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6 POEMAS DE CARLOS DALA STELLA

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Achei dificílimo selecionar seis poemas do livro O gato sem nome, de Carlos Dala Stella. Foi trabalhoso escolher apenasseis peças, entre tanto deslumbramento. Este artista múltiplo, que pinta, desenha, esculpe, recorta e escreve na solidão de seu ateliê, no bucólico bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, registra inúmeros episódios de epifania em imagens e escritos. Pelo menos uma vez na vida, os poetas deviam experimentar este tipo de solidão, simultaneamente monástica e erótica, que conduz os sentidos a um fluxo vertiginoso  em que a ordem é a beleza da intimidade.  
Carlos escreve poemas em diários, ou cadernos de artista, nos quais testa projetos de obras que engendrará em telas ou em esculturas de madeira e papel. Ao visitar seu ateliê – e o blog diário de ateliê, em que registra tudo, ou quase tudo que cria, o observador fica tonto com a profusão de ideias e obras.
Mas Carlos é minucioso. Se publicou O gato sem nome em edição caprichada do Caderno Listrado (assinada pelo artesão gráfico Daniel Barbosa), tem ciúmes dos poemas que escreve nos diários. Não quer divulgá-los, a não ser quando publicados em livro, ou no blog. Por isto, cada poema é uma revelação.  
O ateliê de Carlos lembrou a casa de Claudio Seto, já falecido, que morava no bairro de São Brás. Seto não tinha um ateliê : seu escritório era atulhado de revistas, jornais, livros, zines, publicações de histórias em quadrinhos,  arte e cultura japonesa,  ciência, astrologia, futebol, magia, desenhos, idéias para quadros. No quintal abundavam bonsais e pinturas, como saídos de uma cornucópia. Carlos é disciplinado em sua desordem criativa. De sua cornucópia também jorra leite e mel, e como Seto, ele vinga-se dos avaros que só produzem para o imperativo do mercado.   Para os artistas fora do eixo, felicidade é encontrar uma arte em sintonia com a observação da delicadeza da vida. Uma arte que, por contaminação, reproduz esta delicadeza em obras ímpares.  

O silêncio da escrita

ENGODO
Vida é esse miolo pulsante
limitado sempre pela casca

Ao contrário do pão e do ovo
A gema que há dentro
Está condenada a alimentar o escuro
A luz latente, circular e bela
Em sua substância amarela
Não passa de engodo.

Mas o olho interno entrevê
Na luz fecundante da única vela
O esplendor vermelho do sol.

ADRIANO LUGARINI, 14

Enquanto risco o carvão na tela virgem
Com a ajuda de uma haste de bambu
- antiga vara de pesca de meu pai –
Seu Daniel cuida das mudas de girassol
Plantadas ao longo do muro branco
Entre a porta do ateliê e o portão de ferro.
Paciente, aguardo que a frágil linha
Invisível para quem passa na rua,
Cresça amarela, e acenda os olhos
De quem se perde por aqui

A MARIPOSA

Tromba contra o isopor do teto,
Contra o prato da lâmpada mais forte,
Contra a superfície colorida das telas.
As trombadas seccionam
Seu vôo espiralado com golpes
Aparentemente inofensivos, indolores

O som oco se repete dezenas de vezes
Mais do que um estalo,
Menos do que um choque,
Até que o silêncio volta, sem pânico.

Sobre o caderno de desenho aberto,
Caminha a mariposa
Num treme-treme ritualístico

Dois olhos nas asas perguntam
Se o que fiz de mim nesta segunda-feira
Teria algum sentido depois, e qual ?
- dois inquietos olhos negros
Vindos do amanhã.

O ensaio da escrita

COMO OS CHINESES
Escrevo meus quadros
As vezes nem é o quadro que me interessa
Mas a pipa em que ele se transformou
- vermelha, com sua longa rabiola
Chicoteando o azul.

Quando sinto nos dedos
A tensão do fio, o vento das alturas
Atuando sobre a estrutura de paina e seda,
Reconheço espantado que o vôo do quadro
Nasce em mim
Mas não sei para onde me leva.


NA VOLTA DO ATELIÊ

Mãe e filha
Batem bola na rua
Em frente de casa.
Param para que eu passe.
Pelo espelho retrovisor vejo
A alegria com que retomam o jogo
No antipó remendado.
Ambas de calça curta.

Que diferença faz
Se está nublado e se eu não pintei
Nenhum quadro ?

OS OLHOS DO PAI

Tão frágil a borboletinha do fim da tarde
Com seu vôo leve de asas helicoidais.

Tão doce o perfume do jasmineiro miúdo
Apenas cai a tarde começa a noite

Tão imóveis o juveve sem folhas
A varaneira sem galhos
O pinheiro só tronco e espinhos.

Tão parado o ar
Tão sem estrelas a noite
Sem grilos vaga-lumes besouros
Sem lua.

Três anos que meu pai morreu.

1o. Voo
CARLOS DALA STELLA, poeta-pintor nascido em Curitiba, em 1961. O diálogo entre artes plásticas e escrita permeia tanto seus desenhos e telas, quanto seus painéis de cimento e vidro. Ilustrador de livros, jornais e cartazes, expôs pela primeira vez em Monselice, Itália. É autor de Caçador de Vaga-lumes (poemas), Riachuelo, 266(contos e crônicas), Bicicletas de Montreal (desenhos e fotos) e O gato sem nome (poemas) e Nanquim (desenhos).



6 poemas de Vanessa Reis

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Ilustração: Natalia Deprina


em dias tão meses
de olhos e ouvidos tampados
simplesmente pelos dias
tão meses

a memória do efeito
basta para continuar movendo
e a novidade de hoje será talvez
um dia

a descoberta de algo velho

***

medo é a impotência

de transformar
o furta cor do sabão em bolha
circunferência
na linha transparente do vidro
plano

a recusa de escolher forma
a preferência pela textura
pele ou cabelo

desespero do silêncio
mudado
em silêncio

***

vamos,
botar todos os pés e corpos
em todas as estradas
até longe e até perto
olhar dormir e acordar olhando
conversar em todos os sotaques

– como se fossem outras línguas: todas nossas –

vejamos por baixo de nossas peles inquietas
confirmando que somos como sempre nos vimos
e sempre diferentes disso
através dos olhos e cheiros de nós

Ilustração: Natalia Deprina

no caminho reto e a passo frouxo
apesar de cobras e motores
e esforços de compreensão
enquanto no mundo de figurantes
o vento não sopra o ponto

da próxima fala ao improviso
a querência é muita
mas a convicção é fraca
põe na bacia pra dormir
pra ver se nasce pureza

mas para além das buzinas
há o grito, o roer de madeiras
e todas as noites
a prece baixa de hoje
pergunta pelos chiados
tantas escuridões à espreita:
os ratos estão por dentro.

***

(e se somos)

a polícia que
equivocadamente
concorda com manifestantes e
intercala sorrisos às cacetadas

os assassinos dos assassinos
os guias que têm medo do caminho
ou o grande eufemista

razoável é elogio

e não há limpeza a ser feita
não haverá chão limpo abaixo do sujo
e haverá sempre apenas o chão abaixo de cada pele de chão
e haverá aquilo de que tudo é feito

e haverá o olhar que se escolhe dar

***

tendo lido as notícias
queria estar latindo lá fora
insuportavelmente
como todos os outros cães

todo tédio é desatenção



Vanessa Reisé autora do livro de poemas Asa de lagarta, nasceu na cidade de Santos e está em São Paulo desde quando veio estudar filosofia. Tem interesse por artes, cultura, política - e tudo ao redor disso. Assim, tem trabalhado com gestão de políticas públicas e projetos culturais. Asa de lagarta é seu livro de estreia e integra a Coleção Patuscadapremiada pelo ProAC – 2012 – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.

3 POEMAS DE RONALD AUGUSTO

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Contra a cafonice amorosa
Eduardo Vicentini de Medeiros[1]

Cometer poemas carrega lá seus perigos. Quando a amada é alvo do verso então, avista-se tenebroso triângulo das bermudas com seus vértices de naufrágio: a cafonice, o sentimentalismo e o derrame lamuriante sem beiras nem eiras.  E cantar musa viva e poetisa, quem se atreve? Ronald Augusto o fez em “À Ipásia que o espera” cruzando incólume tais ameaças com língua atesada, vento de popa e verga firme. E quando a maré não estava pra peixe, rumou por terra, “oito horas e meia de viagem/ dentro de ônibus em noturna via”. Diga-se, de passagem, que Ronald articula seu périplo com requinte multimodal. Sua caixa de ferramentas é repleta de surpresas.
Destaco um quarteto de pasmos e admirações. Começando pelos caligramas espalhados aqui e acolá, com aquele viço de coisa desde sempre provisória que lembra alegremente o caderno de notas que, ao que tudo indica, está sempre à mão do poeta (e de sua musa)pra conter jorros de palavras e garatujas. Oxalá nos presenteie o autor com alguma outra edição com mais exemplares. Há uma tradição latente a ser preenchida, passando pelas ilustrações de “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade” e “Tatuagens” de Edgard Braga, espécie de action poetry a plenos punhos, que Ronald nos dá pequena e encorajadora amostra.
Outra banana onde poetas de todos os matizes e quadrantes costumam escorregar é a representação do que nos passa na cachola quando sonhamos ou daquela zona gris entre sono e vigília onde transitam vários poemas de “À Ipásia que o espera”. A esparrela da écriture automatique, que tanto arremedo recebe na levada poética dos dias que correm, desemboca na direção contrária do engenho construtivo e da concisão que cabe esperar da boa poesia de invenção, do trobar ric que Ronald executa sem mutreta.
Embreto aqui meu segundo pasmo admirado. Ronald é craque no quesito de mesclar sono, sonho e sexo. Quando não é o poeta que sonha; vela, insone, o sono da amada. Quando sonha me faz recordar Quevedo (“¡Ay, Floralba! Soñé que te… ¿Direlo?”), Gregório (“Ai, Custódia! sonhei, não sei se o diga”) e Giambattista Marino, mestres no artifício barroco do sonho erótico, mesclando desejo e intangibilidade. Quando vela, é na presença do corpo quase sempre desnudo da amada – donde um dos picos do livro, priápico na veia:

“A musa se deita e dorme (após
servir-me dela). Observo-a
desde minha coya de amor: o cós
(essa espádua que ondula), a desora,
o sono de lado e a concha da axila.
Em seus sonhos toda se dessigila”

O terceiro mote é a bem bolada síntese do ar coloquial da língua materna e da sutil arte de espanar dicionários. Ladeiam ‘beiços’ e ‘miscíveis’, ‘menina’ e ‘incunábulo’, ‘tremelica’e ‘senescente’, ‘pau’ e ‘térmitas’, ‘neguinha’ e ‘libada’, ‘coxas’ e ‘decúbito’. Forçar o léxico na direção do menos dito ou mesmo do inaudito é louvável  ars poetica.
Meu quarto e derradeiro pasmo é saborear a destreza com que Ronald desvencilha-se da maça da metalinguística do poema que fala dele mesmo, doutros poetas, doutros poemas, de tramas ao escrevê-lo etc. Toda vez que a intertextualidade marca presença, o faz com engajamento preciso. Ovídio na função de abre-alas.Manuel Bandeira, onipresente. Pound, envelhecendo e amando. Octávio Paz, Murilo Mendes, Dante e Oswald, de soslaio mãos dadas com Caminha. E quantos outros minha ignorância não permitiu ver? Provavelmente tantos quantos os pasmos que me passaram batidos, os alumbramentos que me reserva a próxima deitada de olhos nas páginas de “À Ipásia que o espera” pois é caminho que merece outras caminhadas. Salve Ronald!

Dizendo muchacha
eu rumaria sem espera
para o túmido aroma de nêsperas
do seu corpo
se eu afivelasse a máscara de paz,
octavio

mas não devo ser
o mimo menor do mexicano
sequer um continuador amaneirado
do seu insurrecto pós surrelismo descolonial

(deixemo-lo em paz e sob a terra leve
apartado da tutela do continuísmo devocional)

restaria um poeta para nada
se eu não fosse o poeta, o cantor tão somente de
sierva sirena maria, abissínia, sagitária, dionísia
aliás, nenhuma outra ambição
enruga o velho lago do meu peito
menos sereno do que sonoroso

dante o poeta de beatrice
marília de dirceu
para murilo mendes o moinho do mundo
se desembainhara de jandira

não quero ser polifônico
quero ficar como o poeta de denixe
denixe que é de ronald
(ela me chama: meu poeta)

minha menina com meneios de água
verte-me ministra-me mocidades de água
então senescosed amo

três vezes murmuro seu nome
três vezes enlaço seu corpo cabeça-tronco-membros
e três vezes cheiro seu pescoço que exala mirto
e beijo sua boca
(fade out/in, quem sabe nesse intervalo?)
melhores que todas as cervejas escuras
são seus beijos


* * *

tremelica teso o capim
arrepiado pela brisa cuja densidade
me faz evocar
a preguiça compacta (a nossa)
por quem dissipamos um no outro
os corpos


* * *

todas as palavras e nenhuma depois
entornadas retornadas em imagens
os pensamentos curvos

porque se deixam embrulhar
em meu coração

e o sombreado fonema à beira
do mar manso de santo antonio
deu lisboa
nesga de vináceo mar oceano

enquanto pouso
minha fronte de cabelos encaracolados
no colo nas coxas
de minha neguinha dionísia

e o cheiro da árvore
a copa que se inclina a nos lamber
e o vento arruivado
memória de hálito e pregas





[poemas de À Ipásia que o espera, Ronald Augusto, Editora Ogum’s Toques, 2016: http://www.editoraogums.com/]


[1]Eduardo Vicentini de Medeiros, é professor de Filosofia (PNPD Capes Unisinos) e Editor Assistente da Revista Filosofia Unisinos.

Article 1

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Imagem retirada do Google

Eu, eu, eu, eu!,
Eu, eu, eu, eu!
- A máquina do Capital,
Como um latido,
Dizeu a todo momento,
A máquina gnóstica
(Além da alienação),
Na qual entre eu e you
Sempre há um jung,
Um juiz, um arrazoado
De juízos sobre
O verdadeiro eu.
E se esse eu
Que se encontra
Se encontrar
Para se deslocar,
Se encontrar
Para se destronar,
Se encontrar
Para se perder
Na dança louca
De alguma estrela
Bailarina?

PERDIÇÃO

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Imagem retirada do Google

Um sonho fica apodrecendo
Na dobra do cobertor.
Apodrece, e tem já odor
De manhã calcinada.
As dobras do corpo
Não levaram nenhum sonho
Ou seu resquício,
As dobras do corpo
De tecido demasiado salgado.
Corpo fechado
Para balanço do sonho,
Muito encontrado
Com si mesmo,
Nenhum solstício de inverno
Sendo chocado
Atrás da orelha,
Nenhuma misteriosa
Explosão de luz irada
No nervo da íris,
Nenhum dente de marfim
Ou leque de cílios.
Neste corpo tudo condiz,
Sem sonho que o salve.



4 poemas de Annie Carvalho

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Seu boto

Seu boto dono das águas
Ensine-me a remar.
Cortar essas marés de léguas
Cavalgar feito égua
Na crista desses pastos d’água.
Seu boto filho da lua
Ensine-me a sonhar.
Sou criatura desse sertão de água.
Sou valente, rosa de pedra- metade gente.
Criei-me no breu da mata só
Tenho a solidão do pó.
Assentada sobre o lajedo
Desse desassossego.
Seu boto- maestro do feitiço.
D’olho místico,
E dono da liberdade.
A secura viva que me invade
É o galope da mocidade.




Desejo

Ode para algum Raimundo
ou Clementino.
Poetas simples e benditos,
historiam nas matas e nos sertões.
Que não sabem rimar o infinito,
mas sabem domar o destino
e com os olhos falam bonito.
Também desejo ao gosto da noite
mãe de todos os segredos
a poesia mais que perfeita
cheia de timbres-temperos
de verões amazônicos. 
Desejo decifrar os elos
Entre o alto e o abismo.
Beber na crista dos segundos
todos os sabores, todas as cores
da poesia do teu mundo.



Em cima da borboleta uma planta!

É verdade.
Mas, não importa se acredita.
A planta pousa na borboleta.

Matizes de poemas aromatizantes.
Surgem na linha imaginária que separa a
seiva do dia, como flecha que passa.

Mais eu garanto tudo acaba quando,
a parca natureza – humana.
Em vez da flor colhe o espanto.




Doce Aurora

Fui visitar aurora.
Peguei carona
na montante das brisas.
Cheirando o verde
das astronomias vi-me
embriagado de vagalumes.
Vislumbrado ájanela
vi seus olhos magmáticos,
mas eu pescador de sonhos
de imediato vi-me estático
e sem energias.
De repente meu prisma de
incertezas quebrou-se em sua
presença. Ela é a rosa das direções
e das paixões.
Donzela flor de laranjeira.
Aromática e magnética.
Recebeu-me abrindo seus cabelos
de espectros e genialidades.
Envolvendo-nos libertou meus pesares.
Regressei como peão de estrelas
domador das infelicidades.


.
Annie Carvalhoé Geógrafa formada pela Universidade Federal do Amapá-UNIFAP. Ganhou o Prêmio Menção Honrosa- CNPq-UNIFAP-2009 pelo artigo científico: Dinâmicas Territoriais. É Guia de Turismo Regional e Funcionária Pública. Membro de diversos grupos poéticos no Amapá e movimentos culturais. Foi contemplada no Prêmio Rosa Negra 2014-Contos Inéditos. Participou da coletânea Quinze dedos de prosaAP2015,e da coletânea Quatro Estações SP-2016. Ganhou 3º lugar no Concurso Literário Pena&Pergaminho2016-contos, foi contemplada noPrêmio Sarau Brasil2016-Concurso Nacional Para Novos Poetas e na XVIII Antologia Poética Vozes de Aço 2016-RJ. Apresenta o espetáculo poético Liras e Mocambos onde declama a poesia regional da Amazônia. 

Capital esperando uma resposta (capítulo I de "Harry dos Dedões")

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Um garoto vê um gatinho em cima da mesa. Mas ele tá com um problema de saúde.

Minha contribuição sindical de novo e de lá é o propósito de viver a gente não conseguir dormir. Boa sorte com o pessoal da igreja. E a sua vida mãe, e a sua vida, e a sua vida pessoal?

Concordo plenamente de novo no meu, caso não consiga, oi querida amiga da sua conta de valor R o propósito de ser inteligente.

Você é um pouco mais de descanso e composição de um total de horas extras que é a minha vida tá uma correria só que eu possa levar vantagem de uma forma mais eficiente e segura de efetuar a compra e não me lembro se eu tivesse aí eu te amo e não é a figura do meu lado e não me lembro se eu não vou poder ter aula com o pessoal da sala de espera aí que eu não te vou fazer o pagamento de novo e o valor do aluguel do meu lado do meu irmão e o valor do que eu não vou mais poder ir no cinema e o valor do frete, e a sua vida, e aventuras, a noite toda com a gente e meia de noite e meia de novo e o valor do frete e a sua vida e aventuras, oi meu anjo, e não tem como me mandar o dinheiro do aluguel.

Harry dos Dedões era um homem e mulher do meu lado. Mas não posso ficar com o pessoal da minha casa neste momento. O direitista, de uma forma mais rápida, personagem que eu criei, tá tudo bem com você e sua família e amigos que me envie a noite eu te dar um jeito que está você vai estar lá na frente casa de da o número da sua casa ou vai ficar mais tempo de eu não sei como fazer o pagamento do produto que não tem como você é um bom tempo e sem querer abusar.

E mesmo semanticamente o nome foi possivelmente pensado para ser mais rápido possível e o valor do da minha mãe não quer ir pra lá e não tem como me mandar o chininha acho que ele tava acusando duas mina de roubar sorvere ou sei lá gritando pra ele parar tava acusando duas mina de roubar sorvere gritando pra ele parar tava acusando duas mina gritando chinchongchon.

Carteirada - Willian Delarte

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Ilustração; Izzy/deviantART


Um notório político da exótica República das Bananas chega ao céu subitamente após um impetuoso desastre com seu jato particular. De cara, uma fila astronômica lhe surge nos olhos ainda embaçados.
O Deputado engomado mirou ao redor e percebeu que todo o horizonte era preenchido por uma fila que, em forma de caracol, tinha em seu centro a saída ou entrada para algum recinto. Somente quando viu que, imersos nas nuvens, os pés inchados pareciam flutuar, foi que a ficha caiu, melhor, rebateu na caixa do cérebro até o convencer de que seu voo não chegaria tão cedo às Ilhas Cayman, paraíso onde um ilustre amigo banqueiro o esperava para confidentes reuniões.
            Empurrando todos, foi se aproximando do centro do caracol até encontrar um senhor bastante alto, barbudo e grisalho que, ao seu ver, era o porteiro ou guardião daquela vertical porta dourada, incrivelmente presa a nada. Antes de falar qualquer coisa, empunhou um cartão e o esfregou na cara do barbudo.
            - Por favor, dirija-se ao fim da fila, disse o Porteiro numa voz grave e serena.
            - Escuta aqui, nunca ouviu falar em “Cartão Diplomático”? Desculpe-me, mas não tenho tempo a perder.
            - Tempo? Bem vindo à eternidade, filho.
            - Filho? Posso passar ou não?
            - Já disse, dirija-se ao fim da fila.
            Inconformado com tão constrangedora situação - algo que jamais passaria em vida - o Deputado mordeu os lábios, contou até três, levantou a cabeça e, estufando o peito, coagiu com veemência.
            - Escuta aqui, você sabe com quem está falando?
            O Guardião lançou-lhe um olhar de profunda indiferença, ao passo que o Deputado retirava inúmeros cartões do bolso, classificando-os em voz alta.
            - Está vendo este?,é do clube mais luxuoso do mundo! Este é de pensionista vitalício do meu Estado! Estetem um limite maior que toda riqueza que um dia você poderia acumular!
            O olhar indiferente permanecia estático e parecia atravessar o Deputado. Algumas vozes já começavam a fazer coro.
            - Pô, Pedro, tira esse cara logo daí!...
- É isso mesmo, não temos a morte inteira para ficar nessa fila e, olha, lá vem mais gente!...
- Xiii, parece que inundou de vez o país desse sujeito aí...
Gargalharam todos.
Compreendendo de quem se tratava, e ainda sentindo que tinha algumas cartas na manga, o Deputado não se deu por vencido.
- Então quer dizer que você é o famigerado São Pedro, responsável pelas enchentes que assola o meu país e, pior, renegador de Cristo por três vezes!
Pedro coçou a barba.
- Meu filho, a razão de ainda haver vida no seu planeta são minhas chuvas e, por um acaso, lembra-se de quem edificou a Igreja de Cristo? Vai contentar-se com o fim da fila ou prefere que eu puxe a sua lista e lhe fale quantos projetos “anti-enchentes” você aprovou e o real destino das verbas? Deve ter percebido que seu lugar na fila depende unicamente dos seus atos - “livre arbítrio”, como dizem por aqui.
            Pela primeira vez na vida – ou na morte - o Deputado se enrubesceu. Abaixou a cabeça e percebeu a seriedade da situação.
            - Deveria ficar feliz por estar nesta fila, filho, há uma outra, mais abaixo de nós, onde teria certamente um lugar cativo.
            - Não, esta não, por favor!... Não há mais nada a se fazer? Eu poderia voltar e reaver tudo.
            - Está certo disso? Poderá se vê numa situação diferente da que deixou para trás - “resgate cármico”, como dizem por aqui.
            - Aceito tudo... Tudo, menos essa fila infernal!
Eis que surge à sua frente uma nova porta, desta vez de um elevador com três botões: “Andar de baixo”, “Reencarnar” e “Falar com o chefe”. Pensou em apertar o terceiro, mas o olhar de Pedro dizia “melhor não!”. Apertou o segundo e desceu como um raio.
*

            Saiu da casca e logo percebeu que não estava sozinho – ao lado, o irmão mais velho ansiava por sua chegada. Pensou em perguntar onde estava, mas o que se ouviu de seu bico foi um piar muito fino, imperceptível. Após longas horas, tornou a piar, dessa vez de fome, muita fome... A mãe, enorme e emplumada, finalmente chega e lança ao ninho uma vitela putrefata. Enojado, virou o bico e, também, não poderia aceitar ter uma mãe assim, de cor tão temperada... Na mente, as reminiscências de um baby-beef de nobres vacas holandesas – dessas que tomam cerveja e ouvem Choppin a vida inteira – grelhado no alho e na manteiga, diziam-no que não, que jamais comeria essa carne estragada! Quando a mãe retornou à busca de mais alimento, desolado e com muita raiva, bicou o irmão. Notou que havia, ao menos, ganhado um bico bastante afiado. Gostou muito do cheiro de sangue fresco exalado no ar. Bicou, rebicou. Não demorou para que o bucho estivesse cheinho, mas o que gostou mesmo foi do fraterno fígado, suave como caviar, pena que pequeno demais.


WILLIAN DELARTE



5 poemas de Carla Kinzo

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meditação

não mora no tijolo a casa
ou no barro
não está na porta a saída 
ou no escuro 
o medo 

o caminho não é o que afirma
o papel
o mapa
não é o terreno 

não depende da palavra amor
o amor

nem toda confissão 
nem todo metro
é poema

como nem toda água salgada é lágrima

ou mar



fotografia

feito não o que cai
do bolso
ao chão

ou não feito o bolso
ao redor da mão
vazio

nunca feito o chão
contra o qual se espatifa
o que cai:

sua mão

recolhendo o que escapa de nós
dos nossos
de fora do quadro




Tenho lido cartas no lugar de livros
no lugar de placas
nos vagões de trens dentro de ônibus
tenho lido cartas é por isso
não me encontro nos lugares
tenho me perdido muito
errado pontos a descer
ruas esquinas
tenho lido muitas vezes a mesma carta
que descreve um lugar
insistentemente
para alguém da vida
desse alguém que a escreveu
esta carta não enviada anda comigo
pela cidade no lugar de um mapa
refaço com o dedo (como se o dedo fosse
a ponta da caneta que não carrego) o desenho
da letra que pergunta
se não há lugar, para onde ir?
tenho lido muitas vezes esta pergunta
enquanto atravesso a cidade e não encosto
a cabeça na janela ou fecho os olhos
ou olho as pessoas caminharem
elas quase nunca carregam cartas
no lugar de celulares bilhetes de metrô
eu sim tenho esquecido os bilhetes
e às vezes o endereço de volta
só para ficar mais tempo nos ônibus
dando voltas até que escureça
lendo muitas vezes a sua carta
no lugar de tornar à casa

***


não fala de nós
(não ao meio-dia)

toca seus pés à sombra

não diz o que fizeram
o que poderiam ter feito

ou o que carregam
sob a sola
dos sapatos

não diz dos calos
nem do que sabe
(ou acha que sabe)
dos seus dedos

não descreve seus pés
como a palma
(a mão é mistério)

não fala dos tacos soltos
do chão muitas vezes pisado
dos azulejos
do asfalto

não diz que partiu
nem que chegou




quebrar um juramento
como quem quebra
uma xícara

recolher do chão uma promessa
ainda quente
pela asa


fotografias de Carla Kinzo




Carla Kinzoé poeta, dramaturga e atriz. É também doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH/USP. Autora de Matéria, Cinematógrafo e Eslovênia, livros de poesia publicados pela Editora 7Letras.


das cutelarias da fábula - quatro contos de Jorge de Barros

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Thesaurus, Linnaeus and Albertus Seba, 1734




A Raposa


"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas..." disse, com os olhos brilhantes de raposa. O principezinho guardou consigo essa verdade como quem recebe uma joia e estendeu a mão, com um passo à frente.
Seus dentes finos de raposa (ela não come pão) sorriram, antevendo, com delicado prazer, a textura tenra dos dedinhos rosados.




Cinognato


Não o reconheci à primeira vista. Estava mudado. Seu pelo não tinha mais o aspecto selvagem que eu conhecera, e seus caninos, agora levemente arredondados, não pareciam mais ameaçadores. O mais estranho, porém, era o seu novo hábito de se postar de pé. Foi chegando de mansinho, como quem não quer nada, eu percebi a aproximação, mas estava muito mais interessado terminar meu sanduíche, pois logo tinha que voltar ao trabalho. As poucas crianças na praça disputavam o espaço com alguns pombos e tentavam reciclar os brinquedos malconservados, e eu não queria puxar papo com nenhum estranho. Ele esperou um pouco ali na minha frente, parece que não queria me interromper, parecia que hesitava... até que não se conteve...
_Oi, você não lembra de mim?
_Desculpe...
_Não acredito que você se esqueceu...
_Você deve estar me confundindo, eu não conheço nenhum urso...
_Urso? Eu como ursos no café da manhã!
O tom parecia artificial, como o de um velho ator cansado emulando seu antigo Hamlet, mas era impossível não reconhecer aquele bordão.
_Cinognato?! É você?!
Abandonei o resto do sanduíche e dei um forte abraço no meu fiel amigo, mas era como se fosse em um estranho: não havia nem sombra daquele odor de musgo e sangue seco que ele antigamente exalava, sua pelagem agora era macia, feita de lã cor de laranja e com um cheiro fresco de lavanda... Lembramos de nossas antigas aventuras, as caçadas intermináveis desbravando o país perdido, nossa jornada pelo Centro da Terra, nossa velha nave espacial, a busca pelo Eldorado, o Náutilus... tantas histórias inesquecíveis e perigosas que vivemos juntos...
_Mas o que aconteceu?
_Ora! Você cresceu e me abandonou!
_Quando foi isso?
_O seu primeiro emprego, lembra?
_Sim! Você veio perseguindo o ônibus, correndo entre os carros pra me alcançar!
_E te perdi, nunca mais nos encontramos...
E então fizemos um silêncio: a triste prova de que parte de nós tinha mudado e não mais se conhecia. E logo veio aquela velha frase:
_Você está... diferente.
_Você também!
E foi tão enfático nisso que quase me ofendeu... mas era a mais pura verdade. Da mesma forma que eu estranhava sua mais recente aparência, tão... inofensiva, ele também devia estar reparando minha camisa amassada, as olheiras, e esse tremor nas mãos e na voz.
Aí ele explicou seus novos dias, suas novas amizades e aventuras. Fiquei com um pouco de inveja, afinal, a vida dele parecia ser bem mais interessante que a minha. Mas ele logo leu meus pensamentos (ele sempre foi muito bom nisso), então me confessou que nenhuma das novas aventuras se comparava àquelas que a gente tinha vivido. E foi com essa nota de carinho que ele partiu, seguindo um garotinho sardento.
_Garoto de sorte – eu murmurei – Adeus, Cinognato, velho amigo... Agora ele se chama Bonk! (com exclamação e tudo). O que a gente não faz por dinheiro?
Então já era hora de voltar para as faturas, os gráficos e os clientes.




screenshot Evil Dead, 1981




Porcelana


Olhava no espelho e procurava um nome, mas lá no fundo só havia um grito. Nu, naquele banheiro onde Camila arregaçara os pulsos, em dois cortes decididos, profundos até o tendão, os pulsos como duas bocas abertas vomitando toda a vida ensanguentada. O sangue tateando os sulcos do ladrilho verde e se estendendo num grande oceano quadriculado. A sua pele branca como um continente de porcelana banhado pela marola encarnada. Os olhos transtornados, revirados, a boca semiaberta, o rosto assim como uma máquina que pifa em pleno movimento. E os cabelos louros, Ah, os cabelos suavemente repousados na maré de sangue, como a ponta do pincel de Munch mergulhada no seu céu vermelho.
Ali, bem ali ela estava e ele logo estará também, procurando, no mofo do rejunte, o último pensamento de Camila.
Mas agora estava tudo limpo, desinfetado, perfumado. Águas de detergente e o tempo passaram à miúde pela porcelana. Mas ainda havia sangue nos olhos dele. Na alma dele. Aquele banheiro jamais estaria limpo. E por isso ele sempre voltava ali, sempre se deitava no mesmo chão que roubara o calor de Camila e tentava penetrar aquele chão com toda a sua vontade, a ver se arrancava dos alicerces daquela casa o fóssil do último pensamento dela.
Por isso, ele procurava um nome. A morte também o atingira, e ele não queria mais saber de nada que não fosse a dor. Havia culpa nele, uma imensa culpa. Era o que se cochichava por todos os cantos. E ele sabia o que se cochichava, mas não se importava, porque apenas ela poderia acusá-lo, mas acontece que a sua voz de seda tinha escorrido pelo ralo do banheiro. Seus gestos, seu brilho no olhar, sua testa franzida, seu riso, tudo escorrera vermelho e longo, quente e pegajoso.
Foi aí que ele começou a encontrar os fios de cabelo pela casa. É possível que os primeiros fossem mesmo os fios dos cabelos dela, aqui e ali, numa fronha, numa escova, e ele os foi juntando, buscando, agora neles, que tanta proximidade tiveram com as ideias dela, qualquer inspiração sobre o derradeiro pensamento de Camila.
Mas acontece que, em todos os lugares, ele passou a encontrar esses fios loiros. Eram de outras mulheres, obviamente, mas ele via que a textura, a cor, o perfume ínfimo, que nem sei se é possível perceber em um fio... eram dela! E os foi juntando, juntando, juntando até montar uma imensa cabeleira loira, como uma peruca desconjuntada, que nem de longe se parecia com os bem tratados cabelos de Camila, mas para ele era como se Camila estivesse voltando, aos poucos, se materializando como mágica. Mas era só uma cabeleira, apenas um monte de cabelos mal arrumados, como ela podia voltar? Como encontrar a carne, os ossos, os gestos, o sorriso desengonçado e gracioso e enfim chegar ao pensamento derradeiro? Olhou no espelho e viu... um nome enfim!
Era isso! Era necessário esse último ato de amor. E assim, vestindo aquela estranha cabeleira loura, o vestido do primeiro encontro e a maquiagem levemente exagerada, ele se tornara Camila! E nunca antes eles estiveram tão juntos, porque ele era ela e não há como ficar mais juntos que isso. E foi então que, usando a mesma lâmina, deitando seu sangue no mesmo leito de porcelana e sentindo a pedra fria chupar todo seu calor, ele pode conhecer o último pensamento dela. E, para sua imensa decepção, não tinha nenhuma relação com ele...




screenshot Taxidermia, 2006




O Ouro

Para Edson Bueno de Camargo

Cremaram o poeta e, com mercúrio, extraíram, das suas cinzas, ouro. Começaram então a caçar os poetas, que se esconderam no mato, que se jogaram no mar, que se abismaram nas crateras dos vulcões. Finalmente haviam descoberto uma utilidade para os poetas. Mas, quando o último deles, num grotão profundo da Cochinchina, engasgou com o próprio sangue, varado por uma lança de bambu…
 …a Lua começou a cair na Terra.






*Contos selecionados do livro inédito "O idílio de Maria Elefanta e Perna Seca", de Jorge de Barros
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Jorge de Barros cresceu na cidade de Mauá, filho de imigrantes nordestinos. Já passou dos 30 e tem ocupado esse curto período na Terra em ser office-boy, xeroqueiro, protético, professor, sindicalista, poeta, contista e quadrinista. Formado em Letras e Ciências Sociais, é mestre em Antropologia. Gosta de freaks, cães astronautas soviéticos e tem certeza de que foi golpe.

orgasmos, blasfêmias e cartas de suicídio - Diego Callazans

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canta ó Musa
mas devagar
que cato milho
ao digitar



o coração é um bordel fibroso,
de frente fosca e só acesso a senha,
numa alameda sob a noite densa,
onde entrecoxas bailam sem repouso.




a Lei que me toca é livre
dos livros eternos, voa
das tábuas do vil Si-nai
aos sinos que a alma entoa.

desnuda a Torah das letras:
יהוה ? metáfora da Pessoa.
o Orco? rima canhestra
que num arfar se destoa.

...................................


benta terebintina, cerrai
a Campa e o Verme a vir!
só contas de amor na bata!
louvor em suor e fezes!

guardai a faca do Eterno
de nossos olhos frementes!
bani todo asperso noir
dos campanários do Estar!




enlaçam-se em rinha,
na torre mais alta,
o Verso e o Avesso.

mormaço me é verme.
meu Eros é Hades.
– Sendero ou sativa?

(degustas meu sangue
e à mesa te pões
abatida!)

'se latim... 'sa lástima...
esfregam m'a vista
no despenco!

solitude escuma.
adiante esmero
sinuosa várzea.

vem dar-me o Não,
Sereno.
depõe-mo ao peito.


............................


flertei com o Caos na fila da van.
troquei afagos com o Infinito.
vivi dez meses no apê da Insânia.
o Abismo não me retornava os gritos.
um dia o Nada falou que sou lindo.
a Morte enfim me chamou pra dançar.




sou aforme massa ígnea
contida em cela de ar.
entre ocasos a Insígnia
me põe zigoto a alar.

um suspirar me leveda,
viceja à aragem cíclica.
musas, ditai novo Veda.
sangra de mim, ó encíclica

torcei-me as fibras cardíacas,
podres portões da Galícia.
sedimentai elegíacas.

quieta a ressaca releva
farto nanquim sobre a liça.
a marulhar vem a leva.


Galeria :Ronald Companoca



Diego Callazans nasceu em Ilhéus (ba) em 1982 e mora em Aracaju (se) desde criança. É autor de A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013), Blasfêmias(7 Letras, 2015) e Nódoa (7 Letras, 2015). Tem poemas publicados em diversas revistas literárias.

Lacanês

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LACANÊS

Era uma vez…

Numa terra distante, na qual o gozo do corpo de Deus é equiparado ao orgasmo de um mortal numa relação sexual que não existe, um rapaz desamparado a tentar fazer laços sociais.
Todavia, identificado como um tolo errante, visto que não há intersubjetividade (e sim significantes que se relacionam com outros significantes fazendo com que ele {enquanto sujeito} surja no interval de sua melodia), questiona não só sua tolice mas também sua existência.

“Calma, a mulher também não existe”,
dizem seus colegas para seu maior descompasso.

Tal candidato a suposto sujeito retruca que, além de transar, ama uma mulher e, desesperado, tenta afirmar sua existência mostrando-lhes uma carta que ela lhe enviou.

“A carta sempre chega a seu destino”,
responde um Outro ao pegar a missiva e atribui-se o endereçamento.

Sem nada mais para dar dizem-lhe que agora é capaz de amar. A angustia toma-lhe a alma e, ao tentar discorrer sobre ela, o jovem atravessado por sua fantasia é alertado quanto a sua repetida forma de gozar...

“ainda não se trata da falta da falta”.
Ao caminhar em direção da rasura do traço anteriormente nunca dito, seus colegas o acalmam,

“O amor é sempre recíproco”,
 como quem promote…
“chegará o seu dia! Basta não mais servir ao seu sinthoma mas ser servido por ele”

Caricatura de Jacques Lacan por Mauriciogiacomino.

Videoteca: "Lamber Estrelas" de Gabriela Capper

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era um pequeno rasgo azul...













Gabriela Capper nasceu em 1968 no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Realiza vídeos-poemas que têm como marca a fusão de elementos sonoros, imagéticos e textuais. O contágio entre essas materialidades (palavras, imagens e sons) gera um ambiente híbrido que amplia as possibilidades de articulações poéticas. A artista tem graduação em Música pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro, Mestrado em Artes na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e atua como professora de Música no Colégio Universitário da Universidade Federal Fluminense. Em 2011, participou na instalação “Palavras”, de Alberto Pucheu, realizando a gravação de voz em desenho sonoro criado pelo compositor Daniel Puig, no Projeto Poesia Visual, na Oi Futuro. Em 2013, o vídeo “Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta”, em parceria com Alberto Pucheu, foi exibido no Colóquio “Crítica e criação”, do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia, e no evento “Primavera dos livros”, no Rio de Janeiro. Em 2014, participou da exposição "Mares poderão subir por mais mil anos", da artista e professora do Instituto de Artes da UERJ Leila Danziger, realizando a gravação de voz e desenho sonoro "Stela e o mar". Em 2015, integrou a mostra "Caleidoscópio", com curadoria de Maykson Cardoso, realizada no XXX Fuorifestival - Pesaro - Itália, exibindo os vídeos "Bells machine" e "Feche os olhos e veja".




6 poemas de Lilian Aquino

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Mal súbito

O dia em que morri
era um dia comum
em São Paulo
Muita gente saía
para almoçar com
vale-alimentação
ou cartão de crédito
naquela terça-feira banal
Havia quem comesse
tempo e relatórios
afetos ou restos
nesta grande cidade
igualzinho acontece
em outras cidades assim

E eu interrompi a marcha
do tempo
às 12h36 de uma tarde
sem nada de especial
sem chuva nem vale
e com a barriga
vazia.



Catar conchinha

Fecho na palma da mão
esta nota
Não uso força, não a aperto
contra os dedos

Faço uma concha com a mão
levo-a ao ouvido
posso ouvir a vibração
ao toque da pele

Uma nota que fantasio
ser apenas minha
uma espécie música particular

Na palma da minha mão
junto ao meu ouvido
minha nota se esparrama
entre os dedos

(como se eu ouvisse o mar
como se minha mão fechada
contivesse grãos de areia)

Uma nota só
como um sol, um dó,
eu te abro a mão

prefiro que navegue.



Indigesto 

Como um comprimido
engulo este dia.
De oito em oito horas
me lembro
não há remédio
a não ser comer
esta demora que a vida leva
pra curar uma dor
Meus dentes estão moles
como balas de goma
impossível mastigar
estes segundos



Receita para ser só

uma pessoa sozinha
são claras em neve
batidas à mão
onde se lê:
reserve
separado da gema
puro colesterol
é num prato leve
um ser aerado
que pode ser usado
sem distinção

essa nuvem de ovo
no entanto
rende uma porção
a menos
e deixa tudo ao redor
fofo



Urbanismo

Lá onde morava
não tinha margem
nem esquinas:
era inteiro.

E se à noite pensava
via estradas, cruzamentos
canteiros
e flutuava sobre
a cidade aberta
traçando com giz
(um a um) seus limites

delineava
zonas de silêncio.



Ritual

No mesmo dia
em que o filho deixou
a casa
(se afastando de costas
para olhá-la nos olhos)
ela resolveu plantar
um ipê

na sala

Num ato solene
quebrou o chão
e
revirou o solo
e
chafurdou-se toda
contente

E do desfeito
pelo rebento
ficou aquela cicatriz
na barriga
, a estranheza do ser
livre
e o olhar aquela árvore
ainda sem flores
e se perguntar:

roxo ou amarelo?



Lilian Aquino nasceu em São Paulo em 1979. É autora de Pequenos afazeres domésticos(Patuá, 2011) e Daqui(Patuá, 2017, Bolsa ProAC de criação literária).

A morte de David Bowie__Um poema inédito de Marcelo Ariel

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    Fotomontagem do autor


Morrer não deveria ser tão agônico quanto nascer
talvez seja como abortar a existência entre dois pontos de inexistência
a Estrela Negra dentro do Buraco Negro
brilhando com sua luz cinza-prateada
com um ponto azul
ou um peixe abissal disfarçado de canção
o momento em que perdemos nossa consciência
se confunde com a liberdade
minha palavra favorita era ' agir'
antes que a música silenciosa fosse interrompida
pensei em escorregar por dentro
é possível criar algo em um local, em um ponto
que dissolva um poder infinito
como o seu
Ele disse para ela
enquanto ela tentava explicar a teoria dos fractais
' Eu sou uma realidade desconhecida'
ele ouviu sua própria voz cantar
como a ideia de uma luz caindo
por dentro dos ossos
o espaço que você ocupava era como uma espécie de céu
transparente entre uma pessoa e outra
disse o som da sua voz separado do seu rosto
se expandindo
entre espessuras de luz bicadas por pássaros
vou por teu corpo como por um rio
por tua forma como por um bosque
começamos nesse repentino abismo
não há nada diante de mim
apenas um instante que não se move


Marcelo Ariel do livro inédito  'Ou o Silêncio Contínuo'




5 poemas de Julliane Albuquerque

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[Ren Hang]



Manchete

Tiroteio no morro
do Cantagalo assusta
os moradores de
Ipanema.

(Os do morro
descansam em paz).


Num dia normal
Uma coisa é elogio
Outra é chamar de minha linda
alguém que você nem conhece

Uma coisa é elogio
Outra é falar que se com esse
vestidinho tá assim, imagina sem

Uma coisa é elogio
Outra é puxar pelo braço
no meio da boate

Uma coisa é elogio
Outra é dizer que ela não sabe
mas quer sim – dá pra ver

Uma coisa é elogio
Outra é pensar que se ela bebeu
desse jeito, não podia esperar outra coisa

Uma coisa é elogio
Outra é arrastar pro banheiro
e tirar a sua roupa

Uma coisa é elogio
Outra é chamar de gostosa
enquanto ela chora

Uma coisa é elogio
Outra é dizer que chamar de minha linda
não arranca pedaço e que se fosse só
isso, tudo bem. Era só um elogio.


​​Donas
 ​
A dona de casa levanta às seis
arruma a casa
serve o marido
serve ao marido
A dona de casa é dona da casa?
Não serve mais.
Fome
 ​
Está frio demais
para lavar os pratos                                   
frio demais para
sair da cama
para trocar de roupa
para pisar o chão sem meia
sem dar uma volta e meia
de volta para a cama
que também está fria
e não há nada que esquente!

Acho que é hora de lavar os pratos
e tirar os restos
restos não alimentam.
Como posso me apegar a essa
sujeira, vestígios tão distantes
de um banquete, da comida
quentinha, da minha
pele na tua, quentinha.

Agora só restam os pratos, de ontem, na pia.

Quando passar o frio
vou comprar uma máquina
de lavar louça.
Pena não existir um
microondas pra
requentar os dias.
Ao portador
Um poema de amor
sem destinatário
é como um quarto
de hotel de luxo
decorado com porta retratos
de hóspedes antigos
que já não visitam
aquele quarto
faz tempo.
Um poema de amor
sem destinatário
é um arranjo de
melodias guardadas
e remixadas para
o ritmo de hoje em dia.
Um poema de amor
sem destinatário
é uma obra de arte
uma colagem de
cartas de amores
passados, um quebra-cabeça
de memórias, uma brincadeira
de uma criança levada
que deixa por debaixo
da porta de um desconhecido
um poema
como quem desconhece
as regras
que não sejam
de amor.


*


Sobre a autora:

Julliane acredita que a potência da arte vem da experimentação e passeia por entre as suas expressões escritas e visuais. Publica no site www.jullianealbuquerque.com. 


10 Haicais de Van Zimerman

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Folhas do Plátano


Haicai 902


fim de tarde
entre as pétalas e a aranha-
pequenina teia



Haicai 901


na pausa da chuva-
entre as pétalas brancas
cintila a teia


Petit-Pavé


Haicai 900


fim de tarde-
o caminho de flores
à espera do vento


Haicai 899


no ninho de pétalas
a  vida aconchega-se-
rotina da flor


Girassol


Haicai 895


nos degraus da escada
pontinhos de luz-
vagalumes



Haicai 894


nas mãos da menina
tecido, bastidor e linhas-
mistérios da  vida...



Haicai 893


nuvens escuras
revoadas de pássaro-
pétalas ao vento



Haicai 891


no parede da sala
à espera do fim de tarde-
pétalas de tinta


A roda e o vento


Haicai 890


fim de tarde-
dilui-se com a passagem
do tempo, o monjolo



Haicai 889

no mosaico de folha-
quietude e solidão
uma  vida caminha 


Imagens: telas de Van Zimerman



Van Zimerman, nascida em Curitiba-PR. Formada em Letras Português/ Inglês, Escritora - INTERNATIONAL WRITERS ASSOCIATION (IWA),  Artista   Plástica (Artes Visuais,  EMBAP), ilustradora e fotógrafa. Participa de 26 coletâneas entre elas: Antologia CONEXÃO- Feira do Poeta- 2015; Antologia  de Haikais  (Croácia  2015 e 2016,   23.  Samoborski   haiku   susreti   (Darko   Plazanin  - Samobor Haiku Meeting), e Menção Honrosa no livro de Haikais KABOCHA (2016); Coletânea de Haicais: A Lâmpada e as Estrelas (2012), livro individual: Poemas & Imagens (2013, Instituto Memória) e Aconteceu em Curitiba, 2015, Instituto Memória).

5 poemas de Bruna Siena

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I

Nós renascemos do genuíno estrondo,
corremos das bombas, nos sujamos de barro,
mundos, oficinas, seres, argilosos pudores.
Moldamos com as mãos o coração arremessado,
granada. Plantio, colhemos com os pés, arrastamos carriolas,
a reza dos criminosos, flores roxas e rasteiras,
o orvalho produzido, acoplados, as gramas, mãos que tocam o céu. A procura das convicções, depois
o encontro, hoje e amanhã, somos sempre,
a continuidade dos dedos, o meu começo e o meu fim.
Agora, lúcidos de razão, poemas que escrevi
com as tuas tintas, o teu olho me lavou de petróleo,
escuridão, Lua, Ying. Rebanhos, cortes sem atadura,
engasgo, ajoelho e peço, Deus, belezas são coisas
acesas por dentro, bocas abençoadas, nomes, toques.
A gaiola aberta e o corpo palavra, corpo teu e meu,
corpo voz, meio homem, meio pássaro, nos esbarramos,
beijos laterais, cabelos teus, meus, fios, nossos cílios
perdidos na estrada de terra. É como me afogar no
meu próprio texto. Retornar viva, sangrando e sentindo.
Desejos, harpas, o cigano recriado, agora pulsando
no capim mesmo depois da morte, a natureza acontece,
cálculos e equações místicas, adrenalina, buracos
de grandes proporções, cimentado.
Ave Maria, cheia de graça, encarnações, peles
afogadas, a distância é zero. O meu silêncio conforta
as tuas paredes, meu incêndio, brasa, fogareiros, a tua
brisa quente. Comprometo-me despida de arcos, flechas,
você mora em todos os meus hemisférios, oceanos e desfiladeiros. Destruímos a cidade inteira no inverno,
a minha alternativa perdurável, quase o meu colapso com as respostas, a linguagem que você reproduz dentro de mim, nas partes, os pelos da fome, eu grito,
eu sou um animal que atropelou as próprias pernas.
Amargos amanheceres, é noite, estremeço, os órgãos
vitais perfurados. Os nossos erros plantados em vasos
de cerâmica, desabrochando botões, os dedos no.
Ramagens crescendo na garganta, as palavras. Infernos
adornam o meu peito vestido com o teu nome, transplantado, lamaçal, inundação branca na boca.
Existe um pedaço de vida se desdobrando, o vão entre
a embriaguez e a fronteira, cigarrilhas sobre a mesa,
florestas, nós somos troncos de árvores centenárias,
a dureza dos nossos ossos entupidos de inscrições
santas, simbologias divinas, tremores oculares e tecidos
molhados. Nos sonhos, o fantasma da fala, rudes trapaças,
o corpo que foi palavra se fez demora, prolongo a vida nos teus braços, respiro o teu suspiro, o arfar das mudas consequências, gastos inodoros, vidros estilhaçados, o amor é a luz que cegou a multidão equivocada, verdades expostas, nós somos evidências criminais. Escrevo a informalidade vulgar das nossas pernas, lado a lado, você é o poema calcado no meu peito.

II
Me arrastam pelo ar os aromas, cantamos palavras sem rédeas,
coaxamos fulgores na chuva, eles, os teus olhos, me mastigam,
trancada numa casa em chamas, a mata se desfazendo
sob as digitais impressas no solo, não fosse o barulho
ensurdecedor de água correndo, as mãos de madeira foram
pregadas na maçaneta da porta, os espelhos da casa com o teu reflexo digerido, o fantasma perigoso dos nossos gestos. O homem que visitou as minhas terras. A precisão de mim, dos cacos arremessados no rio como se fossem pedras, um pássaro pousou na janela e me observou pelas frestas, dedilhou os cabelos, um pássaro com luz de fogo e muito sono. As palavras
amargas ficam guardadas numa caixa de ferro, com feitiços
de bruxaria, amuletos de magia negra, sacrifícios e animais
que morreram de fome, amaldiçoados pela dualidade.

No fundo do poço as palavras rimam com a força de
mil temores fixados na testa, um crânio branco flutuando
à tona da água, eu sou feita de escoamentos e poças de heresia.
Caniços ocos, estraçalhados em mim, pisoteados pela
minha racionalidade nula. Emoções, carnes, toques, bocas,
a minha libido exagerada, ninfo: o diagnóstico cristão. Os teus
dedos que já não alcançam os meus, noturna, imperfeita, repleta de
histerias, cuspes, os meus contatos no teu rosto de geada,
pés, um após o outro, horários terminantemente calculados,
fumos. Lamentavelmente, os teus olhos lançam escuros
marítimos, a sede é proporcional. O pulo, um rosto esgarçado
poluindo o chão. Não tocamos a margem, te olhei e você
continuou me olhando, aprofundando a minha tramela, os meus pecados, a minha altivez, as minhas encenações, eu me despi de outras e proferi o que sou, a lucidez traiçoeira dos dias, sólidos, líquidos, arenosos. Ar e água.
Diluída, o desejo é intermitente. Episódios de febre alta
e tentativas de morte, silêncio, a casa grita, enuncia
escândalos amorosos, pratos quebrados, copos, talheres
perfurando os pulmões e os nossos ossos chacoalhando de um
lado para o outro, a dramaturgia das noites eternas. Como hei
de partir? Alquimias e elevações, o livro dos anjos, a linguagem,
os vícios, a animalidade da perversão no palco cama, o reencontro.
Um rosto inexpressivo, o meu, um saco repleto de Deus e carcaças,
a dimensão que criamos e todos os afetos rechaçados, eu te amo, talvez mais do que amo a minha própria lascívia. Agora, talhada
de ruídos, sinto as minhas pernas dormentes, banhada com o meu
próprio sangue jorrando de todos os buracos, me sinto vivaz,
os músculos pulsantes, impelindo lágrimas sagradas, benção ou
maldição? Ecos que partem a galope, um átomo à deriva,
emocionalmente distante e incômoda, você incorporou as mãos
em mim e quase tocou as minhas costelas.
Como um soco omoplata, me batizo mundo, de ritual e fogo,
sob o mesmo sol: minha e tua.



III

os destroços

Em tempos de Revolução, transformei o meu coração em um coquetel molotov. Uma bomba caseira, praticamente palpável diante do cenário pós-guerra que reside em mim, tudo foi destruído, sobrevivo sabendo que a força que existe é capaz de agir na turbulência, um bloco de barro que não morreu. Em todas as regiões primárias do Espírito, habito um tremor de terras, o largo precipício que é ser MULHER. As minhas duas que morreram brutalmente assassinadas na rodovia ilusória, o que restei e o que bastei. O que calei, principalmente.

as ataduras 

Quando a noite me toca e o silêncio espanca a cidade, potencializo os meus vínculos com o Universo, as dimensões que exalam cheiro de jasmim árvore planta rasteira, nas pedras de um rio que circula o meu coração numa volta sem fim só de ida e despedida. O meu tratado com a divindade alta de te escrever em pétalas de rosas vermelhas e teus espinhos de defensiva libertando raios e tremores na superfície do magma de mim. Ecoar nos becos a minha poesia vagabunda aos olhos dos morais ditadores de religiosidade, ser mártir do meu tempo e espaço — deduzir os trejeitos da espiritualidade se transforma em algo tão real diante dos meus céticos olhos de palavras roçando em bocas de garrafas, é como explodir em pedaços enquanto procuro Deus.

o nascimento dual


Você, homem, que apreciou e degustou de pampas alvas delicadas e angelicais familiares, eu, mulher, negríssima italiana de nariz esparramado, bisneta de feiticeiro alquimista, desbocada, maluca, esse poço de Deus-Útero escarrado na vida, pelos seres, pela metafísica, pela minha voz de dentro. O mundo lavou os meus pés antes de chegar aqui, tudo foi tirado da terra com muito esforço e suor das minhas ancestrais forças, as estradas, os muros que pulei, quebrei braços e pernas, não é fácil aprender o que é, o lugar, o hemisfério, a mente e plantas que nascem nos dedos, é de tanto esperar, digo — aos meus espíritos, diariamente — eu construí embarcações para ir embora da tua tempestade que me deixou ilhada aqui, trancada com o meu próprio temperamento e neurose. O quanto te amei não sei, mas te amo com uma pedra dividindo os nossos calorosos tocares de mãos e testas, Deus, o que é descobrir amar dividido por uma pedra? Por que existe uma pedra aqui? Ajoelho, peço e agradeço. Não sou uma boa pessoa, eu sei, mas sou uma pessoa diferente, me olho e me sinto, diferente sem você, você não consegue entender o que é perder um pedaço já que aqui eu permaneci, eu sobrevivi, paro e res piro: tolerância, olha menina, como é perder um pedaço do que se é, como é perder a luz que existe entre duas pessoas que partilham a cama e o coração, tudo é perigoso, eu te avisei, a tua nudez diante dos problemas, a entrega cega, é a poesia que te mata e é a poesia que te salva, olhe para mim, de olhos vivos, entregue ao teu desespero existencial, eu estou aqui, eu te avisei, olhe para as minhas mãos de ajuda, olhe para mim, agradeça ao teu sofrimento, é o Universo te resguardando, é o Universo te oferecendo a chance para entender, olhe para mim, eu estou aqui, eu te avisei, eu sou você, uma parte de você, eu nasci da tua costela machucada. 

IV
Somos eternos instantes no ato de estar só, nascendo na ponta da língua, nos fios vergões frágeis de tanto apertar com a deliciosa tensão entres os dedos e as linhas de bruxaria que desenham as palmas. Sul, substância, suor. A própria palavra compôs canção de corpo nu, rachaduras e corações palpitantes — mesmo que o baque seja pequeno — as audácias percorrem todos os meus nichos de mulher, fecunda, em mim algo que havia morrido e que renasceu de causa forma cor abundância.

Estar livre e estar junto, não só na matéria, nas dimensões que me pegam pela cintura, arqueio de sensações místicas, sabedoria é.

O escuro do particular.
O amor entregue.
Amar todos como te amo, com consistência de genuíno. Livres e de ninguém. Amarrados apenas em potencialidade astral rugindo no peito como um leão faminto, no teu ouvido, a minha água, o meu céu, o meu corpo que pode dar abrigo de dentro para fora.

Que Nada consiga nos definir, amém.

Te conheço agora pelo cheiro e pelo sabor tropical de abacaxi com hortelã, nos dentes, a cidade tremeu, explodiu, os postes da rua, as lâmpadas da casa, a iluminação das fotografias, o amor é uma sacristia — ajoelho em você e rezo com os lábios — a minha língua poesia e você deitado poema.

O mundo calou e gritou em seguida: a fome não acabou, os desastres naturais se intensificaram em mim, maremotos pelas pernas, terremotos de fogo nas estruturas do que eu sou e do que você também é.
Azul — nos ombros, na boca, nos excessos de nós, um batimento que percorre desde o meu peito de caos até o cheiro do teu olhar pousado no meu, âncora e superfície. A nossa Revolução.

E todas as músicas tocadas nas arcadas da cidade serão sublimes canções de liberdade e magnólia.






V

I

A ilusão é o meu texto. O mundo 
todo rachou em terremotos inesperados,
tempos de escassez, o meu corpo se 
transformou apenas em palavras, sou tudo o que tenho,
a mãe e a irmã que não me amou, sou fruto
da nossa indelicadeza, das hostilidades plantadas
nos vasos de um grande campo sem terras habitáveis.
Estou vazia. Um alçapão sem luz abrigando
fantasmas renegados pela tua ausência,
celeste e infernal, o poema.

II

Contigo, paga-se o pecado de estar viva.
Um terceiro braço nasce, não os meus
dois, mas outro, que ganha vida própria
e nina um natimorto destroçado pelo
sensível toque dos meus olhos, os olhos
pousados no nada, semicerrados, estou
cansada e disputo um pedaço do meu
passado com os urubus, a fome – do que
me matou tempos antes da minha
morte material, um profundo desamparo
só.
Na cidade do meu peito todos estão
mortos. Distante de um Deus criado
pela interrupção da claridade, me arrancaram
as costelas do gênesis: o que é sugar a
força do universo num baque surdo e de
consistência espiritual?

Existo, a protagonista, presa num corpo
orgânico, idoneidades promíscuas, devoções
alcoólicas e coração. De ossos quebrados, o
karmico de ser humana o suficiente, detestável,
um doloroso acasalamento com algo que costumo
chamar pelo meu nome próprio, calcificado em mim,
impura, sou – sabendo que isso me transforma em
um anjo caído, o desamor com rachaduras,
pendências e castigos, eu sou tudo para mim e
eu sou nada para o mundo, insignificante perante a criação,
a abominação que rasteja nos destroços de uma
metrópole que já deixou de existir.
O sentimento está em extinção, mulher, minhas
quedas pelo abismo, meu martírio e meu gozo,
condenada por um silêncio sucinto, restritivo,
toda manhã morria em derruimentos da alma e
o colapso da caixa torácica encarquilhada pressionando
a face traidora da vida, a maldade descobriu
que é a filha do homem e então ela chorou
de desesperança, encarcerada no quintal da casa,
o meu lar, uma cobra encolhida na plantação de
mentiras asquerosas.

III

A culpa é Dele. A culpa é do mundo, menos minha.
A culpa é da minha mãe que deu a luz ao suicídio,
morrer durante o processo de nascimento – ainda
que continue respirando, gemendo de dor e gritando.
Renascida de um arbusto que foi arrancado da terra
natal, o uterino amor materno escondido por longos
nove meses de escuridão, uma criança vã e com crises
de personalidade, egomaníaca e verborrágica, existo monstro,
já nem agonizo mais.
A miserável mulher sem as mãos do pai e com Jesus na barriga,
os reis magos me presentearam em uma cama de feno gelada:
palavras, ouro em pó e demência. A salvadora, escolhida pelo
capataz, sou eu. Os sinos, os animais e minha mãe urrando como
um bicho de espécie duvidosa: a tua filha carregará
a cruz do sentir demais e de todos os calos – nasceu poeta.
Já nasceu sendo escória, a portadora do profano de Sade,
o Marques, que a família abortou após certa idade, estou sozinha,
o cão que revira aterros sanitários à procura de uma cura.
a cabeça pensa demais, os vícios, os amores destroçados.
Incalculável, atriz, os espaços foram esvaziados, suja, imperfeita e
cruel, um coração salpicado de grandes feições que partiram para o
alto da montanha. Com as pernas curtas, não sei se escalo ou se pulo,
longitudes e latitudes, uma geografia que se reuniu aos braços e às pernas, um após o outro.
Estar apta à constante sabotagem, do amniótico aos sete palmos de terra. Não correr da sentença – o inferno está em mim, eu que me olho
todas as noites no espelho e me julgo aberração, uma
consciência crua e devastada pelo que não escolhi ser, não escolhi
nascer, mas Deus que assim o quis, me jogou no solo
como uma praga pronta para carcomer tudo pelo caminho, deixando
um rastro rugoso de mim.

IV

Com dez mil demônios espancando a minha cabeça,
o meu corpo – o todo – dói. Fui atropelada pelos meus
tremores, talvez esteja podre.
Estou doente, moribunda, amputada de boas sensações,
frígida, sem amor. Eu sou Sarah Kane e eu sou Sylvia
Plath: a minha morte tão esperada e assistida pelo
caos que é não conseguir viver o peso das palavras
que herdei dos reencarnados, o instrumento
da verdade, o descanso primordial ou um crime contra
o criador, golpes na jugular, habito locais baixos, um som
industrial de máquinas rangendo na boca, o meu bruxismo,
a minha taquicardia, quem sou eu, quem é você, por que
estou aqui? É maior do que posso carregar, o fardo.

Este é o meu testamento, além do nada e do vazio, a miséria.

V


Anos passados me fizeram crer que o abandono
dói mais do que a ausência – estrelas no céu da tua boca
que iluminavam a estrada do meu destino, quando erro,
quando escrevo, quando vivo, coisas que não existem mais,
o sentido morreu comigo. Eu fiz o que você me pediu – eu sumi.
Agora eu sou um fantasma amaldiçoado.
O sentimento está em extinção, homem, tudo também sumiu e ferroou
o meu corpo de tua mulher que fui, uma sincera criminosa conjunta.
Tudo está em mim, te escrever não me convém mais, as minhas cartas de amor estão nas tuas mãos, você foi o que mais amei na vida e você
foi o que mais me matou na vida, o meu veneno. 



Fotografias: acervo pessoal da autora


Bruna Siena, o demônio feminino de Sade, o Marquês. 1993, vinte e poucos, entre Maringá e Curitiba. Escritora, poeta e louca. Responsável pela Kadosh Publicações, um selo editorial independente, profano e experimental. O terreno íngreme entre o ocultismo e a gnose, entre a necrofilia e o descaso, a puta da família. Obscena.

7 poemas de Lucas Matos

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carta à sra.angela merkel

conta o lobato que ao cabo
da segunda guerra mundial
não havendo acordo possível
e sob a ameaça de um recomeço
de bombardeios convidaram
d. benta e tia nastácia
a arrumar o pobre
velho mundo

não sei o que consta
em seus livros de história
mas d. benta era uma velha
caipira desdentada
que vivia com a cabeça metida em livros
escritos bem longe do interior de são paulo
onde morava e tia nastácia era uma preta
que cozinhava e contava histórias
num país que mal saíra da
escravidão

acompanhou-lhes o visconde
de sabugosa que era um título
colado num sabugo
de milho

por isso eu poeta
fodido com uma bolsa de pesquisa
que não chega para pagar
a minha parte no aluguel
eu que vou às americanas
comprar cuecas a crédito
habitante desse mesmo país
que mal saiu da ditadura militar
aviso que estou à espera
de um telefonema seu
combinando a minha viagem
a ver se algo
é possível de se fazer
com esse desconcerto
que ainda chamamos
europa




meditações para uma teoria da inspiração

INS PIRA PIRAPIRA
EX PIRAPIRAPIRA
EX EU DISSE SINS
SIM EU DISSE EX-X-X-X

man – tem um rato na casa
aqui está a sua vassoura mother
fucker um rato na casa kiss
my ass aqui está a sua vassoura suck
my dick um rato eu disse son
of a b son of a b son of a bitch

INS PIRA PIRAPIRA
EX PIRAPIRAPIRA
EX EU DISSE SINS
SIM EU DISSE EX-X-X-X

a inspiração é o processo através do qual
o ar penetra pelo nariz e chega aos pulmões
o ar inspirado pelo nariz chega mais limpo
do que o inspirado pela boca mas além
de ar também chegam pelo nariz
polém vírus bichos invisíveis oh you
must be an angel you could only
be na angel visitantes indesejados
por exemplo um rato na casa
aqui está a sua vassoura

INS PIRA PIRA PIRA
EX PIRA PIRA PIRA
EX EU DISSE SINS
SIM EU DISSE EX-X-X-X

toda dona de casa sabe que
é sempre útil ter à mão
um punhado de palavrões
em língua estrangeira
para o caso do ex-marido
para o caso de algum visitante
indesejado para o caso de
um rato aparecer para jantar
mas ainda que eu falasse
a língua dos vírus
falasse a língua das baratas
quando eu digo
va te faire fautre
na verdade eu digo
eu quero você
e quando digo
i hate you stupid
cê foi mó rata comigo
na verdade digo

INS PIRA PIRAPIRA
EX PIRAPIRAPIRA
EX EU DISSE SINS
SIM EU DISSE EX-X-X-X

se você servir o jantar com um sorriso
se você mantiver uma postura agradável
ninguém liga se diz merde merde merde
para vírus ex-maridos e outros visitantes
indesejados um palavrão estrangeiro é um rato
correndo na sala de jantar da língua mãe
entrou a barata da vizinha
na casa entrou pelo nariz um rato
em seu pensamento aqui
está a sua vassoura

INS EX EX INS
EX INS SIM
SEX SEX SEX
chamo ar ao que está fora
não chamo ar ao que está dentro
ou em trânsito pelo corpo
e quando digo saia do meu pensamento
e quando digo get the fuck out of my life
eu digo eu preciso respirar respirar
o mesmo ar eu preciso
SIM
SEX SEX SEX
É oxi oxi oxigênio puro
mas só pode ser um vírus
you must be an angel
you could only be an angel
eu inspiro com um sorriso
uma postura agradável


aqui está a minha vassoura




Chico alvim fala

a partir de vídeo disponibilizado em: http://www.youtube.com/watch?v=daWcxDmFxhU

FILOSOFIA

entra no elevador
o sujeito tem
uma frase que vai
na medida certa
porque dura
um andar
ele vai sair
em seguida
se ele não diz
aquela frase
àquela hora
ele perdeu
para sempre

GEISEL

período horroroso
que a gente passou

ISSO NÃO É MEU NÃO

a gente podia pedir
emprestado à cia que nos dê
aquele equipamento prodigioso deles
a gente não precisava mais viver
ficava todo mundo ouvindo
coisas interessantes

BRASÍLIA

o céu está dentro

- e o inferno?

JÁ QUE VOCÊS NÃO ME INTERROMPEM

que remédio
que eu posso ter
até que alguém
de bom senso
me fulmine?




noite de hotel

eu queria que a nossa amizade fosse um bicho. para que eu pudesse dizer pega, enquanto você se finge de morto. e ficaria de bando, à espreita, observando – ele abocanha com destreza o objeto lançado. eu queria que a nossa amizade fosse o osso.

o bicho volta com a coisa entre os dentes como quem diz: não me deixa. não me deixa roê-lo todo – o tutano dos dias. e eu penso: a nossa amizade, se bicho fosse, seria um desses, adestrados, que aceitam o carinho da mão de qualquer visita com água de colônia em excesso, ou seria inadmissível, urina em todos os cômodos da casa, urina pela excitação em demasia. ou seria pior. você me olha sério. não tem outro jeito. precisamos botá-lo para dormir.

quando eu era criança dormir era o que mais me assustava. ninguém, nada me dava garantias de que quando acordasse eu estaria ali na mesma cama. de que quando acordasse eu estaria no mesmo corpo. enquanto a gente dorme, o mundo muda de lugar. e eu poderia muito bem despertar de fora. despertar disperso no espaço. então eu era sempre o último da casa a dormir. alta noite, eu tentando ouvir os ladrões entrando na casa e sozinho como um cão sem dono.

mais tarde eu usava isso como testes. perguntava na escola para todo recém-conhecido: você já teve medo de dormir? quando respondiam sim, eu dizia bom garoto e oferecia um biscoito em troca.

enquanto você dorme, o mundo muda de lugar. a alemanha acorda em paris, as bandeiras dos estados unidos da américa espalhadas pelo chão e pelos satélites como folhas no outono de outro país, e o rio se encontra num mar, num mar de turistas apressados.

está vendo esse par de olhos? fechados, são o medo da música. abertos, são o medo do sono. está vendo esse par de olhos sem pálpebras? se você encostar a ponta dos dedos, eles se fecham para acordar segunda-feira. em outra cidade. amanhã é sempre outra cidade.




1beijo

1 2 3 4

1 2 3 4
já aconteceu com você
você está contando
1 2 3 4
1 2 3 4
você consegue andar em linha reta?
as linhas retas não existem na natureza
as linhas retas são compostas por infinitos pontos
não têm curvatura
não têm sinuosidade
você consegue andar?

1 2 3 4
1 2 3 4
já aconteceu com você
você está contando 1
piada e no ½
percebe
ninguém vai achar
1 2 3 4
1 2 3 4
existe 1 diferença entre o número
de sílabas numa frase e o número
de números como existe 1 diferença
entre o número de números possíveis
e o número possível de sílabas
em 1 piada

ninguém vai achar
graça
na verdade é pior do que isso
você está contando 1
piada e olham para você
como se estivessem ouvindo
1 filme de terror
na verdade é pior do que isso
você está contando 1
2 3 4 e olham para você
como se você fosse o filme
mais terrível da história
na verdade é pior do que isso
olham para você
como se você fosse exatamente
quem você é
agora

1 2 3 4
1 2 3 4
eu vejo você eu penso
eu te amo eu te quero
dar 1 beijo
na última vez que eu te vi
eu pensei eu te amo
eu te quero dar 1 beijo
você me olhou
é assim que se sente 1
2 3 patetas 1 2 3 4
assim que se sente alguém
quando leva 1 torta na
cara

existe 1
linha reta existe 1 2 3 4
1 linha reta entre ver você
e pensar eu te amo
eu te quero dar 1 beijo
1 linha reta é o caminho
mais rápido entre 2 3 4
entre 2 pontos 1 linha
reta é 1 chave na
fechadura
e eu já tentei quebrar
eu já tentei esquecer
na gaveta das chaves que nunca
se usam eu já tentei trocar
de chaveiro colocar junto
das chaves do carro do cadeado
que eu não tenho eu já tentei
me convencer que você
(como as linhas retas)
na natureza não existe
mas sempre que eu te vejo
eu penso

1 2 3 4
1 2 3 4
as chaves e as fechaduras
não existem na natureza
na natureza só existem piadas
ninguém vai achar graça
na verdade é pior do que isso
na natureza só existe você
olhando para mim
como se eu fosse exatamente
quem eu sou
agora
quem eu sou agora?




os arqueólogos do futuro

eu vi uma mulher numa bicicleta motorizada ela não precisava pedalar ia de um ponto a outro deslizando pelo espaço como se o chão não oferecesse resistência e ela estava sempre com um sorriso sereno no rosto agora o que vamos fazer quando inventarem uma bicicleta motorizada para nossa cabeça? você não precisa pedalar passa de um momento a outro como se o pensamento não oferecesse resistência e você tem sempre um sorriso sereno no rosto

já imaginou se os arqueólogos do futuro descobrirem que a linguagem começou com você? no futuro tem uma máquina que pode rastrear todas as palavras até seu ponto zero e acontece que nenhuma delas existia antes de você nascer antes havia apenas coisas e para se comunicar usavam outras coisas por exemplo um lápis sem ponta para dizer tenho fome de amor uma meia suja de sangue para dizer estou cheio de amor estou tão cheio de amor que poderia estourar

tem um programa de tv que demonstra que o segredo da felicidade é manter um pensamento positivo e passa uma receita que funciona para quem tem os utensílios de cozinha apropriados o único problema é que ninguém no programa ou fora dele sabe identificar com certeza quando um pensamento é positivo e quando um pensamento é negativo e uma vez que você decidiu mantê-lo parece que passa a ser tarde demais e não há faca que ajude quem quer que seja a se livrar da felicidade




no jardim escutando

para a cris flores

você já pensou quanta grana
poderia economizar caso
não estivesse agora lendo
este poema?
dinheiro que você poderia
usar no mercado financeiro
ou deixar numa poupança
a salvo no banco
já pensou?
pense
mas quando digo pense
isso não é = olhar o preço
de capa do livro e
fazer uma nota mental
tipo
36,90
tipo
uma dúzia de ovos
tipo
uma ida ao cinema
até porque pode ser
que você não tenha
perdido um centavo
e esteja de pé
numa livraria
ou biblioteca entre
um link
de pornografia
e um link humorístico
você está eu vejo
diante de uma aborrecida
apostila escolar
ouvindo distraidamente
no trem conforme o
vendedor de bala
ou a moça com fones de ouvido
no máximo volume
segue recitando
sem prestar atenção
ao que fazem
os lábios sim
pode ser que você
esteja apenas
no jardim escutando
ou com um livro
emprestado do amigo
distante ou preferido
e no fim das contas
todos sabem que afanar livros
é um pouco como catar uvas
ao supermercado ou
aproveitar a euforia
dos camelôs quando
os caminhões tombam
se você acompanhou meus cálculos
ao longo do poema
você economizou 0,00
reais é bem verdade
que também é possível
e só não digo provável
porque a calculadora
que uso para obter
estatísticas falaciosas
quebrou na outra noite
mas como eu dizia
é possível que você
tenha viajado
dias e noites a fio
atravessado abismos
perdido um rim
só para ler isto
que melhor dito fica
para ler só isto
você podia ter ficado
em casa podia ter
poupado uma vida inteira
também eu suspeito
podia ter poupado
uma vida inteira
entretanto
você não vê?
este poema já te salvou
de se tornar um pulha

no mercado financeiro


Ilustrações: série aquarelávels sobre papela/ Lucas Matos






Lucas Matos é poeta, ator, e professor da UERJ (CAp-UERJ) de língua e de literatura. Editou a revista de poesia Bliss(7letras), junto com Marcio Junqueira e Clarissa Freitas, e também com eles e mais Thiago Gallego editou a revista-disco de poesia Bliss não tem bis (edição dos autores com apoio de SR-3/DECULT/COART/UERJ). Com todos, edita blog de poesia de mesmo nome. Publicou pela 7letras os livros de poesia Três semblantes, ou no meio da piada você percebe: ninguém vai achar graça, ou para cada sentença clara há um engano (2015) e 1989: franz(megamíni, 2016). 

Transpiração. - André Rocha

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Ilustração:Tomas Krocek


mas sou cria dos terreiros esfumaçados
das alas psiquiátricas
das madrugadas derramadas de bar em bar
dos rumos perdidos
dos peitos perfumados de prostitutas encapetadas
virei macho nas brigas de faca ou
de torcida
fugindo da polícia
no choro triste das morenas enfeitadas de solidão
conheci o amor
e bêbado fiz brotar poesia depois duma surra
que tomei na rua
vi a noite encenar seus dramas
suas tragédias
suas peças alegres e obscenas
e esperei uma mulher sem coração
aflito
de cabelo penteado e com minha
camisa colorida
pra receber migalhas de paixão
mas o céu testemunhou meu encanto
e choveu pra disfarçar meu pranto
foi numa quarta-feira que perdi o futebol por ela



ANDRÉ ROCHA
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