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1. A máscara branca
Parecia muito velho por trás da máscara que uma sequência de cremes ia deixando branca. Para cobrir a calvície, seu assistente trouxe uma tiara de onde pendia, até a cintura, um manto aveludado. Quando se levantou, as mãos trêmulas, ocupou todo o camarim, surpreendentemente alto.
Darei a entrevista em cena, pronunciou gravemente, e seguiu para a sala de relaxamento, onde costumava adormecer antes de iniciar a performance. Girando o polegar na lateral da própria testa, o assistente piscou para o repórter.
Tinha tempo, agora. Passeou entre as coxias e as grutas aveludadas do velho teatro até encontrar seu lugar. Quando pousou os olhos no programa, onde metade do rosto do ator estava impressa, as luzes diminuíram e uma campainha soou. O teatro encheu-se dessa energia suspensa que centenas de adultos liberam ao sentarem-se silenciosamente no escuro, como crianças obedientes. Uma trompa veio das coxias; ruídos de uma cortina se abrindo, de passos e mecanismos arrastados; algo tombou e o palco acendeu-se.
O ator estava deitado. Vestia um quimono. Flocos parecidos com neve caíam sobre ele enquanto o resto do tablado permanecia intacto. Fazia gestos sutis com a mão e a perna direitas, pequenos tremores, como se saísse de uma convulsão. Então, levantou-se de um salto. Sua estatura, que espantara o jornalista no camarim, surpreendia agora toda a plateia. Mesmo entre as enormes cortinas de veludo do velho teatro, parecia imenso. Colocou-se na posição de largada para uma corrida de cem metros rasos, levantando a cabeça para olhar à frente. Em seguida, efetivamente largou. Correu desajeitadamente, sempre seguido pelos flocos de neve, até o proscênio. O jornalista espantou-se com a violência daquela máscara que vira de perto. Agora enxergava ali as penas de um pássaro desconhecido, a textura e a mobilidade de um cortinado rococó.
Fui um rouxinol, uma pedra, um peixe carnudo na corrente fria.
O silêncio prolongado em seguida à frase, dita de modo pausado e grave, pesou sobre todos. Estendeu os braços. Suas mãos, de tão largas, pareciam tocar as extremidades do palco. Dobrou os joelhos e caminhou num largo círculo, executando uma sequência tai chi. Então, bem no centro desse círculo, abandonou os braços e a cabeça, relaxando completamente, dobrando os joelhos e deixando a máscara cair. Sua boca, flexionada para baixo, indicava desprezo ou repreensão. Com a mão direita levantou a tiara, soltando a frouxa cabeleira e mostrando as laterais da calvície. Envolto agora, como uma múmia, em tiras de gaze fina, abriu os botões na altura do ombro, derrubando o quimono e pisando sobre ele enquanto caminhava até a pontinha do palco. Um leve sorriso pousou em seus lábios. Com os braços em arco sobre a cabeça, ergueu todo o peso do corpo na ponta do pé descalço, enquanto suspendia a outra perna até que ficasse paralela ao chão. Olhava fixamente para nós, sem qualquer vestígio de dor. Apoiando novamente os pés, numa lenta e larga mesura, pronunciou a última palavra que diria naquela noite – Obrigado. Voltando as costas à plateia (a neve continuava a cair sobre ele), mostrando as nádegas alvas que as fitas de gaze já não cobriam, caminhou para o centro do tablado enquanto as cortinas de veludo se fechavam. Menos de dez minutos tinham se passado. Não ocorreu a ninguém bater palmas, vaiar ou dizer alguma coisa. Com as luzes ainda apagadas, uma plateia incrivelmente dócil arrastou-se para fora no mais perfeito silêncio.
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2. Cavalo
(Desmaio aparente. Um bar. O velho apoiado na fórmica bege. Um pouco de chuva escorre por sua pele enquanto caminha na calçada. Fala baixo e para dentro, mas com uma empostação tão perfeita que todos parecem compreender.)
O bege dessa fórmica
(gesto lento e majestoso)
sou eu. Tenho a voz de um cavalo. CAVALO CONTINÊNCIA
Minha garganta é cheia de rosas. E muco. Ouça: vou contar. Mas fora, completamente fora
(gesto, apontando as coisas ao seu redor)
do tablado. Que palavra! Não digo nada ali. Nunca mais. Eu, o mizão do Nelson Cavaquinho. Uns restos de tabaco. Moedas. Uns restos de umas pétalas no bolso. Calma. OK. Mas é isso.
(pausa)
É isso. Os restos de um coro. Ouça, amigo. Pedaço de um caniço CAVALO TROLOLÓ
pensante. Órfico, grego. Pedaço de uma haste que sofre e lembra. Ali à minha frente. As ervas que crescem na duna. O antigo verão. A umidade da praia. Os dois se aproximaram. Seguiram a mesma pessoa. Ela. Parecia feliz em caminhar à frente deles. Até que uma luz enjoada, amarela, cobriu os corpos dos três enquanto rolavam na areia. Ok, estrelas. Neblina também. A noite veio e a ruína ao fundo tornou-se uma casa deserta de vidros quebrados. Sonhou com aquilo. Dormiu longamente. Eu. Apagou. Apaguei. Deixou os dois sozinhos. Eu deixei. Saímos depois pela praia. A umidade da praia. Eu e ela, depois. Mas ele já tinha provado seus CAVALO VISÃO
mamilos. Longamente. Agora ela era uma assombração e eu a consolá-la. Senta aqui. Malditas estrelas. Neblina também. Os ombros pra frente. As omoplatas. Me deixa. Mas eu nem toquei você. Toque agora. Eu quero.Não posso. Toque assim mesmo. Toque sem querer. Não posso. Alô e adeus simultâneos. Pegue agora. Toque neles. Aperte eles. Mas ele já pegou em meu lugar. Foi a ele que você amou. Desgraça. Eu não queria. Me deixe aqui
(gesto)
olhando as ok, estrelas. Vá para casa. Não posso. Me toque. Não posso. Então não faça mais nada.
(Senta no meio-fio. Gesto lento até esticar as pernas sobre o asfalto. “Põe essas pernas pra dentro, velho. Onde você mora?”.)
Ele teve ela em meu lugar. Mas eu podia
(pausa)
encená-los. Que palavra! Que palavra! Cheira a veludo, poeira, bolor. Bambolina, plateia, lanterninha. Podia imitá-los. Recebê-los em meu
(gesto, o braço direito se erguendo como uma saudação)
corpo incomum. Moro aqui. Exatamente aqui. Você vai me roubar?
(Enquanto sobem, repara que a fórmica do lentíssimo elevador tem a mesma tonalidade do balcão onde o ator estava. “Vou colocar você na cama, velho”.)
Na cama, não. Na banheira. Ali. A torneira é assim mesmo. Vai. Abre. Abre meu cinto, também. Eu pago.
(gesto)
Ó que cheio de rugas. Esquenta isso. É meio marrom, mesmo. Ferrugem. Cheio de dobras. Meu Deus! Era tão esguio. E pulava feito um cavalo empinando. Algo assim. Isso. Exatamente. Um pergaminho elegante, todo esticado.
Pronto para. Aqueles papéis. Cuidado. Vou ler pra você. Agora. Olha. Eu pago.
(atira as roupas num canto)
Sou eu o pagante, agora. Que palavra! Um peixe carnudo na água fria, já disse isso? O mizão do violão do Nelson Cavaquinho. Uma voz, todas elas. Um cavalo. Eu podia encená-los. Esfria isso. Vou ler pra você.
(gesto, a água da banheira até o peito, a mão com um maço de papéis apoiada na borda, como o Marat, de David)
Cuidado comigo.
(dorme)
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NUNO RAMOS
Nasceu em 1960, em São Paulo, onde vive e trabalha. Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo, é pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Começou a pintar em 1984, quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7. Desde então tem exposto regularmente no Brasil e no exterior. Participou da Bienal de Veneza de 1995, onde foi o artista representante do pavilhão brasileiro, e das Bienais Internacionais de São Paulo de 1985, 1989, 1994 e 2010. Em 2006, recebeu, pelo conjunto da obra, o Grant Award da Barnett and Annalee Newman Foundation.
Dentre as exposições individuais que fez, destacam-se, em 2010, as produzidas na Gallery 32, em Londres, Inglaterra; no Galpão Fortes Vilaça, em São Paulo, Brasil; e no MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil. Em 2009, apresenta Mar morto (Soap Opera 2) na Galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro. Em 2008, participa do projeto Respiração, da Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, com a exposição Pergunte ao. No mesmo ano, Asa branca, Funarte, Belo Horizonte, Brasil; Fodasefoice, Galpão Fortes Vilaça; Bandeira branca, CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília, Brasil, e Galeria Bernardo Marques, Lisboa, Portugal. Em 2006, Ai de mim! , Galeria Fortes Vilaça, São Paulo; Vai, vai, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo. Em 2004, Morte das casas, CCBB, São Paulo e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 2003, O que são as horas?, MAP - Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte. Em 2002, Luz negra, Galeria Fortes Vilaça, e Terra da sede, Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo. Em 1999 e 2000, realizou a primeira retrospectiva de sua obra, apresentada no Centro de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, e no MAM, São Paulo, respectivamente. Ainda em 2000, ParaGoeldi 2, Casa Vermelha, Curitiba, Brasil. Em 1996, As vezes, reconstrução da galeria da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, Brasil, com modelo 10% menor que o original e em seu próprio interior; e ParaGoeldi, AS Studio, São Paulo. Em 1995, 46ª Bienal de Veneza, Itália; Milky Way, Brooke Alexander Art Gallery, Nova York, EUA. Em 1994, Montes, Sesc Pompéia, São Paulo. No final de 1992, apresenta, na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, 111, obra produzida sob o impacto do assassinato de 111 presidiários na invasão da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, ocorrida em outubro daquele ano. Também em 1992, expõe no Centro de Estudos Brasileiros, Assunção, Paraguai.
Nas exposições coletivas de que participou destacam-se, em 2010, a XXIX Bienal Internacional de São Paulo. Em 2008, De perto e de longe - Paralela 08, Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo; e God Is Design, Galpão Fortes Vilaça. Em 2005, 5ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 29º Panorama de arte brasileira, MAM, São Paulo. Em 2004, Afinidades e diversidades, Projeto Carlton Encontro com Arte, São Paulo - exposição conjunta com o americano Frank Stella, influência importante em sua obra. Em 2003, Novas aquisições 2003 - Coleção Gilberto Chateubriand, MAM, Rio de Janeiro, e Marcantonio Vilaça - Passaporte contemporâneo, MAC/USP - Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Em 2000, O trabalho do artista, Instituto Itaú Cultural, São Paulo; e a exposição itinerante Ultrabaroque - Aspects of Post Latin American Art, Museum of Comtemporary Art, San Diego, EUA/Museu de Arte de Porto Rico, Porto Rico/Chicago Cultural Center, Chicago, EUA/Atarazanas, Valência, Espanha/Forth Worth Museum of Modern Art, São Francisco, EUA/Museum of Modern Art, Walker Art Center, Mineápolis, EUA. Em 1999, Por que Duchamp? , Paço das Artes, São Paulo. Em 1997, Fronteiras, Itaú Cultural, São Paulo. Em 1994, Mácula, XXII Bienal Internacional de São Paulo. Em 1992, Latin American Artists of the 20th Century, Sevilha, Espanha/Centre Pompidou, Paris, França/Colônia, Alemanha/MOMA - Museum of Modern Art, Nova York, EUA. Em 1989, XX Bienal Internacional de São Paulo. Em 1988, Brasil já, Museum Morsbraich, Leverkusen; Sprengel Museum Hannover, Hannover; e Galeria Landergirokasse, Stuttgart, todos na Alemanha. No mesmo ano, Modernidade, Musée de La Ville de Paris, França, e MAM, São Paulo. Em 1986, 2ª Bienal de La Habana, Havana, Cuba. Em 1985, Casa 7, MAM, Rio de Janeiro, e MAC/USP, São Paulo; XVIII Bienal Internacional de São Paulo. Em 1984, 2º Salão de Arte Contemporânea em São Paulo - Prêmio de Aquisição, São Paulo.
Nuno Ramos também trabalhou com obras ao ar livre em que o elemento natural - o mar, a rocha, o solo, o tempo - era parte integrante do trabalho. Aqui, destacam-se Iluminai os terreiros (2006); Marémobília, Marécaixão e Minuano (2000); Calado e Dois irmãos (2003); Cabreúva (2001); Fornalha (1997); e Matacão (1996).
Como escritor, publicou Sermões (2015), Junco (2011), O mau vidraceiro (2010), Ó (2008), Ensaio geral (2007), O pão do corvo (2001) e Cujo (1993).
Como cineasta, roteirizou e codirigiu com Clima, em 2002, os curtas-metragens Luz negra (ParaNelson 1) e Duas horas (ParaNelson 1) . Em 2004, roteirizou e dirigiu o curta Alvorada. Roteirizou e codirigiu com Clima e Gustavo Moura o curta Casco, também em 2004, e Iluminai os terreiros, em 2006.
Recebeu em 2009, o Prêmio Portugal Telecom de Literatura por Ó. Em 2006, ganhou o Grant Award da Bernett and Annalee Newman Foundation; o 2º Prêmio Bravo! Prime de Cultura, Artes Plásticas - Exposição; e o Prêmio Mário Pedrosa - ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. Em 2000, venceu o concurso El Olimpo - Parque de La memoria, para a construção, em Buenos Aires, de monumento em memória aos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Em 1987, recebeu a 1ª Bolsa Émile Eddé de Artes Plásticas do MAC/USP. E, em 1986, o Painting Prize, 6th New Delhi Triennial, Nova Délhi, Índia.
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