2000, venceu o concurso El Olimpo - Parque de La memoria, para a construção, em Buenos Aires, de monumento em memória aos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Em 1987, recebeu a 1ª Bolsa Émile Eddé de Artes Plásticas do MAC/USP. E, em 1986, o Painting Prize, 6th New Delhi Triennial, Nova Délhi, Índia.


























versos mórbidos de Diego Callazans

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Vincent van Gogh. Caveira com Cigarro Aceso. 1886.


[saída]

pra nós a quem
a vida é tudo,
o mundo nem vale muito.

tento Pasárgada,
seu rei me chuta.
resta a sacada de fuga.

no que escrevi,
cá permaneço
mas só até o fim do apreço.


...............................


[solução]

em breve enfim eu sei que estarei farto
de tanto murro dar em faca cega.
em vez dos punhos, usarei a língua.
o sangue espesso cerrará meus lábios
e a paz já não terá como sair.


.................................


[I.M.L.]

eu sei que um dia serei encontrado
por triste novato de perícia técnica
nalgum beco imundo, tripa e língua afora,
ainda agarrado à garrafa de vodca.

sei que isso é absurdo: lá estar inda a vodca!


............................


[nota biográfica]

na irreverência devida,
a irrelevância abracei.

sem polifêmica cica,
eu aceitei ser ninguém.

só meus demônios me leem.


.......................................


[epitáfio]

para algo, enfim, tu serves: adubo.
deixaste, para higiênico uso,
uns esforçados escritos.
e hoje morres olvido,
um figurante a mais em teu enredo.
nem mesmo tu foste a teu próprio enterro.


..................................


Diego Callazans nasceu em Ilhéus, em julho de 1982, e mora em Aracaju desde abril de 1987. É autor dos livros A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013) e Nódoa (7 Letras, 2015), além do minilivro Blasfêmias (7 Letras, 2015). Publicou poemas e contos em diversas revistas literárias brasileiras. É editor convidado das revistas literárias Mallarmargens e Singularidade, bem comoeditor-curador da seção sergipana da vindoura revista de poesia Paupéria. Tem poemas incluídos nos livros É agora como nunca: Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira (lançado no Brasil pela Companhia das Letras e em Portugal pela Cotovia, sendo ambas as edições de 2017) eNaquela Língua: Cem poemas e alguns mais: Antologia da Novíssima Poesia Brasileira (lançado em Portugal pela Elsinore, em 2016). Seu primeiro livro de contos e seu terceiro livro de versos serão publicados em breve.

4 POEMAS DA GAVETA DE ACAPU: Eleazar Venancio Carrias

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Ilustração: Armando Siba



A visão
  
Todas as noites
me levanto pela madrugada,
quando ainda sonham os galos,
e ouço o silêncio me chamando lá fora.

Pela fresta da janela
vejo a rua despida
e o frio a lamber-lhe as curvas.

Todas as noites se repete o convite.

E no dia seguinte
me culpo por abandonar a noite
sozinha
lá fora.

  
Poema biográfico
  
Quando cheguei nesta cidade,
eu vim do mato,
eu era um bicho.

Havia carrapatos na minha voz
(mas o meu corpo era puro).

Apesar do aspecto exótico
ninguém se interessou
pelo novo animal.

Talvez fosse o cheiro de terra vermelha
e esterco de galinha a causa
dessa não integração social.

Quando cheguei nesta cidade,
eu era do mato,
eu vim feliz.

Meu pai colocou-me na escola.
Minha mãe levava-me à igreja.
A curiosidade pôs-me na rua.

O tempo matutou,
nasceram-me pelos onde eu não queria,
conheci Jó e as Lamentações.

Hoje sou um bicho civilizado.
Mas o cheiro de esterco não saiu.

  
Os dias com ele

Vinte e cinco anos vivi com meu pai.
9.203 dias vi o sol interiorano
desenhar um arco sobre seu crânio,
queimando-lhe os cabelos.
Queimou tanto que se criaram filetes de cinza branca.
E em todo esse tempo nunca deixei escapar
sequer uma tímida palavra de amor.

Vinte e cinco anos é quase um tempo perdido.
Nunca o beijei.

Mas ainda sinto seu amor carnal me puxando pelo braço
para me dar uma surra.

Vinte e cinco anos me salvando.


Canto

Eu busco sempre
que canto
fazer o meu corpo santo
tal qual a carne
do linho.

Mas sinto sempre
que canto
a amargura sem pranto
dos copos de barro
sem vinho.

Pois sei que sempre
que canto
há um maior desencanto
do que a morte
no ninho.
 




Eleazar VenancioCarrias nasceu em 1977, no coração da Amazônia. Publicou Quatro Gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura na categoria Poesia, de onde foram selecionados os poemas aqui publicados. Regras de Fuga(2017), seu segundo livro, saiu pela E-Galáxia e está disponível para download no Kindle/Amazon.

O cotidiano político de Ana Peluso

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Ilustração:Estojinho_Necessaire Brasil_ArteJan



Como dona da casa e gestora única, informo: as meias foram lavadas aleatoriamente antes de acabar a água, então só tem pé amarela do mesmo lado. Poeticamente: a caminhada será bicolor. Do almoço, só deu para fazer o arroz porque eu só lembrei de tirar o feijão do freezer há uma hora atrás, e o microondas está quebrado. Eu ainda não aprendi a soprar quente. Também não deu pra fazer salada. Mas tem ovo. Só arrumei uma (a minha) cama pois tocou o telefone e era o nosso secretário de relações exteriores. Passamos a tarde fofocando. A Suécia está estocando ar. Ainda não deu para fazer o armarinho de primeiros socorros porque o João não trouxe as tábuas, nem telefonou. Também está tudo sujo e empoeirado porque os removedores de poeira entraram em greve. Estou em negociação com dois sindicatos. Mandei colocar todos os livros de todos os quartos no sótão para ajudar na diminuição do acúmulo de pós; aí entenda duas, três, vezes quem puder. O chafariz do terraço foi interditado pela vigilância sanitária, e assim vai permanecer, até que todos concordem em custear a manutenção do mesmo. Peço que se faça saber se todos querem mesmo a poda das árvores do quintal. Não tem mais nem um miquinho em nenhum galho, mas os gatos ainda sobem lá. Não sei se isso justifica o entupimento das calhas. A partir da semana que vem a horta dará lugar a um galinheiro. Teremos mais ovos. Para manter horta e galinheiro é preciso derrubar as árvores. O vizinho do lado entrou na justiça pedindo quatro metros de terreno. O que significa que, caso ele ganhe, ficaremos apenas com um terço da garagem. O guarda de rua pediu aumento e por isso estou subindo o aluguel das beliches. Favor escrever abaixo com caneta azul ou preta: “Estou de acordo, assinado.”. Tecle confirma e deixe na saladeira da sala.




Ana Peluso, 1966, escritora, poeta, webdesigner, autora de 70 POEMAS, Editora Patuá (2014). Com prosa e poesia tem participado de diversas antologias desde 2002 // http://anapeluso.tumblr.com //.

7 POEMAS DE JUCA FILHO

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acordo suado em plena madrugada,
escuto no silencio o som da valsa negra,
por entre o véu difuso onde rasteja a naja
do mau pressentimento e do desassossego,
acordo, é madrugada, e longe canta
o vento que levou meu pai em sua vela branca,
e dói em algum lugar a dor que não se cala,
aquela que lacera, não tem cura e nada sara,
a vida mói os grãos do sonho, é madrugada,
na testa pulsa, gélido, o suor da lua ingrata.

(para meu pai e guinga.
sobre uma noite em novembro de 97)


*  *  *


Sou poeta,
não asceta,
emoções me tingem
a alma, às vezes preta,
me desaprendo o que sou,
vou, solitário no mundo,
busco o amor que liberta
e ele me inquieta,        
               no fundo.

(1992)


*  *  *


nise, fernando, emygdio, 
carlos, bispo, raphael,
recebam de almas abertas
o grande pequeno joe
que agora sobe às encruzas
da esquina do inferno com o céu
nu e bradando sem dentes
que o mundo que foi se acabou.

deixem-no cantar no ônibus
com seu violão de uma corda só,
invocando exus e anjos,
desafinando sem dó,
no coro dos descontentes
uivando que o caos resiste,
unindo as coisas contrárias
num tempo que não existe.

torquato, van gogh, artaud,
janis e jones e jim,
a fender branca de Hendrix
boiando num solo sem fim,
acendam todas agora ,
mais um poeta ascendeu
é Jorge que sentou praça
na cavalaria de Deus.


(para o poeta da tv pinel,
Jorge "Joe" Romano)


*  *  *


Onde iriam me encontrar, 
brilhando no escuro da hora, 
na cidade sem futuro, 
reino solitário e intenso, 
visto de um pombal suspenso?

Feito Bispo do Rosário 
narro a meu Deus todas elas :
as feras as belas 
as novas as pequenas 
as brancas as magrelas 
as doidas as morenas
as donzelas 
as tiranas 
as amargas 
as amenas 
as singelas 
as insanas 
as profanas
as serenas
as suecas as baianas
as cubanas e as helenas
as divinas e as mundanas 
as bacanas e as obscenas 
as etéreas e as sacanas
as vestais e as terrenas
as negras e as arianas
as romanas e as romenas
as ungidas 
as untadas 
as loucas e as recatadas
as danadas e as sagradas
caçadoras e caçadas
as reais e as tentadas 
as quase nunca alcançadas 
mas todas 
elas 
sonhadas.

E todas 
elas
amadas. 


(2003)


*  *  *


Rosa
como
você
é
gosto
sa
úmid
a
pétal
a
cheir
osa
que a
gota
de
orval
ho
goza.



(1992)


*  *  *

saber que a Lua
que flutua em Paris
é a mesma que alua
os gatos na minha rua
faz minha noite feliz.


(2014)


*  *  *

canção caipira destroça o dia
nuvens de chumbo no lombo da cidade
rio de janeiro por que eu ando triste
assim,
ferido do estilhaço
da granada
da saudade?

(1989)





Imagem: "Saudade", pintura de Alvaro Dobladez 


*    *    *




foto: Francileide Saraiva



Juca Filho, 61, é poeta, instrumentista, arranjador, compositor, professor, fotógrafo e roteirista da Rede Globo desde 1996.

ROBERTO DUTRA JR. RESENHA SAMARONE LIMA

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A INVENÇÃO DO DESERTO


            Certa vez, esbarrei com uma frase atribuída a Gabriel Garcia Márquez, minha memória não recupera todas suas palavras, mas a imagem da frase eu carrego comigo até hoje. Algo de precisão de aforismo, que dizia que envelhecer é não mais poder conversar com os amigos. Não me esqueci disso, ainda que a frase tenha se perdido na íntegra. A memória parece mesmo um deserto, tudo está lá, mesmo que coberto por dunas, invisível, não desafiamos sua aridez justamente porque sabermos que encontraremos algo que irá cristalizar o tempo, e não queremos ficar ali, presos.
            A invenção do deserto, de Samarone Lima, que saiu em 2016, pela Confraria do Vento, é um excepcional apanhado da produção recente do poeta, que foi premiado pelo seu livro anterior, O aquário desenterrado. A invenção do desertoé uma crônica da vida, da travessia da poesia pela perda de modo que a arte traga para si – para os que vivem – o belo, mesmo diante da tragédia. É um livro que destaca o poeta como aquele que carrega o deserto e se insurge em poesia diante de sua inevitabilidade.
            Samarone Lima divide seu livro em três partes. Na parte 1: Poemas das margens, traz imanente ao texto a figura do rio, isto é, continuidade, ele próprio e outro, à medida que corre, ainda que tocado pela margem anterior, ou as vidas que o definiram. A parte 2, Poemas dedicados, parentes e amigos surgem e o recorte do poeta é preciso em recuperar a imagem simples e representativa, que fala de um, mas fala de todos. O mesmo percebe-se na parte 3, Poemas acontecidos.
O primeiro poema de A invenção do deserto, “Manual de espera e solidão”, é a chave, ou melhor o cantil indispensável à travessia, como encontra-se em seus versos:  “Como o silêncio sem rastros/ .../ Como que aquilo que se perde/ Não virasse outro abismo –/ O de ter sido/ .../ Para saber-se vivo”. A consciência da vida é o entendimento do contraponto da morte. Todo sopro, ainda que diga do fim, na verdade celebra a continuidade da vida. É da natureza humana a dualidade e vida/morte é uma de muitas dualidades, mas no poema “A invenção do deserto”, isto está representado nos versos: “Nos percalços das manhãs/ Na idolatria do vento em estado puro/ Estava só”.
            O uso conciso da linguagem sobressai em A invenção do deserto. A clareza e a simplicidade das palavras leva o leitor rapidamente a mergulhar na atmosfera do livro e partilhar suas imagens principais, como o deserto, o rio, animais, salas, ruas, o mar e ainda o vaqueiro e o lavrador do sertão nordestino. Os versos do poema “Às margens do sangue”: “Propus um rio./ Ele surgiu sem nome,/ Diferente dos outros que sonhei que vivi.”, parecem acenar para uma abertura de interpretação metapoética, onde o rio é o livro que se propõe. O rio também é o tempo correndo e páginas passando. Abre-se em possibilidades e os nomes passam a ser personagens integrando o mesmo universo poético do autor. O ato de propor, na instância da palavra, é fiat lux da realidade literária. Assim, deparamos com o poema “Um poema, um mundo”, que diz: “Um poema:/ Ali nascia um mundo.”, e temos reiterada a premissa ontológica da obra – faz-se de palavras a vida.
            Seria o deserto de Samarone Lima a consciência de si? Certamente não cabe aqui arriscar uma resposta. É o papel da literatura – da arte – ser o trampolim para o questionamento. Uma constatação é apontada no poema “Clarão”: “Não sei te responder:// Apenas lembro/ E vivo mais. ” Há uma desértica solidão nos poemas deste livro de Samarone Lima, poemas que nos ao mesmo tempo que nos abraçam com suas histórias, também nos lembram que estamos sempre no fluxo-refluxo das marés da vida e também nossas lembranças. Tudo muda e o deserto sempre se anuncia. Creio que podemos dizer que A invenção do deserto traz muito da solidão que nos torna humanos, que atravessa nossa memória e nos afirma a vida, além do deserto.
            Há muito que ler em reler neste afiado livro de Samarone Lima. Surpreende pela vasta gama de sendas que os poemas abrem e pela leveza da linguagem, rica de imagens que dizem do cotidiano de todos nós, ainda que vindas do cotidiano (inventado?) do autor. Há que se esperar que o autor tenha mais a nos dizer nos livros vindouros.

            Boas leituras.


*    *    *


Roberto Dutra Jr. é um escritor em resistência, carioca e deslocado. Mestre em Letras, foi editor da Revista Escrita, contribuiu para o jornal Panorama da Palavra e escreveu artigos acadêmicos. Atualmente oferece consultorias literárias, e leciona quase na clandestinidade. É colunista regular do blog literário Zonadapalavra (www.zonadapalavra.wordpress.com). Colabora com a revista Mallarmargens e usa o Instagram (@robertodutrajr) para experimentos fotográficos com a palavra. Alguns de seus poemas foram publicados na antologia Escriptonita (Patuá, 2016). Leia mais textos do autor aqui.



Foto: Beto Figueiroa
Samarone Lima é jornalista e escritor. Nasceu no Crato, Ceará, e vive no Recife desde 1987. É autor dos livros jornalísticos Zé: José Carlos Novaes da Mata Machado - reportagem biográfica, Clamor - a vitória de uma conspiração brasileira e Estuário - crônicas do Recife. Foi finalista do prêmio Jabuti com o livro-reportagem Viagem ao crepúsculo, em 2010, e com A praça azul & Tempo de vidro, de poesia, em 2013.

KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS RESENHA EDMAR MONTEIRO FILHO

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LABIRINTOS INTERTEXTUAIS



            Raras são as obras ficcionais em que seus autores tentam estabelecer um diálogo com textos de outros escritores. Mais raro ainda quando nesse diálogo se inclui também uma referencialidade expressa à obra de um artista plástico. E raríssimo quando de um tal projeto, resulta uma obra de alta qualidade como é o livro de contos  “Atlas do impossível” de Edmar Monteiro Filho. Aércio Flavio Consolin na orelha do volume escreve que Edmar construiu seu livro “sob a égide de artistas que apuseram ao real uma reinterpretação subversiva pela própria natureza, derivando para uma suprarrealidade que atiça a compreensão e alarga-a para ampliar a perplexidade a cada aproximação”.
            Mas de quem estamos falando? Que mistério é esse afinal? Vale a pena tecermos algumas considerações, ainda que brevíssimas (como impõem as limitações de uma resenha), sobre a arte de um Maurits Cornelis Escher (1898-1972), e também sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), referências explícitas no livro, e como essas duas vertentes artísticas foram apropriadas, reinterpretadas, transfiguradas enfim, a receber novos e atualizados significados no “Atlas do impossível” de Monteiro Filho.
            Escher produziu uma série de obras de arte que provocam verdadeira confusão mental no observador porque exploram o infinito e as metamorfoses geradas pela repetição de padrões geométricos gerando imprevisíveis efeitos de ilusão de ótica (vide logo de saída a obra “Para cima e para baixo” que foi utilizada na capa do livro de Edmar). Todas, absolutamente todas as suas criações merecem uma segunda mirada. À primeira vista, os desenhos parecem possíveis, até mesmo comuns, mas segredos escondidos em suas formas são facilmente detectados após um olhar mais atento. Já em outras obras, observamos imagens que nos remetem à metamorfose e à transformação -  pássaros que viram peixes e vice-versa, e cubos que viram pássaros no seu método de ladrilhamento e ilusão de ótica. Este artista parece obcecado pelas limitações do olho humano, e buscou obstinadamente transpor para as duas dimensões da folha de papel as perspectivas imperceptíveis à visão humana. Escher, assim, produz conhecimento subjetivo. Aquele que constrói representações mentais a partir de uma série de procedimentos metodológicos capazes de expressá-las através de formas e símbolos. O que, de fato, nossos olhos são capazes de enxergar? As criações de Escher com suas xilogravuras, litografias e meios-tons, nos convidam a reflexões, das quais deriva uma busca pelo conhecimento do que realmente somos. Edmar Monteiro Filho, além das gravuras de Escher, lança mão também de alguns de seus pensamentos. Um deles figura como epígrafe ao conto “Ordem e caos”: “Não consigo parar de brincar com nossas certezas incontestáveis”. Aí o pensamento subversivo desse artista das “construções impossíveis”.
            “Atlas” foi o último livro que Jorge Luis Borges lançou. Nele revela-se todo seu amor pelas viagens e pelo desconhecido. Dono de uma prosa elegante e, literalmente fantástica, este escritor conseguiu, além de produzir uma literatura fantástica e abstrata (universalmente reconhecida), criar um mundo particular dotado de uma estética pessoal e conceitos próprios. Entre eles, o reafirmado nesta sua última obra: “Não há um único homem que não seja um descobridor”. Todos somos decifradores do mundo. Interpretamos e editamos nossas vidas sempre atribuindo novos significados, estabelecendo laços, desvelando o desconhecido que nos atordoa a existência.
            Flanando entre a filosofia e a fantasia, não esquecendo o lirismo poético, e o rigor ensaísta acadêmico, Borges em sua vasta obra nos instiga e ensina a duvidar dos dogmas, expõe a fragilidade das verdades irrestritas, joga com a hipertextualidade, que propicia a navegação entre vários textos e enredos, tornando a leitura de suas obras mais relativa e abrangente, gerando enfim diferentes interpretações e visões. Um autor que tem no fantástico sua maior identidade criativa. E é ante essa envolvência labiríntica da obra de Borges que vamos afinal chegar à:
            Edmar Monteiro Filho que reuniu 15 contos em seu “Atlas do impossível”. Cada um deles com títulos idênticos aos das telas de Escher que também são reproduzidas no volume. E não somente; redimensiona temas explorados também por Borges, atualizando-os dentro de situações que envolvem o homem contemporâneo, este ser errante que procura (?) o inverso do enraizamento absoluto, ou seja, aquele que põe as suas raízes em movimento, encenando-as em contextos e formatos heterogêneos, negando-lhes qualquer valor como origem, transcodificando imagens, transplantando comportamentos. O homem fluido, figura central da nossa precária era em que realidade, ficção e virtualidade se sobrepõem. Entrechocam-se numa baderna geral na qual se confundem realidade, virtualidade, máquinas e homens. Em que o “rigor da ciência” (novamente Borges), e a tal funcionalidade da tecnologia não convencem nem resolvem os elementares anseios humanos.
            Impossível e mesmo desnecessário citar todos os contos, até porque o leitor perspicaz encontrará ecos das ligações e confluências (e ainda outras a serem descobertas por cada leitura em particular). Entretanto citemos a título de exemplificação da versatilidade e criatividade do autor, apenas um.
            Jorge Luis Borges escreveu em seu livro “This Craft of Verse” de 1992: “Por vezes à noite há um rosto / Que nos olha do fundo de um espelho / E a arte deve ser como esse espelho / Que nos mostra o nosso próprio rosto”. Edmar Monteiro Filho abre seu livro com o conto “Autorretrato em espelho esférico” inspirado em gravura homônima de Escher, e, certamente, sugestionado pelo poema de Borges. É um pequeno conto (apenas uma página) onde outros desdobramentos do ato de mirar-se em um espelho ocorrem apontando para direções insuspeitadas. Ali fica-nos a sensação do metafórico despertar do próprio EU que se conscientiza, se desenvolve e invade. Observe-se o início: “No princípio caminhava lento, seu passo imperceptível sugeria imobilidade. Chegava e seguia sem ser notado, paciente e mudo. Sua tarefa invisível notava-se em repentinas surpresas. Assim, a espera  - se havia – era eternidades”. Logo em seguida vemos que este “sujeito oculto”, vai “ganhando intimidades”, muda-se para casa ao lado, e depois, mais próximo ainda. Até que “hoje estende os braços adiante, caminha num andar vigoroso, não demonstra mais qualquer indecisão. Insaciável, devora tudo o que encontra”. O desfecho dessa pequena narrativa, de alguém (quem?) que se mira em um espelho esférico é memorável. E fica-nos a pergunta atroz na consciência: como fugir de uma esfera?
                  A organização espacial dos textos borgesianos em sua multiplicidade criativa, remete à configuração de um arquipélago interrelacional e metarrelacional. Um cosmos composto por inúmeros microcosmos independentes e simultaneamente ponto de chegada e de partida, de criação pela recriação. Este o trabalho que Edmar Ribeiro Filho propõe, e que, por incrível que possa parecer, amplia em seu “Atlas do impossível”. No âmago das ficções apresentadas por este autor, um ponto fulcral: a condição humana trabalhada com uma fantástica habilidade narrativa. Estamos diante de um escritor com pleno domínio dos aspectos que envolvem a estruturação de suas histórias (onde ecoa um lirismo cativante). Articula e combina múltiplas linguagens, verbais e não verbais para criar sistemas autorrepresentativos onde a fusão interativa de elementos propicia uma maior consistência e eficiência de um fazer literário que o coloca entre os mais expressivos prosadores brasileiros da atualidade.    
     
      Livro: “Atlas do impossível”, contos de Edmar Monteiro Filho, Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2017. 246 p.
      ISBN 978-85-5833-175-3

*    *    *



Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos,  Embriagado Intelecto e outros contos e  Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional -  Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.



Edmar Monteiro Filho nasceu em São Paulo e reside em Amparo (SP). É escritor, trabalha no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e é pesquisador ligado a Unicamp na área de literatura através do Mestrado, além de ser formado em Ciências Biomédicas pela Escola Paulista de Medicina e em História pela Fundação Municipal de Ensino de Bragança Paulista e ministrar Oficina Literária de Contos. Publicações: Este lado para cima (poesia; edição do autor; 1993); Halma húmida (poesia; edição do autor; 1997); Aquários (conto; Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura; 1997; prêmio Cruz e Sousa de Literatura); Às vésperas do incêndio (conto; edição do autor; 2000; Prêmio Cidade de Belo Horizonte, edição 1998); Azande (novela; edição do autor; 2004), A lápis (poesia; edição do autor; 2009). Está entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Livro do Ano (autores estreantes) com Fita azul (Babel Editora; 2011). Também ganhou o concurso Guimarães Rosa em 1997 e o Concurso de Contos Luiz Vilela em 2003. 


A dicção poética de Francisco Gomes em "Face a face ao combate de dentro" por Dílson Lages Monteiro

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colagem/ilustração: por Francisco Gomes



Poesia que usa os ritmos do corpo e da palavra poética para autoexplicar-se – e, autoexplicando-se, explora as sensações, angústias e prazeres do verbo e da pele.  Metalinguístico em sua essência e, sobretudo, sinestésico, o poeta piauiense Francisco Gomes, em seu terceiro livro de poesia, o longo poema-fragmento “Face a face ao combate de dentro” (Editora Kazuá – SP, 2016), faz do ofício da escritura poética, a partir de duas instâncias enunciativas, a experiência erótico-amorosa e o labor da construção do poema, o laboratório sentimental para a manifestação dos mais variados reflexos interiores.

A dicção de Gomes assinala-se, no plano temático-discursivo, pela imersão nos sentidos do tempo presente. Esse traço peculiar de sua poética já era percebido em seu segundo livro, “Aos ossos do ofício o ócio”, em cuja orelha destacou o crítico literário e professor aposentado da UFRJ Rogel Samuel: “O tempo é o seu balanço perene, o tempo e suas ciladas, os seus mapas, o tempo em fatias, tudo transitório (...) o tema de Francisco Gomes é a própria poesia, aceno ao sol, desvoar de pássaros, a poesia é a sua fratura do azul noturno, sua porta está sempre aberta para a significação”.

Seguindo a mesma perspectiva, trata-se toda a nova obra, por analogia, de metáfora para o amor erótico e para a criação literária. Nesse projeto de fusão dessas duas matrizes existenciais, abundam na dicção tensa de Gomes as sugestões imagéticas oriundas da ansiedade, dos abismos e vazios que tanto a vivência erótica quanto a escritura poemática geram – nos múltiplos graus de incertezas, mistérios e (in)satisfações.

O corpo, a pulsação instintiva da satisfação de viver e o sublime alívio para as dores do cotidiano. A palavra, refúgio, para que a voz lírica habite no exílio do verbo. Corpo e palavra unidos, inseparáveis, os instrumentos para superar os desafios ou tensões da convivência: “Sílaba por sílaba / golpeio a palavra / - de frente / recebo de volta o impacto / bem no fundo / do âmago / da mente.”

Lembra Lúcia Santaella que, na poesia, “os interstícios da palavra e da imagem visual e sonora sempre foram levados a níveis de engenhosidade surpreendentes”. A propósito, entre as muitas virtudes da dicção de Francisco Gomes, destaca-se a exploração imagético-visual do signo, a fim de alcançar os efeitos de sentido, a seu modo, peculiares à poesia pós-moderna de hoje. A dimensão plástica do léxico, aliada à colagem, dissolve-se em toda a obra em jogos de sinestesia agradáveis à imaginação.

No dizer de Adriano Lobão Aragão, Francisco Gomes constitui sua labuta autoral “na exploração plástica e não limitadora do léxico, na fragmentação das palavras, conferindo-lhes significados e autonomia formal”. O cerne de seus versos, pois, está na renovação lexical e na fuga da sintaxe comportada, de quem busca abrigar-se em seu “(...) eu / toldo”.

A poesia de Gomes é movimento que rompe “a artéria do segundo”, “num desespero que reabre asas / para a calmaria / muscular da resistência”. Sua linguagem é, por isso, telegráfica, reproduzindo, no verso, a velocidade da vida moderna, em seu constante, insaciável e infinito renovar-se. Busca o poeta a utopia da linguagem exata, em desvios que ressignificam o metapoema, em versos como “a mor / fina dor amenizada”, ou na exploração do vocabulário científico.

Em sua poética, o léxico da ciência vale mais pelo plano da expressão. Vale mais o seu teor fônico, ora acelerando ou retardando o ritmo com que se lê os versos, ora multiplicando as sensações da escritura literária ou do amor. A palavra é corpo, organismo vivo, reanimado por metonímias que a ele se reportam por meio de palavras compostas que integram o exterior ao interior, coagulando tempos, ouvindo vazios, “no sabor amarelo / da saudade”.

Ler Francisco Gomesé suspender-se em imagens e ritmos bem particulares, que nos põem em contato com os estados superiores do sentimento – na materialidade do corpo: “Os números oxi / dando / voltas / na fuligem das horas /:re-tardamento da / áurea íris do espanto nos / quatro olhos que se olham / nus.”




Nascido a 14 de dezembro de 1973, em Barras (PI), Dílson Lages Monteiroé professor, crítico literário, poeta, romancista e membro da Academia Piauiense de Letras.Graduou-se em Letras (UESPI), especializou-se em Língua Portuguesa (PUC – SP) e em Revisão de Textos (PUC – MG). Produziu novela, crônica, ensaio, livro didático e conto infantil. Lançou os livros Mais hum (1995), Cabeceiras – a marcha das mudanças, coautoria (1995), Colmeia de concreto (1997), Os olhos do silêncio (1999), O sabor dos sentidos (2001), A metáfora em textos argumentativos (2001), Entretextos – artigos e entrevistas (2005), Texto argumentativo – teoria e prática (2007), Adiante dos olhos suspensos (2009), O morro da casa-grande (2009) e O rato da roupa de ouro (2013). Exerce o magistério, atuando no aprimoramento da competência linguística de alunos de Ensino Médio há mais de duas décadas. Dirige o “Laboratório de Redação Professor Dílson Lages Monteiro” e o Portal Entretextos. Dedica-se também à edição de livros.

A POÉTICA BRICOLEUR DE ROBERTO BICELLI

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"Just Because" - Michel Keck





pour Viviane
she isn’t real


Ben close dinamite &
sempre teus lábios matam.
ATENTION
                   
           ta bouche/  oui c’est legère
ta bouche dans mon corps y
quando tu m’aimes l’oeil d’un mythe
nous suit

VEM        VAS DIN HERBE?
       AHH!
Lá si mangiano los chicos
& luz na nuca/  Taverna de Drácula/
tentativa de homicídio/
adaga atravessando o coração de isopor.
o cérebro quente & carne forma imagens por pulsação.
it´s true, coração de isopor.
tour do amor mamífero
atravessado pelo amarelo tênue/ o vermelho/ o cavalo/ o verde/ o azul.
Achado por sorte,
como o amor, que derruba tua forma sensivelmente na morte.
Oblíquos, escalamos o engaste convulsivo da vida/
Avec amusement/ & margeando profundamente
o Trópico de Câncer.




Eco da Lógica


O ninho do João de Barro
    está no antiquário
a polução é uma poluição?
    os deuses astronautas…
E os Argonautas?
    Quo Vadis?
Ecologia: VADE MECUM
La Terra puzza, caro mio.
Me ne vado a Pasárgada
Dove sono amico Del Rei Manuel Bandeira
LA TERRA PUZZA
      “M’illumino
      d’immenso”
Si non è vero…





Kong 1933 mm


  Orgulho-me disso, sim senhor:
estive em Nova Iorque Quando King Kong
atacou New York. Tentei salvar a moça
roendo as unhas & King derrubando os aviões
         Tudos em vaões. Os esforços cinematográficos
estragam tudo.

5/75





Whether and if
Past are
Pastare
In lingua nostra
È pastaciutta y
Antipasto
Rolando o pneu na relva revolta o réu reinava na Dinamarca
TO KILL OR NOT TUPI
That’s the answer






Tyco Ticho no Fubrahe


Livrai-nos Deus da Corrução
Do Chaos da Anarchia
Da Excecionalidade
Tenhamos Tacto y Tecto
Façamos Gymnástica
Combatamos a Infecção
A Sciência a Sucção
Pas du tort W
Aplainemos a Língua
De Pycos Phalésyas y Promonthórios
Circunspeto Aspeto
Evitemos Italianizmos, Francezismo, Españolysmos
Y ultimamente o Abril Portucalense
Sejamos… fotográficos
Optimistas
Sociológicos
Nostálgicos
Sem Nevroses nem Zunzuns
No afã de que o flautim
Abafe o Uivo
Que vem de Nós
Para Mim.




"Like it or not" - Michel Keck







SPLEEN
STRESS







bandeira>cummings>dalí


atento

ao olhar oriente-ocidente

pedras de Pompéia

-mais fontes que gritos-

folhas leaves livres de outono

e. e. e. e.

fragmentos)

volvi a mim:

diga 33

tosse tosse tosse tosse

o senhor tem

um Salvador Dalí

no olho direito

e voyeurismo

no esquerdo






cantífona



Sus e Crouza
na lousa
viram estranhos símbolos no céu
IN HOC SIGNO VINCES
vozes veladas veludosas vozes
na voz do meu plangente
violão…

Quando Chico Alves morreu
1952
fui
de
alhures a nenhures
com um nó na garganta
ouvindo sua voz
de casa em casa
de carro em carro.






seja original
seja anti-herói








para Archangelo Ianelli


Andy Warhol
Andy Warhol
Art Noveau Ar Noveau
Ar Noveau!!!
Bauhaus! Bauhaus! Bauhaus!
 Dada só é Dada quando não é Dada
Piiiiiiiiiicasso
Piiiiiiiiiicasso
Piiiiiiiiiicazzo!
Leva o que trouxeste
Deus me benza com sua
Santíssima Cruz
Dos maus olhos, dos maus-olhados
&
de todo o mal
que quiserem me fazer
Se és de ferro, sou o aço
se és o demômio
Sou o embaraço.
DUCHAMP!!!




"Take it or leave" - Michel Keck



Roberto Bicelli (São Paulo, 1943) Poeta e romancista. Autor da coletânea poética Antes que eu me esqueça (1ª ed. Editora Feira de Poesia, 1977; 2ª ed. com novos poemas, Editora Córrego, 2017); do romance juvenil O colecionador de palavras (Ed. Contexto, 1987) e da narrativa Ego Trip: viajo e celebro a mim mesmo (Editora Livros de Safra/ Virgiliae, 2011). Com os amigos Roberto Piva, Claudio Willer e Antonio F. De Franceschi, formaram o “núcleo duro” dos novíssimos poetas paulistas dos anos 60, que influencia até hoje a poética nacional.

Contato: rbicelli@hotmail.com


Três poemas de Lia Sena

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imagem: mosthdwalpapers.com



Poemas de Lia Sena





Ventania

Escuta
ainda há lá fora
o sibilar do vento
ainda soa intermitente
o sino da capela
e a mansidão dos homens
que voltam ao campo.

Escuta
há uma imensidão de azul
pintando novo firmamento.
docemente
ainda cantam os pássaros
e há orvalho
a bordar o verde.

Escuta
ainda há uma mãe que chora
o filho que não volta.
ainda há fúria
nas cidades.
há um lamento turvando o sol
e aves de rapina que festejam.

Desculpa
não há só boas notícias
é vasto o mundo.
o que consola
é esse dedilhar do tempo
bordando auroras
mesmo onde não vinga
a vida.

Escuta
há um cálice que convida.
escolha o vinho
porque o sangue
há muito
mancha o mais branco dos linhos
encarde o branco das manhãs.


*

Impressões

a farpa do meu contentamento
não resvalará no osso - exposto -
não fincará dente na rebeldia
no déjà vu que invento e proclamo.
Qualquer engano, tomará a curva
da esquina. suspiros e ais, já estão
na cartilha linda que diagramei toda
em versos. só pra impressionar.
Vou viajar naquela canção escrita
naquele livro não lido - mas que lerei
um dia. nos filmes todos vistos. nos teatros
lotados de tantos espetáculos. a mala pronta
é só delírio. a foda inesquecível campeia
a casa. (será na escada?). o vulto que se move
é só cortina, centelha e perfume. saudade
é bicho besta que a gente puxa pelo rabo
arrasta e doma.


*

Ocupação

como entrará esse homem
nessa casa sem espaço?
como se dará o encontro
nesse corpo ainda atado
ocupado até o pescoço?
há de ser um tremendo alvoroço
a novidade.
aparecer assim no fim da tarde
esperar janta e regaço.
ai meu deus, o que é que eu faço?
se não desamarrei ainda aquele laço
se não tirei do criado-mudo
o retrato?
quando mais tarde no colchão estendidos
volúpia e cansaço.
tateará no escuro
um ménage à trois esquisito.
lá pelas entranhas carrego
o outro [ainda escondido].


Lia Senaé poeta, baiana. Atualmente reside em Itabuna. Publicou três livros: Pedaços (Ed, Interbahia 1988); Por Todo Risco (Edição independente, 2013) e Lume dos Anseios (Edições Mac, Coleção vinho e Poesia, 2014). Participou de diversas antologias. Recebeu menção honrosa no II Prêmio Sosígenes Costa de Poesia 2017. Colabora com o Projeto Versos de Mulher com frases e versos feministas para estampa em camisas, vendidas para custear o apoio e assistência a mulheres de baixa renda de Feira de Santana – BA. Formada em Letras pela Uefs e criadora do Sarau das Mulheres de Feira de Santana. Coorganizadora e participante da Antologia Outras Carolinas – Mulherio Baiano, que será lançada no evento nacional em João Pessoa, do Mulherio das Letras. 


5 poemas de Marcelo Labes

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estas paredes de tijolos
sobre os ombros

são edifícios
são calabouços

alguém que visse
diria como?

a contragosto
dos transeuntes

perambulo pelas
calçadas

e aguardo o toque
da caixa

a estreia da marcha
ao matadouro.



aforismo

os homens que atiram em pássaros
deles dizemos que perderam sua
humanidade

porém

o pássaro que caminha entre os homens
sem medo atravessa os passos
desafiador e faminto

o pássaro que caminha entre os homens
e desafia as pisadas dos homens
já é humano ele mesmo

ainda que pequenino.

***

será fim de tarde daqui a pouco
e veremos os suicidas fazendo fila
em cima da ponte do tamarindo
para decidir quem pula e quem não

levitei com valeriana à espera de um
sonho que não chegou nem chega nunca
o poder do reset, disse pra ela, o poder
de morrer e reviver mas zerado de imagens

o poder de morrer e viver
o poder de morrer e viver
o poder de viver e morrer

o direito de respirar tranquilo
luiza chega hoje e com ela
o oxigênio.


para celebrar aqueles almoços de domingo
uma carteira de cigarros daquele tempo em que eu
roubava os de meu pai de cima da estante da cozinha
(escaladas que eram a aventura incalculada)
agora essa
explosão de açúcar no sangue & cafeína & nicotina
para lembrar que limpeza é um conceito muito frágil
ainda que o mix-para-celebração se distancie dos estragos
das travessias em mar revolto de álcool & cocaína
veja que
limpeza é um conceito tão frágil como aquele menino
assustado quando o pai chamou pra passear e era tarde
o susto e o grito incontido sempre que o pneu trepava a
calçada sempre que a tarde se tornava madrugada
sempre
que eu sonhava com os gritos que eu daria na cara do vizinho
que enfiava o pau na boca daquele rapazinho que era
eu e era outro e era eu e era outro mas nunca terá
idade para ser assassino a não ser dos próprios sonhos
aventureiro do próprio desatino desbravador de insônias
e colossos que eu trago nos bolsos de uma calça de menino
queria
um banquete com mesa vasta a se perder de vista
onde sentassem os amigos e os inimigos antigos
(porque a consideração somente surge no oposto)
onde coubessem o homem que me pretendo e o menino
(porque as lacunas da história de um cabem nas rugas do outro)
onde sentássemos todos para comemorar as mazelas
(setembro não chegará se sucumbirmos a agosto)
porque
há que se enfrentar os monstros e comemorar o desalinho
depois dos dez primeiros tombos a gente aprende a cair sozinho
quando foi que desaprendi a andar pra frente.


***

não se trata de restar
petróleo posto que
franzinos e mirrados
quase nada restaria
se afogados no solo.

não se trata de virar
lenda: os dias já têm
em si muito mais do
necessário de dor que
exigem os poemas.

não se trata nem de
sobreviver: vida que
se vive a esmo nem
acredito que seja
mesmo vida.

porém
sabe-se lá.


Galeria: Robert Frank
Fotografia de Marcelo: Luíza Melo

 
Marcelo Labes nasceu em Blumenau-SC, em 1984. Autor de Falações[EdiFurb, 2008, poemas], Porque sim não é resposta [Antítese, Hemisfério Sul, 2015, poema], O filho da empregada [Antítese, Hemisfério Sul, 2016, poema] e Trapaça [Oito e Meio, 2016, poemas]. Participou da mostra Poesia Agora(edição carioca). Edita a revista O poema do poeta, onde publica originais manuscritos e processos de escrita de poetas e ficcionistas. Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e na página http://facebook.com/matematicaligraficamentira

Cinco poemas de Claudia Manzolillo

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imagem: wallpapercave.com



A POESIA DE CLAUDIA MANZOLILLO


CONCHAS

Um regalo do mar:
era amor
o que prometias
com o fio atado
no pescoço
conchas
ossos e cacos
areias movediças
o que prometias
era falso
como as palavras
escritas em papel
de seda
mas como doíam!

*

MIRAGEM

Ela estava ali.
Sentada com toda a dignidade que lhe cabia.
Era ébano seu traje.
Uma seda a envolvia desde a cabeça.
Apenas uma renda arrematava a saia longa,
quase rente aos pés. Descalços.
A burca escondia uma rainha etíope?
Perdida talvez em seus devaneios,
se deixava ao escuro da noite;
apenas a loucura a mantinha num imaginário
onde ela guardava seu castelo, suas riquezas
num punhado de sacolas plásticas,
noites afora.

*

TECIDO

Fragmentos
me tingem de azul
enquanto seda
Tramas me enlaçam
enquanto linho
Enquanto me embaraço
o tempo me desenrola
Viro tecido da memória.

*

DIÁRIO DE VIAGEM

em outra estação
dobrarei o tempo
roupas combinadas
peças de lingerie
lenços de cambraia

desembrulharei tudo
o que nesta vida-viagem
esqueci dentro da mala.

*

PÁSSARA

Naquele céu, dançava como podia.
Se a noite pedia um blues
Garganta de pássaro
Alma fluida
Esparzia sons
Pele eriçada
Jazz nos ouvidos
da lua.





Claudia Manzolilloé escritora, poeta, nascida no Rio de Janeiro. É licenciada em Letras (Português-Literaturas) e mestra em Literatura Brasileira pela UFRJ, com dissertação sobre a obra de Lygia Fagundes Telles. Professora de Língua e Literatura. Publicou A dona das palavras (Editora Penalux, 2015), agraciado com o Prêmio Humberto de Campos, no Concurso Internacional de Literatura, promovido pela UBE-RJ em 2016, na categoria contos. Premiada no Concurso Lila Ripoll de Poesia, promovido pela Assembleia Legislativa de Porto Alegre, em 2017. Participa das antologias de poesia: Blasfêmeas: mulheres de palavra; Terça ConVerso e Crocevia di versi.
 
 

 

Poemas e pinturas de Neuza Ladeira

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Pintura de Neuza Ladeira




Neuza Ladeira
Poemas e Pinturas



Nasci assim alegre

Não via o regalo do dia
Mas via vocês
Assim como me via
Mas vocês homens
Mostraram-me a vida
Que é reprimida construída
 




Todos os dias faço o café

Coloco a mesa
As xícaras em seus lugares
O faço sem discordar
Com prazer
Assim os discípulos de Buda
O fazem
Houve ali a benção do comunitário
Onde entender ao outro
E a nós mesmo
É essencial




Aquele passar das horas

Aquela graciosidade juvenil
Café com bolo e conversas de chocolate
Aquele falar maroto sem compromisso
Em bocas frescas de mulheres
No café da tarde




Sou pisciana e não sei nadar

O mar me inibe frente a seu gigantismo
Os rios correntes levam rápido
E as cachoeiras escorregam
Só em pequenas bacias e calmas águas
Banho-me





Na luz alaranjada crepuscular
Vejo homens de mãos dadas
Separando-se vagarosamente
Na despedida do dia










6 poemas de "No Puteiro" de Demétrio Panarotto

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Ilustração: Ayrton de Magalhaes


I


no puteiro da catarina
– tia do ariovaldi 
vizinha de tamanco 
do livro ao lado 
lido lodo luto
que cai geme dói
com as pulgas de colo 
que saltitavam lindas no circo da biblioteca – 
os porcos  sorriam
e batucavam fezes



                            II


no puteiro ela corria, tensa – com o cu na nuca e a boceta no dedão do pé – atrás dos livros que se extraviavam nas curvas do morro meio tenso meio mole. pra subir precisava de certo esforço, apoiava com o dedão. pra descer o esforço era dobrado, sustentava com a nuca. a recompensa era o verso. o verso. o verso. pensava numa seita. tanto preceito. uma versão. caída e carcomida pela leitura sorvia o corpo que lhe agenciava a vida.



III


no puteiro do leiteiro
de luto lutero desp(reza)
a vida seminua
do mar tinhoso
o que salga
o que lambe
o que futrica
as gomas de
mascar explodiam
porra nas cicatrizes 
caras meladas



IV


na porta do puteiro o aviso dizia: fechado que o leão de chácara morreu combatendo os inimigos. a trincheira foi montada na sede. sem bandeira. nem band aid. calcinhas penduradas nas espingardas eram souvenir. e a foto 3 por 4 do combatente era 5 por 7. o combate começou em espécie. brincavam de grudar bocetas e caralhos no teto. assoprados como se fossem bolhas de sabão, que atingiam o ápice, explodiam e salpicavam no ar.



V


no quarto da madame clo'aca
nem café nem cafezinho cafetina
decoração luiz xv
cor carmin naná
cora coral coralina
cristaleiras dançam
no balanço nas alcovas
da ilha de Burano
de Verona os sapos
concerto + ou - grosso
burp burp burp



VI


os vândalos da andaluzia juntos luzia-homem luzia- ventre-luzia assoviavam um acorde com doze notas depois do último silvo do trem. não eram necessariamente dodecafônicos. talvez fossem. não obstante eram. fora, os cocheiros, de olho nas horas, defecavam juntos com os cavalos para aumentar a quantidade risível. merda pra todos, gritava o padre. que passava. benzia. se ia. depois voltava. e entrava pela porta dos fundos.



Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura e professor universitário. Publicou, dentre outros, Ares- Condicionados [Nave, 2015], O assassinato seguido de La bodeguita [Butecanis Editora Cabocla, 2014]; “15'39”” [Editora da Casa, Alpendre 2010], Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008], mais alguns discos e alguns filmes. Vive em Florianópolis-SC.”

Haicais de primavera de Alvaro Posselt

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O sol que se espera
As flores, todas as cores
Venha, Primavera!

*
Fim da forte chuva –
O canto do sabiá
ressurge na mata

*
Quando fico triste
me lembro, penso em setembro
e tudo resiste

*
Lua de outubro
O sono perde o seu dono
De prata me cubro

*
Azul, céu, veludo
A pipa, a cor se dissipa
e transforma tudo

*
Acordes são vários
Quintal, um só recital
Cantam os canários


*
Brisa da manhã –
O olhar é mais lento
que o carro de bois

*
Um ipê na esquina
A pétala cai do pé
feito bailarina

*
Quietude no jardim –
O beija-flor descansa
na ponta do galho

*
Tarde no jardim –
Desprende-se do galho 
uma borboleta


Galeria: Maria Ayucar


Alvaro Posselt nasceu em Curitiba. É professor de língua portuguesa. Publicou Tãobreve quanto o agora (2012), Um lugar chamado instante (2013), Entre arranhões e lambidas (2014), Kaki(2015) e Na sopa do sapo (2016). Alguns de seus poemas estão nas embalagens de Poëse, sorvete da franquia Los Paleteros, e também fazem parte de um mural na Travessa da Lapa, Centro de Curitiba. Divulga voluntariamente o haicai através de oficinas em escolas públicas.

3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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a menina morta


de madrugada, com insônia,
saí da cama e desci à sala. sem
ânimo para ligar a tv ou retomar
o romance que estava lendo, fui à estante
e peguei, ao acaso, um antigo
volume encadernado em marroquim
vermelho comprado há anos, muito barato,
num sebo que já não existe, e que acabei nunca
lendo. autor brasileiro de pouca fama quando
vivo, hoje completamente esquecido,
da virada do século XIX para o XX. rio
de janeiro, livraria garnier. abri uma
página, ao acaso, e comecei a ler.
o trecho descrevia a cena na qual
um pai viúvo fazia serão, noite adentro,
ao lado da filha doente, na cama. a menina
transpirava, ardia em febre; todos os
médicos disponíveis na pequena cidade haviam
lutado para salvá-la, uma miríade de
remédios haviam sido ministrados,
tudo sem sucesso. não havia mais esperança e,
naquela mesma tarde, o vigário motta, amigo da
família, havia dado a extrema-unção.

mas agora já era noite alta, eram só pai e filha,
e então a menina disse, com a voz tão fraca que era mais um sussurro:

papai, papai, ó meu papai querido,
não fiques triste. estou indo já, vou
me encontrar com a mãezinha
lá no céu, estou feliz, papai, um lindo anjo
de asas muito alvas apareceu para mim
e disse que mãezinha está
logo ali no céu, ladeada pelos santos
e por jesus cristo, a me esperar.

em seguida os olhos da menina se fecharam, ela deu
um último suspiro e, com o rosto aparentando serenidade, morreu.
e o pai ficou ali, velando o corpinho da filha, até o amanhecer.
o livro não era bom, não prossegui na leitura nem fui
às primeiras páginas, de modo que não sei o que se
passou antes daquela cena, quando e como a mãe da
menina morreu, nem o que aconteceu depois, com
aquele pai, dali em diante viúvo e sem a única filha.
o que sei é que fiquei com aquela imagem em minha mente,
até finalmente cair no sono e,

dormindo, sonhei
com a cena da morte, como se estivesse junto aos dois, pai e filha,
no quarto. quando acordei, de manhã, pensei
que a menina do livro, há tantos anos esquecida e enterrada
no meio de páginas que ninguém mais lê,
voltou à vida, ainda que por um instante, breve
como um sussurro, antes de morrer de novo,
novamente enterrada em páginas que ninguém mais leria
naquela minha insone madrugada.



cerrado


quando as nuvens, o campo
quando o horizonte se perder lá adiante, e
de um lado, margeando-nos, um pouco assim distantes,
as montanhas azuis
e do outro as águas ligeiras do rio das pedras;
quando a poeira da estrada cobrir de cor de terra as sempre-vivas da beira do caminho
até que a chuva chegue à tarde e caia forte e lave tudo;
quando crianças de todas as cores estiverem correndo
e brincando à nossa volta, pelo caminho, elas que vivem nas
pequenas casas de todas as cores com pomares
e roupas de todas as cores penduradas no varal
que há por aqui, veja, em toda parte por aqui.
quando cavalos, vacas, cachorros, quando tudo isso
e os pássaros que voam de dia e os da noite também,
quando as copas das árvores, frondosas que são,
quando sentirmos fome, sede, cansaço,
quando; e então.



as tvs à noite numa pequena cidade de interior


lembro de ter atravessado, pouco depois de ter caído a noite,
de ônibus, há muitos anos, uma pequena cidade de interior,
na qual eu não tinha parentes nem amigos nem mesmo conhecidos,
e de observar, de passagem, as casas, com aquela luz
azulada das tvs vazando pelas janelas, e de sentir
a sensação de conforto e aconchego que emanava
de dentro de cada casa, como aquela que me proporcionavam
quando criança a luz que saía das janelas dos trenzinhos
elétricos. lembro também de logo em seguida ter pensado
que, na verdade, dentro daquelas casas o que mais havia era
tédio, tédio, tédio e as existências vazias de falta de amor
e de dinheiro e de perspectivas, e a felicidade fugaz de viver
as vidas fictícias das pessoas nas novelas das tvs,
cujas telas, de perto, nem azuladas eram.




Pintura: "Ao leito de Morte", de Edvard Munch 


*    *    * 





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, os livros de poemas Outubro/Dezembro As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros. E pela editora Descaminhos os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e Só uma estranha luz como pensamento.

Vale das Flores - Willian Delarte

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Ilustração: Dalila del Valle


há realidade incrivelmente onírica: há sonhos absurdamente reais. a noite caíra sem lua naquele dia, e minha prima, que passava uns dias em casa, tantico mais velha, foi quem teve a ideia. meus pais dormiam. nós também estávamos embaixo da coberta quando vimos passar pela janela o desfile das nano-estrelas piscadoras. no interior em que vivia, quase não havia casas à época. ao lado da nossa passava um rio que refletia o céu durante as noites. mas naquela noite não havia céu. é que as estrelas caíram na terra, disse minha prima. a partir daí me enrosco, minha memória é confusa e retalhada. lembro-me que demos as mãos, abrimos o cadeado e saímos de mansinho, cortando alguns caminhos secretos até o vale das flores azuis. era noite escura, nada se via, mas as flores eram azuis, isso eu sei, tão brilhantes como aquelas estrelas fugitivas. ela colheu um cravo e o colocou nos cabelos. achei-a linda naquele instante. quis dizer isso, mas não sabia dizer essas coisas. então disse que tinha medo, que deveríamos voltar para casa. ela riu. ela não sabia dizer medo. Acabei descobrindo que só homens têm medo, mas isso foi já muitos anos depois. lá vem as estrelas!, disse, apontando ao pequeno horizonte próximo de nós. enxames de pontinhos brilhantes
vinham dançando, enfileirados, formando num pisca-piscante imagens rapidíssimas no ar. primeiro um castelo com dragão na crista. depois um sorvete de quatro, minto, cinco bolas. depois uma minúscula roda gigante. e assim vinham. não são estrelas, gritei, são pirilampos! ela riu. claro que são pirilampos! minha prima sabia desinventar as coisas. puxou uma sacolinha do bolso e começou a rodar. prendeu vários deles lá dentro. pegou um com todo o cuidado e me pediu para chegar perto. apontou a bundinha acesa dele para mim e desenhou um pássaro na minha camiseta branca. falou “voe!”. ele bateu vôo e se juntou aos outros pontinhos, desfazendo-se numa borboleta de quatro asas. olhamo-nos maravilhados e alguma coisa aconteceu nos meus lábios. sinto o gosto, mas não me lembro. voltamos correndo para casa. com a sacola de pirilampos? não sei, não a vi no outro dia. pensei que poderia ter tido um sonho, mas o primeiro sorriso da minha prima, pela manhã, dizia-me que não. havia um pássaro imaginário desenhado na minha camiseta, vi-o batendo asas o dia todo. ela foi embora. os anos também. tivemos pouco contato desde então. quando minha vó morreu, ela me deu um abraço. choramos e nos desencontramos por aí. essas imagens nunca saíram da minha cabeça e, com o tempo, outras melhor imaginadas devem ter entrado. por conta do grande acaso, encontrei-a no ônibus numa manhãzinha em que íamos ao trabalho. sabia que ela tinha acabado de ter um filho. quantos meses? já tem oito, disse. ela se sentou ao meu lado e conversamos sobre um monte de desnecessidades. até que quis tocar no assunto, nas lembranças. só ela poderia me dizer se tudo aquilo, ou alguma coisa, aconteceu naquela noite. e se fosse tudo sonho? se tudo fosse realidade? nossos olhares se encontraram naquele segundo e não pude perguntar. um pássaro verdadeiro batia asas no meu peito, foi pena pra todos os lábios. tenha um bom dia, apareça em casa, dissemo-nos. desci no vale do anhangabaú. ela foi piscando para o vale das flores azuis.




de "Cravos da Noite" (Patuá, 2014).

 

Willian Delarte é autor dos livros Sentimento do Fim do Mundo (poesia, 2011) e Cravos da Noite (contos, 2014), ambos pela Editora Patuá (SP) e O Alien da Linha Azul (Edições Incendiárias, 2016). Premiado no II e III Festival de Literatura da Faculdade de Letras (FFLCH) e finalista da 15ª edição do “Projeto Nascente”, todos da USP. Tem publicações em diversas revistas e antologias. Foi co-editor da revista Rebosteio Digital.



 
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