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Foto por Em’kal Eyongakpa |
um homem negro está sentado num banco da praça
digo que um homem negro como nunca antes visto
rebrilhando nem sei se uma constelação inteira
em sua pele tão negra que quando penso nele
fecho os meus olhos como se engolido pela noite
um homem tão negro nunca descrito na bíblia
e se foi descrito em papiros de um antigo deus
herdou a cor mais negra (repito que um homem
de uma cor tão negra que nem se sabe se ele existiu)
e este homem negro agora está sentado numa praça
oh deus que homem se confunde na tua larga noite
um homem difundido na pele negra da constelação
um homem de um tempo antigo de um livro apócrifo
um homem tão negro que entorpece pelos excessos
(repito: o homem mais negro que já pisou nesta terra)
e a noite agora calça os pés nos seus negros pés
e a constelação se espalma em suas negras mãos
e a boca do profeta beija a testa mais negra sobre a terra
e o cântico dos cânticos é uma pele enaltecida e muito negra
e os meus olhos se fecham e se bastam dentro e fora"como fosse um soco na glote duma estrela"
(Ricardo Escudeiro)
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Treino - Muhammad Ali |
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UM CÂNTICO A UM HOMEM, NEGRO
por Dércio Braúna
[ I. ]
O que pode a poesia diante do mundo? Nada, dirão todos. É certo e bem sei: nada pode a poesia ante a matéria do mundo (seu industriado tempo, sua maquinária de valia). A poesia nada pode, pois nada vale. É bem certo e está já tudo dito. Eis tudo, enfim.
Todavia o ordinário tem seus pequenos milagres. A poesia, a mim ao menos, é dessa ordem de descoisas. Seu fazer, no corpo irascível das imensas cidades, são ordinários milagres desconcebidos pelas vistas de todos que passam.
Mas porque algo insabido ainda nos prende a algum improvável fio de humanidade, nem todos passam. Há olhos que se deixam ficar. Para ver.
Para ver um homem. Um homem negro. Sentado num banco da praça. Assim fez um poeta.
Um poeta que, talvez, se terá detido a imaginar o que aquele olhar de homem, de um homem negro, estaria a contemplar do mundo. Também eu me permito imaginar. E imagino, costurando seu olhar (visto pelos olhos de um poeta) ao pensar de outro homem, outro homem negro, de outro tempo, de outra geografia, que certa feita escreveu:
Entre mim e o outro mundo paira, invariavelmente, uma pergunta que nunca é feita: por alguns, por sentimentos de delicadeza; por outros, pela dificuldade de equacioná-la corretamente. Todos, no entanto, agitam-se em torno dela. Com um jeito um tanto hesitante aproximam-se de mim, olham-me com curiosidade ou compaixão e então, em vez de perguntarem diretamente: Como é a sensação de ser um problema?, dizem: Na minha cidade, conheço um excelente homem de cor [...]. Eu então sorrio, ou me interesso, ou reduzo o calor da minha raiva, conforme a ocasião. Quanto à pergunta real: Como é a sensação de ser um problema?, raramente respondo uma palavra sequer.¹
Estaria aquele homem negro, sentado no banco da praça, a ponderar, ante os barulhos e velocidades da imensa cidade o que é ser um problema? Ou quiçá estaria ali tão só a se deixar ficar, sem mais, sem nada pensar do mundo? Quem há de saber? Não o sei eu, que desse homem sei apenas o que os olhos do poeta dele me dizem.
O que sei porém é que, para alguns, aquele homem negro sentado num banco da praça constitui-se em um problema. Por sentimentos diversos, certamente muitos não dizem, mas o olham como problema. Nessas imensas cidades que nos cabe viver, nada nem ninguém deixará, mais cedo ou mais tarde, de ser um problema. Sobretudo se se é um homem negro.
Mas porque (oxalá!) as cidades imensas são também carcomidas pelos germes da antimaquinaria utilitarista de tudo, há ainda, no meio dessas imensidades, os ordinários poetas, ali, parados, a espiar um homem negro sentado num branco da praça. A espiá-lo e a vê-lo como um cântico, não como um problema. E o que é o ordinário milagre da poesia senão esse de altear em cântico aquilo que a ordem maquinal das coisas etiqueta por problema?
[ II. ]
Um homem negro, sentado num banco da praça: de quem vem essa poesia, esse lampejo de vida no imenso caos da cidade?
Flávio Caamaña, eis o poeta, eis aquele cujo olhar tomou a um homem, um homem negro, sentado num banco da praça, e o tornou num “homem difundido” numa escrita de uma beleza contemplativa, de uma cuidada delicadeza de dizer o olhar e seu sentir. Em sua escrita, as metáforas são poderosas. As remissões temporais (bíblicas) dão ao poema a sua tessitura de cântico; de magnitude, ao homem negro olhado.
E, em meu modo de o ler, trata-se de um poema que guarda algo de fundamental: é uma escrita poética sobre um homem. Um homem negro, sim; “o homem mais negro que já pisou nesta terra”, mas um homem. Não é um poema sobre um negro.
Isso, para mim, é fundante (filosófica, ética e esteticamente). Remete-me ao pensamento de Frantz Fanon, em seu livro magnífico (e polêmico, para muitos) que é Peles negras, máscaras brancas:
De todos os lados, sou assediado por dezenas e centenas de páginas que tentam impor-se a mim. Entretanto, uma só linha seria suficiente. Uma única resposta a dar e o problema do negro seria destituído de sua importância.
Que quer o homem?
Que quer o homem negro?
Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem.
[...]
O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo.
[...] na verdade trata-se de deixar o homem livre.²
Um pensamento que comunga com outro pensador contemporâneo: Achille Mbembe, que num livro muitíssimo (e justamente) comentado, Crítica da razão negra, coloca-nos a ideia de que “os Negros” são “este seres-capturados-pelos-outros”, não no sentido histórico do processo escravista, mas num sentido mais profundo, de terem sido, por práticas diversas de “alterocídio”, transformados nos sempre “outros” do homem (leia-se: do “branco”).³ Para Mbembe, assim como para Fanon, o fundamento de tudo está em não cair nessa armadilha da existência de uma “essência” (de pensamento, de modo de vida, etc.) “negra”. Para ambos, é preciso justamente questionar essas duas “mitologias” (para aqui usar os termos de Fanon).
Ao contemplar, num banco da praça, um homem, um homem negro (negro como nunca antes descrito), mas um homem em essência, a poesia de Flávio Caamaña, a meio modo ler e sentir, soube fugir à mitologia das essências a que nos adverte pensadores como Frantz Fanon e Achille Mbembe. Um poema que, a seu modo, em seu estatuto de artefato de linguagem, soube se constituir desconfiando (tal qual o pensamento filosófico de V. Y. Mudimbe) de que “as histórias sobre os outros e os comentários sobre as suas diferenças são apenas elementos na história do Mesmo e do seu conhecimento”. Daí, em meu entender, tratar-se de um poema estética e eticamente grandioso: contemplou um homem negro sentado num banco da praça e fez poesia da humanidade desse homem; com sua cor, dizendo dela, sim, mas sem fazê-la anteceder o homem, sua humanidade. Reitero: um poema sobre um homem, negro; não sobre um negro.É como o leio.
1-DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999, p. 52.
2-FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EdUFBA, 2008, p. 26.
3-MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014, p. 12 e p. 26.
4-MUDIMBE, Valentim Yambo. A invenção de África. Trad. Ana Medeiros. Lisboa: Edições Pedago; Luanda: Edições Mulemba, 2013, p. 47.
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Flavio Caamañaé um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Literário Ideal Clube De Literatura, participou de coletâneas em livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (PATUÁ, 2016).
DÉRCIO BRAÚNA [1979] é cearense, de Limoeiro do Norte. Historiador (mestre e doutorando em história social / UFC), com estudos sobre as relações entre história e literatura. É autor das obras poéticas: O pensador do jardim dos ossos ; A selvagem língua do coração das coisas; Metal sem húmus; Aridez lavrada pela carne disto; além de contos (Como um cão que sonha a noite só) e estudos historiográficos (Uma nação entre dois mundos; Nyumba-Kaya: Mia Couto e a delicada escrevência da nação moçambicana; e A assombração da história: história, literatura e pensamento pós-colonial). Atualmente, desenvolve pesquisa acerca do pensamento sobre a história na obra do escritor português José Saramago.