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coluna mallarvista nr. 006 |
.:. Chris Herrmann e Nuno Rau .:.
A entrevistada do sexto número da coluna mallarvista
é a artista plástica, escritora e poeta
Adrienne Myrtes:
1. A relação entre artes plásticas e a escrita é muito antiga _ pelo menos desde os gregos antigos _ e cultivada por inúmeros autores (das duas artes) ao longo dos séculos, de modos que vão se modificando. Como se dá a relação entre a artista plástica Adrienne e a escritora? Seria possível falar sobre os modos desta relação _ ela se apóia na materialidade ou no terreno da ideia?
AM: A escrita chegou primeiro; desde muito cedo na infância sinto necessidade de escrever e ler, (sou compulsiva com a leitura), as artes plásticas vieram depois, na adolescência. As artes plásticas são, em si, outro tipo de linguagem e, para mim, a relação entre as duas formas de expressão não pode ser de dependência, penso que as duas caminharam ombreadas durante um bom tempo em minha vida e a partir do meu primeiro romance: “Eis o mundo de fora” se deram as mãos. Usei no livro imagens, embora sem a função normal de ilustrar a narrativa, e sim para criar determinado clima, provocar silêncios no texto. No livro seguinte: “Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme” aprofundei essa relação, a história é contada a partir de micronarrativas e desenhos; outra vez os desenhos não ilustram, eles narram, e muitas vezes provocam quebras, rupturas, afinal se trata de uma história de rompimento e solidão voluntária.
Não sei se isso situou a relação no campo da ideia, na subjetividade da sensação porque na real não enxergo separação entre a materialidade e o mental. Sou budista, penso o físico e o mental feito faces diferentes de uma mesma coisa, vejo um sendo reflexo do outro e o outro reflexo do um.
2. Em face da multiplicidade quase inapreensível de vozes na literatura contemporânea no Brasil (e não só no Brasil), como você interpreta uma possível cartografia deste cenário? O que torna o livro representativo hoje? Forçando esse pensamento até o limite, qual o sentido de escrever e publicar um livro?
AM: De fato vivemos um fenômeno bem curioso, talvez devido às facilidades para publicação, testemunhamos um número crescente de pessoas escrevendo e publicando. Em contraponto, percebe-se que a venda de livros não acompanha esse gráfico, indo mais além, tenho acompanhado reportagens que situam uma parte desses novos escritores como não leitores o que é contraditório em si.
Pra não me estender demais, acredito que a literatura tem papel fundamental na sustentação das bases do que chamamos de humanidade, não por acaso a escrita é o marco divisor, a mãe que gestou o homo sapiens. A despeito de todas as histórias já terem sido contadas e recontadas elas sempre podem ser contadas de maneira diferente e esse diferencial é o olhar de cada um, esse olhar nos permite mergulhar no Outro e muitas vezes nos encontrar, isso é representativo.
Penso a humanidade feito um órgão no corpo do universo, nesse sentido somos células e tal qual células nós nascemos para determinada função, em se tratando de mim essa função é escrever. Em função disso movimento meus dias, escrever é para mim o que dá sentido a todo o resto. Escrevo e publico pela necessidade cega de estender a mão e apalpar o mundo, o Outro. Isso faz valer a pena essa coisa sem sentido que é respirar.
3. Qual a resposta que seus textos e livros têm recebido dos leitores e de colegas de atividade? Quais são os diálogos que seu trabalho tece com este Outro, que está do lado de lá do espelho da página?
AM: Tenho tido a sorte de receber bons retornos em relação a leituras do meu trabalho e essa é a maior satisfação que pode haver, para mim, nada é melhor ou mais compensador que saber o quanto meu trabalho se comunicou com outra pessoa. Tenho a sorte inclusive de ter ganhado bons amigos por meio de meus livros, pessoas que chegaram até mim após a leitura de um livro e que se tornaram queridas.
Fico sempre curiosa quando alguém me procura para dizer de sua impressão de leitura, tanto para saber de que maneira meu trabalho o afetou quanto para saber por qual via tomou contato com o livro. Os misteriosos caminhos que os livros tomam e a vida própria que adquirem nas mãos do leitor me interessam demais.
4. Desdobrando a pergunta anterior, em razão de uma questão essencial, você acredita numa escrita de gênero (e, por extensão, numa leitura interessada em uma escrita de gênero)? Como a questão do feminismo atravessa sua obra?
AM: Eu penso que a literatura abarca todos os fenômenos da vida humana, independente de quaisquer questões próprias aos homens e às mulheres. Acredito em boa literatura escrita por mulheres ou homens. Não sou insensível, no entanto, a questionamentos de mercado que colocam a mulher via de regra em situação de inferioridade e mesmo cria a ideia de que a literatura feminina é conversa de comadres. Não poderia ser diferente se considerarmos nossa sociedade e a maneira como as mulheres são tratadas, incluso a maneira como nos tratamos umas às outras, muitas vezes.
Na hora em que estou escrevendo procuro me despir de conceitos para olhar meus personagens sem julgamentos, para mim eles são reais e não me sinto com direito a condenar nenhum, tão somente trazer à luz suas dores e contentamentos porque não consigo ficar indiferente ao grito deles. Por outro lado sou mulher, e por menos que queiram ou aceitem alguns o feminismo é necessário no cenário social.
Vivo enfim em meio a essa sociedade que nos trata com crueldade, crueldade essa que me atinge todos os dias por vias direta e indireta, isso necessariamente chega ao meu trabalho por ser uma dor muito minha. Não significa que meus personagens estejam livres de vilanias, é, em contraste, por meio das vilanias deles que questiono a cruel desigualdade que nos impõem.
5. Seu próximo romance “Mauricéa” aborda, em seu eixo central, algum problema específico e particular, quais os campos de enfrentamento que a literatura tem no mundo contemporâneo, e como você estabelece suas ferramentas neste enfrentamento?
AM: Meu próximo romance conta a história de uma travesti velha repassando acontecimentos de sua vida em meio à situação imposta de estar presa a uma cama. Trata do óbvio questionamento acerca do feminino/masculino e, por extensão, da situação social feminina ao longo de algumas décadas, o tempo no qual transcorre a vida dela.
É também uma história de amor, mesmo que um amor às avessas. Gosto de questionar a noção de amor defendida pelo senso comum. Gosto idem de me debruçar sobre as miuçalhas do cotidiano, por meio delas eu observo nossa existência se revelar. Isso porque, para mim, os campos da literatura são a própria vida, vejo a literatura, repito o já dito, como portadora da missão de nos manter alertas à condição humana. A literatura não vai oferecer resposta, óbvio, mas provocar as perguntas necessárias e, vez por outra, apaziguar nossa dor de nascer a cada dia, a dor de, ato contínuo, sermos lançados nus e desamparados ao desconhecido a cada manhã.
Minha principal ferramenta é a verdade o que parece antagônico uma vez que escrevo ficção, tudo bem, eu vejo a contradição como sendo a essência dos fenômenos. Cada coisa contém em si seu inverso. Desdobrando, a verdade à qual me refiro é a interna a que me sustenta. Quando trato da dor do Outro eu busco em mim essa dor, eu preciso descobrir em qual local, no meu interno, ela está hospedada. E sei que vou encontrá-la porque a humanidade nos atravessa a todos e nos une, ou melhor, a humanidade é a substância que nos constitui. E, em geral, é no reflexo gerado no olho do Outro que eu consigo me enxergar.
*
Para meu papel em branco
Só agora escrevo para pedir: desculpe-me esse silêncio não bom, silêncio de quem briga com o tempo e perde. Perde-se.
A parada aqui perto de casa, nosso marcado ponto de encontro, quase virou parada militar. Muita gente na rua, manifestações de toda ordem, desordenadas algumas, ordinárias outras. Fogo ateado no burburinho do trânsito. Polícia fechando o tempo como se fosse sinal. Dos tempos. No final, tudo acaba em futebol.
Parada fiquei eu esperando o ônibus que não veio. Caminhei de volta pra casa acompanhada de meu silêncio. Meu amor. Perdido pelo mundo cruel, perdido o mundo e eu, perdida, sem palavras.
Uma crueldade só.
Tempos áridos esses, quando não encontramos as palavras que guardamos, quando já não lembramos onde.
Minha avó dizia: Quem guarda com fome o gato come. Guardei a fome. E a saudade que vamos esfaquear, para matar a fome com a língua um do outro, palavras, palavras, que vão nos saciar de silêncio. A substância do não dito, o tanto de vezes nas quais o tato de nossos dedos não alcançaram um ao outro.
Silencio.
Volto pra casa e me mato calada, saudade virou meu nome.
Renasço três dias após porque o mundo, embora cruel, não tem esquinas, é esférico. E o vento acabou de fazer a curva em meus cabelos.
Beijos, meu bem e até de novo.
da sua Remington Rand.
*
Abaixo, um trecho de seu novo livro:
MAURICÉA
E me imagino caminhando entre os boxes do mercado, feito usava fazer naquela época, quando andava à procura da mistura perfeita para me servir de banho, e me banhava com molhos de arruda, quebra-pedra, espadas-de-são-jorge ou santa-luzia combinados entre si e entre todos para deixar claro que comigo ninguém podia e, assim, me curava dos caminhos fechados e da escuridão noturna reinante quando saía para trabalhar; toda trabalhada na sedução, fugindo da família a mim destinada, criando um destino brilhante, cravejado de paetês e vidrilhos, coisa que já nem se usa.
Lembrar é coisa em desuso. Ficar velho é coisa que não se deve usar sob qualquer justificativa; é feito melancolia, perdeu a serventia, efeito dos tempos, dos ventos que varreram minha vida, varreram a história e o rumo do mundo. Minha história se confundiu e meu mundo caiu muitas vezes; eu ficaria feliz em ter as sobrancelhas de Maysa. Os cabelos eu sempre preferi loiros, quando os tinha. E sinto pena de mim por não ter guardado a inocência e saber o quanto acreditar na vida e no amor é brega, piegas e sem o mínimo direito a se tornar cult. Canções podem se tornar cult; flores plásticas podem sofrer essa mutação; estampa de animais, cult. O amor não, o amor é brega, sem remédio.
Estico os olhos sobre a paródia de varanda de minha quitinete e lembro quantas vezes me montava no banheiro do bar, porque saía com a roupa ensacada em plástico de supermercado para não dar pinta diante da família, para não causar desconforto pulmonar na tia asmática e já viúva, muito sacrificada e empenhada em me tornar um adulto merecedor de respeito, respeitando a circunstância que fez de mim sua herança; a única deixada pela irmã morta, tão jovem e tão solteira, embora grávida. Partiu durante o parto. E lembro ainda, buscando uma estampa perfeita, precisava circular a tarde inteira pelo Cais de Santa Rita, enchendo de pernas as ruas da Zona da Cachorra, procurando uma kanekalon loira e lisa para completar meu cabelo na noite do Chantecler: palco de vida e morte de momentos meus. E o Chantecler não existe faz é tempo, eu soube, o governo interditou, reformas, restauração. O casarão, feito tudo nesse mundo, não resistiu aos dias; o que resiste em mim é o costume de apelidar qualquer lugar onde se reúnam primas e donas de Chantecler. Por carinho mesmo, para reviver um tempo quando eu ainda vivia. Vivia pelas ruas do Recife velho, só na fechação, apertada em minissaias muito mínis, que eu ficava puxando pra baixo, charme puro. Porque achava lindo quando via as meninas puxando a calcinha que teimava em se refugiar do arredondado da bunda, atendendo ao apelo do rebolado; e eu, sem bunda, sem calcinha, lutando para manter preso entre as pernas aquele apêndice de sexo que me sobrava sob o conforto da cueca. Coisas das quais nunca consegui abdicar, nem do pau, nem da cueca. Me restava o arremedo de puxar a saia, os dedos em pinça, a mão atravessada pelas costas, valorizando o movimento.
Omar, tá acordado? Vou buscar os remédios.
Omar é meu cu, me chame de Mauricéa.
Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É artista plástica e escritora. Participou de algumas antologias, destacando: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, (Ateliê Editorial, 2004), 35 Segredos para Chegar Lugar Nenhum, (Bertrand Brasil, 2007) e Assim você me mata (Terracota Editora, 2012). Publicou: A Mulher e o Cavalo e Outros Contos (Alaúde e EraOdito, 2006), o romance Eis o Mundo de Fora (Ateliê Editorial, 2011) cujo projeto recebeu o Prêmio Petrobras Cultural 2008/2009 e a novela uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme (Terracota Editora, 2013). Lança esse ano, pela Edith, Mauricéa, seu segundo romance.
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