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Alguns monstros

de

EDWARD LEAR






tradução

Dirce Waltrick do Amarante











Havia um Velho de Campo Florido,
Que era o menor homem já nascido;
Mas eis que de supetão, deu de cara com um cão,
Que o devorou em Campo Florido.













Havia um velho de Itararé,
Montado no dorso dum jacaré;
Mas lhe disseram: “Ao anoitecer, ele é capaz de te morder,
Amolando você, velho de Itararé!”













Havia um velho de Lucca,
Que usava vasta peruca;
Tanto que só seu nariz e a ponta do sapato de verniz
Podiam ver vistos em Lucca.













Havia um velho de Lisboa
Que usava bela coroa
De lagostins e especiarias, ratazanas e cebolas frias,
Esse raro velho de Lisboa.















Havia um velho de Bombinhas,
Perturbado por criancinhas;
Que atiraram pedras na sua direção e quebraram parte de sua dentição,
Zangando o velho de Bombinhas.







  
  


EDWARD LEAR





O escritor, desenhista e pintor inglês Edward Lear (1812 - 1888) é considerado um dos pais do nonsense literário, junto com seu contemporâneo Lewis Carroll.

Apresentamos aqui alguns de seus limeriques, todos ilustrados pelo autor, que mostram o quão estranhas ou monstruosas são as suas personagens.

A métrica dos limeriques, no original, é bastante formal, mas a tradutora optou por uma métrica informal, mais leve e espontânea, em português.














DIRCE WALTRICK DO AMARANTE



Organizou e traduziu as antologias de textos em prosa e verso de Edward Lear Viagem numa peneira e Conversando com varejeiras azuis, ambas publicadas pela Editora Iluminuras. Esses limeriques integrarão uma nova antologia de textos de Edward Lear que a tradutora está organizando.









4 poemas de Gáston Sequeira - tradução de Luciana Cañete

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ESPERA

salpica salpica
o eu   o super eu
instalados na dentadura amarelada
que parafraseia           que mastiga outros tempos

a esposa defunta        os beijos debaixo da  pele
os brotos de silêncio           de perguntar-se por que

detrás dos olhos  passeiam as coroas
atiradas todos os anos sobre a testa dos afogados

o trânsito dos filhos sobre o ofício
tarefa envelhecedora t      umidade que encapsula os ossos
doloridas engrenagens entre a carne

salpicam salpicam
os donos do mar       as âncoras mudas
incrustadas no fundo      nos elos livres

pupilas libertinas capturando a linha céu mar
boca rachada                ressecada de contar historias
de pedir auxílio              como se Deus
fosse uma gaivota risonha clamando paciência
escarvando na solidão
camada por camada de um coração derrotado

retardando o dia em que o último grito
se unirá aos ausentes

*

Espera    

salpica salpica
el yo    el superyó
instalados en la dentadura amarillenta
que parafrasea           que mastica otros tiempos

la difunta esposa        los besos debajo de la piel
los brotes de silencio           de preguntarse por qué

detrás de los ojos se pasean las coronas
arrojadas cada año sobre la frente de los ahogados

el tránsito de los hijos sobre el oficio
envejecedora labor      humedad que encapsula los huesos
doloridos engranajes entre la carne

salpican salpican
los dueños de la mar       las anclas mudas
incrustadas en el fondo      en los eslabones libres

libertinas pupilas apresando la línea cielomar
boca tajeada                 reseca de contar historias
de pedir auxilio              como si Dios
fuera una gaviota risueña clamando paciencia
escarbando en la soledad
capa por capa de un corazón derrotado

retrasando el día en que el último grito
se una a los ausentes



Barquinha amarela

amansando os estádios do mar   caminha
entre países vivos e mortas fronteiras
na fêmea da fome se somam  à luta
tremem os limites

como se não tivesse corpo
se despoja de sua imponência
e nada ao ar livre

é escudo e sensibilidade
apogeu terno de animais acostumados
seres errantes para certeiros martírios

nau ferida raivosa      persevera

*

Lanchita amarilla     

jineteando los estadios de la mar    camina
entre vivos países y muertas fronteras
en la hembra del hambre se suma a la lucha
tiemblan los límites ante su paso

como si no tuviera cuerpo
se despoja de su imponencia
y nada al descubierto

es escudo y sensibilidad
apogeo tierno de animales acostumbrados
seres errantes para certeros martirios

nave herida rabiosa       persevera
y así se va comiendo todo el sur

***

você de mim


assim é você de mim                     vem mas se vai
como o bagaço das uvas no paladar
as sobras do que falta e amamenta meu tempo

a cabeça cheia              é você em mim
parietal perfurado pelo indicador
o vigia de meus pensamentos acha que minto

uma vez tive ventos no coração
que me extirpavam a realidade               tomados
como violinos nas mãos de seus amos
eram lambidas impulsionados  à que te criaste

eu nunca pude sustentar o peso de minha alma
nem o peso que valia e vale hoje     ainda

não é que eu queira me vitimar
nem correr afoito atrás de um consolo
ou planar          como borboleta fraca em seu último minuto

é tão somente aguardar que a sombra de tua consciência
sustente minhas feridas

*

vos de mi    

así es vos de mi                     como que venís pero te vas
como el hollejo de las uvas en el paladar
las sobras de lo que falta y amamanta mi tiempo

la cabeza llena               es vos en mi
parietal horadado por el índice
el vigía de mis pensamientos cree que le miento

una vez tuve vientos en el corazón
que me extirpaban la realidad               tomados
como violines a las manos de sus amos
eran lengüetazos impulsados a la que te criaste

yo nunca pude sostener el peso de mi alma
ni el peso que valía y vale hoy      aún

no es que quiera victimizarme
ni correr despavorido detrás de un consuelo
o planear          cual mariposa reseca en su último minuto

es tan solo aguardar que la sombra de tu conciencia
sostenga mis heridas




casuarina   

perfume no ar             respiro seu oxigênio rítmico
aguardo                         seu cabelo pleno de céu

zumbido do trigo sacudido       no meu rosto
escurecido pelas unhas de sol
foi        estreito             errático

tuas raízes entranhadas            sabem de profundidade e frescura
passo um dedo com minha água           pelos teus pés de parto apenas

sou pássaro espiando a pele
experimentada maciez que ascende até tua boca
sonhadora de bosques

tua boca que cicia meu nome
escolhido pela mãe deste quase que sou

tua folharada abatida para nutrir
esse sustento que nos resgata da gravidade

*

casuarina    

perfumada al aire             respiro su oxígeno rítmico
aguardo                         su cabello pleno de cielo

zumbante trigo venteado          en mi rostro
oscurecido por las uñas del sol
asido        estrecho              errático

tus raíces entrañadas            saben de profundidad y frescura
paso un dedo con mi agua           por tus pies de parto apenas

soy mirlo curioseando la piel
experta sedosidad que asciende hasta tu boca
soñadora de bosques

tu boca que sesea mi nombre
elegido por la madre de este casi que soy

tu hojarasca abatida para nutrir
ese sustento que nos rescata de la gravedad
ingrávida broza sedienta en la muerte

cada remolino ha pretendido desorientarte
veleta alocada como este corazón que acá
entinta la tersura de tu existencia       


Galeria: Erik Johansson




Gáston Sequeira nasceu em 1975 em Coronel Pringles, Provincia de Buenos Aires, Argentina. Reside em mar del Plata desde sua infancia. É escritor e editor. Realizou diversas oficinas de leitura e criação literaria. Integra alguns grupos ligados a leitura. Participou de feiras dolivro (Mar del Plata, 2011 e 2013, Vila Mercedes, San Luis, 2013), do Festival  Internacional VaPoesía Argentina 2017, assim como de encontró de escritores. Seus textos circulam em formato digital em diversos sítios e blogs (Mispoetascontemporâneos da Argentina, metaforologia.com da América Latina e ILA Magazine do Marrocos). }Seu  libro de poemas La lengua del poeta foi editado por Alma de Diamante (Mar del Plata), premiado em certame internacional. Alguns de seus poemas foram incluídos em uma  plaquete pela editora La Garza Mora (Buenos Aires). É criador, director e coordenador do ciclo “Palimpsetos Encuentro de lecturas de autor



Luciana Cañete é poeta, tradutora, intérprete e mãe. Formada em Letras Português/Espanhol pela UFPR e pós-graduada em Tradução pela Universidade Gama Filho. Tem um livro publicado Meu coração bate e às vezes me espanca (Multifoco, 2009) e poemas na antologia 29 de abril : o verso da violência (Editora Patuá, 2015) e na antologia de 5 anos do Jornal Relêvo2015 além de poemas publicados diversos sites e blogs.

Ofício das Águas - Reinoldo Atem

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A água, pela cidade,
escorre sem dizer nada.
Venha de chuva ou torneira
Ela cumpre a sua mágoa
de ser usada e cuspida
pela boca ou pela vala.

A água, pela cidade,
exerce qualquer lavagem
de pia e de outros olhos
de onde escorre mais farta
deixando sua cor nas toalhas.

Engrossando a tempestade
de  água, lameiro ou pasta,
no varal as lavadeiras
fazem-na de instrumento,
como vassoura ou martelo,
como lavoura das mãos
que brotam mais enrugadas.

Tubulações invisíveis
carregam por toda parte
do corpo-cidade a água
que nunca existe parada,
ela e seus variados
produtos e derivados,
buscando sempre o de baixo
o centro da terra amada
onde está sua morada.


Este venal habitante
de todo lugar humano
percorre também os sexos
mas nunca diz onde estava,
conhece o dentro dos corpos
mas não conta suas falhas,
qualquer buraco é bueiro
de onde sai, transformada
em lavagem, coisa usada.

Para isso vive, essa água:
pra entrar e pra sair
do outro lado, mudada,
para esconder-se e saltar
das fontes, que a fazem esguia,
para correr e lavar
a louça, os corpos e os carros,
as ruas, as folhas e as almas.

Depois, cai no rio-estrada
já meio suja ou usada
e assim não serve pra nada
que sua razão é ser limpa
e seu ofício é limpar
o mundo, a vida e depois
sair correndo pro mar.


poema publicado inicialmente  por Edições Imã - 1997.

Sobre Reinoldo Atem escreveu Miguel Sanches Neto no mesmo ano dessa publicação:

Reinoldo Atem, entre os mais autênticos e importantes poetas do Paraná, revela sua poética avessa à brincadeira com as palavras. O seu olhar recorta uma cidade habitada por gente simples, pelos meninos pobres, e dramas humaníssimos. É este olhar que diferencia Reinoldo Atem de quase tudo que se produziu em termos poéticos no estado. Um olhar sem esnobismos lingüísticos e falsos exotismos.
Seus melhores poemas não pagam o tributo para o verso curto ou para a modernidade epidérmica. Muito pelo contrário, os seus bons poemas são longos, bem articulados e revelam o domínio da macroestrutura da linguagem – coisa inusitada em nossa poesia tatibitate.
Atento aos dramas humanos, sem máscaras e sem afetações, sua poesia segue “O ofício das Águas” (título de um belíssimo poema), percorrendo os subterrâneos da cidade, e se deixando impregnar pelos detritos do vivido.

TANUSSI CARDOSO LANÇA "EU E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS", 3 DE AGOSTO NO CCJF

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  “Eu e outras consequências” é divido por eixos temáticos
e aborda relação entre universo externo e interno do poeta

O poeta e letrista Tanussi Cardoso lança, dia 3 de agosto, no Centro Cultural Justiça Federal, Centro, seu 12º livro de poesias, “Eu e outras consequências”, pela Editora Penalux. Em seu novo livro, o poeta, como bom observador, vê através dos versos a relação entre o universo externo com o interno. E como na palavra no mundo real, o caos exibe suas faces no­­­­­­­­­­­­­­­s poemas do livro. Tanussi segue a recomendação do filosófo Nietzsche quando o caos é fonte de criação e fantasia. Há no livro de Tanussi uma filosofia sobre o tempo, pois nas palavras do poeta "tempo é voo de memória".  Sua passagem na vida humana está marcada nos belos versos: "O tempo faz escolhas vis e vãs, mas passa”.
Seu livro é marcado por assuntos voltados à experiência da vida como as memórias da infância, vivências cotidianas e inquietações existenciais. São três os eixos temáticos que dividem os mais de 50 poemas que o autor está publicando agora:

“DA COLHEITA”
Nesta parte, o poeta rememora a infância suburbana, onde lembra o casarão de Cachambi, onde foi criado, com inaugurais recordações de familiares, aparecem mortos que o habitam e a morte coletiva com seu feitio de horror como no verso em que o poeta referencia o caos: "Essa que nasce sem morrer e morre sem nascer. Essa que cintila no vazio do caos". Suas passagens no poema sobre o ser lidam com imagens sonoras de como a arte é uma faina de lidar com os antípodas da existência, vida e morte, paz e caos.

“DO ENCONTRO”
Tanussi se volta, como destaca Affonso Romano de Sant’anna na apresentação, a seu encontro com a natureza e com o cotidiano das cidades. E a epigrafe de José Saramago: “No interior da grande cidade de todos, está a cidade pequena em que realmente vivemos”, é convite para um mergulho interno. As duas cidades citadas pelo poeta são Rio de Janeiro e Cidade do México, as duas modificadas pelo olhar do poeta, "antes até do próprio poema, vindo da paisagem de la Ciudad, de seus montes, de seus pintores, de seus astecas, de suas igrejas, da Santa Virgem de Guadalupe...” Em impressão de viagem, vários versos anafóricos vão cantar no corpo de um poema urbano, o viés criativo vindo primeiro do que a realidade exterior.

“DO ENIGMA”
Desta vez, Tanussi aborda a percepção do corpo na temática erótica e explora em seus versos os amores, desencontros, contradições e mistérios. Na forma de trabalhá-los, o poeta terá dois aspectos de linguagem importantes: um dialógico, por ficarem no campo da declaração e vocativos, já que se endereçam ao ser amado. Outros são autotélicos e meditativos, pois se voltam sobre o estado emotivo em si: "O amor acaba quando começa. Como morremos no momento de nascer".
No livro "Eu e outras consequências", como escreve a poeta e contista Astrid Cabral no prefácio, “Como conseguiria Tanussi desembaraçar-se do agudo e comovido olhar com que contempla a condição humana, e que o caracteriza como exímio artista da palavra? Assim é que, ora, nos confessa: ‘Deus consegue dormir o sono dos justos. Só eu aqui, olhos abertos, explodo’ " .


Sobre Tanussi Cardoso:
Nasceu e vive no Rio de Janeiro. Formado em Jornalismo, na Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, na Bennett. É poeta, crítico, contista e letrista de MPB. Seu nome é verbete da Enciclopédia de Literatura Brasileira (Fundação Biblioteca Nacional) e do Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira. Colabora com jornais e revistas literárias de todo o Brasil. Também em sites e blogs da Internet. Tem poemas publicados em países como Alemanha, Chile, México, França, Peru, Romênia, entre outros, e também traduzidos para o inglês, francês, espanhol, italiano e russo. Seu poema “Substantivos” é estudado no livro “Gramática Contemporânea da Língua Portuguesa”, de José de Nicola e Ulisses Infante (Editora Scipione – 1997). Ganhou vários prêmios nacionais e internacionais, foi agraciado com o “Troféu Marcio Carvalho” no “XI Festival Carioca de Poesia”, organizado pelo Grupo Poesia Simplesmente. Em 2008 foi distinguido com a Medalha Jorge Amado pelas comemorações do Jubileu de Ouro da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro – UBE-RJ. Em 2012 apresentou o monólogo poético-musical de sua autoria, “Eu e outras consequências”, com direção de Mônica Serpa, a convite do Congresso Brasileiro de Poesia, em Bento Gonçalves, RS. Em 2013 foi um dos 20 poetas brasileiros convidados a participar, com poemas vinculados ao Twitter, na exposição #Tuiteratura, com curadoria de Giselle Zamboni, organizada pelo Serviço Social do Comercial de São Paulo, SESC-SP. Pertence ao Pen Clube do Brasil, à União Brasileira de Escritores, à Associação Profissional de Poetas do Estado do Rio de Janeiro e é ex-presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro.

Serviço:
“Eu e outras consequências”
Lançamento: Dia 3 de agosto, quinta-feira, a partir das 18h, no Centro Cultural da Justiça Federal ( CCJF).
Endereço: Avenida Rio Branco, 241, Centro.
          
Informações técnicas:
“Eu e outras consequências”, de Tanussi Cardoso
ISBN: 978-85-5833-190-6
122 páginas.
Prefácio: Astrid Cabral; Apresentação: Affonso Romano de Sant’anna; Posfácio: Ricardo Alfaya.

Editora Penalux (https://editorapenalux.com.br/loja/), à venda no site da editora.

9 poemas de "EU E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS", de Tanussi Cardoso

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DE FUMAÇA, A PALAVRA


Toda palavra é noite.
Perpetua a angústia do não encontro.
Há sempre perda no contato,
Mesmo que se some à pele o espanto.

Toda palavra é prisão e liberdade.
Intervalo entre som e silêncio.
Toda palavra é falta.
Suspiro entre sopro e chama.

Toda palavra é não.
Dentes demasiados de dor.
Toda palavra é vã e vão.
Ainda que belamente perfeita.
Ainda que de adjetivos – cilada, aparência.

Toda palavra é falácia.
Nada e maravilha.
Toda palavra é nunca.
O amor, por exemplo. Ou como Deus se pronuncia.

(Eis que nenhuma palavra é dia.
A não ser alguma que à esperança mentia.)

Toda palavra ornamenta uma lápide
De mistérios e magias.
Daí, a incompletude – sua infinita largueza.
Daí, a poesia implícita em cada uma:
Barro e cimento. Pedra-viva.

Toda palavra diz-se cedo.
O adeus, por exemplo. Ou como o morto se anuncia.



ORIGEM 1

eu não sou
de onde nasci

eu não sou
de onde vim

nenhuma língua me engana
nenhuma terra me enterra

eu sou
onde estou

eu sou
onde sou





ILUMINAÇÃO

para Antonio Carlos Secchin


É o poema quem diz
o que o poeta não fala:
reticências
recantos
confins.

É o poema quem diz,
não o poeta.
O poeta, sutilmente,
afirma
o que o poema desdiz.



GRÃO


O que de mim se esvai
é o que fica

Sou a permanência
dos dias em que morro

Diariamente construo
não a minha vida

Mas o que dela existir
enquanto morto

 


POEMA PARA QUALQUER ANO-NOVO

para minha sobrinha, Liane


Acolher pássaros.
Suas sombras de liberdade e beleza.
Ouvir seus piares de dor, fome e prazer.
Compreender a expressão das asas.
Pousá-los nos ombros, deixar-se com eles,
nessa viagem de busca e de calma.
Ser pássaro na sabedoria
de maravilhar-se com a vida
– ínfima e pouca –
em seus mínimos detalhes
de mistério e poesia.
Aprender a transformar migalhas
em sementes de ninhos.
E dividi-las.
Entender a nervura das distâncias
: os obstáculos.
 Quedar-se quieto à espera do canto.
E do voo.





DIVAGAÇÕES METAFÍSICAS SOBRE A MORTE DE UM POMBO


“No meio do caminho tinha uma pedra.”
Drummond


Um pombo morto na rua
é somente um pombo morto na rua.

Independe do movimento dos astros.
Não incomoda o Sol.

Não impede o bater dos ventos
nem o cair das chuvas.

O mundo não vai girar ao contrário.
O arco-íris não mudará suas cores
porque um pombo está morto no meio da rua.

A vida seguirá tranquila
e todos os amores permanecerão intactos.

Pernas pularão
o incômodo obstáculo.

Porque ao pombo morto
só caberá o lixo do esgoto.

Será, no máximo,
assunto para um poeta torto.





COTIDIANO

para Igor Fagundes


O poema: um grito em branco.

O dia agônico refém da tarde.
Monumentos perdidos
vozes veladas
tom trágico de vida:
ilha de esculturas e espantos.

O poema: formigueiro de batuques.

O dia se despe pelas janelas:
esquizofrênicos palhaços malabaristas
coloridos sóis
pedaços de escuridão e luz.

O poema morde as mãos vazias.

Escrevo doçura
inocência
crianças
ratos e corvos.

Traço o fio que me resta de inconsciência.
Pedra sobre pedra
e espelho nenhum me contempla.

O poema: solidão incomunicável.

O dia tenso e inadiável.
 Todos os lugares
o bar o ônibus o cinema a loucura a raiva o céu
convidam ao definitivo suicídio.

O poema: cavalo pronto a ser montado.





PARA SEMPRE


O que o amor
exprime
enquanto voz

O que o amor
redime
enquanto paz

O que o amor
deseja
enquanto reza

:

O tempo
da carnadura
das pedras





AINDA HÁ TEMPO


Fica a ideia da
poesia e da morte:
a pedra no caminho
o feijão cabralino
a aurora da minha vida.
Fica a impressão de que
tudo passou
como um empurrão
num precipício:
abismo sobre abismo.
Alguns amigos
alguns amores
e a sensação angustiante
de que sobraram palavras
e faltaram palavrões.
À altura dos cabelos brancos
uma lição:
é preciso chutar o balde!
Sempre há tempo
para a desarrumação.
  


____________
Tanussi Cardoso nasceu e vive no Rio de Janeiro. Formado em Jornalismo, é poeta, crítico, contista e letrista de MPB. Seu nome é verbete da Enciclopédia de Literatura Brasileira (Fundação Biblioteca Nacional) e do Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira. Colabora com jornais e revistas literárias de todo o Brasil. Também em sites e blogs da Internet. Tem poemas publicados em países como Alemanha, Chile, México, França, Peru, Romênia, entre outros, e também traduzidos para o inglês, francês, espanhol, italiano e russo. 

A mão que exerce o mundo, nos poemas de Hirondina Joshua, de Moçambique

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Tela de Roberto Chichorro, pintor moçambicano.




Encheram as mãos e as cabeças.
Cantaram as canções dos pássaros.
Brilharam.
Encheram espaços.
Perseguiram os mais fortes.
Distraíram os preguiçosos.
Sob as canções dos pássaros inventaram outras.
As mãos sanguinárias eram limpas.
Esperavam por alguém com olho infestado e uma alma branca.







O corredor.
Haverá dentro dele uma grande corrida?
Ou cores ou corrimões ou coringas ou cordeiros ou cordas ou
concordâncias?
A mão apressa-se para chegar entretanto não há destinos.
A mão é solitária por natureza. E na sua solidão exerce o mundo. O
mundo exerce nela a matéria da incompletude. Não é do escuro
que a mão tem medo. A mão teme a cegueira da parede. A visão
atómica da coisa branca.
A mão em eterna construção cai no tempo. O tempo em eterna
construção cai na mão.







Visto
na
epiderme
a
gestação
nua
da raça.







A voz do Tempo não tem sexo.
Fia na armadura da emoção.
— Querem deusificar o canto, o manto da esperança. Eu cá dentro,
fora de mim não tenho olhos.
— Querem engolir a veia. Eu cá fora, dentro de mim não penso.
A voz do Tempo vaga no músculo incerto. Não é fêmea, não é
macho. - E ainda bem! Assim morro pouco.
— Sou igual a todos humanos. Capaz de amar e matar na mesma
intensidade.
Do falo a escrita não precisa, ela por si pode urinar e fazer amor.
Ai, dói isto de se pensar que a escrita precisa de um corpo táctil. E
erecto.







ALTO-MAÉ QUE MORA EM MIM

O bairro onde moro foi atropelado pelo tempo que forçosamente
nega-se a empacotar outros destinos. Chama-se “Alto”... Quando a
chuva que lhe corre é fria não nas suas temperaturas, escorregadia
como a brisa que se venteia nos buracos felizes destas ruas
serpenteadas em areias ao invés de betão.
Chama-se “Alto”... Este habitat de “latas” novas trazidas porsei lá
quem a este paraíso urbano sem nome em nós, queremo-lo assim
entre-alma e carne, passageiro, nomes são signifi cados que não
significam nada. Além de mais não os sabemos ler nem escrever e
se soubéssemos isto menos signifi caria. Em nós há um bairro onde
moramos e nos moramos, vivemos e morremos a cada milésimo de
segundo. E isto basta-nos. Basta-nos.
Tenho um alto-maé que vive em mim
alto-maé de casas que testemunham o silêncio a fúria em cinza
das moças que vestem saias que demarcam fronteiras suspeitas
com os rapazes que ao invés de calças vestem “tchuna boys”
suas roupas interiores são mais curiosas que o mundo.
Há muitos alto-maés em mim,
dasfl ores que transpiram a volúpia nocturna perto da pelé-pelé
das rotundas de jardins quadrados
da gente alegre e mais esperta da cidade (alto-maé não me deixa
mentir)
nem suas mesquitas e igrejas calam a voz de Deus aqui onde o sol
se senta
mesmo de noite
do negro mercado negro que devia se chamar lua ao invés de
“estrela” pois nela embarcam todas ânsias daquelas gentes, muitas
delas não daqui,
da padaria Moçambique sempre alimenta a esperança de um
melhor pão,
dos barulhos quentes dos ralis antes do fi m de semana
do sapateiro que canta com o seu martelo abengalado
de alguém a escrever um verso que talvez não mude nada, mas um
verso é um verso,
um verso é um universo
o inverso disto é que não era é humano
cada um com o seu alto-maé.
Este é o meu. Este foi o que me deram. Este é o que vejo e que me
olha sempre.
De um outro não preciso.
Daqui consigo sentir a voz de todos alto-maenses
porque o som não tem gente na sua metafísica
nem um bairro existe quando não se tem por existir
repito: cada um com o seu alto-maé, e este meu é altíssimo em
mim.




___________________ 

HirondinaJoshua (Maputo, Moçambique, 31 de Maio de 1987) é uma escritora moçambicana, uma poeta de destaque na nova geração de autores moçambicanos. Tem participação em várias antologias nacionais e estrangeiras e textos publicados em jornais e revistas de Moçambique, Portugal, Angola, Galiza e Brasil, dentre as quais destacam-se as revistas Caliban, TriploV, Courier des Afriques, Literatas, Soletras e, agora, Marllarmargens. Também colaborou com a revista Missanga, de Moçambique, e actualmente escreve para as revistas Pazes, Raízes, Por Dentro D'África, Conti Outra (Brazil), Sermos Galiza, Palavra Comum (Galiza) e plataforma cultural Mbenga ARTES E REFLEXÕES (Moçambique). Menção extraordinária no Premio Mondiale di Poesia Nósside, 2014. Em 2017 publicou “Os Ângulos da Casa”, com prefácio de Mia Couto. 2a. pela  Editora Penalux.

Lançamentos Rubra Cartoneira Editorial

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Pessoal, esquecemos de publicar os lançamentos da Rubra Cartoneira no Patuscada, dia 22/07.
Jesus Bajo, Marcelo Ariel, MaickNuclear, Leo Mackellene, Mauricio Salles Vasconcelos, Vinícius Lima, Chico César (2ª ed.) e Djami Sezostre estão com seus livros à venda na página da Rubra no Facebook - https://www.facebook.com/rubracartoneira/

Quem se interessar pelos livros, é só escolher sua capa e entrar em contato inbox ou pelo e-mail rubracartoneira@gmail.com
Aqui ficam os álbuns, cliquem nas imagens

A CARA JE - Jesus Bajo

A imagem pode conter: atividades ao ar livre


A RAINHA DO SONHO INVISÍVEL - Marcelo Ariel

Nenhum texto alternativo automático disponível.


As Transliterações do Ópio - MaickNuclear

Nenhum texto alternativo automático disponível.


infimus - Leo Mackellene

Nenhum texto alternativo automático disponível.

O nascimento do sexo - Mauricio Salles Vasconcelos

Nenhum texto alternativo automático disponível.


O sonho da capivara - Vinícius Lima

A imagem pode conter: texto


rio sou francisco - Chico César

Nenhum texto alternativo automático disponível.


Salmos Verdes - Djami Sezostre

A imagem pode conter: planta

"sobre nossas línguas a carne das palavras", de Beatriz Bajo

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Houve também o lançamento do meu quarto livro no dia 22/07, em sampa. Livro fresquinho, saindo do forno Patuá. A quem se interessar, ele está à venda pelo site. Também tenho alguns, se quiserem autógrafos (rs) - inbox ou pelo e-mail beatrizzbajo@gmail.com





Do livro sobre nossas línguas a carne das palavras, de Beatriz Bajo

Esta obra foi composta em diversos lugares por alguns anos e finalizada em 28 de maio de 2017 para a Editora Patuá.


O amuleto desta e de todas as outras obras é o amor, sobretudo, o dito e feito.
Assim foi regido este livro que trabalha com a procura e o encontro. É um livro milagroso, cheio de aleluias e améns depois de muitas dores e distâncias. Uma espécie de diário ontológico melancólico e um livro em trabalho de parto, lagrimado pela maternidade.

Diretamente do Evangelho de João (1:1-14) “No princípio era o Verbo/ E o Verbo se fez carne”, a construção da vida poética na encarnação das palavras quentes que nascem e ressuscitam.

cerzindo amálgamas no cio do mundo, quando onda, os poemas de Ylo Barroso Fraga

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QUANDO
ONDA

 /por Ylo Barroso Fraga/


As palavras não são nada mais do que nossa própria vida.
Hakuun Yasutani






A LEI REBELDE


antonio nasceu pessoa.
quando moço, foi arbusto.
agora, mineral.

é bom ver o velho antonio enrubescendo,
o segredo em suas maçãs antigas
que gravitam, grávidas
de tanino, sal.

ferrugem que mama
e regenera
no colostro das eras.

gosto de pensar que antonio
é uma pedra andarilha

(suas falanges provocam abalos sísmicos
enquanto acaricia uma rosa),

e que antonio,
e que antonio
(embora gasta a palavra pedra).

uma pedra andarilha
e porventura ilha de aventurança
pois bem ou mal chegou
e sendo ventura de viv’alma
procria a pedra à ventura
e ao vento ressona e ressona
e seu tributo paga.






CACIDA DO GALO


o limite do dia dança
no grito rubro do galo.

a testa franzida, a trança
do tucum, a palo

seco. toda trama
são franjas da manhã.

sanha – quem ama
sorve da romã

a seiva bruta
e o olhar enxuto.

salta o olho, e evita
o ouro que despista,

o mel que não molha.
arde o hálito.

para a alcova entoa
o galo seu cântico:

nem paga em côvado,
nem conta quântica.

é conta mais simples
mas mais adiante,

uma rede que embala,
um gosto rompante.






VOCÊ, ESPELHO, MINHA TRILHA


olho como ilha
invulgar,
seguindo, ímã,
suas pegadas de so-
no eterno, romã
em flor para o Deus-som,
viagem do dólmen ao dólmen
que ainda sendo homem.

seguindo-as, cegarás.
fitando-as, saberás
como libera seu trom
o incriado, e ecoam
sempiternos seus koan,
sumo e semente:  ôm.






ANTHROPOS


domesticado pelo símbolo
a voz dizendo
atravessa! atravessa!
fustigado pelo meio-termo
saiu sem sombra uma besta: a cria
era a velha notícia enferrujada
e chumbada nos escombros da cidadela
enquanto a cadela armênia
traçava sua rota pulcra
e os vermes rondavam bêbados
a mortalha só veias e artérias

noite que um sol contém
sob o ubre machucado
o cio exortando a um outro céu.

domesticado pelo símbolo
suportou o peso da carne na carne
cegou ao diapasão da alvorada
Zagreu em arroubo de arrebol

chagas constritas eram desagravo
ao mar formado de seu suor

e suava e súplicas não rogava
à  árvore plúmbea, ao vento pagão.

nu, imberbe, são, como deve,
o sem métron
de dentro de nós.






JUAN DE LA CRUZ


os deuses sopraram em meu ouvido:
foge, procura no abscôndito abrigo
da luz a cuja chama adere o oblívio.

mas tua falta embalará meu sono
e um verbo entre ser e fazer
emprenhará decerto o dia
do mistério já sendo uma pista.

um e nu
raio e diamante
sentinela dos próprios fantasmas
até o momento da despedida
que verbo inaudito
tanto tenho dito!

cunhei minha infância em minério impreciso
o resto sou ventos, voragens, abismos
numa mesma voz, salmos
a conformar este corpo liso
em tempos que foram
e aqui estou:
vago a esmo
sobre mim mesmo.
entre dor e deleite,
um outro desejo.






SOL NIGER


cio, siso, azo, sazão,
diapasão
cerzido o mundo
feito meu pão

cozido, rotundo,
nas trevas
e servido ao chão.

como cada não
ido a boca
ao cuspo e ao mosto
amalgama

como a hóstia acre
e sisuda ao sangue
ama e assoma

derramei os olhos
neste cautério
inaugural.






SURFE


não sei quem vai nessa onda,
não sei que vagas no peito,
que nume expande no dentro,
mas não falo do instrumento:

não sei o que me ronda.
sal nos mamilos,
salto no breu
de tanto brilho,
impuro, embora,
faíscas, cintilações.*

síntese, síncope:
supressão das oitavas
e o vento dissonante
soprado pelo sol ritual.

teme a turba mas o soldo
vem e a rugina singra os ossos do ofídio
e não há paga que iguale esta quantia
de calor, unguento e paz no precipitado.


*Ronald de Carvalho






ESPELHO DISTANTE


o pai espelhado embala-me nos braços
e forja-me em mim enquanto anda
em seu roteiro de minério.

ao espelho distante entreguei-me e já
não me cabe saber a medida de minha decisão,
a parte que tomo nesse mútuo ato.
emudeci, e voz evola não sendo minha,
mas ainda em mim maior que eu.






AURORA BOREAL


um velho alquimista em seu barco,
ele nunca pescou.
olhos postos no céu,
traz n’alma o espelho
-libélula, ela, esse elo
iriado e boreal. real
aqui, lá ela
é sal da intempérie magnética
em pleno mar abismal
e vai, nos vaus
celestes,
nas hermas d’estelas, Hermes
prestes
a alar-se
(lés- nordeste ou oés-sudoeste
estou, tudo movendo-
se) e senda sendo
deste êxtase,
redigia o sempre velho,
equilibrando-se, ponto,
no pequeno bote.
mariposa-psique pungente e penugenta,
sexoroboros,
larva do ovo cósmico
cá embaixo, refletindo
no lago, onde se anima,
como em cima
scribit tabula smaragdina.
e o filósofo persigna
-se enquanto pensa:
quando a ninfa abandona a exúvia,
eis a aurora boreal.  um dia
também meu tegumento
ao lodo será fermento, a alma
libérrima, ela, esse elo,
ao céu, afinal.
e escreve mais uma vez
the scientist writes a letter*:
juntasse milhão de vagalumes
em um domo, afugentado o mal,
jamais alcançaria o gume
que transparece n’aurora boreal,
jamais atingiria o nume
da bruta flor em límpido fanal.
jamais a mariposa hirsuta,
o cândido e vago lume, a tal
tênue flâmula, jamais.


*Tom Verlaine






A PEDRA


movimento indestrutível
vazio substanciado
abismo entrópico
curva perpétua
onda imóvel
sphaera & caos

seu caminho é um espanto
sempre íntimo e repetido
de clepsidra ensimesmada
marcando horas passadas






FOGOS AO LAGO


cá como lá
no lago
lágrimas luminosas
fogo fugaz






SONHAR COM PEIXES


os quadris dos peixes,
seus ângulos insuspeitos,
sua mudez telepática:

o que me move enquanto pesco,
anzol sem isca,
o que interrogo e doura
sob a tez ondulada do riacho;

o que anima, imagino,
a viuvez do vento, ao transformar
dor e beleza em alimento.






SÓRDIDO


a lua é uma boca cariada
a lua é uma ovelha tosquiada
a lua é uma pústula inflamada

a lua é cálice derramado
a lua é sangue coagulado
e esse poema é meu pecado

pois a lua é um satélite natural
da minha melancolia.






WANDERLUST BLUES


feri um touro com minha melancolia e julguei árduos processos
com leves badalos d’um sinete que já não tenho às mãos,

e quem pude manter cativos são os que agora me confortam
enquanto sonho entre duas portas abertas.

baseei-me para tanto no tom cinza, brando e fundo a um só
tempo, o tempo todo apontando para dentro.

o que queria esse temporal silencioso anunciando-se
ao conduzir-me a esse aposento?






A FLECHA


até onde o farol se adivinha
a praia é como um arco tensionado

tantos antes de mim já fizeram o mesmo,
no entanto não estamos mais aqui

só a maré forte desenhando o passado
o fumo da maré esvaindo-se:
no entanto ainda está aqui






PAZ


céu raso e amor conosco
lá, a lua, tão muda
tão satélite
é uma pedra






BODE


o bode toca a pedra, a pairar
e é como se a pedra o tocasse
e a ira do bode arrefecesse
sobre o cimo da ira milenar:

o balido o que sela o mister
da pedra e do que circunda
como grito que quebra sobre os picos
do silêncio e funda
fogo e fé.






GESTO


entre o gesto solitário
e o gesto solidário
pendo

acima do silêncio
pairo






ELENA


Elena
a memória latente
vem de frente
ou de trás¿

Elena
onde hajam telas
o que pintarás¿

Elena
agora você emposta a voz
mas o agora já foi
e a resposta sói
dormir
entre os lençóis
entre os entres
entre os tantos
entretantos

(vírgulas que cospe a vida)

entretanto
Elena
eclodiu na bruma
um consolo
vá pega-lo
, Elena

quem sabe é sua voz
e se liquefará






O COMPORTAMENTO DO FOGO


um animal que adormece
em prestações febris
o elán mineral entre espírito
e matéria
o mistério apascentado
no elo perdido
o entre que adere
desde o princípio

os olhos amarelos da coruja
quando extintos
a ver na delicada chama
a própria adolescência do sol






LUAR


a velha língua do lago
engendra a palavra luar.
no abismo nada tomba:
novo idioma é forjado,
perfumes chegam do mar,
informes dados pelos navegadores
aos fantasmas enfunados nas velas.

a velha língua do lago
e seu semblante glabro
roca que fia
e desafia o traduzir.








PINTAR
Para Gil Fraga


o vento da melancolia enroscou-se em minhas narinas
e as águas paralisaram.
só o pintor se interessava e expunha o sol,
mas a claridade amainava
a verve plástica do horizonte
- esticando -
e por fim a fímbria
do traço trêmulo
alcançou a nota exata e fugaz
e viu-se na tela o movimento
do que na mente ia.







CLITOREA TERNATEA


um livro glabro,
que abro, dobro,
sondo e afundo.
desvelo o novelo,
rompo o mar vermelho
num gesto messiânico.
a palavra epifânica
revela ao mundo
seu gozo profundo.







O POÇO AZUL


tristeza que não acaba, mina
limpa, clara e profunda
quanto mais se afunda
no fundo de nossa alma
mais ela fica cristalina:
na capa, poeira fina
no oco, sem fundo, a calma.

pesa a leveza dos olhos
leve a certeza do não que sim, do sim que não
que ao firmamento conduz
e à desmesura leva

levo um novelo
envolto em leveza
e enlevo, e velo
o sacro ofício da vida.




_______________________________
 O poeta cearense Ylo Barroso Fraga, radicado em Brasília há 4 anos, acaba de lançar a segunda edição de seu Tris, livro de poemas que está em sua segunda edição. 




derivas, ancestralidades e xamanismos marítimos nos poemas de Mardônio França

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Poema dO Amor Total

                                                           para cristina gusmão

sou filho do mar
a conclusão é ancestral
lá nas profundezas deste mistério descobri
o mito da estrela-do-mar:
o descobrir da areia e das estrelas
o encontro
preciso e precioso

nesse mar que é libertação
terra cristalina
é minha sereia
que faz o mito da estrela-do-mar
poeira-pó
porque meu amor é do tamanho dos segredos marítimos:
infinito.







Poema Peixe Amarelo


            para demetrios galvão


elefantes, rinocerontes & baleias
eles, esses gigantes na sua rebelião,
tem muito de poesia

libélulas, cavalos-marinhos, beija-flores
eles, esses sonhadores na sua dança
tem muito de violência

poetas & xamãs
psicóticos & profetas

toda uma geração de narcóticos
e remédios para diminuir a dor
tem muito de poesia
tem muito de violência


ele atravessou o cerrado em busca de ouro
passou pelo deserto dos lençóis maranhense
em busca de fugida escrava
passou pelo um rio q tem meninos de cabeças gigantes
se perdeu no desfiladeiro da morna teresina
fincou raiz e família
fez do rock lisérgico uma prosa poética surrealista
pixou os muros da cidade com a lente de uma turba de poetas marginais.

decantou revistas
imprimiu livros
gritos translúcidos no meio da pedro segundo
no troca-troca encontrou amores
no mercado, acalmou o coração entre pingas e paneladas.

a vida ensinou muito por meio de uma criança
muito mais do que livros e livros e academia.







poema para os libertinos das estradas


preciso urgente ver uma explosão na lua ou em alguma remota super-nova:
ele veio com os elixires do oriente e a flor de damasco
veio com o tapete da pérsia e o rubi do deserto
com espadas de alexandria e a feroz viola do reisado
partiu pela velha cidade portuária
o forte de nossa senhora dos espantos pisava e a cada salto, uma nova era, se
fazia por seus pés andarilhos, gerações, lâminas de poesia, doce, doce júpiter,
torcidas & festim entre os artistas, brincadeira, carroceis, corcel, minha
poesia é um corcel negro avançando por entre o cotidiano do sol amarelo em
busca de uma lua, nueva-lua, cadafalso e uma velha bastilha,

começando nas eras-guerras, tardia, silêncio, calmaria,foguetes

tudo se esvai no desfiladeiro da cidade de fortaleza
a cidade
a cidade
a cidade & os anjos que assaltam
e tudo começa de novo no dia seguinte.
depois do carnaval

sem use – abuse da poesia
avise qdo chegar
q vou preparar a trança do sonho
vou trazer o brilho do particípio e desafiar o tempo
avise qdo será o dia a partida e o caminho
qdo os pássaros serão libertados
os meninos sírios puderam andar livres nos parques de paris
os nigerianos brincaram com barquinhos de papel em veneza
os fugitivos da guerra da seca do norte do brasil terão
terra, água e plantio
avise qdo o dia, e ele chegará

não vamos duvidar de dali e de dom sebastião
dom dom dom sebastião
que chega com os saltimbancos dançando toda a relva do mundo
no sarapintar no meio do bloco de carnaval do litoral brasileiro

vem e fica no meio do nada desafiando o sal e o sol
vem e chega perto, desliza no meu peito |  mordisca meu coração infiltrado e saltimbanco

vem desliza na praia na raia do mundo na saia do vento
vem participa da alegria com o punhal e a poesia
arma paixão, coroado movimento nas ruas
distribuídos flores astrais & canções de amor
viola veleiro canção do tempo.






_______________
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Mardônio Françaé poeta e editor da revista Corsário. Em 2012 lançou o livro-objeto Mitologias. Participou da antologia de poesia brasileira, Massanova (2007), da antologia Encontos e Desencontos (2007). Foi co-editor da revista Gazua. Publicou 3 números da Revista Corsário. Editou 16 livros pela Editora Corsário. Fez diversos videopoemas, como o premiado “Mário” sobre o poeta Mário Gomes. Estuda física por amor e gosta de ver o mar em Fortaleza com Cristina.

olhar que se infiltra como vento nas frestas da cidade, algumas abertas a tiros de fuzil, eis os poemas de Luanna Belmont

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o vento
    entrando       pela janela
                  altera
            a temperatura
                   a respiração
                          o frontispício
                                          altera
                                 a espera
                            o verso
                      o início

                  no vento se ergue
                        um edifício
                              feito
                  de língua e tempo
                          um grifo
                           um eito
                    um monumento

                          no vento
                                 um nome
               balança
                             uma folha
balança
                    dezenas
                  (uma conspiração)
             escapando             voando
           da solenidade das árvores
             entre                             elas
                         folhas   folhas
                    de várias espécies
em fuga
                  em próspero abandono
                            na mesma direção
                                na mesma direção
                          palavras
                                preces




* * *




cdd

a certa altura do sol da manhã
a linha amarela é um túnel aberto
um corredor
entre duas fileiras de casinhas 
geminadas e coloridas
muito semelhantes nas suas circunstâncias 
de alma
são azuis amarelas na aguada
eventualmente ocres
às vezes um verde resvala 
de uma a outra
enquanto o asfalto olha rapidamente
para elas
as casinhas da cidade de deus 
à beira da linha amarela
ao longo penduradas
como pequenos cordéis
despedaçam na beleza
o tiroteio
o fogo cruzado sobre os carros
os ônibus apedrejados 
as barricadas de pneus incendiados
fechando as ruas
os protestos viciados
os estupros vazados
e os imponderáveis
o caveirão blindado 
os fuzis eretos na paisagem
os meninos baleados 
pelo dia puro
a beleza do medo pode ser
um avesso 
de tudo 
pode ser um muro
que não há 




* * *




o livro das coisas

existe um drama nos livros fechados dentro
das bolsas
nos dias chuvosos
ou nas estantes empilhados
existe um drama comprimido dentro
das bolsas onde se guardam os livros
tirados da estante
um drama fechado respingado
um drama úmido
a enfrentar calado a umidade visível
do lado de fora
insidiosa sobre o gomo mole das coisas
mesmo as mais áridas e indiferentes
quando chove muito
quando chove há dias
molham-se os sonetos e os semáforos
de tudo que neles se esconde
e a partir deles existe
fica evidente a cavadura das coisas para além de si mesmas
a catapulta das coisas
quando chove
é quando fica evidente também que um drama existe
dentro dos livros como coisas úmidas
desde sempre
amolecidas pelo seu propósito
drama pressentido e perdurado nas frestas
verdadeiras ou pintadas nos quadros
por onde a chuva acontece
e as coisas acontecem
além do seu espaço
dentro de outras
dentro de si que são sempre outras
como a chuva
só onde a chuva de fato molha
ou encontra
a chuva
água
precipitada sobre
água
assim o drama de tudo fechado
dentro de si mesmo
encharcado de suas próprias substâncias
como livros à espera sendo
o que não passa
esperando o que não passa
existindo por dentro
do livro que não é senão
livro das
coisas
precipitadas sobre as
coisas
o livro das coisas fechadas
híbrido livro
da chuva das coisas
mesmo depois que a chuva passa

existe um drama na página fechada
um drama na capa
um drama sob a carapaça
existe um drama que tudo traça
um drama que foi um dia épico
ou será
à espera
o perímetro interno da chuva
restando dentro
rente às curvas das coisas
como se a paisagem fosse
perdendo
palavra por palavra
o seu sentido




* * *




para adormecer o corpo

vc ficaria surpreso ao saber até onde o corpo é
vc ficaria surpreso
ficaria até duvidoso e atônito diante
desse corpo
desordenado
magoado
ferido
injustiçado
calado
envelhecido
um corpo radical
vc não acreditaria que nesse corpo
eu vivo o universo
que nesse corpo eu conheço a
plenitude das coisas inomináveis
com esse corpo eu observo o
quanto custa a outros corpos
ser o que são
a sua recompensa vã
e de repente
ou aos poucos
deixar de sê-lo
vc silenciaria se eu lhe contasse
das dores que tive do medo que tive
e, depois de tudo, se eu lhe contasse
ainda que sobrevivi dentro
do mistério
regenerado
vc simplesmente não me reconheceria
se olhasse bem a assimetria das
minhas sobrancelhas
como são imperfeitas e fortes
se notasse os músculos das minhas panturrilhas
quando caminho
como são íntegros e elevam
o meu tronco numa cadência
que eu não planejei
se vc entendesse o quanto hesito
ao pousar o pé esquerdo que
um dia torci na roda da bicicleta
o quanto é estranho porque me sinto quebrada
embora indolor
quando ele estala a cada
passo
porque quando ele estala
a cada passo
eu lembro daquela dor infinita
travando a roda da bicicleta
aos quatro anos
vc refletiria um pouco ao saber
o quanto o calo de escrita do meu dedo médio
diminuiu na última década
desde que, tendo sido sempre destra, parei de escrever
tanto
à mão
e passei a usar todos
os dez dedos na máquina
de escrever que ganhei do meu pai
na adolescência
vc se chocaria se eu dissesse que,
juntos, os dez dedos nunca se cansaram de afundar as teclas
pesadas
da máquina de escrever
onde eu digitava tão rápido
tão rápido tão rápido
não sei onde foi parar aquela máquina de escrever
e no dia em que minha mãe fechou
meu dedo
mínimo
dentro da mala do carro
no vão entre o capô e a carroceria
eu nem lembrei da máquina de escrever
eu não queria ver não queria ver
o meu dedinho esmagado
nem lembrei que talvez não pudesse mais afundar
a tecla a
que pertence ao dedo mínimo da mão esquerda
eu trocaria o ç da mão direita pelo a se pudesse
mas, depois de um mês dormente,
ficou tudo bem com a letra a
e com todas as outras
se vc soubesse o quanto meus cabelos
sempre caíram e sempre nasceram
fartamente
ou como meus dentes tortos nunca couberam bem
na minha boca
e se descobrisse, por ventura, como
mastigar doeu por tantos anos
com aquele fio de aço puxando
tudo para trás
se vc ao menos imaginasse
como esta pequena cicatriz na canela
foi um dia uma enorme ferida
o quanto latejou e o quanto fiquei com
pena de mim mesma por ter aquela
dor enorme virando pus e virando casca
no meio da minha infância
e no ano passado
aos trinta e cinco
talvez vc quisesse me abraçar
quando levei pontos cirúrgicos
sob a mama direita
mais quatro pontos externos no
antebraço esquerdo
onde toda noite
e para sempre
acaricio uma queloide
de dez centímetros
vc não compreenderia, como eu, por que
eram tão tortos os meus pés
quando nasci
e por que tive que usar botas
ortopédicas de couro e cadarços
marrons que não combinavam
com as minhas roupas
quando queria
usar sapatilhas ou
simplesmente tocar o chão
frio com a sola dos pés
vc talvez ficasse indignado
com as quatro pneumonias que
tive
e com as dores de ouvido que desde
cedo
e até hoje
me fazem chorar
vc talvez se comovesse com a vez em que não podia engolir porque toda a boca por dentro
e a garganta
ardiam feito um deus raivoso
como a queimadura de um meteoro
e mesmo assim, acredite, eu pronunciava
aos cinco anos
cada palavra com perfeição e amor
quando minha mãe me mandava ler
outra vez
e outra e
outra
até não tropeçar mais em nenhuma sílaba
até ser capaz de adivinhar todos os sinais de pontuação
até inventar em mim todos os personagens
até talvez virar eu mesma a autora de
todos aqueles textos
eu entoava a voz no movimento
dos lábios
(que nunca haviam beijado ninguém)
os lábios conduzidos pelos olhos espertos
que saltavam os intervalos das palavras
e dos versos
e seguiam as letras como se tudo
até o silêncio
fosse palavra
é preciso ter olhos espertos
aos cinco anos!
e tudo enfim
enquanto eu lia
voltava
para mim
extraordinariamente
para dentro de mim
a minha voz
que eu ouvia tão bonita
tão perfeita
lendo
contornando as curvas das palavras
contornando alguma coisa que era
enfim
perfeita
a minha voz carregava para dentro
do meu corpo
por dentro do ouvido
todas as palavras
vc não acreditaria que isso é possível
vc não suportaria a ideia
de que um corpo
como o meu
cheio de cavidades e
e lembranças
seja apenas
na verdade
uma câmara
de ecoar
palavras




* * *




dizer

uma voz perdura
insistente
como uma cura que eu não sei
a que veio
terei estado sempre doente?
ela sussurra e eu digo grita
grita e eu digo soluça
me obedece feito uma burra
que ama
maioria das vezes
falamos juntas
outras não 
vingança
me abro em eco
para que ela recite
ora doce ora grave 
coisas desconhecidas 
mínimas coisas inscritas
como formigas vindas de longe
de muito antes
que vêm de quando em quando
andar sobre a minha pele
me tomam toda
meus olhos narina
minha boca
num ritual estranho 
a que costumo sobreviver 
há muito tempo
te deixando dizer essas coisas
que não entendo




* * *




de como matar o desejo:

morrendo um pouco
com ele enquanto
o atrito
com força
meticulosa
contra a luminosidade áspera
do poema
do corpo do poema
brota
e sobre ele se espalha escorre
como uma resina uma secreção
o desejo-âmbar
a cicatrizar
a fossilizar
no poema
o único poema possível
o único que nele
existe
nascido
de uma ferida quente
em seu corpo
na sua casca
exposta
à luz além
luz grave e sólida
além luz do obturador
dos olhos do poema
que nunca se fecham
além além luz
luz
que feriu e marcou
e gerou
contra si mesmo
o poema
resina fóssil
de todo desejo




* * *




para uma medição plena da minha sorte

algo terrível matura
enquanto escrevo
uma ilha um automóvel
uma esperança
enquanto escrevo é sempre um
ponto que alastro numa direção
impertinente
incontinente
uma perdição
como se uma reta mesmo
infinita
não bastasse
e não bastando
explodisse antes dela
em si mesmo
o seu ponto original
(qual?)
e dentro dele
oceano
o ponto a que enfim me recuso
e não escrevo
dando voltas acercando-me
sem querer matar a charada
de nada de nada
quando escrevo
algo
surpreendente não acontece
tudo não passa
de uma ocorrência que se move onde
porém nada
absolutamente nada proscreve
nem prescreve
apenas o nada
como no olhar do king kong
antes de cair
como logo depois da
primeira
nota de uma música desconhecida
do primeiro gozo
ou o nada de um domingo à tarde
com sol
numa rua do subúrbio
quente quente
onde se viam bancas e gente
agora um silêncio só
brilhante
toma tudo
o comércio fechado as calçadas livres
cada parede suja da tarde suburbana
endossa o mesmo dom
particular e perverso de viver
uma certa desordem
que acompanha a linha do trem
mesmo calada
que amalgama as vozes distópicas
dos radinhos de pilha
uma certa alegria erótica da falta
e do sonho que perfuma
demais os corpos
que lambuza demais a vida tola
a vida toda
até o fim dela
até o fim
seja de qualquer jeito que ela venha
e no meio da tarde amarela
do subúrbio
só um carro passa
na rua vazia
para confirmar
o nada
essa outra espécie de felicidade
muito parecida com
o que pode ser belo
porque acaba
simplesmente acaba
como o não infinito das coisas
e outra coisa começa
a chuva o sol a tarde
um assalto ao posto de gasolina
ou alguém cantando pneus na noite
o que pode ser belo porque
aponta
o limite
a violência destravada do
belo belo
onde nada absolutamente
nada acontece
é assim quando escrevo
zero a zero
infacto
intacto
como um paredão de pedra
úmido repleto de bromélias
verdes
depois da chuva
nada acontece nada
enquanto persigo
as pistas do que excede
e não pára
apenas se sucede
sem definitivamente acontecer
como se tudo fosse espera
ou ácido
então embora nada
efetivamente
aconteça nada avance
flagro essa mutação
in natura do tempo
feita do que sucede
do que concorre
do que interrompe
sem avançar nem voltar
o tempo
o ponto
expandindo esse nevo
então para disfarçar quem sabe
escrevo
como quem bebe
como quem fuma
como quem trepa
como quem come
ou dorme
ou rouba
sem constatar nada
seguramente
sem dizer nada
relevante
nem a beleza que porventura tenha
um nome
nem os sons que deles carecem
vazios e plenos
de identidade
mas nada
enquanto escrevo
seguramente avança
apenas mudo
o ponto de vista
o ângulo do desejo




* * *




registro

quando abro minhas pernas
em frente ao espelho
para medir e tocar
na origem possível
a densidade
do meu desejo
a sua falha espessa
o quanto ele se distende
viscoso
do indicador ao dedo médio
até o polegar
o quanto ele escorre
radioso
lento
entre o que dentro
eu não lembro mais e
o que fora de mim me
exaspera
o que eu vejo então não é
o que ele vê
antes de me pegar fundo
de frente
quando me pede para
levantar bem os joelhos
o que eu vejo não
é o que o cega quando
ele me lambe
o que eu vejo não é
nunca será
a entrega que ele pretende
a posse que ele aprendeu
e eu consenti
até implorei
lá no espelho eu só
quero ver o desconhecido
o indecifrável
encabular diante do meu
mistério brabo
carregar comigo essa memória
de mim
para todas as horas




* * *





a algumas pequenas coisas que não existem

não há espaço
the reis no room
no hay vagas
como dizê-lo de forma
que não seja dito a alguém
que não seja a recusa de alguém
a outro alguém
de forma que não seja o acolhimento
a alguém posto em xeque?
no room
como dizer sem que o dito seja
sempre e também
a lembrança de uma solidão?
não há espaço
como dizer o que não há sem que isso seja
absolutamente pessoal
sem que o não haver se disponha aberto
como um flanco vulnerável?
como dizer o verbo
que nega
o verbo cancelado
natimorto
sem que ele diga
a despeito
algo sobre o outro
sobre um fenômeno além
da língua?
como dizer da inexistência
sem negar, juntamente com isso, também,
a existência de alguém
sem dizer, ao mesmo tempo,
eu não me importo com a sua dor?
no hay nadie
não há ninguém
não é o mesmo que
você não existe, eu não existo?
as palmeiras têm no topo lanças altíssimas onde
o vento se divide onde
nascem as folhas novas onde
o céu vai distendendo o seu corpo longo pelos anos
e os raios reclamam a sua descontinuidade
como não dizer então sempre
e simultaneamente mais
de uma coisa duas três
sem que uma delas seja
eu não amo você
ou
eu te desejo?
como não implicar alguém
no que falta?
como não repousar a falta na letra
a letra na língua
a língua no vento
o vento no não?
o que não existe divide
reivindica sua conexão
com tudo o que há
o que não existe cria raízes
por onde a vida se alimenta
túneis vilas vales mirantes
tudo enraizado no não há
o que não existe não prescinde
de uma perspectiva e é capaz
de nos calar
de nos encher de vazio
de invisível
e depois inventar sob muitas formas
a sua presença
o que não existe nos invoca
e não obstante nos faz falar
das possibilidades
a que chamam fantasia
outras vezes tempo
o que não existe nos
ocupa intimamente
incorpora a espera
às expectativas
às paredes
o que não existe está
na latitude vertebral da ideia
enterrado com delicadeza pero
com profundidade
num pequeno vaso vietnamita
azul
e lá permanece
exótico
admirado
pelos teus olhos




* * *




Encapsular

Elza quer um queijo.
Aos poemas sem papel,
pré-inscritos na atmosfera,
qualquer coisa basta:
uma anotação, uma dúvida,
um passo-a-passo, um endereço.
Elza quer um queijo        faz eco
além da conversa ordinária
ao telefone.
Anoto. E descanso
como quem acaba
de colher um poema        inteiro
de ouvido.
Não me interesso pelo
desejo de Elza.
(Elza é uma selva azul?)
O desejo de Elza, porém, interessa
à minha língua, instala
na minha língua
uma nova ratoeira.
Cruel e implacável.




* * *




Desi Boy

quando teus pelos claros se grudam
à minha roupa mais banal maculada e descolorida dos dias
também banais
és então um cão
lembro o que és
és um cão
e eu me calo diante dessa constatação
que para mim é um horizonte
calo diante dessa verdade fortuita
como todas
verdade: distância entre as coisas
ridículo incongruente no escuro anguloso e tátil
das coisas
verdade: solidez do que não hesita
porque é - cão mulher -
verdade que resvala o pensamento
da mulher do cão
come-o, o pensamento, por dentro
cão, mulher
porque o que pensa não é espera
não é
contento
é pressa estática desdobramento
por isso espalha-se pela roupa o pelo
(pensamento)
claro de cão
fios caóticos firmes
ordinários cintilantes
linha demarcatória desfiando-se
em vazante derme
a descobrir-se a desfazer-se
como hóstia abraçada a outro tecido sobre outro tecido outro
finalmente humano
pelo roupa pele entroncamento
de panos
breves cobrindo
nossos breves espantos
(a tua orelha levanta ante ao que nem ouço mas me ensinaste que mesmo existir é uma hipótese)
cão, mulher
contração que polui o universo
e o corpo
de revezes e antígenos
desde quando há muito éramos menos selvagens do que hoje
já juntos
és cão
(eu mulher)
sobre os meus negócios
sobre os meus silêncios
entre o meu ócio
e o teu instinto
desenhamos uma haste
recíproca
uma distância vesperal
que agora mal conseguimos medir
e que nos pertence e prende
na rua
na montanha
no pasto
no gelo
no rio
na praia
no jardim
no quintal
na sala de estar
no tapete
no sofá
no quarto
na bolsa
no cinema
hoje mais que antigamente
mulher breve cão
aprendemos juntos a entrar
e a sair da casa
a rosnar a latir
aprendemos o que é uma casa
em nós
a ficar e fugir
cão, mulher
farejas em mim
e além o do que
não dou conta o que me acomete
aquela lâmina de horas que para ti
é logo
para mim é de dias
e enquanto farejas
és
um pedaço do tempo que respira forte
(sei do teu coração fraco do teu
exangue desespero por ar fresco no verão úmido da floresta onde vivemos e plantamos nosso amor)
às vezes deglutes pedaços da tua
história breve na câmara imensa
da tua boca
estirado no chão
engoles pouco a pouco o teu passado
anterior a quando nos conhecemos
anterior à nossa estupefação juntos
(eu te tenho e tu me tens, monstros grandes que se abraçam emburrecidos de ternura, e poderiam nem ter se conhecido, eu poderia nunca saber o peso da tua pata no meu quadril)
o teu passado lá na serra
nas corredeiras da fazenda
junto dos outros cães
tu o engoles
sufocando até sossegar
olhando ao redor a tua casa de agora
o piso frio em vez da grama
me encontrando por perto
assim aspiras um pouco da morte de todos os cães
que já tive e terei
nome indizível
morte
porque falável indizível
cão
tiras do oculto de mim esse nome
e o colocas entre nós
tu me despertas para todo fim
me colocas diante da brevidade do dia
porque ter um cão é perder um cão
ter um cão é lembrar de ter tido
um cão
extrair uma rapsódia eloquente
do que sempre poderia ser
maior
se pudesse sê-lo
e sabendo disso
vivo mais um pouco nos teus pelos
louros
sobre a minha roupa
na tua companhia perene
como nos oferecem os cães criados
por trás dos nossos olhos




* * *



Luanna Belmont já foi publicada em Mallarmargens, com vídeo de Gabriella Capper a partir do poema Os caminhos de onde eu vim: veja aqui.




_______________

Luanna Belmont nasceu em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 1980. É formada em Comunicação Social pela PUC-Rio, Mestre em Literatura Portuguesa pela UFF, e atualmente faz doutorado em Ciências da Literatura na UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre poesia contemporânea. Mora entre os seus cães, o seu gato e os seus livros, no seu jardim incrustado na floresta. Em 2016, publicou, pela Editora 7Letras, na coleção Megamíni, o livro de poemas Sobretudo verde. Costuma postar seus textos no Facebook. E-mail: luanna.belmont@gmail.com

violência e delicadeza, os poemas de João Henrique Vieira redesenham Teresina no centro do mundo entre anjos, bêbados e luzes de mercúrio

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I
depredações

depredações
o medo que se esconde por detrás da música
do órgão
do peito

tempo é gaveta de ocupações
– desocupar o tempo –

sonho é palavra desajustada
fazemos gambiarras

com o belchior aprendi dizer dane-se
– dane-se –

encartada no jornal a realidade é um folheto que anuncia poesia e depredações








II
sexo e solidão a três

sobe a luz do mesmo poste
embacenta como todas as noites
com lua ou sem lua, com mais ou menos vida
que estava a luzir aquela esquina há bastante tempo
encontraram-se na mesma hora não marcada
mas sempre pontual 
doidinho, celinha e lulu
um drogado
uma puta velha e viciada
e um viado metido a besta

ao ver doidinho, celinha abre um sorriso escrachado e com um sonoro tapa na bunda diz pra lulu
- hoje eu vou trepar e me chapar, ô coisa boa é fuder doidona, vem doidinho, vem!
Lulu esgueira-se e de rabo de olho diz, dar para aquele ali, meu cu nem treme
– pau é pau, é tudo igual, ficou duro eu engulo, disse às gargalhadas celinha
– e fuma! Lembrou-lhe lulu
a puta não se conteve e soltou
– me desculpa, bicha, mas priquito é priquito, faz milagres

ao cabo de meio baseado, doidinho enfia a mão na bunda de celinha, enquanto lulu passa a goma no baseado de modo lamber como se chupasse um pau
doidinho olha e diz, doido pra chupar um pau, né luluzinha, luís augusto!
– vai tomar no cu, fidirrapariga!
– eu vou, mas tu não vai, zomba-lhe doidinho

celinha pega o baseado e põe um peito pra fora do decote

celinha doidinho noite lulu e o poste
– trepada na esquina –
sexo e solidão a três.








III
nos escondemos para experimentar a liberdade

nos escondemos pra experimentar a liberdade
nas madrugadas nos nossos abismos particulares
amanhã se escreverão dias de borracha e chumbo
e depois de amanhã alguém apagará e escreverá novas histórias de afeto e coragem

nos escondemos pra experimentar a liberdade
nos abraços, nas ausências, nos braços do desconhecido
o bicho deseja carne poder e fotografias
pufpuf fotografias
pufpuf fotografias
a pintura começa em branco nascemos do nada
não acreditamos em nada e matamos
não acreditamos em nada e parimos
não acreditamos em nada e perdoamos
não acreditamos em nada e precisamos pedir socorro

nos escondemos pra experimentar a liberdade
existe um amanhã pela frente mesmo quando não se sabe nada
carregamos coisas, manhãs, anotações e roupas velhas que dão sorte
- sorte é um disco novo -
no meio de qualquer coisa eu sempre me perco entre o calor e a chuva rala.







 ________________________
João Henrique Vieira é escritor, jornalista e produtor cultural. Natural de Teresina-Piauí. É formado em Comunicação Social (UESPI). Teve textos publicados em revistas como Academia Onírica, Roda de Poesia & Tambores e outras. Publicou de forma independente, em 2010, o livro de poemas “Olá, meu caro” (disponível na página facebook.com/olameucaro), e trabalha na produção de um novo livro de poemas. É idealizador e coordenador do Projeto Roda de Poesia Tensão, Tesão & Criação, que reúne poetas e produtores culturais contemporâneos teresinenses.  

o vazio espera você no fim do corredor, ou do coração: conto de Luciano Portela

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imagem de http://www.delas.pt/

Bela Cintra, 196

/por Luciano Portela/

 
Eu queria sair do tédio. Ela custou 150 reais por meia hora. Dizia que seu nome era Kelly, mas eu não sabia se era seu nome verdadeiro. No quarto do motel restos de lanche Mc Donalds espalhados na mesinha abaixo da tv que tocava musica sertaneja na estação de rádio da Net. Kelly Atende as quintas e sábados. Mas as quintas rola a promoção. Cento e cinquenta reais com oral, anal, massagem e 69. Se você quiser pode gozar na boca, Kelly deixa sem nenhum problema. Eu só queria sair do tédio e esquecer um pouco da minha própria vida. Kelly recebeu o dinheiro e eu tirei a roupa, ela perguntou se eu demorei pra achar o local, apenas disse que não. Pelado e deitado na cama, é assim que todo guerreiro deveria morrer. Kelly começa a me chupar. E chupa mal, rala os dentes na minha glande, mas mesmo assim demonstra esmero. Eu finjo gostar, só queria relaxar um pouco ali, sendo chupado pra sair do tédio. Começo finalmente a olhar Kelly com maior atenção: ela tem uma beleza periférica, mau gosto musical, e se maquia muito mal. Mas era educada pelo que notava, devia ser uma moça de família que fazia tudo escondido para ganhar algo. Apenas 25 anos e aguentando trogloditas de todas as espécies possíveis, até os entediados como eu. Foi tirando sua lingerie que eu notei que ela praticava exercícios em alguma academia, tinha cintura e braços definidos, homens gostam do estilo panicat. Ela tinha meia hora pra me fazer gozar, chupava no ritmo de uma punheta, mas parou num dado momento alegando que não era garganta profunda e que se ela forçasse poderia vomitar. Fazia tudo o que eu quisesse e se demonstrava tão mecânica que eu não via graça alguma a não ser a de ser mal chupado. Pedi um meia nove que foi prontamente atendido, sua buceta tinha gosto de sabonete de motel, ela arrepiava em alguns  momentos a partir do contato da minha barba e minha língua nela. Às vezes eu pensava que era por dor, fiquei com pena. Brinquei com seu rabo como quem brinca com a própria existência, fazendo troça da mesma. Despejei saliva e frustrações naquela buceta com gosto de sabonete de motel barato. Eu disse que ia gozar, botei-a de joelhos. Estava há cinco dias sem bater uma. Não quer na boca? Ela perguntou. Disse que não. Só não acerta meu cabelo porque não vou lavar ele hoje. Kelly tinha cabelos descoloridos, californiana, acho. Gozei bastante, me senti no íntimo um touro reprodutor. Ao mesmo tempo em que percebi que Kelly tem nojo de porra, ficou desconfortável e saiu antes do término. Foi se lavar para o próximo cliente. Eu só queria sair do tédio.

______________

Luciano Portelaé historiador, mora em São Paulo. Publicou o livro de contos Carolina foi Para o Bar exibir seus lindos Pés (2014, Ed. Giostri) e o romance Tudo que Afeta o Movimento(2017, Ed. Penalux).

FRESTA - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Marion Elizabeth Adnams

o porto passou
nenhum horizonte mais fino
ou mais néscio
ou mais impuro
nesses 1.200 dias de lonjuras
e credos..

cremados meus vinténs sem esperança
(ainda que tivessem bonança)
eram risíveis os sons desfigurados do cortejo
sempre engatado em minha servilidade via destino

crepons azuis de intolerância

as virtudes já vazias vazantes

os métodos, os insetos
os inseticidas, enfim, ao algures glorificados das doces memórias
crus e cruzados na sombra do asfalto

eram fatos ainda que factóides
eram mansos ainda que armados e armazenados

cristianos e cristãos de envergaduras puídas
passadas ao relento de cada dia
eram uniformizados, depois de alguns anos,
para se estreitarem de passado (futuro desconsiderado)

eram vergados e vingativos
com falácias e facultativos
vermes expandidos até o arrozal viúvo de minhas sombras

insultantes na pouca misericórdia de cada dia,exigiam genuflexões
ainda que pudessem passar encolhidos nas madrepérolas do oratório

(sim eu vigiava o horário das rezas em busca da intensa comunhão dos furtivos da noite para alcançar aquele silêncio de vitrais e meditações)

já não supunha as formas e suas alcovas de singelos medalhões
visto que as pregas das considerações me bastavam

e mais ainda os claros nódulos do impedimento
pois sabê-los era virtude e virgindade nesse cair de tarde

(a carícia do nódulo da realidade se afirmava invicta e invejosa 
dos que, sem comiseração para os seus contínuos insultos,
se assoberbaram na fluída fresta da água)

manhã e mãe
ardilosa
espumenta
vigorosa
fugidia
imanente
permanente
insana e
insolente

em mim seus dias corriam como um brâmane sisudo e contente
alvéolos de indecentes, pormenores de confidências 
(no prazer melhor é o relento, o copo d’água fino 
e farto sobre a mesa, o não entendimento).


JANDIRA ZANCHI

Skyleros Dermis - Bárbara Lia

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Carnaval neste país tropical. Não dançarei. Nunca vivi a folia. Eu sou das distâncias, das meditações, da suavidade da bossa nova, da poesia de Chico Buarque e da irreverência de Caetano Veloso. Vou passar o carnaval contigo, Klee. Por puro amor.
Pudesse sentar ao pé de ti nesta fotografia, neste verão inacreditável, eu te daria um dia de belas canções. Distrairia tua dor de pele dura.
Esta fotografia, um ano antes da tua morte, estampa em teu rosto uma dor que me aniquila. Uma lâmina fina descasca meu coração diante de ti, que amo desde que vi teu universo de estrelas vermelhas dentro de uma romã.
O meu olhar foi tocado por um amor abissal na primeira vez que cortei ao meio uma romã no quintal da infância. Foi assim nosso encontro a sós, Klee. O sumo banhou meus dedos e estrelas saltaram diante dos meus olhos. Era da cor vermelha o ninho das estrelas e havia ali todo o universo explodindo. O aroma, a calda espessa entre os dedos e o sabor incomparável de estrelas entre os dentes. Lembro que havia sol. Lembro que eu senti que algo pulsava em minhas mãos. Lembro que pensei, pela primeira vez, que a vida era bem mais do que supunha toda gente. Era a primeira vez que meu olhar pousava na escandalosa assimetria da beleza, por isto, eu te amei ali. Demorei em saber que a primeira pintura tua que eu vi foi ali, no quintal. Sempre te amei, Klee, me casaria contigo. Comeria teus olhos grandes e profundos. Angustiados olhos de quem entende o mundo. Sofro teu triste olhar dirigido a um ponto cego, como quem interroga como muitas vezes eu mesma interroguei: é minha esta dor? A mim coube esta rara escolha, entre tantas criaturas o anjo da deformidade se volta, meio estranho e triste, ainda que cínico, lentamente ergue os braços e aponta para nosso esqueleto sonhador, perdido no mundo sem saber o que fazer com tanta energia de Amor.
Dizem que é a dor que molda a Grande Arte. A dor é uma das ferramentas, apenas isto. Sei disto ao te ver exímio gênio antes da esclerodermia.
Teu semblante me aniquila, e choro. Tuas mãos de dedos engrossados e o teu rosto sem ruga alguma como se fosse uma escultura. Tua dor de pele dura, de quem não mastiga e não processa dentro o básico do que é humano. Lindo, ainda que assim, triste. Belo homem, querido Klee. Teu terno de linho branco, tuas mãos duras a enlaçar-se – como prece, talvez – em teu colo. Em teu mundo desabado, quanta dor, amor! Amor! Amor!
Se soubesses o encanto de luz que derramastes pelo mundo. Quantos poetas navegaram na tua luz de alma. Quantos dissecaram teus anjos e tuas telas de peixes, estrelas, estalactites desordenadas. Tua doçura nas horas com Felix – seu amado filho – a produzir fantoches.
Há um céu de outras estrelas depois de ti para uma infinidade de artistas. As tuas mãos, deformadas nesta fotografia, são as mais belas do Universo. Elas criaram rosas ao vento e todo o azul de peixes e pássaros.
Toco, na tela, tua fotografia como quem rompe a membrana do tempo e te toca em 1939. Quiçá por um segundo a flor dos meus dedos derrama uma sutil caricia na tua dor.
Amo tanto o teu rosto triste, Paul. Penso nisto, meu rosto molhado de lágrimas e o meu pé tão deformado e caloso quanto tuas mãos.
Aferro-me a ti, e sigo.

É só mais um dia de dor, amor.




Fotografia de Klee: 
Revista Médica Carriónica - PAUL KLEE: UN PINTOR CON ESCLERODERMIA.

Tela de Paul Klee: Rose Wind



Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Poeta e Escritora. Professora de História. Publicou os livros: O sorriso de Leonardo(Kafka edições baratas), O sal das rosas(Lumme), A última chuva (ME), Constelação de Ossos (Vidráguas), Paraísos de Pedra (Penalux), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR), Respirar (Ed. do autor), Forasteira (Vidráguas), entre outros. Integra várias Antologias, entre elas: O que é Poesia? (Confraria do Vento / Cáliban), O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar - Verbo Atemporal (Rocco), Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo).



ROBERTO DUTRA JR. RESENHA HELENA ORTIZ + 5 POEMAS

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PRECISAMOS CONVERSAR
Roberto Dutra Jr.

Precisamos conversaré o novo livro de poemas de Helena Ortiz, pela Editora da Palavra, que sempre se destacou pela relevância de seus autores. Apesar da intenção da autora, em sua introdução, de “apenas deixar registrados os poemas que fiz num período grande”, Precisamos conversar vem a lume como um volume emblemático.  Leve-se em consideração que o livro de poemas que antecede Precisamos conversar, Sol sobre o dilúvio,foi publicado em 2005, pela mesma editora, e embora neste período a poeta tenha feito publicações independentes e artesanais de seus poemas, Precisamos conversar marca o fim de seu silêncio editorial para um público mais extenso. Sobre ele também incide o sentido de ser um grito de alívio por livrar-se do ano de 2016, sombrio para o país de tal forma que a autora preferiu aguardar para sua publicação. O ano parece que não terminou, isso é verdade, e a como alvorecer das instituições não veio com a mudança do calendário, foi preciso a poesia tecer a manhã possível na palavra.
O desejo de mudança, a desobediência civil, e a condição da mulher brasileira, são centrais nos poemas de Precisamos conversar. Do mesmo modo, a introspecção de uma poeta experiente e soberana de seu processo criativo também está presente em cada página. Não obstante, ela mesma rotular sua produção como poesia de protesto, termo outrora em voga para se referir a vanguardas mais incisivas criticamente e que não se diluíram na agilidade midiática e virtual da pós-verdade do final desta década. É de se esperar um livro que toque justamente no cerne da questão com precisão de franco-atiradora: implacável e poética. Nisto, Helena Ortiz não desaponta.
Precisamos conversar está dividido em três seções, sendo: Eu; Nós; e Só nós. Os poemas contidos em cada uma delas demarcam claramente um espaço existencial invadido pela náusea social. Inclusive, sendo exatamente este o termo que autora usa: náusea. Desfaz-se assim, qualquer leitura que possa valer de alegorias sociais para interpretar sua lírica. Ao contrário, a autora cada vez mais torna-se incisiva, pujante, ao longo do livro. Tome por exemplo os versos dos poemas “Contra-ajuda”: “vão-se em minúcias os dias corridos/.../ e não espero nada/ a cada momento”; e “Último sacrifício”: “o corpo violado cansou da vida/ .../ esperará até que a morte se faça/ vencendo a farsa”. Se por um lado a linguagem e a arquitetura do som consolam, o sentido desola, encurralando o leitor com a ausência de ilusões. Assim também em outros poemas como: “Aniversário” e “Novíssima”, que falam da consciência de si mesma, valendo-se da data de aniversário e do surgimento de uma dor na perna como pontos de partida para poeticamente debruçar-se na insolvência – finita – da vida.
Nós, a segunda seção de Precisamos conversar, expande o alcance dessa solidão existencial para a realidade que nos cerca a todos. O rótulo de poema-protesto, que própria poeta usa, veste os poemas que se seguem como aquela camisa com dizeres que vestimos em um comício – nada mais apropriado. Os poemas “Delação premiada”, “Despejo”, “Caridade”, “Um pouco de guerra”, “O crime foi em Mariana”, muito além de seus títulos, levam-nos à inexorável constatação de que é certo que cabe à História narrar os acontecimentos para salvaguardar os envolvidos. A poesia, por sua vez, apenas registra a verdade em sua crueza. Há uma característica sutil em todos os poemas dessa seção: o tom dialógico nos poemas. Digo, não apenas da autora, ao pressupor um leitor, ou leitora, mas nos versos, como claramente no poema “Caridade”, em que interlocutores trocam perguntas nas entrelinhas. Uma marca da poesia engajada e de protesto, que não fala do povo, mas sim fala para o povo, pois dele se origina.
Helena Ortiz leva a linguagem à sua concisão, seus poemas são curtos e ao relance da observação surge a crítica. Esta, quando trazida ao nível da poesia desconsola, mas transfere-se indelével na memória. Os poemas “Caridade” e “Justiça” desvelam uma realidade que preferimos não ver, mas na imanência da poesia, não poderemos mais esquecer. Há uma revolta que reverbera “O bicho” de Manuel Bandeira, lembrando, que o bicho somos nós.
A terceira seção do livro, chamada Só nós, apresenta poemas que tangenciam a condição da mulher na sociedade. Destacam-se os poemas “A lei que protege o crime” e “Horário de almoço”, pelas qualidades que já ressaltei na poesia de Helena Ortiz, sendo não apenas o relance do olhar transformado em linguagem poética, mas neste caso, pelo domínio da potência do silêncio na poesia. Ambos os poemas acontecem na compreensão das pausas da leitura. Neste espaço entre as palavras reside o vislumbre mais terrível dos séculos de silenciamento da mulher.  Enfim, aí também é o território da artista: esfolar a própria pele, sua identidade, e dar tratamento estético ao que não se ousaria. A poeta arranca a sua escrita do silêncio; daquilo tido como inapropriado para a arte, faz poemas onde outros imaginavam apenas violência banalizada pelos jornais.  A poesia não ameniza a brutalidade, mas certamente não deixa máscaras coloridas sobre a hipocrisia, mais próprias para serem apresentadas na sala de estar ou esquecidas em anuários do governo.
Toda arte encerra grande beleza em nos deixar estarrecidos, sem chão, ou ilusões de conforto. Precisamos conversaré um livro indispensável e que oferece mais a cada página. Um livro desafiador como a pergunta não respondida de Drummond: “Posso, sem armas, revoltar-me?”. Poesia de protesto sim, perturbando como um rumor, que urge ser lida em voz alta, enquanto podemos.
Boas leituras.


ALGUNS POEMAS DO LIVRO:


CONTRA-AJUDA

dias sem paixão
partículas do tempo a escorrer
luz quando é luz
sereno quando escuro
vão-se em minúcias os dias corridos
deixo que passem, ociosos
gasto-os, esbanjo-os,
desperdiço o que me cabe
e não espero nada
a cada momento


AS VERDADES

lamento dizer aos jovens:
foi tudo um equívoco
para mim também mentiram
e quanto me custou desaprender

eu sei quem são os culpados
mas não adianta dizer
os culpados não acabam


CARIDADE

uma chuva grossa caiu a noite inteira
alguma neve, um vento que sibila
ninguém na rua

ninguém
se aventurou à friagem
da madrugada

o dia trouxe a ressaca
e na contagem das perdas
encontraram o corpo

era dele a sombra vislumbrada?
mas não lhe dei a sopa que fervia
nem reparti a roupa que sobrava

se eu vi alguma coisa?
não, não vi nada

que frio, hem?


UM POUCO DE GUERRA

as agruras da guerra
a fome no mundo
a penúria
e no entanto jogamos no lixo
o alimento que desprezamos
deixamos que morra intocado,
na geladeira
nos rendemos à alquimia
e às luzes
da nova gastronomia

desperdício é a nossa grandeza


A LEI QUE PROTEGE O CRIME

passar na rua pelo estuprador
(ele também viu)
pensar que sabe
(sei o que pensa)
sentir outra vez nojo, vergonha e raiva
do bicho que me sujeitou

ali vai ele – está armado
eu – esta barriga



*    *    *


Roberto Dutra Jr. é um escritor em resistência, carioca e deslocado. Mestre em Letras, foi editor da Revista Escrita, contribuiu para o jornal Panorama da Palavra e escreveu artigos acadêmicos. Atualmente oferece consultorias literárias, e leciona quase na clandestinidade. É colunista regular do blog literário Zonadapalavra (www.zonadapalavra.wordpress.com). Colabora com a revista Mallarmargens e usa o Instagram (@robertodutrajr) para experimentos fotográficos com a palavra. Alguns de seus poemas foram publicados na antologia Escriptonita (Patuá, 2016). Leia mais textos do autor aqui.





Helena Ortiz,
por Natália Grill


Helena Ortiz nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, é jornalista e taquígrafa, Idealizou o projeto de poesia  panorama da palavra – jornal de literatura. Poeta e editora (Editora da Palavra), reside no Rio de Janeiro. Estreou em 1995 com "Pedaço de Mim". Em seguida, vieram "Margaridas" (1997); "Azul e Sem Sapatos" (1997); "Em Par" (2001); "Sol Sobre o Dilúvio" (2005); "O silêncio das xícaras" (2009); "Alfinetes" (2012). Além disso, escreveu "baseado em quê?", em dois volumes, sobre a descriminalização da maconha. Mantém o blog "integrada e marginal". Leia mais sobre a autora aqui aqui.



Haicais de inverno - Alvaro Posselt

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Ilustração: Doug Keech  


Frio matutino
Gelada até a badalada
que chega do sino

*

A suinã, tão linda!
Só peço que no regresso
possa vê-la ainda

*

Que noite fria!
Até no copo a dentadura
treme sem parar

*

Vento de inverno –
Na superfície do lago
todo o céu se move

*

O frio dói na veia
Parelhos até os joelhos
dois pares de meia

*

A lareira em brasa –
Na falta de lenha,
os móveis da casa

*

Ai como eu sofro!
Primeiro frio do ano
Quanto casaco com mofo

*

Árvore de inverno –
As poucas folhas escondem
o pio do pássaro

*

Um vulto no muro
Não fuja! Pia a coruja
e some no escuro

*

Dias desiguais
Agosto deixa no rosto 
uma ruga a mais




Alvaro Posselt nasceu em Curitiba. É professor de língua portuguesa. Publicou Tão breve quanto o agora(2012), Um lugar chamado instante (2013), Entre arranhões e lambidas (2014), Kaki (2015) e Na sopa do sapo (2016). Alguns de seus poemas estão nas embalagens de Poëse, sorvete da franquia Los Paleteros, e também fazem parte de um mural na Travessa da Lapa, Centro de Curitiba. Divulga voluntariamente o haicai através de oficinas em escolas públicas.

Garrafas no jardim - Cinthia kriemler

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Ilustração: Hosana


Enterradas na terra. Plantadas entre avencas e coqueirinhos e samambaias. O vício escondido pelas folhas dos vasos. Tudo tão bem disfarçado que eu me pergunto como é que o braço paralisado de papai consegue dar conta de cavucar e enterrar as garrafas. Muitas.
Mamãe acredita — com sua fé nos santos e nas rezas — que ele não bebe mais. E nem as frequentes idas ao jardim nem o cheiro permanente das pastilhas de hortelã a fazem pensar diferente. Ela não quer enxergar, não aguenta mais saber. Ou mente. Para que nós possamos respeitá-lo. Respeito? Raiva. De escutar a voz dela, trêmula, repetindo que a força do Espírito Santo o curou. De testemunhar a impotência dessa negação passiva, dessa responsabilidade repassada ao divino.
Como todos os que se recusam a ver, mamãe dá nomes diferentes à própria fraqueza. Abnegação. Companheirismo. Amor. Mas o que eu vejo é uma mulher perdida que se alimenta da crença em promessas convenientes. E um simulacro de homem que promete qualquer coisa para estimular a ingenuidade dessa crença. Cúmplices. A que finge; o que esconde.
Há anos, ouço desculpas. Coerentes, incoerentes, inúteis.
É assim que ele relaxa.
Ele está comemorando.
Com esse calor, quem é que aguenta?
Aniversário.
Natal.
Formatura dos filhos.
Férias.
Nascimento dos netos.
Aposentadoria.
O time dele ganhou o campeonato.
Ele está sem dinheiro.
E as quedas, os esquecimentos, a magreza excessiva, os olhos congestionados, o andar em zigue-zague, os vômitos, os banhos frios. Tudo escondido dos filhos. Ou nem tanto.Mamãe não se dá conta, mas faz tempo que somos parte da mentira. De tantas. De todas.
Ele exagera, mas aguenta. Se ele fosse viciado, já tinha morrido. Quem não toma seus porres na vida? Alcoólatra é uma palavra muito forte. Todo o mundo bate o carro uma vez ou outra. Caiu porque o chão estava molhado. Ele para de beber quando quiser. Ele bebe pra se divertir. Ele até que diminuiu. Deixa ele em paz.
Daqui a um ano, papai vai morrer. De cirrose. Nós ainda não sabemos, mas estaremos lá quando acontecer. Mudos. Coniventes. Preocupados. Temos nossas próprias garrafas no jardim. 



Cinthia Kriemler é contista. De vez em quando, arrisca uns poemas. Carioca, mora em Brasília. Autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (Editora Patuá, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Editora Patuá, 2014); Do todo que me cerca (Editora Patuá, 2012); Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Participa de diversas antologias de contos, minicontos e poemas. Publica na Revista Samizdat todo dia 16. Tem textos publicados também em: Escritoras Suicidas, Gente de Palavra, Germina, Diversos Afins, Conto Afora, Revista Philos, Revista InComunidade.
Seu blog: http://cinthiakriemler.blogspot.com/

Galeria: "O Azul que Desaba sobre Nós" e "Escalas de Vazios" de Sylvana Lobo

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"As pinturas aqui apresentadas foram concebidas a partir da relação que tenho com a paisagem da região onde vivo. O Azul que Desaba sobre Nós apresenta o assolamento da cidade de Brasília por meio de paisagens desabitadas e vazias. Escalas de Vazios também seguem essa abordagem por meio da investigação a relação entre homem e paisagem como uma metáfora sobre a solidão, o vazio e a desolação. Nesses trabalhos, a pequenez da figura humana é reforçada pelos espaços amplos e hostis que, como na poética do sublime do século XIX, despertam um sentimento de temor e desconforto diante da Natureza.  Sobrepondo-se à palidez desses universos, há linhas que, como planos cartesianos ou em tabelas de Excel, propõem-se a analisar (ordenar?) os territórios de vazios.  Para marcá-los, o parâmetro usado é a figura humana. O corpo é a medida de toda solidão."




::: Escalas de Vazios :::

















::: O Azul que Desaba sobre Nós :::
















Sylvana Lobo vive e trabalha em Brasília/ DF. É artista plástica graduada pela Universidade Federal de Goiás (2005). Desde 2002, participa de exposições individuais e coletivas com trabalhos nas linguagens de pintura, fotografia e objeto. Sua poética tem-se voltado a questões de gênero (com ênfase no feminino), infância e solidão.                                                                                                                                      
Sylvana Lobo – pinturas
Sylvanalobo.com
lobosylvana@gmail.com
(61) 9 9301 8797








Adusto - Rita Santana

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Primeiro Movimento

Ele me invade, árcade selvagem!
E lança suas mãos ávidas sobre
A minha pele de avelã madura,
Sobre a minha casca de aroeira.
Abeira-me de abismos e abis.

Toca a minha pele de tâmara -
Qual trovador em cítara -
Matura o tempo do meu luto
E engravida-me de avencas.

Vejo-o mascar nêsperas de esperas
Para ver a flama do meu Desejo.
Vate do Alentejo!

E eu, que tanto tramara muros,
Furto seu nome que
- de eloquência e loquacidade -
Excitara precipícios de manhãs
Em minhas planuras de Poeta.

Entanto, nada me alenta!
E, ao relento, clamo por seu epíteto,
Eu, bastarda pantera de pântanos!
Contemplo-o aliciar palavras
Que serão doadas ao meu Oratório!
Ao meu templo de dispersões e cordilheiras.

Manifesto a minha Divindade
Em protestos de fúria.
Eu, toda feita de ínsulas e rudezas,
Uma ilhoa sacerdotisa
A cultivar papiros
No Oráculo de Sapho.

Vejo o meu Vate
Assistir ao itinerário da trepidez da Mulher
- toda eu!
Que tremula em sua presença.
Tocada pela arquitetura dos seus gestos
E pelos alicerces e declives
Da palma da sua mão.
A mesma mão que alimenta o gado
E que me alivia a fome,
O estado de viuvez
E de ausência.


Segundo Movimento

- Vem, Adusto!
Consome meu ventre
E adentra meus poros!
Sê justo, derrama teu sêmen
E tua semeadura de Servo
Sobre as minhas alfombras,
Sobre os meus alfarrábios,
Alforrias, o meu tratado de veias,
Tramelas, arcas, eras, heranças e plagas.

- Enterra a tua fidelidade de Sáurion
Em sarcófagos da memória.

Eis-me toda cômoros
E comoção de cavidades,
Toda inumação de abrasamentos,
E de brasas.
Toda inumação de archotes de vontades acesas.

- Grado!

Assim, chamo-te, pois há muitos nomes
Para te ocultar da avidez das mulheres
E da sordidez tirânica dos homens.
Eram tuas, Grado, as candeias,
Os candelabros, os candeeiros
Que arfavam luzes sobre os nossos pelos
E sobre as nossas bocas desmaiadas,
Ante os cânticos de Salomão e a sapiência da Rainha de Sabá!
Naquele campo noturno das avenas,
Fizeste--me revelação de árias e templários.
Desvelaste, em anunciação de mistérios,
Sacros nomes: Baobá, Barriguda, Imbondeiro!

Desses tempos,Adusto,tenho feito minha homilia,
Minha hóstia, minhas oferendas.
Meus sacrifícios de animais, de sangue,
De penas, de mortes e de vidas.
Sulcos rompem meu corpo
E, nauta e louco, o teu olhar
Ainda imprime em mim desígnios
De fome e tormentas!

- Gótico Senhor dos Passos,
Senhor dos meus Vestígios,
Senhor dos meus tormentos de Escriba!
Vem, criva-me de cravos, bromélias, anêmonas!
Vem, criva-me de fados, fandangos, fagotes!

Em Carcassone, Árcade Selvagem,
Quedam-se meus burgos.
Abro minhas defesas para tua epiderme,
Tu, verme gentilque me consumistea pele,
Entrego-te ânforas onde armazeno
Aromas e câimbras de amores pretéritos.

- Adusto, vem!
Aporta novamente em minha Casa
E anula qualquer nuança de presença alheia
Em meu leito, em minha alcova
Ou no rocio que cerca o meu terreiro.
Pousa teus olhos sobre o meu Universo,
Pois, tudo que o teu olhar toca
É-me sagrado!
E ganha magnitude de Eterno.   
- Não vês?
A minha pele fez-se imortal e casta.
Temo levitar sobre as evidências do mundo.
Temo levitar - em observância - sobre o teu cotidiano apaziguado.
Temo realizar milagres depeixe,vinho e pão.
Temo hipnotizar bússolas, ponteiros
E as translações da terra!
Temo tornar-me nociva ao mundo, às marés
E aos ciclos eternos da Lua.
Tamanho é o meu poder de fêmea tocada.
Sinto-me Harpa destinada a te conduzir,
Enfim, de volta, àquele sítio onde só há

Desejo.


Rita Santana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.
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