I
Nós renascemos do genuíno estrondo,
corremos das bombas, nos sujamos de barro,
mundos, oficinas, seres, argilosos pudores.
Moldamos com as mãos o coração arremessado,
granada. Plantio, colhemos com os pés, arrastamos carriolas,
a reza dos criminosos, flores roxas e rasteiras,
o orvalho produzido, acoplados, as gramas, mãos que tocam o céu. A procura das convicções, depois
o encontro, hoje e amanhã, somos sempre,
a continuidade dos dedos, o meu começo e o meu fim.
Agora, lúcidos de razão, poemas que escrevi
com as tuas tintas, o teu olho me lavou de petróleo,
escuridão, Lua, Ying. Rebanhos, cortes sem atadura,
engasgo, ajoelho e peço, Deus, belezas são coisas
acesas por dentro, bocas abençoadas, nomes, toques.
A gaiola aberta e o corpo palavra, corpo teu e meu,
corpo voz, meio homem, meio pássaro, nos esbarramos,
beijos laterais, cabelos teus, meus, fios, nossos cílios
perdidos na estrada de terra. É como me afogar no
meu próprio texto. Retornar viva, sangrando e sentindo.
Desejos, harpas, o cigano recriado, agora pulsando
no capim mesmo depois da morte, a natureza acontece,
cálculos e equações místicas, adrenalina, buracos
de grandes proporções, cimentado.
Ave Maria, cheia de graça, encarnações, peles
afogadas, a distância é zero. O meu silêncio conforta
as tuas paredes, meu incêndio, brasa, fogareiros, a tua
brisa quente. Comprometo-me despida de arcos, flechas,
você mora em todos os meus hemisférios, oceanos e desfiladeiros. Destruímos a cidade inteira no inverno,
a minha alternativa perdurável, quase o meu colapso com as respostas, a linguagem que você reproduz dentro de mim, nas partes, os pelos da fome, eu grito,
eu sou um animal que atropelou as próprias pernas.
Amargos amanheceres, é noite, estremeço, os órgãos
vitais perfurados. Os nossos erros plantados em vasos
de cerâmica, desabrochando botões, os dedos no.
Ramagens crescendo na garganta, as palavras. Infernos
adornam o meu peito vestido com o teu nome, transplantado, lamaçal, inundação branca na boca.
Existe um pedaço de vida se desdobrando, o vão entre
a embriaguez e a fronteira, cigarrilhas sobre a mesa,
florestas, nós somos troncos de árvores centenárias,
a dureza dos nossos ossos entupidos de inscrições
santas, simbologias divinas, tremores oculares e tecidos
molhados. Nos sonhos, o fantasma da fala, rudes trapaças,
o corpo que foi palavra se fez demora, prolongo a vida nos teus braços, respiro o teu suspiro, o arfar das mudas consequências, gastos inodoros, vidros estilhaçados, o amor é a luz que cegou a multidão equivocada, verdades expostas, nós somos evidências criminais. Escrevo a informalidade vulgar das nossas pernas, lado a lado, você é o poema calcado no meu peito.
II
Me arrastam pelo ar os aromas, cantamos palavras sem rédeas,
coaxamos fulgores na chuva, eles, os teus olhos, me mastigam,
trancada numa casa em chamas, a mata se desfazendo
sob as digitais impressas no solo, não fosse o barulho
ensurdecedor de água correndo, as mãos de madeira foram
pregadas na maçaneta da porta, os espelhos da casa com o teu reflexo digerido, o fantasma perigoso dos nossos gestos. O homem que visitou as minhas terras. A precisão de mim, dos cacos arremessados no rio como se fossem pedras, um pássaro pousou na janela e me observou pelas frestas, dedilhou os cabelos, um pássaro com luz de fogo e muito sono. As palavras
amargas ficam guardadas numa caixa de ferro, com feitiços
de bruxaria, amuletos de magia negra, sacrifícios e animais
que morreram de fome, amaldiçoados pela dualidade.
No fundo do poço as palavras rimam com a força de
mil temores fixados na testa, um crânio branco flutuando
à tona da água, eu sou feita de escoamentos e poças de heresia.
Caniços ocos, estraçalhados em mim, pisoteados pela
minha racionalidade nula. Emoções, carnes, toques, bocas,
a minha libido exagerada, ninfo: o diagnóstico cristão. Os teus
dedos que já não alcançam os meus, noturna, imperfeita, repleta de
histerias, cuspes, os meus contatos no teu rosto de geada,
pés, um após o outro, horários terminantemente calculados,
fumos. Lamentavelmente, os teus olhos lançam escuros
marítimos, a sede é proporcional. O pulo, um rosto esgarçado
poluindo o chão. Não tocamos a margem, te olhei e você
continuou me olhando, aprofundando a minha tramela, os meus pecados, a minha altivez, as minhas encenações, eu me despi de outras e proferi o que sou, a lucidez traiçoeira dos dias, sólidos, líquidos, arenosos. Ar e água.
Diluída, o desejo é intermitente. Episódios de febre alta
e tentativas de morte, silêncio, a casa grita, enuncia
escândalos amorosos, pratos quebrados, copos, talheres
perfurando os pulmões e os nossos ossos chacoalhando de um
lado para o outro, a dramaturgia das noites eternas. Como hei
de partir? Alquimias e elevações, o livro dos anjos, a linguagem,
os vícios, a animalidade da perversão no palco cama, o reencontro.
Um rosto inexpressivo, o meu, um saco repleto de Deus e carcaças,
a dimensão que criamos e todos os afetos rechaçados, eu te amo, talvez mais do que amo a minha própria lascívia. Agora, talhada
de ruídos, sinto as minhas pernas dormentes, banhada com o meu
próprio sangue jorrando de todos os buracos, me sinto vivaz,
os músculos pulsantes, impelindo lágrimas sagradas, benção ou
maldição? Ecos que partem a galope, um átomo à deriva,
emocionalmente distante e incômoda, você incorporou as mãos
em mim e quase tocou as minhas costelas.
Como um soco omoplata, me batizo mundo, de ritual e fogo,
sob o mesmo sol: minha e tua.
III
os destroços
Em tempos de Revolução, transformei o meu coração em um coquetel molotov. Uma bomba caseira, praticamente palpável diante do cenário pós-guerra que reside em mim, tudo foi destruído, sobrevivo sabendo que a força que existe é capaz de agir na turbulência, um bloco de barro que não morreu. Em todas as regiões primárias do Espírito, habito um tremor de terras, o largo precipício que é ser MULHER. As minhas duas que morreram brutalmente assassinadas na rodovia ilusória, o que restei e o que bastei. O que calei, principalmente.
as ataduras
Quando a noite me toca e o silêncio espanca a cidade, potencializo os meus vínculos com o Universo, as dimensões que exalam cheiro de jasmim árvore planta rasteira, nas pedras de um rio que circula o meu coração numa volta sem fim só de ida e despedida. O meu tratado com a divindade alta de te escrever em pétalas de rosas vermelhas e teus espinhos de defensiva libertando raios e tremores na superfície do magma de mim. Ecoar nos becos a minha poesia vagabunda aos olhos dos morais ditadores de religiosidade, ser mártir do meu tempo e espaço — deduzir os trejeitos da espiritualidade se transforma em algo tão real diante dos meus céticos olhos de palavras roçando em bocas de garrafas, é como explodir em pedaços enquanto procuro Deus.
o nascimento dual
Você, homem, que apreciou e degustou de pampas alvas delicadas e angelicais familiares, eu, mulher, negríssima italiana de nariz esparramado, bisneta de feiticeiro alquimista, desbocada, maluca, esse poço de Deus-Útero escarrado na vida, pelos seres, pela metafísica, pela minha voz de dentro. O mundo lavou os meus pés antes de chegar aqui, tudo foi tirado da terra com muito esforço e suor das minhas ancestrais forças, as estradas, os muros que pulei, quebrei braços e pernas, não é fácil aprender o que é, o lugar, o hemisfério, a mente e plantas que nascem nos dedos, é de tanto esperar, digo — aos meus espíritos, diariamente — eu construí embarcações para ir embora da tua tempestade que me deixou ilhada aqui, trancada com o meu próprio temperamento e neurose. O quanto te amei não sei, mas te amo com uma pedra dividindo os nossos calorosos tocares de mãos e testas, Deus, o que é descobrir amar dividido por uma pedra? Por que existe uma pedra aqui? Ajoelho, peço e agradeço. Não sou uma boa pessoa, eu sei, mas sou uma pessoa diferente, me olho e me sinto, diferente sem você, você não consegue entender o que é perder um pedaço já que aqui eu permaneci, eu sobrevivi, paro e res piro: tolerância, olha menina, como é perder um pedaço do que se é, como é perder a luz que existe entre duas pessoas que partilham a cama e o coração, tudo é perigoso, eu te avisei, a tua nudez diante dos problemas, a entrega cega, é a poesia que te mata e é a poesia que te salva, olhe para mim, de olhos vivos, entregue ao teu desespero existencial, eu estou aqui, eu te avisei, olhe para as minhas mãos de ajuda, olhe para mim, agradeça ao teu sofrimento, é o Universo te resguardando, é o Universo te oferecendo a chance para entender, olhe para mim, eu estou aqui, eu te avisei, eu sou você, uma parte de você, eu nasci da tua costela machucada.
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IV
Somos eternos instantes no ato de estar só, nascendo na ponta da língua, nos fios vergões frágeis de tanto apertar com a deliciosa tensão entres os dedos e as linhas de bruxaria que desenham as palmas. Sul, substância, suor. A própria palavra compôs canção de corpo nu, rachaduras e corações palpitantes — mesmo que o baque seja pequeno — as audácias percorrem todos os meus nichos de mulher, fecunda, em mim algo que havia morrido e que renasceu de causa forma cor abundância.
Estar livre e estar junto, não só na matéria, nas dimensões que me pegam pela cintura, arqueio de sensações místicas, sabedoria é.
O escuro do particular.
O amor entregue.
Amar todos como te amo, com consistência de genuíno. Livres e de ninguém. Amarrados apenas em potencialidade astral rugindo no peito como um leão faminto, no teu ouvido, a minha água, o meu céu, o meu corpo que pode dar abrigo de dentro para fora.
Que Nada consiga nos definir, amém.
Te conheço agora pelo cheiro e pelo sabor tropical de abacaxi com hortelã, nos dentes, a cidade tremeu, explodiu, os postes da rua, as lâmpadas da casa, a iluminação das fotografias, o amor é uma sacristia — ajoelho em você e rezo com os lábios — a minha língua poesia e você deitado poema.
O mundo calou e gritou em seguida: a fome não acabou, os desastres naturais se intensificaram em mim, maremotos pelas pernas, terremotos de fogo nas estruturas do que eu sou e do que você também é.
Azul — nos ombros, na boca, nos excessos de nós, um batimento que percorre desde o meu peito de caos até o cheiro do teu olhar pousado no meu, âncora e superfície. A nossa Revolução.
E todas as músicas tocadas nas arcadas da cidade serão sublimes canções de liberdade e magnólia.
V
I
A ilusão é o meu texto. O mundo
todo rachou em terremotos inesperados,
tempos de escassez, o meu corpo se
transformou apenas em palavras, sou tudo o que tenho,
a mãe e a irmã que não me amou, sou fruto
da nossa indelicadeza, das hostilidades plantadas
nos vasos de um grande campo sem terras habitáveis.
Estou vazia. Um alçapão sem luz abrigando
fantasmas renegados pela tua ausência,
celeste e infernal, o poema.
II
Contigo, paga-se o pecado de estar viva.
Um terceiro braço nasce, não os meus
dois, mas outro, que ganha vida própria
e nina um natimorto destroçado pelo
sensível toque dos meus olhos, os olhos
pousados no nada, semicerrados, estou
cansada e disputo um pedaço do meu
passado com os urubus, a fome – do que
me matou tempos antes da minha
morte material, um profundo desamparo
só.
Na cidade do meu peito todos estão
mortos. Distante de um Deus criado
pela interrupção da claridade, me arrancaram
as costelas do gênesis: o que é sugar a
força do universo num baque surdo e de
consistência espiritual?
Existo, a protagonista, presa num corpo
orgânico, idoneidades promíscuas, devoções
alcoólicas e coração. De ossos quebrados, o
karmico de ser humana o suficiente, detestável,
um doloroso acasalamento com algo que costumo
chamar pelo meu nome próprio, calcificado em mim,
impura, sou – sabendo que isso me transforma em
um anjo caído, o desamor com rachaduras,
pendências e castigos, eu sou tudo para mim e
eu sou nada para o mundo, insignificante perante a criação,
a abominação que rasteja nos destroços de uma
metrópole que já deixou de existir.
O sentimento está em extinção, mulher, minhas
quedas pelo abismo, meu martírio e meu gozo,
condenada por um silêncio sucinto, restritivo,
toda manhã morria em derruimentos da alma e
o colapso da caixa torácica encarquilhada pressionando
a face traidora da vida, a maldade descobriu
que é a filha do homem e então ela chorou
de desesperança, encarcerada no quintal da casa,
o meu lar, uma cobra encolhida na plantação de
mentiras asquerosas.
III
A culpa é Dele. A culpa é do mundo, menos minha.
A culpa é da minha mãe que deu a luz ao suicídio,
morrer durante o processo de nascimento – ainda
que continue respirando, gemendo de dor e gritando.
Renascida de um arbusto que foi arrancado da terra
natal, o uterino amor materno escondido por longos
nove meses de escuridão, uma criança vã e com crises
de personalidade, egomaníaca e verborrágica, existo monstro,
já nem agonizo mais.
A miserável mulher sem as mãos do pai e com Jesus na barriga,
os reis magos me presentearam em uma cama de feno gelada:
palavras, ouro em pó e demência. A salvadora, escolhida pelo
capataz, sou eu. Os sinos, os animais e minha mãe urrando como
um bicho de espécie duvidosa: a tua filha carregará
a cruz do sentir demais e de todos os calos – nasceu poeta.
Já nasceu sendo escória, a portadora do profano de Sade,
o Marques, que a família abortou após certa idade, estou sozinha,
o cão que revira aterros sanitários à procura de uma cura.
a cabeça pensa demais, os vícios, os amores destroçados.
Incalculável, atriz, os espaços foram esvaziados, suja, imperfeita e
cruel, um coração salpicado de grandes feições que partiram para o
alto da montanha. Com as pernas curtas, não sei se escalo ou se pulo,
longitudes e latitudes, uma geografia que se reuniu aos braços e às pernas, um após o outro.
Estar apta à constante sabotagem, do amniótico aos sete palmos de terra. Não correr da sentença – o inferno está em mim, eu que me olho
todas as noites no espelho e me julgo aberração, uma
consciência crua e devastada pelo que não escolhi ser, não escolhi
nascer, mas Deus que assim o quis, me jogou no solo
como uma praga pronta para carcomer tudo pelo caminho, deixando
um rastro rugoso de mim.
IV
Com dez mil demônios espancando a minha cabeça,
o meu corpo – o todo – dói. Fui atropelada pelos meus
tremores, talvez esteja podre.
Estou doente, moribunda, amputada de boas sensações,
frígida, sem amor. Eu sou Sarah Kane e eu sou Sylvia
Plath: a minha morte tão esperada e assistida pelo
caos que é não conseguir viver o peso das palavras
que herdei dos reencarnados, o instrumento
da verdade, o descanso primordial ou um crime contra
o criador, golpes na jugular, habito locais baixos, um som
industrial de máquinas rangendo na boca, o meu bruxismo,
a minha taquicardia, quem sou eu, quem é você, por que
estou aqui? É maior do que posso carregar, o fardo.
Este é o meu testamento, além do nada e do vazio, a miséria.
V
Anos passados me fizeram crer que o abandono
dói mais do que a ausência – estrelas no céu da tua boca
que iluminavam a estrada do meu destino, quando erro,
quando escrevo, quando vivo, coisas que não existem mais,
o sentido morreu comigo. Eu fiz o que você me pediu – eu sumi.
Agora eu sou um fantasma amaldiçoado.
O sentimento está em extinção, homem, tudo também sumiu e ferroou
o meu corpo de tua mulher que fui, uma sincera criminosa conjunta.
Tudo está em mim, te escrever não me convém mais, as minhas cartas de amor estão nas tuas mãos, você foi o que mais amei na vida e você
foi o que mais me matou na vida, o meu veneno.
Fotografias: acervo pessoal da autora
Bruna Siena, o demônio feminino de Sade, o Marquês. 1993, vinte e poucos, entre Maringá e Curitiba. Escritora, poeta e louca. Responsável pela Kadosh Publicações, um selo editorial independente, profano e experimental. O terreno íngreme entre o ocultismo e a gnose, entre a necrofilia e o descaso, a puta da família. Obscena.