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5 Poemas de “DIGITAIS DO CAOS”, de Tito Leite

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Erik Johansson


HERÓIS NASCEM DE TEMPESTADES

O vento lembra gatos
em passos de jazz.
Os mistérios provocam
fome nos olhos.

Chuva carregada
pela nuvem do não saber.
A felicidade não exige
ponto de vista.

O que a ciência
não pensa – loucos
e místicos dizem amém
– pássaros entendem.

A espessura que torna real
a beleza das árvores
em extinção, saca um pardal
da carnadura dos telhados.

No íntimo dos temporais,
morde-se a raiz
das metamorfoses:
matar o crepúsculo dos ídolos
é nascer de novo.



AZUL INAUGURAL

O óbvio tem folhas
de chumbo — o vento
me respira como faca.

Na pimenteira do novo
me queimo
por dentro.

Quero na boca
o óleo árido
das palavras
que não sangraram.

As rosas solitárias
do ocaso em busca
do odor do sol.

O meu vazio traduzido
em pássaros
póstumos.

Descobrir as rodas
do invento é a maçã
do Éden para
os poetas.



TEOLOGIA NEGATIVA

Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.

Sob o peso
da solidão
é o meu número.

Hoje a comarca não me compra.

Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.

Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.

Na fuga
do hospício etéreo 
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.




ANJOS BEATNIKS

Na solidão das flores do universo
me beatifico.

Doce-ácida primavera beat.

A estranheza do mundo
me namora em beijos
molhados
de eternidade.

Pode até soar como
insanidade
mas trepo
nas tripas
do vácuo.

E bailo nas lâminas
do ilógico.

Vou mencionar
um vagabundo
iluminado
dono de uma alma
cheia de jazz.

Místico errante
em busca do penúltimo
copo de loucura.
A rodar na route 66.

Eu também
numa liberdade maltrapilha
coroava a madrugada
num gozo cósmico.

Ainda
quero tudo
outra vez
(mesmo que tarde)
numa taça
de delírio.



FUGA DAS COISAS USUAIS

Gatos são relâmpagos.
Cigarras não são domesticáveis.

Na medula óssea do pensamento,
arpeja uma palavra muda: sol gelado.
Vinho tinto ou seco.

Anestésico. Botão vermelho.
Qualquer instante longe do real.

O que admiro me arde.




Tito Leite nasceu em Aurora/CE (1980). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Têm outras coletâneas publicadas nas revistas Mallarmargens, Germina e na portuguesa Triplov. Este é o seu primeiro livro.


"IMA(R)GEM 9", POEMA DE MÁRCIO LEITÃO

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Pêndulo
Póstumo
Invertido no átrio
Da pele e do nascimento.

Dobras preguiçosas
que toleram
o odor do pó
molhado
E em silêncio 
fabricam o sol.

Luz a espera
do motivo
do convite
da alegria
feita só de carne
e licor,
às vezes
(derretida)
permite
que a engenharia
se cumpra só
no ninho vermelho
e escuro dos dragões.


*     *     *



LEIA A SÉRIE "IMA(R)GENS"
AQUIAQUIAQUIAQUIAQUI E AQUI.





Márcio Leitão é professor de Linguística, pesquisador em Psicolinguística (UFPB); tenta entender os processos mentais relacionados à linguagem. Poeta e escritor de livros infantis, escreve pra poder imaginar como é ter liberdade, respirar sem amarras. Escreve também pra se divertir com as palavras e com o que pode construir com elas. Publica todo sábado na zona da palavra.

6 poemas de Sérgio Villa Matta

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biografia

baudelaire pintou os cabelos de verde
jarry as mãos e a cara
rimbaud partiu pra abissínia 
virgínia woolf suicidou-se colocando pedras no bolso do casaco
dante desceu ao inferno acompanhado por virgílio
borges ficou cego
joyce ficou cego
hilda hilst viu discos voadores
machado de assis morreu pouco depois de sua esposa carolina
drummond uma semana depois de sua filha 
gonçalves dias escreveu a canção do exílio
lautreámont nasceu no uruguai
ítalo calvino em cuba
bortolotto continua bebendo pra caralho
dylan thomas morreu inchadão
rosa encantou-se três dias depois de sua posse na academia
manuel bandeira foi embora pra pasárgada
manoel de barros escreveu o livro sobre nada
flaubert imaginou escrever um livro sobre nada
haroldo de campos é um poeta-crítico
oswald de andrade inventou a antropofagia
mário era viado
roberto piva quando jovem era a cara do elvis presley
fernando pessoa era álvaro de campos, ricardo reis, alberto caeiro, ele mesmo e muitos mais
cervantes e shakespeare morreram no mesmo dia
camões morreu no dia do meu aniversário
allen ginsberg nasceu em três de junho
ignácio de loyola escreveu zero
valêncio xavier o mezz da gripe
kafka quis que sua obra fosse queimada
dostoiévski foi preso
cortázar curtia jazz
leminski deixou como espólio um estilingue sob o armário
camus foi goleiro
mallarmé professor de colégio secundário
saramago ganhou o único nobel em língua portuguesa
vargas llosa e garcía márquez não se suportavam
clarice lispector era incorrigivelmente triste
nelson rodrigues torcia pro fluminense
joão cabral pro náutico
mirisola não foi convidado pra flip
quintana não foi eleito pra academia
cecília meireles era linda
e eu não sei pra que serve uma biografia 



A complexidade dos cabelos de tua buceta

a complexidade dos cabelos de tua buceta
me atrai
me fascina
como um diamante vivo de Van Gogh
teu cu
mallarmaico
reflete realidades ainda não inventadas
em que trilho teu corpo
teu gozo de estrelas e nenúfares
sob o som da grande noite
teus peitos eletrizam-me
devoram o olhar
e a paisagem branca
deste quarto
deste poema
que te quer assim:
complexa, puta e bela
como há de ser esta vida



Em azul

não vou chegar a tua casa e bater palmas
simplesmente pq vc não tem casa
simplesmente pq eu não tenho mãos
eu vou é gritar teu nome em azul




ALGO

há uma música estridente rachando o crânio
um poema nonsense atravessando o deserto q não é um deserto
(é outra coisa)
há uma tristeza funda feito uma cicatriz cravada numa ânsia
um gosto de vômito doce q tilinta com a chuva
uma árvore falante na última rua
uma mulher q conversa com o seu pé
uma mão possessa com uma tesoura ensaiando passos de dança
no último andar
um sujeito q foge mas não pode fugir de si mesmo
algo dando errado na colisão de metáforas
alguém q enlouquece e por isso bebe e por isso não sabe q está louco e
outros q pensam q o louco é q é o louco
a mais perfeita falta de sentido
o humor arrancando as vísceras na véspera de um acontecimento
nada tão belo como uma rã entoando a canção da mais perfeita harmonia
um certo sol negro com capim e limão
perseguições de desenho animado
anotações de um guardanapo histriônico e alegre como uma porta
algo q não se sabe ao certo mas q aos poucos se revela como um luz, uma
clareira, uma dança. 


descentramento ou poeminha

I

ningún centro és posible. no hay centro.

II

parece-me q josé kozer dijo: “uma origem q não seja de ouro”

III

não há centro. no hay origem. mesclas y misturas

IV

perguntem a borges.

V

o sujeito se extraviou.

VI

não me segue q eu tô perdido

VIII

posso escribir em mil líguas se quiser ou inbentar otras mil

IX

não percam tempo com isso estão todos atrasados.

X

o tempo se perdeu

XI

próxima imagem

XII

: @

XIII

onde anda a realidade?

XIV

the end.

XVI

esperem: to be continued

XXI

batam palmas a festa ainda não começou

XXII

(este reserbado a algo sem sentido)




Como um cão sentimental

ando meio em reprise
e sozinho na penumbra bebo
meia garrafa de vodca
enquanto versos esparramam-se pelo carpete
e o vento entra na sala como um cão sentimental
nada me agrada tanto agora
como o silêncio q arranco de dentro de mim
do mesmo modo como arranco este poema
q queima-me mais profundamente q a solidão


Galeria: Igor Morski 



Sérgio Villa Matta (Londrina,1981.Pr) É brutalmente lírico como uma chuva. Escreve para tirar eu de eu. Não publicou nenhum livro, pelo menos por enquanto. Posta poemas no facebook. E os guarda no blog: https://bardobaudelaire.wordpress.com/

Videoteca: "Posseidon é Cabra, Abelha e o Movimento dos barcos" de Danielle Fonseca

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"Toda respiração propõe também um reino" (René Char).








Dirigido e escrito pela artista visual Danielle Fonseca este videoarte em formato de curta metragem apresenta quatro atos/metáforas da ideia de divindade dos mares e oceanos. São apresentadas de maneira quase surreal, quase metáfora, quase sonho. Com imagens de saltos tão naturais quanto mortais ao mar, de apneia a 100 metros, de alguém que escala um resto de uma ponte de pedras (feito cabra do mar ou capricórnio), de um surfista que carrega no peito a imagem do LP Mel de Maria Bethânia, tudo isso narrado através de conversas com o compositor Péricles Cavalcanti, a campeã mundial de apneia Karoline Meyer e um poema lido por Jards Macalé.

Equipe:
Direção e roteiro: Danielle Fonseca
Imagens: Keyla Sobral, Karoline Meyer, Fabrício Lima
Edição: Marcelo Rodrigues
Resultado do Prêmio de Produção e Difusão Artística 2016 da Fundação Cultural do Pará










Danielle Fonseca nasceu em Belém (PA), 1975, onde vive e trabalha. A artista é representada pela Kamara Kó Galeria. Foi indicada ao PIPA 2016. Sua poética é composta a partir de elementos da literatura, poesia, filosofia, música e paisagem. Recebeu o Grande Prêmio do Salão Unama de Pequenos Formatos (Belém, PA, 2011); e o Prêmio Aquisição Salão Arte Pará (Belém , PA, 2001 e 2003). Exibiu o média-metragem “A vaga”, no Midrash Centro Cultural (Rio de Janeiro, RJ, 2012). Participou de festivais no Brasil, Escócia, Espanha, Lituânia, Finlândia e Portugal, e de mostras e salões dentre os mais recentes  destacam-se: “Nossos passos fazem jorrar a sede”– II Mostra do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo (SP, 2015); “Pororoca: A Amazônia no MAR”, Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro, RJ, 2014) e“Deslize”, Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro, RJ, 2013).

ZUT - poemas de Djami Sezostre

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OHCAHTAHRAHKWYH


... ohcatarakwy, istrongi
oplunguisalongui, ohcatarakwy
istriquinguiiraguingui, ohcatarakwy
asifawarwaguingui, ohcatarakwy
itiscavernisanditavernisamongui, ohcatarakwy
risinguiandileapingui, ohcatarakwy
sinkinguiandicreepingui, ohcatarakwy
sweulinguiandiseepingui, ohcatarakwy
shooweringuiandiispringingui, ohcatarakwy
fliinguiandiwriguingui, ohcatarakwy
ediinguiandiwhiskingui, ohcatarakwy
ispoutinguiandifriskingui, ohcatarakwy
turninguianditwistingui, ohcatarakwy
aroundiandiaroundi, ohcatarakwy
withiandlessireboundi, ohcatarakwy
ismitinguiandifiguitingui, ohcatarakwy
confoundinguiastoundingui, ohcatarakwy
dizziinguiandideafeninguidearwithiitissooundi...
ohohcahtahrahkwyh

ohohcahtahrahkwyh
ohohcahtahrahkwyh 
ohohcahtahrahkwyh oh ohcahtahrahkwyh oh ohcahtahrahkwyh...





  
SUDÁRIO

çimjeusscsritoivevedntro de mmi
eeldromeemmnihacsaaemmnihacmaa
eueoajno de lux msorto os ohlos de lúzifer
ejeussbiejamnihabcoa os libáoscehios de erestlas 
eu o ajno de luazvvio de parzservvio e fmoe

fmoe e sdee de sxeojeussum

jeuss de ohlosmohlados
ohlandoosm e usohlosmohlados
eu o ajno de luz com a sdee do mnudo
asdeeemmnihalínuga

o
ajno de luz teprdaonacurz
osbulime o ajnoridevvio de lu

z
abra







MENINO JESUS É REI

Alvez eu screva um oemaepois do atal
E alvez eu screva um oemaepois da assagem
E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes
E do eregrino que asceu na strebaria e ndou
Luminado elo undo de elém e epois

Orreu na ruz ara alvar os omensAlvez
Eu screva um oema que ale de az Alvez
A az eja um írculo de strelas adentes
Aindoozinhas ao éuhuviscam a oite
Que é iva e ediviva de aga-umes

Leluia, eninoesus é ei-

É ei, É ei, Ér Rei.






  
ETNOPOEM

&eyeye vindo do meu centro de dentro
&eyeye alma de menino &
&eyeye o menino pássaro &eyeye o menino cavalo
& os insetos yeeye& as pedras yeeye& eu madrepérola

eyeye eu feito de eye de sol ye de sol &eye as mãos
&eye os pés &eye eu & e eu eye
subindo ao amanhecer &
subindo ao entardecer &

eye sou hey um animal eye
eye sou hey um vegetal eye
eye sou hey um mineral eye

i yum animal naturalishumanus
i yum vegetal naturalishumanus
i yum mineral naturalishumanus







ZABRA

O corpo des
céu da cruz
e mostrou a
alma em san
gue que gote
java o coração

os punhos eo
s pulsos ea
s mãos

e os pés
em raiz

o corpo lev
ou as mãos
ao pênis
que fremia
as vestes

epartiufeitohóstiaa

os fiéis e
m avidez


_____________________________
O poeta, performer e ativista pró-poesia Djami Sezostre nasceu na noite de 30 de abril de 1971, em Rio Paranaíba, Minas Gerais, Brasil. Estreou em 1986 com o poema/livro Lágrimas & Orgasmos, desde então, publicou dezenas de obras de poesia, dentre as quais estão Anu, Arranjos de pássaros e flores, Estilhaços no lago de púrpura, Onze mil virgens, Yguaranie Zut. Traduzido para o espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, finlandês, grego, húngaro e búlgaro. Em suas performances, queimou, rasgou ecomeu livros,usou rosas e outros elementos como imagens da natureza em diálogo com o corpo e o espaço. Por seu modo próprio de sonorizar e representar a poesia, crioua Poesia Biossonora, que teve como espetáculos ecoperformances apresentadas na América, Europa e África, além dos CDs Musicacha, Neonão, Tropofonia e Muscai, que dissolvem fronteiras entre a música e a poesia.Viajou a países lusófonos para pesquisar a literatura produzida em língua portuguesa e publicou em livro DVD a contra antologia Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética, com 101 poetas de Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Brasil. Idealizou e empreendeu durante onze anos o Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas, sediado no Palácio das Artes em Belo Horizonte, Minas Gerais, com cerca de 500 edições nas quais se apresentaram artistas e escritores das mais diversas ascendências estéticas. Organizou as antologias o Achamento de Portugal, Terças Poéticas: Jardins Internos, o Amor no terceiro milênio etc. Participou dos livrosAntologia da Nova Poesia Brasileira (Olga Savary), A Poesia Mineira no Século XX (Assis Brasil), Poesia Sempre Minas Gerais(Afonso Henriques Neto), Dicionário Biobibliográfico de Escritores Mineiros (Constância Lima Duarte), Oiro de Minas: a nova poesia das Gerais (Prisca Agustoni) etc. Apresenta o programa de radioarte Tropofonia (Prêmio Roquette-Pinto/2010/ARPUB e MinC), rádio Educativa  104,5 UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). 

 (imagens cedidas pelo artista).







6 poemas de Rafael Iotti

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quem disse que o amor não tem cheiro
não pousou as narinas pelo teu dorso na manhã de domingo
e sentiu o cheiro de almíscar misturado com uma fruta
anônima

descobri o teu gosto numa noite ébria
de que me lembro muito pouco
se não fosse esse alfinete sulcado no centro
do meu mapa
pouco saberia do pavor e da doçura que
carrega no olhar

no fundo eu escrevo somente para imitar uma vida
inconcebível
mais do que isso escrevo para lembrar
da tua forma, teu pescoço arrepiado
mais do que isso, escrevo porque sinto
desde as entranhas algo parecido com dor
que me consome com muito vagar


***


Caxias é triste sem ti
apesar do sol de ouro
e dos pinheiros regenerados

Porque o amor também recolhe as cascas
disse o poeta.
E nós, professores da noite, estamos
submersos neste país

Longe demais do desgastante dia
em que voltar pra casa seja
a nossa melhor vida possível.


 
Ilustração: Kyle Thompson


algures absoluto

hospeda-se agora um caixeiro-viajante,
uma pessoa jovem, em um compartimento adjacente
ao lado de minha cama
e preciso fazer um movimento rude
para sair, por exemplo, no meio da noite
para ir ao banheiro.


encontro-o nas árvores do largo
sossegado na lembrança dos sonetos
quando vacila e penso que retornará
a casa, desobedece o seu instinto mais
puro e permanece olhando o horizonte


às vezes sinto o matraquear de algozes
invisíveis sussurrando em meu cangote
penso que já vi coisas suficientes
que deixariam sólidos burocratas
colapsados


volto para o meu quarto e o vejo
em seu traje mais discreto
lendo as notícias de um futuro que
vem a galope
e aqui à sombra dos seus dias
apodreço


***


à minha irmã

roubam-me um erro apenas que acertava só
um nome que só em mim floresce único

sou posto em todo perigo
e penso já não poder viver comigo

às vezes é um grande sol de amor
que me ilumina

entrego-me ao esgar de quem encara
por muito tempo a luz

chega ao fim o verão
com obstinada certeza de

não deitar sobre o campo imenso
de malmequeres.

 
Ilustração: Kyle Thompson
 

antes mesmo de você tirar os tênis
olhar pela janela e acender outro cigarro
antes de você pousar os dedos sobre a
mesa de vidro e suspirar

eu já conheço os seus tiques, você pode
pensar. mas não conheço, não sei às vezes
quem se estende à minha frente.

antes de você dizer que está cansada
eu me deito no chão, pra poder ver as
coisas de outra forma.

lá em cima uma aranha constrói sua armadilha
eu digo que as coisas passam e que logo
esquecerão dos nossos passos

você quer ajuda para sair dos dias tristes
e minhas mãos afogadas te puxam mais uma vez
para a superfície.


***


perdono tutti e a tutti chiedoperdono.
va bene non fatetroppipettegolezzi

– Cesare Pavese

de manhã cedo minha avó descobriu
por meio de incontáveis vizinhas
que o rapaz do 601
 alto, bronzeado, forte
que passeava todos os dias precisamente
às 18h com seu cachorro
se matou.

enforcado, frisaram ao dizer.
os bombeiros vieram arrombar a
porta e o seu cachorro avançava em
quem tentasse chegar perto do corpo
inerte.

ninguém esperava por isso, minha avó
disse. aliás, numa manhã tão bonita de
sábado.

logo os bombeiros foram embora, sem usar
sirene. ninguém acordou com a notícia. e
mesmo depois, todos do prédio se empenharam
em criar, sobre o caso, um muro muito resistente
de silêncio.



Rafael Iottinasceu em Porto Alegre, em 1992. Atualmente vive em Caxias do Sul.

Sonata de Feynman (por paulo guicheney)

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– Você é meu unicórnio brilhante.
– Eu sou?!? Você é meu travesseiro..., ela respondeu sonolenta.

Ele a abraçou com os olhos. Ela beijou as mãos feridas dele e voltou a esconder-se nas almofadas.

– Durma comigo, ele disse.
– Eu não posso. Não quero ir, mas preciso trabalhar tão cedo, tenho os projetos... Você sabe... As instalações elétricas, Stockhausen, Penderecki.
– Não vá, eu não consigo dormir sem você... Fique. Leia para mim. Todas as tuas cartas e tuas histórias e teus desenhos. E as equações que soam como pequenos poemas em prosa.
– Você é fofo...
– Você acalma-me, sabia? É a tua voz. Tal espaço que teima em proteger-me.

Ela sorriu.

– E teu nariz tem os contornos de um sonho, ele continuou.
– Ninguém nunca disse isso do meu nariz... Eu gosto de você.
– Olha, fique. Eu posso tocar Feynman, a última sonata. Aquela que a madrugada acolhe.

Ela beijou novamente as mãos dele e disse:

– Mas essa música é complexa, sombria. Meu pé direito dói quando a escuto. Se você tocar Rachmaninov... eu fico.
– Genau, eu toco.

E todos os objetos sobre a mesa começaram a rodar e rodar. Chopin, Faulkner, as canetas coloridas, Lang e os pedaços da raposa quebrada de barro, o livro alemão de receitas vegetarianas e as gravuras de Hiroshige, Hokusai e Nuncques. Tal como uma valsa de vidros e água despedaçando-se em uma novela de um Satie austríaco: com calma e cinzéis, com algoritmos e anjos, com chuva stringendo e glissandiglaciais.
Do lado de fora da casa, no jardim, perto de onde renascem as Amoras ao abrigo da voz dela, era possível escutar:

iz gekumen,
gekumen,
gekumen.


 ***


Estação de espera - Ernani Catrole

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Era um antiquário. Móveis, imagens de santos, pratarias, quadros, lustres, porta retratos.  Peças sobradas, exiladas, agora errantes, ali, numa espécie de limbo. No fundo da loja, uma estante, muitos livros mal enfileirados nas prateleiras e outros tantos empilhados, no chão. Em tudo, as marcas do Tempo.
                           E no silêncio, na penumbra do ambiente, senti um leve arrepio como se me tocassem com mãos de espuma. De éter. Almas.
                           E vaguei pelo apertado espaço – irmanado - sob aquela atmosfera calma.


                          Uma luminária de opalina azul, uma aliança de pesada prata, com um nome e data gravados, um medalhão. E, talvez, o que mais me aguardava e me exigia num apelo mudo (e me espreitava?): exposto e tomado por uma luz própria, com sua bela capa, “Mulheres Escritoras”, livro de Maria Ondina Braga (1932- 2003), que folheei; reverente. As mãos trêmulas. 
                        Traz duas dedicatórias e uma anotação. Dádiva bastante. Amoroso sentimento de posse.
                         
Ernane Catroli


NOTA: Em seu livro Grandes mulheres, volume II, Edição da Autora, Rio, 2002,a escritora Sophia A. Lyra escreve:

“Maria Ondina Braga, atualíssima escritora portuguesa era amiga de meu filho  com quem se correspondia. Autora do livro Mulheres escritoras que constitui o último presente que me foi enviado por meu filho no mês de maio de 1986.
O livro era dedicado a ele: Para o meu querido amigo Roberto Lyra Filho, estes textos simples e sérios por que tanto se tem interessado. Um abraço da Maria Ondina Braga.

                Pois bem. Em maio - no dia das mães - meu filho me mandou o livro de presente, acentuando o valor da dedicatória da autora (sua amiga).
Foi o último presente do meu filho que faleceu a 11 de junho (no mês seguinte).” 

O Limbo - Bruna Siena

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Após você me destruir,
o que sobrou? — sobrou?
Um livro preto de bruxaria.
o limbo

A morte não é um sonho. Você acredita na crença de que os fantasmas tem o cheiro doce da despedida? Um cheiro de flores e velório. Me ofereço de corpo e alma para os demônios do mundo, toda a minha verdade foi engolida por redemoinhos de terra. Eu matei uma cabra e ritualizei um amor que não chegou, nadei no teu sangue e propus o abuso, a carne se desfez em banquete e os homens me devoraram com a pressa de um cão marrom e faminto, o meu coração, pulsante, agora cria de Lilith, ficou arremessado no canto da estrada sem final. Os feitiços que fiz, o que sou e o que você é, os meus cabelos estão aqui para o ritual de partida: a cura do meu peito. A imposição do universo sobre o meu corpo vil, o peso da Lua e do Sol ambicionando os lábios que tocaram lábios horripilantes, a foice negra desceu do céu e talhou um buraco extenso e eterno em mim, me violou os poros da pele, os meus arrepios e a beleza que nunca nos existiu, até o surgimento das plantas e das pedras. Os homens me transformaram em uma mulher suicida.
o inferno
O meu corpo subiu ao céu e então dei nome aos bois, discuti com a floresta que existe dentro de você, perdida numa escuridão cega, não sei se quero abrir os olhos, imploro a retirada da minha lucidez, ela me apavora como um vulto que desliza de um quarto para o outro nesta casa pequena, o portador de magia branca me golpeou com radicalidades bruscas. O silêncio faz parte da minha linguagem, os teatros diários e metafísicos, ensaiados diante da espiritualidade completamente distante. O meu sangue de víbora, certeira, o meu sangue que prolifera um útero que se desintegrou, o que restou de mim e do meu rosto sem perdão, sem linhas de expressão, o meu sangue negro que pingou na tua ausência dolorosa, o tempo ao tempo, campos energéticos, velas e incensos, os dentes separados um por um por alicates estão aqui para o ritual de partida: a ascensão do que penso ser, mesmo te amando muitas vezes mais do que a mim mesma. Sorrisos contemplativos foram retirados pela raiz.
o céu
Senhores, eis aqui, o meu fluxo mais intenso de seiva produzida, das minhas águas, dos meus dedos, o amor é escuro. O gênesis da libertação obscena, enfio grandes barbaridades em mim, olhos que imagino, o aqui que não existe e grandes avalanches de poesia muda, as mãos não obedecem aos estímulos da minha dor, os meus cortes nos braços, a testa que parti ao meio, os socos no concreto, as tuas mãos não obedecem aos estímulos do meu amor, o meu coração perfurado, nadando em raiva e desprezo, um amor que adoeceu e que também me deixou doente, com os olhos borbulhando em rezas inadimplentes, as rezas que emitem eco, elas voltam para os meus ouvidos e me culpo por pedir piedade mais uma vez, num súbito grito, os meus braços se estendem e a minha alma grita que te ama e que sou tua para todos os outros dias, o resto deles e o resto de mim. Ao nascimento do que é vulgarmente hostil, o amor é uma coroa de espinhos quando quer ir embora, atravesso a muralha da China e lá encontro o nosso desencontro, a nossa falta de fé, o nosso orgulho e o nosso medo de amar, o amor é uma chama que não se apaga, uma dolorosa separação que me retalhou nas articulações, um abandono que destruiu o meu chão e me fez precipício. Latejo, as flores rosas e as minhas digitais estão aqui para o ritual de partida: a minha morte em você definitiva, um lamento, um choro, enquanto gozo sozinha, posso tocar o teu rosto dentro da minha memória.


Bruna Siena, o demônio feminino de Sade, o Marquês. 1993, vinte e poucos, entre Maringá e Curitiba. Escritora, poeta e louca. Responsável pela Kadosh Publicações, um selo editorial independente, profano e experimental. O terreno íngreme entre o ocultismo e a gnose, entre a necrofilia e o descaso, a puta da família. Obscena.

A poesia agora é o que me resta II - Diego Callazans

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Ilustração: Enzo Barrena


aos ausentes
e àqueles
cuja presença
é incerta


não sou senhor sequer
do corpo que me veste

nem minha sombra
me reconhece

o nome a que me ataram
– largo – pesa
meu passo – leve

– nem rastro deixa
meus versos queime

– não há quem tome
ideias... dei-as

– me atrasavam
possuo nem mesmo a ave
que em meu inverno lateja



*
vou me pôr à venda.
não sei quanto cobro.
pouco faço ideia
de pra que eu valho.

mesmo no que ainda
sirvo a alheio agrado,
nada me destaca
no imenso mercado.

meu verso é sem passo.
todo o resto é gasto.
aleijada a mente,
nada afeita a arreio.

não sirvo pra contas...
nem pra visionário...
mesmo o desvario
carece de esquadro.


Ilustração: Enzo Barrena

Desespero
sem aviso
tosse leve.

trago PAZ®.

– vê se para.
(já não serve.)
– este vento
traz, amigo,
vidro ao peito!
– uma pausa
prum café?
– cianureto.



*
pudesse eu,
ó mãe, voltar
uns trinta anos...

me enforcaria
em tua gaveta
ensanguentada.

por que morrer
agora, gasto,
acontecido?
melhor usar
borracha antes
de ter nanquim.

pudesse eu
voltar ao útero
prum autoaborto

– nenhum bilhete
– num ato puro
jamais sentido
como arbítrio
senão dos deuses.


*
dizem que todos somos
flutuações do vazio.

tudo que há
dança no abismo.

o nada é nosso inquilino.
morrer não é inexistir.
morrer é só desligar.

morrer, no fim, não é um mal.

o grande mal é estar em dor.
para sofrer não fomos feitos,
por isso a dor traz pane à mente.
estar em dor é estar em falta
da farpa ígnea que nos move.
estar em dor é estar em tilt.
às vezes desplugar é um bem.

a morte dói somente a quem não leva.

o deus que corta a vida atiça a mente.
quem morre nada teme e, se algo pensa,
de nada vale além do Aqueronte.
mas, não por contemplar no morto a Fonte,
a voz agora falta e o corpo sente.
perturba é que jamais haverá Treva,
pois, como cicatriz, reluz a Ausência.

“no fim, como um filme, nos vem

o estoque total da memória”
– eu cria como tantos creem.
mas meu acre daemon adora
me incitar 'té me ter rendido.
"me creia!”, diz, “não há tal vídeo”.
barganho: “nem verei, então,
‘isso é uma obra de ficção’?”.





Diego Callazans nasceu em Ilhéus em 1982 e mora em Aracaju desde criança. É autor dos livros A poesia agora  é o que me resta (Patuá, 2013), Nódoa (7Letras, 2015) e do minilivro Blasfêmias (7Letras, 2015). Tem poemas incluídos nos livros Naquela Língua: Cem  poemas e alguns mais: Antologia da Novíssima Poesia Brasileira (Elsinore, 2016) e É agora como nunca: Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira(Companhia das Letras, 2017).

Ex-xícara mais 2 poemas de Marcos Samuel Costa

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Ex-xícara

A orelha da xícara quebrou,
ontem, já quase hoje, choque horrível,
pássaros e pessoas puderam ver
através da minha reação,
João voltava do encontro perfeito,
em casa, resto da feijoada do almoço,
por vir a união – gosto do amor e do feijão,
as vísceras fortificando, o anel
da conformidade, Laura agora era sua,
o pó do porcelanato rasgou minha pele,
um pouco de sangue, faísca branca,
como fogo dilacerado,
não posso construir outra, tudo desfeito,
o gato vizinho rodeando o acontecimento – certa-
mente a tendência a banalidade,
mas não, comprada por quatro e cinquenta, valia
mais, fora de faixa
mas um filme emocionante,
Tule também concordava, semanticamente
concordava
com o verbo, adjetivava – ex-xícara


Não posso sentir raiva do cachorro

Não posso sentir raiva do cachorro
que destrói meus sacos de lixo
todos os dias, é instinto, felicidade,
utopicamente escrevendo nas horas seu destino,
fiel, quero que destrua tudo – Isaque
também foi um bom rapaz nas mãos das abelhas,
caminhou no fio, esticou palavreados,
imóvel, porém feliz – era árvore ou planta grande,
na praça outro símbolo do tempo outrem,
nas mãos do mendigo moedas de bolsos
tão vazios,
Tobey – dei nome, comida, novo
destino – mas continua destruindo
meus sacos de lixo, é instinto
felicidade,
utópica-
mente


Quando o Ezequiel fez seu teste vocacional

Quando o Ezequiel fez seu teste vocacional
deu para humorista, fico pensando nele na televisão
fazendo todos caírem na gargalhada, e quando chegar em casa, querer
de um só golpe matar sua esposa – quando éramos
moleques ele era o que mais sofria por causa das garotas,
garoto tonto tonto – parece aquelas baratas
que fingem está morta no piso do banheiro, e eu péssimo
finjo que não vejo-as, e num relance as esmago, limpo
o chinelo ali mesmo,
nem todos nesta tarde de maio querem saber de sorrir
após essa garoa de delírios, alguns querem
um sorvete de manga ou se jogar do decimo andar,
e eu, o que quero? Volta do chão
para meu andar de origem, me joguei ontem,
o jardineiro logo vai aparecer e dizer
 – “Seu menino, que tá rolando entre o senhor e as bromélias?”
Sorrindo ainda direi – “um velho caso de amor”,
Porem, o teste vocacional do Ezequiel é o que mais
fazia-me pensar, e ainda faz,
quem fará ele sorrir? Quais piadas lhe provocaram o incerto?



Marcos Samuel Costa é natural de Ponta de Pedras - Ilha de Marajó - Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social (FMN), e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. É membro correspondente da Academia de letras do sul e sudeste paraense e da ASPEELPP-DJ. Autor dos livros: Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), Titulado amor (editora Literacidade, 2014), em coautoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux 2016). Participou de mais de 20 antologias literá­rias, entre elas I & II Anuário de Poesia Paraense e publicou na revista, Mallarmargens e contemporArtes. E mantem o blog, Someplace, onde divulga sua produção.

e-mail: samuelcostaspds@hotmail.com.br   ou Samuel_pontadepedras@hotmail.com

Cinco poemas de Catarina Lins

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Tomie Ohtake







ARAL/KYOTO SANGA F.C.

se me sinto/sento como moby-dick à mesa do jantar, à hora do
café, no jardim

se me sinto/sento como moby-dick/jesus/tolstói
à hora do jantar, no café, à mesa do jardim

se você
fatia sementes e passa geleia ou manteiga
no pão

e se me sento/tento
disfarçar/não atropelar idosos/sinto dores
no menisco

e se o entregador de água da JL Cunha da regata vermelha
é mais veloz e forte
do que eu
(do que nós)
 – e ele é –
e a geleia de damasco chega ao fim todas as quartas-feiras
do mesmo mês
e se marimbondos
          constroem casas
nas janelas
e o cheiro da grama cortada atravessa a praça
         no caminhão de mudanças
e se pode ser que eu vá à praia ou pode ser que não
e se me sento pra escrever/pedalar/almoçar/escrever/pedalar/almoçar todos os dias
e como Matsui tenho pensamentos
                    que não são
dele

                   e se no universo não existem

                            estatísticas


(e se

não podemos acreditar em ideias
nas quais os músculos não tenham
festiva parte)

se alguém ordena sons
enquanto um outro lê
galáxias num sofá em Sangha
se alguém quer
que o mundo acabe
quando tudo ainda está
          bem
ou quando só sobrou a gente
sobre a pedra-
cicatriz
e se é tão fácil
de imitar você
e se você
é uma máquina
de falar/pensar/imitar
um poema se você
é uma máquina
de imitar/falar/pensar em máquinas
que imitam/pensam/falam
poemas e legendam
o mundo
de um modo horrível
e se tudo isso for só
isso mesmo se tens toda
a razão – se também machuco o peito
na última virada
e como
Zoroastro
numa torre
         do silêncio
em ruínas

pratico a arte de fazer
        
         loops

e então me sinto/sento
como um grande corpo–d’água
à beira do dique, em Kokaral
e se me sinto/sento
com as contribuições lexicais
do Kimbundo
num oásis em Ghutah
e o ovário/vórtice que conecta tudo
conecta
uma aresta que existe
a uma outra
que não existe
e a grande diferença entre tudo/todos
entre Jorge Contreras & nós
é que Jorge Contreras era só um cara
com quem meu pai jogava xadrez num bar chamado La Luna Agata,
no México
e nós amamos o Camboja,
daqui.


  
Conceição


eu apago a luz do jardim
e fecho as persianas

a lagoa lá longe
com suas colunas de luz

e a moldura das árvores
que sucessivas gerações

         de pássaros
        
                   plantaram

com seus cocôs

a figueira enraizada
o sublunar esquecido
         na varanda

eu apago a luz da garagem –
alguma coisa aconteceu aqui

nos pedalinhos alugados
nos pés cortados
         nos mariscos
        
eu que aprendi sozinha
a deitar em pedras
que sempre acomodam bem
as costas cansadas

eu que nunca tinha pensado em voltar

até sentir de novo
as curvas
         lentas
das pedras quentes
e cheias
         de liquens

guardadas por rochas maiores
em suas coroas de bromélias
e barbas de velho

nossas peles secando ao sol

– fechamos a casa e apagamos as luzes

fomos felizes ali
é claro
que podemos voltar

mas não se dirige portão a dentro
no colo dos pais
pra sempre &

seu pimpa
tinha razão
quando dizia

"tudo isso, menina,
é pinto
se comparado ao pedaço de terra entre o oceano atlântico
e a lagoa da conceição
onde tu vais ser criada…”

  

Prece estruturada em formato de polpa

depois de laura erber

- 
poemas não são
conselhos
conselhos
não são
figos
figos não
são poemas
são
figos
não –

você não
para
de falar
e me envaideço
você
nem o.
nem os figos
nem as mangas
            cortadas

no jardim

         alguém que diz

– adoro berinjela e o palácio
         de queluz

é lindo

depois você
depois você ouvindo
                   culpa
quando eu disse
                            roupa
depois você
quando diz que toda vez que apaga a luz do quarto
nalgum lugar do mundo
uma garagem
          se abre

depois eu
quando vim andando
e depois saindo
e depois você
apagando o cigarro
por causa da queda
absurda

depois as paisagens
depois as cidades
depois as conversas
abandonadas
         na cozinha

depois você
quando disse que a academia Smart Fit
era democrática porque lá os porteiros
e o Luiz Costa Lima malham
                                     ladoalado

depois você
quando disse que tudo isso era novo e tudo isso foi antes
antes ainda
         de acordar

depois você
quando disse de uma pessoa que é outra
e se uma delas acordasse
e se uma delas
         morresse
e se entre elas
os objetos
            pairassem
como se pudessem
como se houvesse –

e se dissessem
fungos
e se dissessem figos
e se dissessem
polpas

e se os dentes
         quebrassem

e depois
         caíssem

e se mesmo assim
dissessem

         Sim

Tomie Ohtake




























No beto carreiro eu vi um macaco que ria

desculpa se eu quebrei
o protocolo das fodas
casuais

mas você voltou
pra pegar o livrinho amarelo
do ferlinghetti
e os passos no andar de cima
misturaram-se
com filas quilométricas
de turistas e meninas em camisas
suadas muito
escritas

– é que você não
é gorda
é que eu pensei em sons
que já não lembro mais na volta pra casa
e em objetos
pequenos como peras
fatiadas
e na obesidade infantil
e em você criança
sendo tirado à força dum torneio de xadrez
porque esse método de não pensar em nada
por mais de três vezes ainda é o melhor método,
pra mim

é uma reflexão
pra concluir
depois dum filme
do hal
hartley
– é horrível –
são meditations
for dummies
são sempre os mesmos
lugares
mas melhor seria o filme
em que você descobre a bola
fugida da altinha na praia numa tarde
primaveril
e a devolve ao corpo
esguio de adolescente
marrom com gotículas
de sal, suor
& força
tal foi minha surpresa ao encontrar
entre os edredões de uma bebedeira
uma carta celeste e as 7 marcas
da porradaria.

noutra,
a cidade vazia
espera
há três dias
a carne
apodrecida de fukushima

– somos todos cúmplices
dos mesmos problemas
mecânicos
saindo de santa assim tão
            cedo

ou tarde

ou quando
a luz do pipoqueiro ilumina
dramaticamente
um rosto cru –

existe a distância
e existe o tempo
existem mulheres que são mulheres
e ainda rochas
e paisagens
e tudo mais que se desentranha
            da tarde

como quando você comia repolho
e escavava poemas
que diziam que era assim mesmo:
há amor, às vezes
                           


Imago para R.B.


Se 
olhares pro nada
de costas pra praia
de braços cruzados

Tendo atrás de ti o mar turquesa
e uma família na areia
ou bem uma mãe e um bebê
(ou duas crianças – teus
filhos?) no canto direito e

se o fundo for
dividido em três faixas
à maneira de Rothko

[o retângulo azul por cima
o oceano turquês
a base cor de ovomaltine]

e se o mar ocupasse quase
tudo e a tua cabeça ficasse
na parte celeste, tuas mãos

no ocre e teu pulmão,
teu coração – e por pouco tua boca não –
no mar inquieto

Se admiramos
contra tais tons

         tes yeux,
         tes mains,
         tes lèvres

Quem poderia dizer que não és,
enfim, o desesperado estivador
que já pressente o naufrágio?





Catarina Lins nasceu em Florianópolis, em 1990. Formou-se em Letras pela PUC-Rio e atualmente cursa o mestrado na mesma instituição. É autora de Músculo (7Letras, 2015) e Parvo Orifício (Editorial Garupa, 2016). 






pega aí com os seus nos meus metacarpos - seis poemas de Fabio Saldanha

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Yuichi Ikehata




II

pra sentir saudade basta pouco
basta esquecer o guarda-chuva em casa
ou atravessar a rua no sentido oposto
subir uma ladeira quando você devia descer
esperar um ônibus no ponto errado
comer a sobremesa antes do almoço
esquecer a pasta de dente em casa
estar em uma sala chuvosa às 8h da manhã
tentar discutir machado de assis sem usar
a expressão o uso da ironia ou escolher
escrever uma receita de bolo de fubá
sem estar no século xvii e sem ser francês
propriamente dito ou então querer
insistir num fato quando já não
se sabe mais o que fazer

sentir saudade é difícil demais
(prefiro pudim).




"Hunter", Daido Moryama




só agora.

here’s the thing
a gente sabe que o limite das
coisas pode (e às vezes deve)
ser menor do que o limite
entre a geração daquela
vidinha e o momento
em que os caixões efetivamente
são colocados embaixo da
terra (amém?) você sabe
que um lado da tela não
reage bem a despedidas
abandonos e aos movimentos
de livros fechados mãos largadas
beijos dados no escuro pelo
medo de que vai que alguém
vê 
mesmo que todos te
odeiem e você precise
do anonimato e os vizinhos
não vendam mais sopa e as
coisas mudem e as
coisas girem e os polos
magnéticos da terra
podem permanecer intactos
ou talvez não talvez esse
seja o caminho de entender
o medo de alguém ser abandonado
não é falta de atenção não é
uma necessidade constante
de afeto é só o medo de ver
seu norte virar o sul e o rosto
de alguém sempre se tornar
agora a figura das costas
que você um dia viu e disse
volta.
confessando-se
ou não a gente passa
pelo tempo
enquanto esse
permanece paradinho
na dele
a gente acumula gente pessoas
corpos amantes copos
(pode rimar com desodorante?)
e mesmo assim o passado é sempre
cada vez mais o aviso
constante de que chega uma hora em que
o abandono já é fato do passado
o abandono já foi
a memória até fica
cada vez mais cativada por
qualquer lance afetivo que ainda exista
mentira
que não existe
porque o que existe é a
reconstrução sináptica da coisa
seja lá para o que ela serve
don’t torture yourself
vai na paz
fica bem.




monodiálogo

hoje foi a primeira vez em que
um aquecedor apareceu desde os dois
dias em que debaixo de chuva
mistérios foram resolvidos
passeios foram feitos retratos
e retratos foram tirados debaixo
do cinza o céu se abre enquanto
a manhã dança a gastrite
dança o cansaço dança mas
a certeza de que a distância
dança e oscila e diminui cada
vez mais a cada tom pastel e
a cada traço verde água cruzando
a areia separando e unindo as
pequenas bastilhas que a gente
coleciona entre si sem nenhum
inimigo mortal sem nenhuma
greve de fome sutiãs pegando
fogo ou a lembrança de que é
necessário saber pedir um sanduíche
de falafel ou se surpreender com a
gentileza de estranhos quando os
mesmos te dizem claro eu vos
levo ao moulin rouge
 reviver
é de longe uma experiência em
que se recontam histórias e se
reativam séries mnemônicas
enfeitadas pela deusa da curiosidade
em saber que horas são do seu lado
do mundo mas sim reviver é reinventar
uma verdade que ainda não foi
escrita de passeios ainda não feitos
de coisas ainda não lançadas de
abraços ainda não dados de
saudade acumulada de uma
vida pra bem fim
de clichê mesmo
ainda a ser vivida.




Henri Cartier-Bresson




quando você não sabe se é ou não, você coloca a dúvida no título e deixa assim

dividir a minha bandeja de comida 
com a sua pode significar entre outras
 
coisas qualquer uma das opções a seguir
 
você pode muito bem escolher
 
uma delas ou se quiser não escolha
 
nenhuma aceite todos os significados possíveis com a boca
talvez seja a ausência crônica de
 
fome para as vinte e cinco peças de comida
 
encomendadas no serviço de pronta-entrega
 
ou talvez seja somente a vontade de
 
interação já que a sua seria posteriormente
 
dividida com outra pessoa então por
 
que não dizer
 
aproveita
e por que não tentar e
 
preencher as ______________ lacunas
 
deixadas pelo espaço da mesa que a
 
gente arruma
assim
tirando a fruteira
colocando o prato do queijo
 
um pouco mais pro lado
 
e mesmo se a falta de assunto
 
nos dominar
já que a exposição de um ao outro
 
se faz mais presente nessa época do
 
ano
mas ainda sim
é bonito ver como os traços do seu rosto
mudaram desde a última vez
 
e é interessante saber que a gente vai se
 
deixando relaxar
mesmo com a cobrança interna a gente
 
entende
que dividir isso aqui entre as mordidas
 
que a gente dá
talvez possa no fundo
significar
o quanto do amor a gente ainda sente




retirando o lambe-lambe

antes
quando você descia a rua
augusta no cruzamento com a
peixoto
você poderia ver um
grande aviso dizendo
lambe.
então,
lambe.
retira as feridas
camada por camada e assim a
gente vai esculpindo algo gracioso
feito a partir de todo o seu trabalho
e de toda essa tarefa hercúlea que pode ser
ter que tirar
camada por camada
toda essa dor e todo esse cansaço e olha
só pra você você voltou com sua rotina em
ritmos galopantes feito os cavalos que ela tanto
gosta de dizer que simbolizam algo que está
sempre em movimento sempre se alterando
nunca
no
mesmo
lugar
então,
lambe.
até que todas as tuas cascas virem cicatrizes
como a gente vê os nossos gatos fazendo
e pensa
se eles se limpam na maior parte das vezes
assim e ainda sim seguem em frente por que
você se atreve a tentar fazer diferente?
para,
pensa,
se acalma
ou então pira
e joga todas as tuas camadas pro alto
rebela teu mundo pros trancos
atira tudo do barranco mais alto
tira aquele cheiro dele da minha roupa e relembra
que a gente não é cebola
a gente é só um misturado de coisas que vão
acontecendo ao mesmo tempo
no aqui e no agora
que vão caminhando com a gente sempre
em todo lugar
afinal
quer coisa mais louca
e que te incomoda até nas raízes
do cabelo
do que o aqui
e o agora?
volte a pensar nos costumes
e naquilo que a professora dizia
numa aula sobre princípios e termos
fundamentais da estética do período
tão longo que vai compreendendo tanta mudança
e tanta
mas tanta briga
e pensa que a atitude a ser tomada agora
é realmente no final
como se você fosse
ali
um humanocebolóide
e chora.
mas chora pra valer
até que a lágrima encoste a boca e você
faça aquilo que o lambe-lambe já havia sugerido:
L A M B E .




você sabe

copo meio vazio
pra mim
é shot




*Poemas selecionados do livro inédito "Chiclete quebrado"
________________________________________________________________



Fabio Saldanha colecionava cascas de cigarra e ingressos de cinema; seu primeiro livro, quarta xícara de café(patuá, 2015) foi o início e agora o chiclete quebrado vem remendar uns pedacinhos e sugerir umas coisas novas, ou não; o que não muda é a quantidade de café e omeprazol ingeridas dia após dia. 

4 poemas de Elciana Goedert

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Ilustração:Alicja Rodzik



DESABAFO

Antes de ser corpo, sou sensível
Antes de ser carne, sou humana
Antes de ser “gostosa”, tenho voz
Antes de ser receptáculo, viro feroz
Antes de ser violentada, encaro meu algoz
Sou feminina, nunca seu capacho
Sou guerreira, não teu saco de pancadas
Sou fêmea, não escrava do seu leito
Tampouco um bibelô pra deixá-lo satisfeito

Sou mulher, e só peço o teu respeito!



ConFUSOs

numa relação sem sincronia
acertam-se os ponteiros
vivendo-se a mesma fantasia



CARNAVAL DOS BARDOS

somos do bloco da poesia
sonhos, amores, ilusões
são as nossas fantasias
abraçados a rimas
ou atrás de versos livres
jogamos confetes pra cima
e com a tristeza, fazemos folia



VERBALIZANDO

Há dias
em que insistimos
na conjugação do verbo,
tentando encontrar o lugar
do sujeito
no tempo...


Fotografia Elciana:Cris Muller



Elciana Goedert (Ciça): nascida em Ivaiporã (Pr), reside em Curitiba desde 1996, onde participa de diversos movimentos literários, como o Coletivo Marianas, CuTUCando a Inspiração, Escritibas na Rua e Sarau Popular.  Publicações:Eu e a Poesia - Editora Maple (2014), Sob a Ótica de Eros– Edições Catalina (2016), Nutrisia– Coleção Marianas/Bolsa Nacional do Livro (lançamento em março de 2017). Antologias:CONCURSO NACIONAL NOVOS POETAS (2012); I, II e III Antologia da Confraria da Poesia Informal  (2013/2014/2015); Poesias Escolhidas Vol. II: O Melhor de Mim(2014); Elas São de Marte - Mulheres Sem Censura (2015); Conexão: Feira do Poeta (2015/2016); Folhetim dos Poetas Malditos (2015); Conexão II: Feira do Poeta (2016); Antologia Identidad de los Pueblos - organização Alfred Asís (2016); Mãos em Versos - II Antologia AVL(*lançamento em breve); Asas à Poesia, Editora Liberum (*lançamento em breve); Eles & Elas – Aquecendo as palavras– Ed. U.S.C.A. (*lançamento em breve)
Para acompanhar as poesias da escritora no Facebook, acesse a página Ciça - Universo em Versos: https://www.facebook.com/universoemversos

Videoteca: "Os caminhos de onde eu vim" de Luanna Belmont

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de onde eu vim tudo é pouco...














Luanna Belmont nasceu em São Gonçalo em 1980. É formada em Comunicação Social pela PUC-Rio, Mestre em Literatura Portuguesa pela UFF, e atualmente faz o doutorado em Ciências da Literatura na UFRJ. É casada, professora e, antes de tudo, poeta entre os seus cães, o seu gato, os seus livros, no seu jardim incrustado na floresta. Em 2016, publicou, pela Editora 7Letras, na coleção Megamíni, o livro de poemas Sobretudo verde. Costuma postar seus textos no facebook. E-mail: luanna.belmont@gmail.com









o plural de olhos nas palmas das mãos - quatro poemas de Juliane Nascimento

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Foto: Daniel Tomiuc




os elefantes
dominam
[a dialética da doçura
leves
porém pesados
espaçosos
e, muitas vezes, pequenos
cabem exatamente
na parte que cabe
em nossos olhos.


Foto: John Drysdale



quero manter as
      [mãos livres
desse invisível
quilograma de vida
que empoeira
até as linhas do
destino.


screenshot de mãos



não sei como
o céu se ajeita
a fazer 29ºC
e a tocar
o pormenor de cada pele
sem exceção.


"sempre chegamos ao sitio aonde nos esperam"



nem tudo
o que gosto
é natural.
a soma
da natureza à natureza
até perder a
genealogia,
como as cidades
é bem bonita
de se ver.





________________________________________________________________




Juliane Nascimentoé paulistana, suas palavras favoritas são moringa e educandário e escreveu seu primeiro poema aos 11 anos. Publicou em 2016 “O plural de etcéteras”, pela Editora Patuá.

Clarissa Macedo e a visão dos abismos

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Por Adriane Garcia

        Bastou-me pouco tempo da leitura, menos de um terço do livro, para sentir a força da poesia de Clarissa Macedo em “na pata do cavalo há sete abismos”. O título, por si só, com este misto de sortilégio e enigma, lembrava o aviso de bruxas que eu poderia ter ouvido na infância.
         Não é uma poesia difícil, ininteligível ou hermética, mas também não é uma poesia fácil, se o leitor é do tipo que quer sorver verdadeiramente o encantamento das palavras. Leia os poemas de “na pata do cavalo há sete abismos” uma, duas, três vezes. Verá que algo se abre, verá o que é ficar na beira de seus precipícios.
        Pois é isso, Clarissa está a nos falar da profundidade, de tempo, de velhice, de morte, de mundos que não temos mais; de inadequação, de incompletude, de dúvidas, fracassos, de desterramentos. É poesia para quem não teme tonturas. Sete, seu número cabalístico, não lhe salvará, nada lhe salvará; Clarissa está para dizer que somos seres procurando sentido, mas você se sentirá acompanhado. Suas palavras são de penetração e é necessário um leitor disposto às lanças. Sim, algumas vezes a autora o fará sob o lirismo, mas ainda assim, esse lirismo tem o movimento das crinas dos cavalos, enquanto é quase tempestade o que venta.
        A maturidade reconhece a dor e sabe o que fazer com ela. Clarissa é daquelas poetas que corroboram o meu pensamento de que todo poeta é antigo. Não luta contra, luta com. Sua poesia ditada de mistérios e de experiências que parecem advir de uma ancestralidade, comunga segredos tão necessários, aquelas leituras das reflexões mais silenciosas, feitas de habitar, como neste excerto, de Arrebatamento:

“O mundo é uma hora
mal desenhada e em tudo
esconde-se o infinito.”

Ou neste, de Jornada:

“surge a vida
mil vezes alucinada

parindo números
de mortos
desde ontem,
desde a era passada.”

        Sua musicalidade sendo belíssima, recorda esta nossa tradição mais bem realizada com Cecília Meireles. Seus versos limpos trazem o domínio diante do que fala e da forma com que escolhe falar. Sua poesia não nos põe obstáculos, mas nos pede desobstruídos, nos pede prontos para uma visão. Os elementos da natureza aparecem de forma insistente, principalmente a terra, como símbolo de lugar onde se estabelece a existência, onde se pisa, para onde se é sugado, como sangue, como matéria. Do pó ao pó, nas palavras da poeta: “cada passo é uma trapaça”. É interessante notar que a força invocada desde o título até as muitas reincidências da palavra terra, de seu elemental, é a força telúrica. Assim, pata do cavalo invoca solo, solo invoca abismo, abismo invoca espírito. Mas ela também tem a força para receber as alegrias, a poesia é também o júbilo da imaginação e do prazer:

“A chuva interfere nas ilhas
como quem deita de luz acesa.”

“Pois os magos, como os mais curiosos pesquisadores da natureza, fazem uso dessas coisas que são preparadas por ela, aplicando coisas ativas às passivas, produzindo, às vezes, efeitos antes do tempo ordenado pela natureza, que as pessoas comuns pensam se tratar de milagres aquilo que, de fato, são obras naturais, em que a prevenção do tempo apenas fica no meio, como se alguém pudesse brotar rosas em março; e amadurecer as uvas, ou colher feijões, ou desenvolver a salsa em uma planta perfeita em questão de poucas horas; mais ainda, provocar coisas maiores, como nuvens, chuvas, trovões e animais de diferentes tipos, e muitas transmutações de coisas (…)”.
 Henrique Cornélio Agrippa de Netteshein, em Da Magia Natural

“Embora o poema não seja feitiço nem conjuro, à maneira de ensalmos e sortilégios o poeta desperta as forças secretas do idioma.”
 Octavio Paz, em O arco e a Lira

        Haveria tantos versos de Clarissa, neste livro, para ilustrar o que o mago e o poeta disseram – acho que Clarissa faz nascer rosas em março, ou em todo mês, faz ver também seus espinhos mas ficarei com a força inequívoca destes seus versos:

“A alma relincha
na estrebaria.”

***
Clarissa Macedo, natural de Salvador (BA), doutoranda em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora, pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo mundo afora (além do próprio Brasil, Colômbia, Peru, Cuba). Está presente em diversas coletâneas, revistas e sites. É autora de O trem vermelho que partiu das cinzas e de Na pata do cavalo há sete abismos (7Letras Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia), ambos de 2014, este último recentemente reeditado pela editora Penalux.


O carnaval de Adriana Brunstein - Quem quer casar?

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Teve um carnaval. Sempre tem um carnaval. A minha mãe havia reformado seu vestido de noiva e eu iria de Dona Baratinha, aquela que ninguém queria casar. Com fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Só que eu impliquei com o adereço na minha cabeça, com as antenas, sei lá. Não quis usar. Fui só com o vestido branco. Aí eu não parecia nada. Talvez a Cristina Mullins em algum Caso Verdade sobre menina santa. Ou uma virgem suicida que inspirou o Eugenides. Era um bailinho de salão, com vários projetinhos de heróis, deuses gregos, mini-detetives Magnum com colares havaianos, bailarinas rodopiando em suas saias de tule e eu. A baratinha totalmente descaracterizada do “é carinhosa e quem com ela se casar terá doces todo dia, no almoço e no jantar”. Que não havia achado nenhum vintém perdido no chão. Que ficou emburrada num canto porque cavaleiro algum se encantava com uma Blattaria sem antenas, e sim pelas mulheres maravilhas com seus chicotes dourados e nenhum tom de cinza. Se bem me lembro, quem aceita se casar com a Dona Baratinha é um rato mal intencionado (depois dela recusar um boi, um burro e um cabrito) que queria dar um golpe do baú e acabou morrendo afogado na feijoada de casamento (não sei dizer se Dona Baratinha também recusou o porco que virou feijoada). Enquanto isso, no salão animado pelas marchinhas, eu, a paixão que G.H. nunca teve, o Gregor Samsa que se transformou só pela metade, fui finalmente cutucada nas costas. Me virei, cheia de esperança e já ensaiando um Oh! de surpresa. Foi aproveitando essa deixa que o pequeno Nero entuchou minha boca de confetes e saiu gargalhando. Tem muita coisa ruim de engolir nessa vida, mas nada se compara a confetes. E eu espero que o pequeno Nero tenha morrido de seu próprio fogo. Devagar. Tendo como última visão aquela baratinha que nunca mais conseguiu pular um carnaval.






Adriana Brunstein é phd em Física, escritora e romancista, com trabalhos em várias vertentes e meios de comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Grafic Novel Prontuário 666 - Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão  e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books 2012.
Ilustração: colagem de Marcelo Moreau

5 poemas de Manuscrtos de Areia - Rosa Maria Mano

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Ilustração: Bárbara Cole


O Esqueleto da Estrela

Desço lentamente, desfazendo o vestido. 
Escadarias de água, passeio de linguados,
enguias assustadas. Permeio, respiro líquido.
Uma nau afogada ainda sustenta o mastro.
Não há como ter medo neste silêncio.
Desenho teu rosto em página oceânica,
boca marcada, olhos de água. 
Sou pele e paixão, amor e esqueleto de uma estrela

que te chamou, antes de mim.


Praia do Abricó

Chove sobre setembro. A chuva fininha que se demora em molhar.
Fui ao Abricó buscar a mulher que alimenta pássaros. Não estava lá. Mas, sólida impõe a presença dela.
Sinto seu calor ao meu lado. Há sol e, ela traz de onde está, o azul e o verde nas retinas molhadas. 
Queria dizer - Até breve. E digo.
Vou me buscar em Sampa, nos floristas do Arouche, na subida da Angélica, descendo a Consolação, nas calçadas inundadas de beleza e perda e desespero da Rego Freitas.
Na Sé e seus meninos. Suas ciganas de Egito. Nos parques e museus.
E nas varandas de Mairiporã, suas matas que acolhem o bicho e me escondem. 
Vou me buscar e volto comigo. Mais solitária ou cheia de luz, não importa. Sou eu. Me quero dentro.


Ilustração: bárbara Cole

Sombra entre os Dentes

Distraio peixes.
Não serena a angústia sorvida em águas e neblina.
Este horizonte não alcança o sol-nascente.
O dia encaixa uma nova sombra entre os dentes.


Sentada Num Café

Sentada num café, a vida desfila sua fantasia diante dos meus olhos.
Máscaras, adereços, buzinas. Saltos de sonhos calçam os pés das meninas.
Os olhos do menino, contas de águas-marinhas no rosto tisnado, procuram os meus. 
Ele me vê. Ele viu. E é tão pequeno...
O que não percebe a estrada, o que não alerta nenhum relógio, não detém o motorista.
Ele vê através dos óculos de sol cobrindo minha máscara. Estende os dedinhos - torrões de chocolate. Colhe minha lágrima e olha pra ela, como visse um peixe, um pássaro, a escolha de uma sombra sob a árvore.
Vai embora sem olhar pra trás, fixo nos próprios dedos.
Virei digitais de um anjo, sentada num café.


Pagamos o Preço

Pagamos o preço.Se sorrimos demais, choramos em público. Por estarmos em paz. Se expomos, ocultamos, ainda que pra nós mesmos. 
Quando calamos e quando dizemos e quando gritamos.
Pagamos o preço por tanto calor. E quando está frio e quando somos fortes.
Pela fragilidade, pelo abandono, pela solidão.
Por estarmos bem conosco, pela liberdade. Pela opção pelo amor.
Pagamos o preço quando escolhemos, quando não deixamos que falem por nós.
Por sermos distintos, por termos uma marca, uma cicatriz na cara.
E pagamos. Porque vale. Vale cada custo e cada ida.
Cada retorno e queda. Cada voo, solitário ou não.
Cada vez que vemos a imagem nos espelhos, cada olhar pro outro, cada lufada de ar, cada presente do sol.


Rosa Maria Mano, mariana de São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras. Licenciada em História, pela Universidade Estácio de Sá.A primeira publicação, em São Paulo, uma coletânea de poemas sob o título Fruto Mulher, com outras autoras  . Em 1983, Xamã, primeiro livro de poesias, individual. Com capa de Elifas Andreato e prefácio de Antonio Houaiss. Pela Coleção Passe Livre, da Cia. Ed. Nacional, o título Três Marias e um Cometa, conto infanto-jvenil.  Premiada no Concurso de Poesia do SESC – Rio de Janeiro de 1999, tendo A Lua Negraem primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo concurso. Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016.
Curso de teatro com Antunes Filho, Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) SESC Villa Nova – São Paulo, de 1986 a 1987, tendo participado dos projetos “Augusto Matraga”, “Rosa de Cabreúna” e “Chica da Silva”;Participação na montagem de “The End”, de Bertold Brecht, sob direção de Augusto Francisco – Teatro Igreja – 1988 – São Paulo;Participação como atriz e produtora em “Ópera de Sabão”, de Roberto Vignati sob texto homônimo de Marcos Rey – 1990 – São Paulo.

2 poemas de Paulo Pignanelli

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Ilustração: Gilad Benari


Ignomínia

Pelo gesto louco
dos teus olhos clínicos
o hálito da tua boca
quando me examinas

Trago as marcas
do teu corpo mímico
nos meus dedos cínicos



De captado

De capto
De captas
De capta
De captamos
De captais
De captam

O mistério do fundo

descobre-se na queda


PAULO PIGNANELLI
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