![]() |
Ilustração: Dani Toch |
Mangas podres ainda no pé. Mosquitinhos enovelam o aroma de umidade acre. Toda casa velha tem quintal com mangueira. Das que deixam fiapos nos dentes, como os fiapos da memória, e, por fora, o caroço branco de fios hirtos grisalhos. Rumo a baixo, uma taturana lenta ou um mistério de novelo negro, os fios encrespados da vagina. O exame de gravidez. Não dá pra ver, meu deus, não dá, com a luzinha deste banheiro que escorre oblíqua das paredes, recendendo às trocas de peles, colcha opaca que cobre o chão de gerações, não, não posso, isso é o azul? As linhas tênues de possibilidades que se engrossam em cordões umbilicais, 'por que não me quis, mãe? por que esse casal de velhos seria amor melhor pra mim?' Nunca mais uma noite de inércia. Nunca mais o quarto pra dormir. A noite é companheira dos rejeitados, que se dão as mãos, corpos enlaçando desamparo, línguas que salivam entranhas banhadas em álcool e bile. Essa menina já nasceu torta, estirpe de puta, mãe dela não suportou o próprio reflexo, bondade dos tios-avós em pegar pra cria. Deixa, deixa estar, Elen. Corpo cansado endireita os apetites de messalina. Arraste os pés pálidos neste casarão antigo, convide a bailar fantasmas. O vermelhão brilha, encerado na escova de ferro fundido, um peso, o pêndulo pra lá e pra cá, semicírculo insaciável, e a escova cujo giro fornica os lábios d'alma, a cera que embaça o céu entrevisto pelo buraco numa telha. 'Esse lugar fede à senilidade'. Asco de vida, móveis de pernas torneadas por anjos caídos, quadro de menino chorando, mas sorri o lobo de ponta-cabeça, bibelôs trepando verde-musgo entre as prateleiras, a foto sépia, família que alimenta flores do inferno, sorrisos lírios que nascem do lodo. Houvera eu casar virgem, vestido branco rendado, servir a homem de renda modesta, que me montasse como a uma égua baia, de puxar a carroça carregada de estrume e decência, estaria salva aos olhos alheios. Mas não houve sequer estrada, portanto não havia sentido pra carroça inclemente, quanto mais pra salvação. 'Quem pode ser mãe?'
Mal vem a noite, a casa dorme, os velhos já recolhidos no quarto, respeitando o limite das nove horas, como nos tempos sem luz. Um ronco sutil de motor que diminui em frente ao portãozinho, um assovio em senha, "oi, meu doce, vambora", coçando a calva com a mão da aliança. E, manso, a Ford atravessa as ruas do Alto do Ginásio, toma rumo na terra pelo labirinto de cana até encontrar as luzes esmaecidas da chácara, o festejo de costume, abdomes túrgidos, dúzia de meias-idades fugindo à novela das oito, atraso avisado, "amor, tenho que fechar uns papéis no escritório, não me espere pra dormir". Destilados e trilhas alvas sorvidas numa bandeja desenham simpatia nas bocas de carmim; ela, mais uma entre as moçoilas trocando tombadilhos por celas ruidosas. "Senta aqui no colo do papai, doçura". Festa alta e o último quartil de cana em chamas pelos flancos, crepita, crepita intermitente emulando um barrado laranja no horizonte, crepúsculo falso a chover fuligem do céu sem estrelas, "tem um quarto disponível pra gente, meu bem", enquanto a mão sôfrega fustiga-lhe o meio das coxas, e ele se levanta e a conduz pelo corredor. Na penumbra, as vozes. Sempre as vozes de sobressalto, uma fuga ao instante; as vozes, que lhe assopram 'igualzinha à mãe, só presta pra desfrute', sempre em brasa as vozes das mães das coleguinhas no Anacleto Cruz, tão logo hostis aprendizes de moça direita, soletrando-lhe pelas costas os beabás da cartilha do ódio. Qualquer fuga é precária. O corpo dela continua ali, num quarto indigente, embora ela apenas o sinta em ondas de torpor, sob a luz âmbar do abajur, embora o outro corpo estranho a sonde, sequioso em dar fim à diligência doentia dos quadris, e o estranho insista em resfolegar de cima a baixo pelo lóbulo da orelha "adoro quem goza chorando, doçura", sem perceber que ela está seca, como a palha de cana que prenuncia o carvão entregue ao mínimo sopro; e então ele a repele, a saciedade lhe exime da palavra macia, "vou me lavar, já passou da hora de ir... o da semana já tá na sua bolsa".
De volta à casa, ela atravessa o terreno pela lateral sob a companhia das sombras que se projetam nas tramas de galhos e folhas e que recaem sobre seus ombros; ela ouve as vozes, 'teu lugar é aqui...' as vozes dizem 'teu lugar é uma noite sem fim'; um sabiá-laranjeira, ao longe, lamenta o fim da madrugada, e ao entrar pela porta da cozinha, nos fundos, deixa pra trás uma brisa morna e monótona, a morrinha que sobe do córrego, coada pelo bambuzal, 'teu lugar é aqui'. O interior recende a cânfora e urina; ela fecha os olhos porque conhece cada aresta, cada canto, a mesa com a toalha vinílica replicando, às dezenas, uma natureza-morta falsa e tropical, na parede oposta o guarda-comida verde, no qual tateia a lata em cujo fundo o velho deixa a mirrada aposentadoria e as contas; assim ela busca na bolsa as notas amassadas que completam alguma dignidade dos moradores, mas terá que justificá-las, "de onde saiu esse dinheiro, Elen?", "tou fazendo unha das amigas, vô; logo, logo me contratam no salão". Dali ela sobe os três degraus até a sala, tira os saltos pra pisar o assoalho, o caminho à esquerda, desvia a cabeça da prateleira de mão-francesa, onde descansa o rádio valvulado, o bichano ronrona entre seus tornozelos, enfim a porta de ripas, o quarto, o quarto onde não dormirá, onde ela abre os olhos e vê que a aurora se anuncia discretamente pela veneziana. Mais uma vez ela buscará a pasta na última gaveta da cômoda, a coleção de papéis-de-carta, os traços singelos de donzelas ao piano, vestidos rodados, passarinhos soerguendo cartazes enrodilhados ao amor, jardins em que pequerruchos corados, bochechas fofas, abraçam-se, uma vida feita em tons pastéis. Ah, mas o verdadeiro rosto entrevisto no espelho da cômoda é tão só uma cópia ordinária de madona barroca, mais-escuro-menos-claro, o rímel a escorrer visgo dos olhos de amêndoas, os cachos negros insinuando pelas têmporas arabescos, o pescoço longilíneo, esfumado em laivos violáceos como mármore antigo; um busto de ruínas. Ela desvia o olhar da própria imagem. Toda fuga é provisória. Nunca mais o quarto pra dormir, nunca mais, por isso ela busca um dos papelotes na bolsa, estica uma carreira sobre a folha da pasta, alcança um canudo de mil cruzados pra que enfim a manhã irrompa feito uma bofetada na cara.
Ao chegar dezembro o asfalto em Sertãozinho arde. Por mais que se varra, esfregue, lave calçada, meio-fio, asfalto, nada se desencarde. A terra vermelha impregna ruas e almas. Elen segue pela Sebastião Sampaio, em direção à Santa Casa; deve buscar a confirmação, mesmo que já carregue a densidade da resposta pressentida no ventre. "Parabéns, a senhorita já está de oito semanas", o jovem doutor anuncia a sentença antiga do sapo. E a legião de vozes adentra os corredores do hospital pelo teto, pelas frestas das janelas, 'essazinha não presta''nasceu de árvore torta''mãe, por que me abandonou?''biscate sem futuro''tua vida é uma casa caiada, aceite os escombros'; e a enfermeira pergunta, "moça, quer um copo d'água?", "obrigada, tou com pressa", e no passo célere, mas sem rumo, o mormaço distorce as casas de comércio, a sirene duma ambulância ondula presságios, um vulto esbarra em seu ombro, 'por onde volto, se nunca houve o caminho?', e ela sobe até a Barão do Rio Branco, encontra um banco na Praça 21 de Abril, quando as doze badaladas expandem as ondas sonoras do sol a pino, mas seu desamparo é todo mudez estática, como nos sonhos em que as pernas não se mexem e o grito não lhe sai.
A moenda do tempo mastigou os dias até as vésperas do natal. Cada gota de manhã e tarde foi extraída por Elen com as engrenagens do desespero mudo, mas era durante a noite, nas dornas da consciência limitada a solidão e abandono, era durante a noite que o caldo fermentava, 'não vou te deixar sozinho, meu filho', com as mãos compridas sobre o ventre que começava a irromper ovalado, 'nunca, nunca ficará refém da própria sorte', e as chamas da madrugada alimentavam uma caldeira nomeada cabeça, cuja pressão, 'por onde se refaz uma vida?', lhe queria cuspir os olhos das órbitas ou varar os tímpanos, mas a cânula da manhã enfim destilava algum alento límpido, os vapores da ideia de que ela e o bebê, ela e a criança, poderiam encontrar um recanto no mundo, só pras duas, um lar em que a noite fosse, antes, um nártex de melaço, favo do aconchego. Vapores. Logo os vapores se condensavam novamente em espectros, as sempre mesmas vozes 'como pode filha de puta sonhar família?', e ela começava a engolir o dia como a uma aguardente que não quer mais beber, pois não se vê esgotar o tonel, jamais.
Na manhã do dia 24, a filha mais velha do casal veio confirmar o horário de buscar os pais, "lá pelas seis e meia eu passo aqui pra gente ir pro culto, depois a ceia é em casa". O velho e a filha, também ela já no peso da idade, conversavam apoiados no portãozinho de madeira enquanto Elen varria folhas no terreirão, e o velho sugeria olhos pra ela, pois o velho sabia que não podia tomar a iniciativa de convidá-la, mas sabia também que ela não era bem-vinda em qualquer outra casa da família, mas o velho insistia em compadecer os olhos a ela, então a filha, incomodada, perguntou "e você, Elen, já decidiu pra onde vai hoje à noite? deve ter muitos convites, não?", "vou passar com umas amigas, dona Josefa", com uma convicção tímida, o suficiente pra esgotar o diálogo, tudo resolvido, sem necessidade de insistência ou desapontamento dissimulado; cada um conhece o seu devido lugar.
O dia passou tórrido. Sem empolgação, os velhos arrumaram a malinha pra passar a noite fora. "Feliz natal, Elen, amanhã voltamos". E veio o pôr do sol, que poderia selar uma solidão concreta, porém as cigarras deram de cantar seu latejante canto de baixo-ventre, as pombas asa-branca trovavam um solfejo de arrulhos tritonais, as águas do córrego engrossaram os tons médios entre o carrilhão de pedras; não, ela não estava sozinha, e era hora de preparar-se pra ceia. Era a hora. Um pouco de lenha pra acender o fogo, o bule de ágata onde aquecer água e despejá-la, fervente, na lata em que se vai temperando com o frescor doutras águas. No centro do alpendre, ela dispôs solenemente a bacia de zinco pra verter o líquido sem mácula, que caía da fonte, a lata nas alturas de seu útero, e retinia no círculo metálico como címbalos de anunciação. Ali dispersou, entre os vapores, alguns cascalhos de sal, galhinhos de alecrim e gotas de óleo-alfazema. Então ela despiu-se, e seu corpo era a claridade entre as sombras que se adensavam, e a caneca vertia as águas perfumadas sobre os ombros como afluentes do tronco às extremidades, um véu translúcido a se rasgar com delicadeza sobre o templo da pele, iluminando as veiazinhas azuis e eriçando pudicas penugens, num rito muito limpo e de ecos antigos; não era, pois, seu corpo carne, mármore ou cristal?
Contou os passos até o quarto, deixando um trilha aromática em cada cômodo, até alcançar o vestidinho inédito, florido de hibiscos, esticado metodicamente sobre a cama. De onde vinha a luz que fazia brilhar o mínimo gesto? De onde o fulgor refletido nas ondas dos cabelos moldados em betume? O corpo de Elen rememorava naquela noite o antes-corpo, livre do visgo que entope os poros dos renegados; era ela a forma delicada que guarda em si o mistério, inacessível às sombras diluidoras da vergonha e da maledicência.
Ela estava pronta pra última ceia. A bandeja. A caixa de remédios dos velhos. Uma alquimia de pílulas coloridas mais alguns punhados de bolinhas azuis que ninam camundongos secos nas tocas, toda a geometria destinada ao prato abstrato, uma natureza-morta prestes a comungar com o corpo sereno e resoluto. Uma a uma, as mínimas partes da composição sobre a bandeja foram umedecidas na boca aos goles do vinho mais barato e sublime.
Em êxtase plácido, quando o tempo torna-se rês no útero do infinito, ulterior a todos os efeitos, Elen caminhou até o quintal e vislumbrou a mangueira, a maior entre as várias, no meio do terreno. Toda casa velha tem um quintal com mangueira. Mangas podres ainda no pé. Há frutos que não vingam; são os frutos destinados a expiar em sua polpa a pestilência dos sãos. Nos fundamentos retorcidos da mangueira, uma viva manjedoura de raízes: cocho, berço, urna eivada em seiva sobre o remanso do húmus coberto de folhas secas. Ela, por fim, aconchegou o corpo pra receber a dádiva do sono absoluto: 'descansa comigo, meu filho, eternamente dentro de mim'.
Artur Ribeiro Cruz nasceu em Sertãozinho, SP, em 1981. Graduou-se em Letras-Tradução pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), em São José do Rio Preto, onde também desenvolveu um mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa. Publicou O cineasta e a margem do rio imaginário (2009, em coautoria), Semanário do Corpo(Patuá, 2015). O conto "A última ceia" faz parte do livro Vagalumes sem noite, recém lançado pela editora Penalux.