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A última ceia - Artur Ribeiro Cruz

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Ilustração: Dani Toch



            Mangas podres ainda no pé. Mosquitinhos enovelam o aroma de umidade acre. Toda casa velha tem quintal com mangueira. Das que deixam fiapos nos dentes, como os fiapos da memória, e, por fora, o caroço branco de fios hirtos grisalhos. Rumo a baixo, uma taturana lenta ou um mistério de novelo negro, os fios encrespados da vagina. O exame de gravidez. Não dá pra ver, meu deus, não dá, com a luzinha deste banheiro que escorre oblíqua das paredes, recendendo às trocas de peles, colcha opaca que cobre o chão de gerações, não, não posso, isso é o azul? As linhas tênues de possibilidades que se engrossam em cordões umbilicais, 'por que não me quis, mãe? por que esse casal de velhos seria amor melhor pra mim?' Nunca mais uma noite de inércia. Nunca mais o quarto pra dormir. A noite é companheira dos rejeitados, que se dão as mãos, corpos enlaçando desamparo, línguas que salivam entranhas banhadas em  álcool e bile. Essa menina já nasceu torta, estirpe de puta, mãe dela não suportou o próprio reflexo, bondade dos tios-avós em pegar pra cria. Deixa, deixa estar, Elen. Corpo cansado endireita os apetites de messalina. Arraste os pés pálidos neste casarão antigo, convide a bailar fantasmas. O vermelhão brilha, encerado na escova de ferro fundido, um peso, o pêndulo pra lá e pra cá, semicírculo insaciável, e a escova cujo giro fornica os lábios d'alma, a cera que embaça o céu entrevisto pelo buraco numa telha. 'Esse lugar fede à senilidade'. Asco de vida, móveis de pernas torneadas por anjos caídos, quadro de menino chorando, mas sorri o lobo de ponta-cabeça, bibelôs trepando verde-musgo entre as prateleiras, a foto sépia, família que alimenta flores do inferno, sorrisos lírios que nascem do lodo. Houvera eu casar virgem, vestido branco rendado, servir a homem de renda modesta, que me montasse como a uma égua baia, de puxar a carroça carregada de estrume e decência, estaria salva aos olhos alheios. Mas não houve sequer estrada, portanto não havia sentido pra carroça inclemente, quanto mais pra salvação. 'Quem pode ser mãe?'
            Mal vem a noite, a casa dorme, os velhos já recolhidos no quarto, respeitando o limite das nove horas, como nos tempos sem luz. Um ronco sutil de motor que diminui em frente ao portãozinho, um assovio em senha, "oi, meu doce, vambora", coçando a calva com a mão da aliança. E, manso, a Ford atravessa as ruas do Alto do Ginásio, toma rumo na terra pelo labirinto de cana até encontrar as luzes esmaecidas da chácara, o festejo de costume, abdomes túrgidos, dúzia de meias-idades fugindo à novela das oito, atraso avisado, "amor, tenho que fechar uns papéis no escritório, não me espere pra dormir". Destilados e trilhas alvas sorvidas numa bandeja desenham simpatia nas bocas de carmim; ela, mais uma entre as moçoilas trocando tombadilhos por celas ruidosas. "Senta aqui no colo do papai, doçura". Festa alta e o último quartil de cana em chamas pelos flancos, crepita, crepita intermitente emulando um barrado laranja no horizonte, crepúsculo falso a chover fuligem do céu sem estrelas, "tem um quarto disponível pra gente, meu bem", enquanto a mão sôfrega fustiga-lhe o meio das coxas, e ele se levanta e a conduz pelo corredor. Na penumbra, as vozes. Sempre as vozes de sobressalto, uma fuga ao instante; as vozes, que lhe assopram 'igualzinha à mãe, só presta pra desfrute', sempre em brasa as vozes das mães das coleguinhas no Anacleto Cruz, tão logo hostis aprendizes de moça direita, soletrando-lhe pelas costas os beabás da cartilha do ódio. Qualquer fuga é precária. O corpo dela continua ali, num quarto indigente, embora ela apenas o sinta em ondas de torpor, sob a luz âmbar do abajur, embora o outro corpo estranho a sonde, sequioso em dar fim à diligência doentia dos quadris, e o estranho insista em resfolegar de cima a baixo pelo lóbulo da orelha "adoro quem goza chorando, doçura", sem perceber que ela está seca, como a palha de cana que prenuncia o carvão entregue ao mínimo sopro; e então ele a repele, a saciedade lhe exime da palavra macia, "vou me lavar, já passou da hora de ir... o da semana já tá na sua bolsa".
            De volta à casa, ela atravessa o terreno pela lateral sob a companhia das sombras que se projetam nas tramas de galhos e folhas e que recaem sobre seus ombros; ela ouve as vozes, 'teu lugar é aqui...' as vozes dizem 'teu lugar é uma noite sem fim'; um sabiá-laranjeira, ao longe, lamenta o fim da madrugada, e ao entrar pela porta da cozinha, nos fundos, deixa pra trás uma brisa morna e monótona, a morrinha que sobe do córrego, coada pelo bambuzal, 'teu lugar é aqui'. O interior recende a cânfora e urina; ela fecha os olhos porque conhece cada aresta, cada canto, a mesa com a toalha vinílica replicando, às dezenas, uma natureza-morta falsa e tropical, na parede oposta o guarda-comida verde, no qual tateia a lata em cujo fundo o velho deixa a mirrada aposentadoria e as contas; assim ela busca na bolsa as notas amassadas que completam alguma dignidade dos moradores, mas terá que justificá-las, "de onde saiu esse dinheiro, Elen?", "tou fazendo unha das amigas, vô; logo, logo me contratam no salão". Dali ela sobe os três degraus até a sala, tira os saltos pra pisar o assoalho, o caminho à esquerda, desvia a cabeça da prateleira de mão-francesa, onde descansa o rádio valvulado, o bichano ronrona entre seus tornozelos, enfim a porta de ripas, o quarto, o quarto onde não dormirá, onde ela abre os olhos e vê que a aurora se anuncia discretamente pela veneziana. Mais uma vez ela buscará a pasta na última gaveta da cômoda, a coleção de papéis-de-carta, os traços singelos de donzelas ao piano, vestidos rodados, passarinhos soerguendo cartazes enrodilhados ao amor, jardins em que pequerruchos corados, bochechas fofas, abraçam-se, uma vida feita em tons pastéis. Ah, mas o verdadeiro rosto entrevisto no espelho da cômoda é tão só uma cópia ordinária de madona barroca, mais-escuro-menos-claro, o rímel a escorrer visgo dos olhos de amêndoas, os cachos negros insinuando pelas têmporas arabescos, o pescoço longilíneo, esfumado em laivos violáceos como mármore antigo; um busto de ruínas. Ela desvia o olhar da própria imagem. Toda fuga é provisória. Nunca mais o quarto pra dormir, nunca mais, por isso ela busca um dos papelotes na bolsa, estica uma carreira sobre a folha da pasta, alcança um canudo de mil cruzados pra que enfim a manhã irrompa feito uma bofetada na cara.
             Ao chegar dezembro o asfalto em Sertãozinho arde. Por mais que se varra, esfregue, lave calçada, meio-fio, asfalto, nada se desencarde. A terra vermelha impregna ruas e almas. Elen segue pela Sebastião Sampaio, em direção à Santa Casa; deve buscar a confirmação, mesmo que já carregue a densidade da resposta pressentida no ventre. "Parabéns, a senhorita já está de oito semanas", o jovem doutor anuncia a sentença antiga do sapo. E a legião de vozes adentra os corredores do hospital pelo teto, pelas frestas das janelas, 'essazinha não presta''nasceu de árvore torta''mãe, por que me abandonou?''biscate sem futuro''tua vida é uma casa caiada, aceite os escombros'; e a enfermeira pergunta, "moça, quer um copo d'água?", "obrigada, tou com pressa", e no passo célere, mas sem rumo, o mormaço distorce as casas de comércio, a sirene duma ambulância ondula presságios, um vulto esbarra em seu ombro, 'por onde volto, se nunca houve o caminho?', e ela sobe até a Barão do Rio Branco, encontra um banco na Praça 21 de Abril, quando as doze badaladas expandem as ondas sonoras do sol a pino, mas seu desamparo é todo mudez estática, como nos sonhos em que as pernas não se mexem e o grito não lhe sai. 
            A moenda do tempo mastigou os dias até as vésperas do natal. Cada gota de manhã e tarde foi extraída por Elen com as engrenagens do desespero mudo, mas era durante a noite, nas dornas da consciência limitada a solidão e abandono, era durante a noite que o caldo fermentava, 'não vou te deixar sozinho, meu filho', com as mãos compridas sobre o ventre que começava a irromper ovalado, 'nunca, nunca ficará refém da própria sorte', e as chamas da madrugada alimentavam uma caldeira nomeada cabeça, cuja pressão, 'por onde se refaz uma vida?', lhe queria cuspir os olhos das órbitas ou varar os tímpanos, mas a cânula da manhã enfim destilava algum alento límpido, os vapores da ideia de que ela e o bebê, ela e a criança, poderiam encontrar um recanto no mundo, só pras duas, um lar em que a noite fosse, antes, um nártex de melaço, favo do aconchego. Vapores. Logo os vapores se condensavam novamente em espectros, as sempre mesmas vozes 'como pode filha de puta sonhar família?', e ela começava a engolir o dia como a uma aguardente que não quer mais beber, pois não se vê esgotar o tonel, jamais.
            Na manhã do dia 24, a filha mais velha do casal veio confirmar o horário de buscar os pais, "lá pelas seis e meia eu passo aqui pra gente ir pro culto, depois a ceia é em casa". O velho e a filha, também ela já no peso da idade, conversavam apoiados no portãozinho de madeira enquanto Elen varria folhas no terreirão, e o velho sugeria olhos pra ela, pois o velho sabia que não podia tomar a iniciativa de convidá-la, mas sabia também que ela não era bem-vinda em qualquer outra casa da família, mas o velho insistia em compadecer os olhos a ela, então a filha, incomodada, perguntou "e você, Elen, já decidiu pra onde vai hoje à noite? deve ter muitos convites, não?", "vou passar com umas amigas, dona Josefa", com uma convicção tímida, o suficiente pra esgotar o diálogo, tudo resolvido, sem necessidade de insistência ou desapontamento dissimulado; cada um conhece o seu devido lugar.  
            O dia passou tórrido. Sem empolgação, os velhos arrumaram a malinha pra passar a noite fora. "Feliz natal, Elen, amanhã voltamos". E veio o pôr do sol, que poderia selar uma solidão concreta, porém as cigarras deram de cantar seu latejante canto de baixo-ventre, as pombas asa-branca trovavam um solfejo de arrulhos tritonais, as águas do córrego engrossaram os tons médios entre o carrilhão de pedras; não, ela não estava sozinha, e era hora de preparar-se pra ceia. Era a hora. Um pouco de lenha pra acender o fogo, o bule de ágata onde aquecer água e despejá-la, fervente, na lata em que se vai temperando com o frescor doutras águas. No centro do alpendre, ela dispôs solenemente a bacia de zinco pra verter o líquido sem mácula, que caía da fonte, a lata nas alturas de seu útero, e retinia no círculo metálico como címbalos de anunciação. Ali dispersou, entre os vapores, alguns cascalhos de sal, galhinhos de alecrim e gotas de óleo-alfazema. Então ela despiu-se, e seu corpo era a claridade entre as sombras que se adensavam, e a caneca vertia as águas perfumadas sobre os ombros como afluentes do tronco às extremidades, um véu translúcido a se rasgar com delicadeza sobre o templo da pele, iluminando as veiazinhas azuis e eriçando pudicas penugens, num rito muito limpo e de ecos antigos; não era, pois, seu corpo carne, mármore ou cristal?
            Contou os passos até o quarto, deixando um trilha aromática em cada cômodo, até alcançar o vestidinho inédito, florido de hibiscos, esticado metodicamente sobre a cama. De onde vinha a luz que fazia brilhar o mínimo gesto? De onde o fulgor refletido nas ondas dos cabelos moldados em betume? O corpo de Elen rememorava naquela noite o antes-corpo, livre do visgo que entope os poros dos renegados; era ela a forma delicada que guarda em si o mistério, inacessível às sombras diluidoras da vergonha e da maledicência.
            Ela estava pronta pra última ceia. A bandeja. A caixa de remédios dos velhos. Uma alquimia de pílulas coloridas mais alguns punhados de bolinhas azuis que ninam camundongos secos nas tocas, toda a geometria destinada ao prato abstrato, uma natureza-morta prestes a comungar com o corpo sereno e resoluto. Uma a uma, as mínimas partes da composição sobre a bandeja foram umedecidas na boca aos goles do vinho mais barato e sublime.

            Em êxtase plácido, quando o tempo torna-se rês no útero do infinito, ulterior a todos os efeitos, Elen caminhou até o quintal e vislumbrou a mangueira, a maior entre as várias, no meio do terreno. Toda casa velha tem um quintal com mangueira. Mangas podres ainda no pé. Há frutos que não vingam; são os frutos destinados a expiar em sua polpa a pestilência dos sãos. Nos fundamentos retorcidos da mangueira, uma viva manjedoura de raízes: cocho, berço, urna eivada em seiva sobre o remanso do húmus coberto de folhas secas. Ela, por fim, aconchegou o corpo pra receber a dádiva do sono absoluto: 'descansa comigo, meu filho, eternamente dentro de mim'.  




Artur Ribeiro Cruz nasceu em Sertãozinho, SP, em 1981. Graduou-se em Letras-Tradução pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), em São José do Rio Preto, onde também desenvolveu um mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa. Publicou O cineasta e a margem do rio imaginário (2009, em coautoria), Semanário do Corpo(Patuá, 2015). O conto "A última ceia" faz parte do livro Vagalumes sem noite, recém lançado pela editora Penalux.

3 poemas de Alberto Bresciani

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Chema Madoz
METEOROLOGIA

Franz se levanta e vai à janela
Espera ali a chuva, sente calor,
lembra-se dos amigos mortos 
e dos vivos, pensa que anfíbios
existem e sabem respirar, mas
não tem medo, nem está triste 
É o jeito que as coisas voltam
O sangue desistindo dos joelhos
e caindo na aspereza da areia,
lágrimas caindo à terra vermelha,
as partidas sem adeus - replays
de takesimpensáveis de violência 
E o vento diz que talvez chova
Virão as flores roxas do jardim 
que se esquece sempre de regar
Sim, Franz deleta aquele texto 
e não tem mesmo medo, nenhum
Deve ser assim, isso, de ser feliz


COLECIONADORES

Franz tem dois pássaros
colecionadores; as aves
lhe trazem muitas coisas
: três relógios brilhantes,
meia lebre, cinco flores
Hoje, deixaram uma caixa
É branca e está vazia


INVENTÁRIO

Não adianta mais tentar
técnicas marciais e de guerrilha

Franz nunca achou o mapa
não soube de atos suspeitos
nem foi síndico

Quando crescesse
perderia a cor verde

Não seria inseto, asteroide ou bisão
Estaria pronto para a atmosfera
terrestre

Mas não

Talvez nem se percebam
a clorofila sob as mangas dobradas,
a contagem regressiva

Franz ainda recorta bonecos
de mãos dadas



Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011) e de Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa – Littératurebrésiliennecontemporaine (Revista Pessoa, editionspéciale – Salondu Livre de Paris, 2015) e Escriptonita(Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos.


Do lado de cá do Atlântico - Franck Santos

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Ilustração; VisitingFahrrad


Aquela tarde adentrou a noite toda que conversamos olhando a lua. O amor é isso, foi o que Ela me disse num passe de dança, dançava um reggae naquela noite enluarada, na frente de sua casa de praia, com aquele farol deixando rastros de luz que mudavam de cor. O amor é isso, pensei, fumando seu cigarro de maconha, ainda bêbada de vinho, dos seus beijos e do seu corpo que tive ao alcance dos olhos e das mãos a tarde inteira, após aquele beijo roubado dela.
A noite adentrou a madrugada e não dormimos aquele sábado, ou era uma sexta? Fizemos uma fogueira na frente da casa, entramos nuas no mar gelado e ela me cobriu com uma manta, trouxe cadeiras e ficamos de mãos dadas, sorridentes, apaixonadas, conversando sobre nossas infâncias, adolescências, nossos planos para o futuro. Mas não falávamos do presente, daquele momento. Talvez o presente tenha vindo à tona quando falamos dele, quando Ela me disse que o conheceu através de um amigo em comum, quando precisava de um dentista e que a empatia foi imediata, pois Ele é um homem gentil, bonito e sempre com um humor inquestionável, talvez a pessoa mais bem humorada que Ela conhecia, com suas tiradas inteligentes, seu humor sarcástico. Naquela madrugada Ela me disse o que eu queria perguntar, não, eles não tiveram nenhum affair, apesar das investidas dele, pois Ele era um sedutor nato. Mas Ela era uma mulher que gostava apenas de mulheres e isso estava muito bem resolvido para Ela.
Pela manhã fomos comprar pães, vinho e leite. Exaustas e felizes por nossas presenças. Fiz uma playlist de músicas brasileiras que ela poderia baixar na internet. Acordei quase noite num outro dia com ela deitada ao meu lado com seus cabelos desgrenhados, sua pele negra ao lado da minha, nua e linda, e fiquei olhando para ela fumando um cigarro, o rosto emoldurado pela fumaça, o quarto de paredes azuis invadido pelo sol, um descascado aqui e outro ali, a janela de vidros largos dando para o jardim e por onde entrava uma brisa marinha. Ela estava tão a vontade que me intimidou e me corroía de tesão. Os seios fartos, os olhos serenos, a boca num meio sorriso. Uma nudez e naturalidade quase indecente. Então era isso paixão? Meu coração palpitava e sem me encarar, deixando o cigarro no cinzeiro do criado-mudo, levantou-se em direção ao banheiro. Antes, fechou as cortinas e fiquei naquela penumbra, olhando a porta do banheiro e ouvindo os ruídos que ela fazia dentro dele.



Franck Santosé um brasileiro-nordestino-maranhense do interior, morou em Sampa e reside há mais de três décadas na ilha de São Luís. Libriano nascido aos 12 de outubro, bancário e licenciado em Geografia (um professor com alguns graus de miopia).Tem publicado  Fogo Fátuo (Independente), Quando o azul não desbotava (Penalux), ambos de prosa poética. Poemas para dias de chuva (Patuá) e agora Do lado de cá do Atlântico, seu primeiro romance, a ser lançado pela penalux em março.

O aprisionamento de todos. Uma leitura de Não chore - de Luiz Bras

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Por Adriane Garcia 

Não chore, de Luiz Bras (heterônimo de Nelson de Oliveira) é uma novela que discute, de forma instigante, o aparelho prisional brasileiro. 

Enquanto percorremos um lugar do futuro (que reconhecemos inúmeras vezes ser já o lugar do agora, o lugar distópico do agora), com personagens que cruzam a história como realidades paralelas, aparentemente sem se tocarem, somos colocados em contato com a reflexão sobre esta instituição que consideramos natural e não questionamos: o sistema carcerário.

No livro, os personagens, também desenhados por Teo Adorno (outro heterônimo de Nelson), retratam negros e negras (estes habitantes mais que comuns na vida real das celas nacionais). 

Trabalhando na contramão do esperado (sempre), Luiz Bras devolve a estes "criminosos" a sua ancestralidade e mais: a sua origem cósmica, grandiosa, misturando à contemporaneidade da linguagem e do cenário mitos antigos e fundadores da trajetória humana. Deuses, orixás, xamãs, espíritos e animais das florestas, guerreiros se misturam, assim como velhas e novas roupagens, velhos e novos rituais, armas antigas e armas somente possíveis na ficção científica. Um aparato que pergunta: "Você está com a gente? Está disposto a explodir presídios?" 

Com cenas de imensa solidão e violência - mas uma violência que nos diz "você já está se acostumando há tempos", Luiz Bras nos leva a reconhecer tendências interiorizadas e mesmo a flagrar o quanto os discursos institucionalizados já domesticaram e anestesiaram nossas mentes, o  quanto paralisamos o exercício de pensar sobre Estado e controle e sobre o que realmente o Estado controla, para quem, o quê  e o quanto é importante que nos convença por completo que trancafiar os "criminosos"é primordial. A vitória da vingança sobre a reabilitação. 

Mas não chore, nem tudo está perdido, parece que é impossível extinguir, por completo, a capacidade humana de sentir e de se comover com o outro, ainda que isso já seja apenas fragmento. Um defeito na máquina fria?

Um livro com um viés anarquista; uma discussão muito interessante e necessária.


"VAI FICAR ADMIRANDO ESSA torre o dia todo? Joga logo.
Raquel, vamos tomar um café, conversar no mundo real...
Que besteira. Já estamos conversando no mundo real. Quem disse que a web não faz parte do mundo real?
Você está filosofando. A web não tem cheiro, não conheço teu perfume, o aroma do teu xampu... Eu queria acariciar tua pele, mas a web não tem a sensação sutil do tato.
Ainda não, mas em dez anos isso será resolvido. Uma prótese neural mais eficiente, um antivírus quântico...
Não quero esperar dez anos pra sentir você.
Que drama, garota! Que diferença faz conhecer alguém no mundo real? Por que isso é tão importante? Você conhece dezenas de pessoas no teu colégio, nem por isso parece feliz & satisfeita.
Raquel, o que você sente por mim? De verdade? Você tem medo de quê? De chorar? De se apaixonar?
Ai, meus pentelhos. Joga logo, Soo-Yun."
  
Não chore
Luiz Bras
Editora Patuá
2016


4 POEMAS DE "GRAVIDADE ZERO", DE ALEXANDRE GUARNIERI

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A quem cabe escrutinar o universo?
por Carlos Roberto Rabaça**


Aos cientistas, que com seu método suprimem do entendimento da natureza as considerações sobre o significado humano; aos filósofos, que, como nos diz Cícero, não há nada de tão absurdo que não saia da boca de algum deles; ou aos poetas, cujos olhares são capazes de transcender as vicissitudes dessa existência? Certamente uma resposta não elimina a outra. Cabe a nós, no nosso íntimo, procurar as dimensões do conhecimento que mais nos aprazem - aquelas que são capazes de nos fornecer uma identificação única e nos permitem tirar do âmago o nosso melhor.

Certamente o/a “Gravidade Zero” de Guarnieri nos transporta a um universo paralelo de bem estar e nos fornece passe livre para viajar com uma brasilidade única junto ao seu astronauta/cosmonauta/espaçonauta Tom, uma recriação do Major Tom de Bowie. Seus poemas nos materializam em outro corpo, numa cronologia própria, e nos revelam expectativas e ansiedades que são nossas, sem ser.

"SE NASCI A SÓS EM MIM MESMO" (e sim, nascemos universos ilha), "ASSIM, JÁ NÃO ESTAREI SEMPRE SOZINHO NO COSMOS" (de fato nunca estivemos, apesar do frio do vazio cósmico e da perspectiva da expansão sem fim...), "SE TODA SOLITUDE SE ESVAI DE MIM?" (numa conexão real, em que universos ilha rodopiam em interações, chocam-se entre si e se fundem).

Este não é um livro de poemas, é quase uma biografia - a sua, que em algum momento da vida certamente achou que um dia decolaria da Terra, vagaria na gravidade zero do espaço sideral, encontraria Barbarella e colonizaria outros planetas. Mas isso não ficou pra trás... é parte desse universo paralelo ao qual nos sentimos transportados e acalentados.

Todos os sistemas estão prontos para a partida.


Agora só falta a contagem final. 4, 3, 2, 1.


** Carlos Roberto Rabaçaé astrofísico, mestre em Ciências Espaciais pelo INPE e Ph.D. pela The University of Alabama, Tuscaloosa, EUA. Trabalha como professor do curso de Astronomia no Observatório do Valongo, UFRJ.







4 POEMAS DE "GRAVIDADE ZERO"



hallo spaceboy (II)
  
desde a infância ( manipulando
dioramas de urânio, imaginados ),
acolheu tal fabuloso cenário:
no futuro haveria um trágico parque
temático de aeronaves despencadas
que, de longe, de algum horizonte
de isótopos, pareceria incendiado,
a fogos de artifício esverdeados,
o mês de março, na festa de são patrício,
protetor dos físicos e da fusão a frio
ou ainda em setembro, são josé
de cupertino, protetor de aviadores,
cosmonautas e dos estudantes
em véspera do exame mais difícil;

irromperia este personagem reativo,
um novo herói da físico-química,
mecanizado e a jato – mistura de ícaro
e hércules, o aço em paralaxe – capaz
de vencer o céu, vergar a gravidade,
avizinhando estrelas aos passos tão
próximos, por territórios
de corpos celestes,
inóspitos,

desde jovem teve essa dúvida atroz
( ou a certeza premonitória )
se não seria ele próprio
esse mártir metálico
lançado ao espaço
numa cápsula
de plástico


*  *


laika ( 1954 - 1957 )

 tendo idealizado o espaço,
( odor de fezes na astronave/
uma vira-lata molhada e sua
murrinha ) o cosmonauta se choca
ante a realidade suja: desagradável
crise sanitária instala-se, grave,
a anos-luz do seu planeta natal;

sentindo cheiro de pólvora na urina,
o insuportável aroma da amônia
e tudo isso aprisionado às narinas
foi possível senti-lo, inibido, animal cinerado:
estaria mesmo ali o cadáver da mais fiel
das almas entregue ao vácuo ou apenas
o retraído simulacro de um canídeo?

pondera sobre como laika teria ganido,
no limiar entre a vida e a desaparição,
o desespero de não emitir som,
sem osso ou carinho ( o rabo que não abanou )
não houve presença humana apenas
o frio monitoramento telemétrico
de suas tímidas funções vitais;

sem uivo que ecoasse no espaço, não houve
a quem seduzir com o olhar pedinte
da cadela vadia querendo acolhida e abrigo:
à mercê da eutanásia calculada, ( o sacrifício
físico do bicho ainda sanguíneo) afinal
nada disso é possível quando se está prestes
a explodir à bordo do segundo sputnik


*  *


colonize marte sem olhar para trás
finque a iluminação pública no lado
escuro da Lua / é como atravessar a rua,
logo ali o lugarejo separado por milhões
de quilômetros sem oxigênio ou prêmio
somente o altruísmo ou óbvio martírio
do astronauta solitário por quem o mais
engenhoso robô do ovni luminoso possa
se afeiçoar / ah meu filho, apenas vá,


daqui serás o mais famoso ponto remoto
visto de telescópios cósmicos, serás
a melhor notícia em horário nobre, roteiro
de filme sci-fi / livro mais vendido /
herói de gibi / símbolo sexual / objeto único
de estudo / dos rocks de bowie / motivo
de orgulho e júbilo / cuidaremos da
tua família com pensão alimentícia
apenas suma,  seu grande filho de uma puta,


*  *


space oddity

a terra está para o satélite
como a água para a atmosfera
tudo gravita – a vida – equi
libra-se ainda que se esquive
o cometa do meteoro | as rotas
de colisão explicitam certa par
cela de perigo e medo a que
todos os corpos celestes se
submetem entre o caos e a
calma,  dicotômicos | o som não
propaga o ruído está extinto
quando se orbita no frio deste
vastíssimo tapete dito infi
nito | que ímpeto teria pro
longado tão largo o nada tão es
cassa a massa  quando comparada
ao absoluto tubo nulo onde tu
do está indubitavelmente contido ?





desenho da capa: "Major Tom", de Joniel Santos.



*    *    *



Garanta seu lugar na nave
ao lado do Major Tom!
GRAVIDADE ZERO,
livro de poemas que homenageia
David Bowie e seu astronauta
já está em pré-venda.



*    *    *





Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU). Seu segundo livro é Corpo de Festim [livro ganhador do 57o Jabuti/ 2a Edição pela Penalux]. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. A presente seleta recolhe poemas de seu terceiro livro, Gravidade Zero (Penalux, 2017).  










3 POEMAS DE HUDSON PEREIRA

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FLUXO

o poema
se sustenta
na percepção
de que a vida
é um ensaio
um grande pano de fundo
para outros movimentos

eu deliro
nessas linhas
nesse fluxo
irreborável de
pensamentos desconexos
no meio de tudo
uma viagem

eu mergulho
nesse enfim sem fim
e sem nexo
poema que afoga
poesia irretocável
vertigem espiral
miragem
e no fundo
bem no fundo
uma bobagem


EXERCÍCIO n° 5

que nasça o poema
imperfeito
completamente descompassado
sem roteiro
cheio de entraves
desritmado
incoerente
cheio de armadilhas
quase feito
a própria vida


EXERCÍCIO N° 2

escrever (ou tentar)
sob pressão
sob encomenda
é sem emoção
que nasce o poema

mas se é trabalho
se é ofício
que eu o faça
como a um filho


*   *   *



Hudson Pereiraé carioca, nascido nos anos 80. Formado em Letras pela UERJ, escreve poemas e os publica na internet há uma década, e foi finalista do Prêmio UFF de Literatura 2014. Participa de saraus e coletivos no Rio de Janeiro. ‘Café expresso e outros poemas’, lançado em 2016 pela Dowslley Editora, é seu primeiro livro.


3 POEMAS DE RAPHAEL CARRETERO

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Pela última vez assombro esse cinema moribundo. Caminho pelas fileiras, até a boca de cena, sentindo os pés descalços grudando como ventosas no assoalho ruminado que ninguém limpou. Deslizo os dedos pelas costas dos assentos machucados e liberto, um a um, os outros espectros que ainda insistem em mim. Gargalhadas infantis e gritos. Suspiros e lágrimas. Putaria de casais inofensivos e juras de amor, verdadeiras apenas até o fim da sessão. Cinicamente, detenho-me um pouco mais nos últimos. Termino meu trajeto a tempo do “fade out”. Fim. Seguem-se os créditos. Nada se acende e nenhuma porta se abre. O projetor cerra seus olhos. Eis a última valsa do visível. A penumbra envolve as formas identificáveis e o que restou de mim. Vem o silêncio. Ocupo meu lugar no coral morto do cinema mudo. E depois... nada.




Decidido: o Pretérito Imperfeito do Subjuntivo é um filho da puta. Ontem mesmo, ele invadiu minha casa todo feitor, com uma chibatada punitiva para cada última curva feita, para cada potencial encerrado.
A cada “se”, quando se é apenas tristeza, lamentação e poeira de estrelas, ele questiona impiedoso enquanto salga as feridas. E deixa claro que a culpa é toda nossa, sempre nossa, maldito juiz newtoniano.




Apenas o ponto final faz sentido no poema.




*   *   *



Raphael Carreteroé carioca de 1974. Antissocial, contraditório, irônico, ansioso crônico, mordaz, bipolar, ama tattoo e pinta aquarelas (destrói quase todas elas). Vê séries e lê HQs. Acima de tudo, não é poeta. 

As flores brotam sob a íris do anoitecer - Francisco Gomes

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A FLOR QUE FITO

A flor que fito
distante
no fátuo eflúvio do horizonte – fovismo
, sinestesia provocante-canto-de-sereia,
, é abismo
: ilusão desnorteadora do tangível.

A flor que fito
errante
fincada na ferida a fogo a ferro
(lágrimas de sangue e um berro)
, pela pétala de brutalidade instigante
, torna-se
num sopro paradoxal
singular suave bela...
Tão bela essa flor mutante!

A flor que fito
descomunal
habita a visceral entranha
: tamanha é a força instintiva primal
fricçãocarne-carne
afago que arranha
fluido corporal.

A flor que fito
embevecida
também fede também cheira
; não é Amor
nem flor amarela.

A flor que fito
nudez-mais-que-merecida
não é Vênus de Milo
; só o sonho revela...





PERMANÊNCIA PERENEEM ESTADO DE SER-EM-SI

Sofro de flor:
a beleza da cor mora num morro,
lá onde a alma brejeia o silêncio da tarde
(o sol caindo...
vindo agora a saudade...)

Todos os dias
pétala por pétala
o tempo despenteia o ser plantado ali:
existência enraizada em si.

Só os pássaros norteiam o Aonde
Só o vento traz/leva o Aqui...

Sofro de flor:
parado permaneço próximo do pouso
de um passarinho
que acaba de levantar voo...




(O) SER

Não fosse super
Seria hiper

Não fosse botão
seria zíper

Não fosse a flor
da tua blusa estampada
faria de tudo pro Nada
deixar de ser tudo
isso.





AS FLORES BROTAM SOB A ÍRIS DO ANOITECER


As flores brotam sob a íris do anoitecer...
Meu silêncio responde aos gestos e apelos
de ambos os corpos
colados-flor-de-lótusUno-ser.

As flores brotam sob a íris do anoitecer...
Ser...
Seres...
Colibri & hibisco no chuvisco etéreo
que inunda poros
fecunda o mistério

num infinito oroboros...

Ilustrações : Francisco Gomes



Francisco Gomes(cor)rompeu a existência em 1982 no arcaico município de Campo Maior (PI), mas fixou raízes na provinciana Teresina (PI), onde habita desde os sete anos de idade. Iniciou as faculdades de História e Letras/português, abandonou ambas. Publicou os livros Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC - 2011), Aos Ossos do Ofício o Ócio (Penalux - 2014) e Face a Face ao Combate de Dentro (Kazuá - 2016). É autor/editor do blog PULSO POESIA (www.franciscogomespoiesis.worpress.com). Tem poemaspublicados em revistas, coletâneas nacionais, jornais, blogs, sites, muros etc. Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis. Adora fígado acebolado.






IMAGO

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Imagem retirada do Google

Um pavão alucinado
Assalta suas penugens.
Se exibe, colore o ar.
Sobressalta seus cabelos
Como se espatifasse nuvens
Acima da vastidão do mar.
Faz seus olhos, ocelulares,
Se solidarizarem com o sol.
Sua boca se abre
Como plumas, penas.
Sua língua pavoneia
Palavras que vão tonificando
O vermelho até se tornarem
Cor assignificante.
Que comunicação há?
O sexo, silêncio via discurso
Que se vê como imagético ritmo,
Ritmo de cores,
Cores ritmadas
Que já são você que voa,
Não pavão nem pavoa,
Mas borboletas
Arcoirisadas
Dos casulos da cauda
Que esboroa. 

Article 1

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DANIEL FARIA
(Portugal, 1971-1999)





27 POEMAS TRADUZIDOS AO ESPANHOL




por Sandra Santos


















Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


Hombres que son como lugares mal situados
Hombres que son como casas saqueadas
Que son como sitios fuera de los mapas
Como piedras fuera del suelo
Como niños huérfanos
Hombres sin huso horario
Hombres agitados sin brújula donde reposar

Hombres que son como fronteras invadidas
Que son como caminos fortificados
Hombres que quieren cruzar los atajos sofocados
Hombres sulfatados por todos los destinos
Desempleados de sus vidas

Hombres que son como la negación de las estrategias
Que son como los escondites de los contrabandistas
Hombres encarcelados aprisionados abriéndose con cuchillos

Hombres que son como daños irreparables
Hombres que son sobrevivientes vivos
Hombres que son sitios desviados
Del lugar






Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltados para a velhice
Muito danificados pelas intempéries

Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior


Hombres que son como proyectos de casas
En sus balcones inclinados hacia el mundo
Hombres en los balcones hacia la vejez
Muy estropeados por las intemperies

Hombres repletos de envases esperando la lluvia
Quedos en espera
De un compañero posible para el diálogo interior

Hombres muy vueltos para un modo de ver
Una mirada fija como quien viene caminando al encuentro
De si mismo
Hombres muy poco listos tan desprevenidos
Para recibirse

Hombres bajo la lluvia con las manos en los ojos
Imaginando relámpagos
Hombres abriendo fuego
Para enjugar el rostro para cerrar los ojos
No tan preparados tan desprevenidos
Tan confusos esperando un sistema solar
Donde sea posible una sombra más grande






Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias

Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.


Hombres que trabajan bajo la lámpara
De la muerte
Que excavan en esa luz para mirar a quien ilumina
La fuente de sus días

Hombres muy doblados por el pensamiento
Que vienen despacio como quien baja
Las persianas
Para mirar en lo escuro el amanecer

Hombres que excavan de día a día el pensamiento
Que trabajan en la sombra de la copa cerebral
Que podan la piedra de la locura cuando muelen las pupilas
Hombres enteramente blancos que abren la cabeza
Buscando esa piedra definida

Hombres de cabeza abierta expuesta al pensamiento
Libre. Que vienen despacio abrir
Un lugar donde amanezca.
Hombres que se sientan a ver la mañana
Que excavan un lugar
Hacia la salida.






Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É fé inabalável no mistério que inclina
Os homens para dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante



Que no levantemos los hombres que se sientan en la salida
Porque se mueven en sus caminos interiores
Equilibran con dificultad una idea
Cualquier cosa muy nítida, semejante
A una hoja vacía 
Y cuelgan nidos en los árboles para que se liberen
De la caja terrible, invisible muchas veces
De tan dura
Que no nos aproximemos de los hombres que ponen las manos en las barras
Que acostan la cabeza a los hierros
Sin otras manos donde agarrar las manos
Sin otra cabeza donde apoyar el corazón
Que no les toquemos sino con los materiales secretos
Del amor.
Que no les pidamos para entrar
Porque su fuerza es hacia fuera y su espera
Es fe inquebrantable en el misterio que inclina
Los hombres hacia dentro
Que no los levantemos
Ni nos sentemos a su lado. Sentémonos
En el lado opuesto, donde ellos pueden venir para erguirnos
En cualquier momento






Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti




Podría haber escrito temblando, puesto que respiras tan lejos
Haber escrito con la sangre.
Podría también haber escrito las visiones
Si los ojos divididos en partes no sobrasen
En lo vacío de ceguera
Y luz.
Podría haber escrito lo que sé
Del futuro y de ti
Y de haber visto en el desierto
El silencio, el fuego y el diluvio.
De dormir lleno de sed y podría
Escribir
El interior del reposo
Y ser chispa donde la muerte vive
Y la vida rompe.
Y podría haber escrito mi nombre en tu nombre
Porque me alimento de tu boca
Y en la palabra me sustento en ti




Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim                                  
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.


Te amo en esta idea nocturna de la luz en las manos
Y quiero caer en desuso
Fundirme completamente.
Esperar el destello de tu llegada, la estrella, tu ángel
Los focos celestes que la candela humana no iguala
Que los ojos de la persona amada no permiten olvidar.
Amo tan grandemente la idea de tu rostro que pienso verte
Hacia mí
Inclinado como el niño que quiere volver al suelo.






Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terra arável na sua devastação.
Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração de carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma pedra nupcial



Examinemos también la escritura
El suelo negro resultado del fuego
El mecanismo semejante a las quemadas
Dejando la tierra arable en su devastación.
Todo esto interesa para que retomemos la piedra donde está escrita
La palabra nueva
La piedra donde circula la sangre.
Mientras preguntas por las diez palabras
Pon la boca en la palabra liquida
Examina el corazón de carne en vez de la escritura antigua
El verbo donde brota la palabra incesante

Hay dentro de ella una piedra nupcial






Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão


Sabes, lector, que estamos ambos en la misma pagina
Y aprovecho el hecho de que hayas llegado ahora
Para explicarte como veo el crecimiento de una magnolia.
La magnolia crece en la tierra que pisas – puedes pensar
Que te digo alguna cosa innecesaria, pero podía haberte dicho, créeme,
Que la magnolia te crece como un libro entre las manos. O mejor dicho,
Que la magnolia – y esa es la verdad – crece siempre
Pese a nosotros. 
Esta raíz para la palabra que ella ha lanzado en el poema
Puede que signifique que en la rama que quede de ese lado
La flor que se abra es ya un poco de ti. Y la flor que te extiendo,
Aunque la rechaces
Nunca la podré conocer, ni jamás, aun amándola,
La cogeré.

La magnolia extiende contra mi escrita tu sombra
Y toco la sombra de la magnolia como tomase tu mano






Explicação da gravidade

A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos.



Explicación de la gravedad

La ley de las cosas es tumbar
Preguntándose:
Sólo el pájaro vive para el vuelo.
Cuando se posa es igual que un hombre que se sienta
Para pensar.
El hombre piensa que nada es más hondo
Que después de Dios los hijos y los sismos.






Do Inesgotável

6

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento nas tuas mãos.



Del inagotable

6

Amo el camino que extiendes adentro de mis divisiones.
Ignoro si un pájaro muerto sigue con su vuelo
Si se acuerda de los movimientos migratorios
Y de las estaciones.
Pero no me importa enfermar en tu regazo
Dormir al relente en tus manos.






As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
 



Las mujeres aspiran la casa para dentro de los pulmones
Y muchas se transforman en árboles llenos de nidos – es decir,
Las mujeres – aunque las casas presenten los tejados inclinados
Al peso de los pájaros que se abrigan.

Es por la ventana de los hijos que las mujeres respiran
Sentadas en los peldaños mirando hacia ellos y muchas
Se transforman en escaleras

Muchas mujeres se transforman en paisajes
En árboles llenos de niños trepando que se prenden 
A las ramas – en el cuello de las madres – aunque los árboles irradien
Llenos de retoños

Las mujeres aspiran para dentro
Y engendran continuamente. Se transforman en huertos.
Ellas arruman la casa
Ellas ponen la mesa
Alrededor del corazón.






Houvesse um sinal a conduzir-nos
E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores
A incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros



Hubiera una señal conduciéndonos
Y únicamente al movimiento de crecer nos guiase. Que tengamos de los árboles
La incomparable paciencia de buscar lo alto
La verde bondad de permanecer
Y orientar los pájaros






Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.



Raro el sueño que no te devuelve
Como es extranjero el sosiego
De quien no espera recado.
Esa sombra como es el alma
De quien ya sólo dentro se ilumina
Y sorprende
Y fuera es
Apenas peso de ser tarde. Como es
Amargo no poder guardarte
En suelo más cercano al corazón.






Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a



Concierto la palabra con todos los sentidos en silencio
La restauro
Le doy un sonido para que ella hable por dentro
La ilumino

Ella es una lámpara sobre mi mesa
Reunida en una forma comparada a la lámpara
A un zumbido callado momentáneamente en enjambre

Ella no se come como las palabras enteras
Pero se devora a sí misma y la restauro
A partir del vómito
Vuelvo despacio a ponerla en el hambre

La pierdo y la recupero como el tiempo de la tristeza
Como un hombre nadando hacia atrás
Y soy una energía para ella

Y la ilumino






Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão


Guarda la mañana
Todo lo demás se puede extraviar

Porque tú eres el medio de la mañana
El punto más alto de la luz
En explosión






O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo



Mi proyecto de morir es mi oficio
Esperar es un modo de que llegues
Un modo de amarte dentro del tiempo






Fosses tu uma ave ou uma folha
E o Outono te viria desprender



Fueras tú un ave o una hoja
Y el otoño te vendría a desprender






Como doem as árvores
Quando vem a Primavera

E os amigos que ainda estão de pé



Como duelen los árboles
Cuando viene la primavera

Y lo amigos que aún están en pie






Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
-Mais interior do que o sangue no coração que me darás-

Peço um coração
Nuclear




Un corazón de sangre
Un corazón de esquisto y acero
Un corazón angular y redondo
Como la piedra que te abre
Del interior del suelo

Un corazón solar
De granito
De carne
Curado de la noche de nacimiento

Un corazón de hombre
Un corazón de hombre vivo
Un corazón de niño al regazo
Interior
-Más interior que la sangre en el corazón que me darás-

Pido un corazón
Nuclear






Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe


Camino un poco arriba del suelo
En ese lugar donde suelen ser abatidos
Los pájaros
Un poco arriba de los pájaros
En el lugar donde suelen inclinarse
Para el vuelo

Tengo miedo del peso muerto
Porque es un nido deshecho

Estoy ligeramente arriba de lo que muere
En esa ladera donde la palabra es igual que pan
Un poco en la palma de la mano que divide
Y no separo como el silencio en medio de lo que escribo

Camino ligero arriba de lo que digo
Y vierto la sangre adentro de las palabras
Camino un poco arriba de la transfusión del poema

Camino humildemente en los alrededores del verbo
Pasajero en un escalón invisible sobre la tierra
En ese lugar de los árboles con fruto y de los árboles
En el medio de los incendios
Estoy un poco en el interior de lo que arde
Apagándome despacio y teniendo sed
Porque camino arriba de la fuerza saciando quien vive
Y aplasto el corazón para lo que desciende sobre mí
Y bebe






Há homens a abrir as mãos como livros
Superfícies intensas sem ruído - as nascentes
No rochedo liso, no deserto imprevisto

É quente o silêncio. É quieto de uma claridade
Atenta. Eles o abrem - o orvalho
E nem sempre o atravessa o lume

É sempre de manhã que se abrem as correntes
Abrem os escritos sem abrir os lábios
Eles sussurram sobre os ouvidos
Do homem que fala sozinho

Nem sempre abrem a porta de quem está em sua casa
Nem a ferida que se cura com o tempo

Abrem uma fonte e um lugar à frente. Cada afluente
E o seu leito. Abrem
Os anzóis profundos dos sinais


Hay hombres abriendo las manos como libros
Superficies intensas sin ruido – las nacientes
En la roca lisa, en el desierto imprevisto

Es caliente el silencio. Es quieto de una claridad
Atenta. Ellos lo abren – el rocío
Y ni siempre lo atraviesa la lumbre

Es siempre de mañana que se abren las corrientes
Abren los escritos sin abrir los labios
Ellos susurran sobre los oídos
Del hombre que habla sólo

Ni siempre abren la puerta de quien está en su casa
Ni la herida que se cura con el tiempo

Abren una fuente y un lugar adelante. Cada afluente
Y su lecho. Abren
Los ganchos profundos de las señales






Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Penetro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escuta

Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítara

Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta

Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva

O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara



Yo suelto el espíritu y cribo el ritmo
De la sangre en el amor, el movimiento afuera
El desabrigo completo. Penetro los múltiples
Sentidos de la palabra que sopla su voz
En los pulsos. Cribo la pulsación del canto
Y encuentro
El silencio inigualable de quien escucha

Es por ello que mis entrañas vibran de modo igual
A lo de la cítara

Yo suelto las entrañas y encuentro dolor
De quien toca la cítara. La frágil raíz
De quien criba horas y horas la vida y encuentra
La cuerda más azul, la vena inagotable
De quien ama
Encuentro el silencio en las entrañas de quien canta

Es por ello que mi amor vibra en el espíritu de quien criba

El músico incompleto suelta las ideas de las formas
Yo soplo el agua viva. Cribo
El sufrimiento demorado del canto
Encuentro el misterio
De la cítara






Voz no vento passando entre poeira
Edifício
Árvore noutro poema
Fico à sombra da vide e do esteio no Outono

E enxerto a luz
Em tudo o que nomeio


Voz en el viento pasando entre polvareda
Edificio
Árbol en otro poema
Me quedo a la sombra de la vid y del pilar en el otoño

Y injerto la luz
En todo lo que nombro






Mulher

Antes da noite
Brunirás os montes

Bordarás a chuva
Tecerás o tempo

Com as tuas lágrimas
Lavarás o vento


Mujer

Antes de la noche
Bruñirás los montes

Bordarás la lluvia
Tejerás el tiempo

Con tus lágrimas
Bañarás el viento






Trabalho a partir da existência da luz
E de certos minerais
Mesmo se não mereço a matéria luminosa
Da terra soprada donde o homem vem. A ânfora, o vidro. E recolho
O fogo
Quando como no princípio a manhã se abeira

Trabalho a partir da ceifa matinal. Experimento
A paveia antiga do homem vergado, o rumor enxugado do líquido
Na névoa, no orvalho, na carne
Da palavra calculando o voo
Pelo reflexo sobre as águas: no início

Trabalho na água que a voz movimentou
Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu



Trabajo a partir de la existencia de la luz
Y de ciertos minerales
Aunque no merezca la materia luminosa
De la tierra soplada de donde viene el hombre. El ánfora, el vidrio. Y recojo
El fuego
Como cuando en el principio la mañana se acerca

Trabajo a partir de la cosecha matinal. Experimento
La paja antigua del hombre arqueado, el rumor enjuto del liquido
En la neblina, en el rocío, en la carne
De la palabra calculando su vuelo
A través del reflejo sobre las aguas: en el inicio

Trabajo en el agua que la voz ha movido
Obrando los sismos: y soy
El humus, el barro en los márgenes
El hombre que nunca ha comprendido






Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
Como o grão
Abeiro-me da flor que virá e venho
À superfície do teu sonho

Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo

Rebento no interior do trigo
E de qualquer planta que se assemelhe a ti



Me acuesto a la muerte sin amparo o sombra
Como el grano
Me acerco de la flor que vendrá y vengo
A la superficie de tu sueño

Como si despertase la mano que siembra
En el corazón labrado de quien hace la cosecha
Retoño en el interior de la muerte como el trigo

Retoño en el interior del trigo
Y de cualquier planta que se asemeje a ti






Siracusa

De pedra em pedra
Te peço

Não morras de sede

Ou de luz



Siracusa

De piedra en piedra
Te pido

No mueras de sed

O de luz











Sandra Santos (Portugal, 1994). Estudante, escritora e tradutora. Licenciada em Línguas e Relações Internacionais (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), é actualmente mestranda em Estudos Editoriais (Universidade de Aveiro).

Participa em projectos culturais, artísticos e literários. Traduz do português e inglês para o espanhol e do espanhol para o português. As suas traduções estão publicadas em Portugal, Espanha e América Latina, nos blogues e revistas "Cuaderno Ático", “Buenos Aires Poetry”, “escamandro”, “Círculo de Poesía”, “Poesia vim buscar-te”, “Otro Páramo” e “La raíz invertida”. 

Partilha o seu labor poético e artístico no seu blogue: http://sandrasantos-ss.blogspot.pt/.

Sandra Santos (Portugal, 1994). Estudiante, poeta, escritora y traductora. Licenciada en Lenguas y Relaciones Internacionales (Universidad de Oporto), en el presente, está adquiriendo el máster en Estudios Editoriales (Universidad de Aveiro).

Participa en diversos proyectos culturales, artísticos y literarios. Traduce del portugués e inglés al español y del español e inglés al portugués. Sus traducciones están publicadas en Portugal, España y América Latina, en los blogs y revistas “Cuaderno Ático”, “Buenos Aires Poetry”, “escamandro”, “Círculo de Poesía”, “Poesia vim buscar-te”, “Otro Páramo” y “La raíz invertida”. 

Comparte su labor poética y artística en su blog: http://sandrasantos-ss.blogspot.pt/.

10 poemas de Carla Andrade

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Ben Zank

Top of Form

Anatomia das cores

A primeira vez que vi um
sapato velho na fiação
entendi o abandono
de se ter alma.

Preferia ter só asas,
assobio de pássaros.
Folhagem pisada.

Mas me colocaram uma alma
num buraco,
bem na hora que o mundo deu um soluço.

Depois do sapato velho na fiação,
não adiantou mais ver
as cores gentis das quitandas.
Nem mão de moço no rosto de moça.

Tudo parecia chuva
corroendo carroça
na contramão.
Vento de través.
Telhas encardidas
sem promessa de
aventura de criança.

Tentei adestrar as gotas das lágrimas.
Enlouqueci cada palavra do silêncio
até que se curassem.
Não adiantou.

A alma e sua falta de carne
continuaram enterradas
em caverna
de mãos vazias...
Como uma canção
sem sintonia
de um rádio
prestes a ser desligado
antes de dormir.


Mural dos deuses

Neste nenhum
trocadilho da alma
há insônia de Baco
Há o profano em
células
cume de ossos
em câncer
trópicos.
O eterno na esquina
no tráfego das mãos,
na romaria de dúvidas.
O fogo de cupim:
no cérebro e sexo.
Há babas do mar
em despedidas de trovões
ressaca de barcos
no veludo de vozes.
O humano a se render.
Nos homens, a morte
imersa na arte.
Léxico dos deuses.
Sopro com sede
no inferno.
Nos homens,
a pitada da ironia:
ser divino em pele de fungos,
em bactérias de dor,
em cascas do tempo.


Moinho

Se amanhecer:
o prato esmaltado
e o sangue depenado
em cova rasa,
a galinha mais lenta.

As linguiças enforcadas
expostas por seus crimes
no estandarte da cozinha,
o porco mais gordo.

Lambança do chiqueiro,
a lavagem
cevada de bicho de pé,
berne, barbeiro,
sanguessuga.

A descontinuidade da vida
resolvida no erotismo do moinho,
no gozo exterminado do moedor.

A violência da roça.
É disso que preciso.Top of Form

 

Mira Nedyalkova



Antes do chuveiro

Artesãs são minhas mãos
na cama no espelho seu corpo.
Meus dedos, teares febris
a fiar a incógnita do seu gozo.

Minha boca vapor
de um trem sem destino.
Afasto meus dentes
como persianas abertas
para todo o sol entrar.

Concentro o que gruda
e molha na minha língua
ávida pelo seus poros
encravados de
de indulgência.

Sou toda parábola para
folhear páginas
de um livro pagão.
O suor do cio.
Espasmos rebelados.
Trêmula,
terei que reinventar o chão...


Como hipnotizar anzóis no tempo

Enfeitice
peões de mulheres
fantasiadas de nós
em chuvas
musicadas ao avesso.

Trance
o destino
bem acima
da última curva
do vento.

Liberte
o tropel de
tangos
das vertigens
adormecidas
em sonetos.

E por último
faça um agrado,
como um sopro divino,
aos ogros verdes
da saudade.

Se tudo
resultar em nada,
descanse os olhos
nas estrelas
aliviadas de brilho
sem respostas.


Seu lado da cama

Com o tempo tudo foi substituído 
no seu tempo. Acho pouco: o tempo.
A casa é a mesma
o sangue nos meus ossos também.
Mas a varanda não tem você fumando 
(você ainda fuma?) 
mais comigo.
Levaram anos para suas cinzas 
não se confundirem com as minhas.
Achei que as cinzas não seguiam o tempo.
Ainda fico na varanda no seu tempo, 
as músicas são as mesmas. 
Não se fazem mais músicos
como antes (as pessoas dizem, eu também. 
nem consigo dizer).
Dizem que penso em você quando 
olho as plantas crescendo.
Eu gaguejo: 
não quero que essa noite comigo termine nunca.

 

Erik Johansson

Nossa primeira viagem

Nova caligrafia de nuvens
o sol e sua esgrima de raios
bromélias como cataporas nas montanhas
e o caleidoscópio nos seus olhos.
É manhã – e a eternidade cabe na distância
entre nossos pés delicados.


Fios de ovos

Não tinha hora, o tempo monossilábico dividido
em sonhos, em quase locuções,
trocados com minha irmã,
na camada mais profunda do sono.

A janela trancada.
Benção pai.
Há quantos anos não te dou benção, pai?
O beijo, benção mãe.
Não apaga a luz do corredor, pedia
(as coisas pelo menos existem em contornos).

O despertador raiava
os passos eram perfeitos na escada, risos, café.
Papai e mamãe sempre tomaram, eu não, nem sei porquê.
O café era forte, meu sono às vezes não.

A janela de madeira pesada. Ele escolheu.
Ele construiu a casa.
Meu cabelo era tão bonito no travesseiro,
dourado, alguns fios de ovos.
O cheiro de talco nas bonecas.
Elas precisavam de talco.
Eram crianças.
Minha mão pesa em todas as portas que fecho
em todas as janelas que abro
são firmes e delicadas.

Tem o peso daquele sono,
tem a leveza daquele sono.



DO ESPELHO

Essa mulher no espelho
tem o mesmo olhar
abotoado da menina que roubava
as sombrinhas de cogumelos
das árvores e dos pastos.
Esse olhar no espelho
parecem bolinhas de gude
na escada rolante,
olhos inconsequentes.
.
Essa mulher no espelho
tem gosto de hóstia
ao lembrar
dos dedos de menina
a lambuzar o próprio sexo.

Essa mulher é a mesma
que se atira nas raízes do seu colo
e se retira com nacos de barro
de obra inacabada.

Esse reflexo no espelho é o
reflexo de tantos outros reflexos.
Máscaras de pétalas
secas pelo tempo.
Coragem.
Pediu para o homem.
Essa mulher ainda sou eu?



Verdades do rio

Peneire-me com a sua voz.
De um lado, prometo deixar
carcaças grávidas de ideias.
Do outro, sementes
podres de ignorância.

Depois, me jogue no rio
mais transitório que existir
em uma manhã de pálpebras entreabertas.
Deixe fluir os pés fincados das minhas lembranças.
Aí, com ternura, observe como a água
arrasta os galhos da minha perseverança.

Corra para a outra margem
e veja a minha boia de sonhos e sua dança.
Quando eu parar em alguma pedra safada,
com síndrome de julgamento,
sopre, sem pressa,
os calos dos meus pensamentos.

O que quero é simples.
Caminhar de mãos dadas na
varanda da vida,em direção ao mar.



Fabiano Souto

Carla Andrade Bonifácio Gomes é de Belo Horizonte de 77. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta na capital. Tem três livros publicados: Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem (7Letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês fluente.  Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.

A poesia de Carla Andrade articula imagens que parecem brotar da fonte mais pura da poesia. Seus poemas raramente estão preocupados com um lastro de realidade, parecem estar muito mais submissos a uma vertiginosa – e difícil – sedução da imagem. Cada poema é um “tratado de perplexidades”, como ela mesma intitula um deles. “O real tem tardes de abismos / e os pássaros feridos em bandos / perdem-se dentro de mim”, diz o poema Doses do real, como se fosse estabelecido a cada momento uma cisão profunda entre a voz que fala no poema (o “mim”) e a realidade, cisão que exprime uma certa angústia, e provoca a desestruturacão de qualquer ideal de clareza na expressão.” ADALBERTO MüLLER

“Carla Andrade pisa firme no chão da poesia, levitando. Quanto mais leio, mais gosto de seu rebuliço linguageiro.  Mais me surpreende a fala crisálida, a habilidade com que desmonta e recria o seu sentido. / Os primeiros passos desta poeta mineira mostram que ela não joga com palavras à deriva. Antes, sai pulando marés e amarelinhas, voando pelos vendavais e abismos de um universo muito próprio, dona de asas e enlevos. / No desregramento com que ela tece os versos, há um lirismo enigmático provocando as pertinências. Vai deslocando as palavras, bricolando os sentidos (de quem a lê), divertida no jogo da poética, sábia e indiferente no que traduz da vida.” ANGÉLICA TORRES 

da mudez à lama das margens - quatro poemas de Natalia Ribeiro da Conceição

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Werner Bischof - Hungary-Budapest, 1947




Recém


Logo que nasce
e olha pela primeira vez
o mundo
rompe sua mudez
de placenta
e chora.

O ar estreante
nos recém-pulmões
lhe doem;
e então chora.

Mas chora também
sem saber motivos,
desconhece razões,
porque ainda é
pequeno demais
para tanto mundo.

E nós, que às vezes
choramos
sem saber o
porquê,
é por isso:
porque seremos
sempre pequenos demais
para tanta vida.






Werner Bischof - Japan girl with puppet, 1951




Horas mortas


a noite se apressa
consumindo, sôfrega,
as miçangas do tempo,
as horas
enquanto em mim arde
o desejo dos corpos
em brasa na penumbra

tu me
chamas
e eu saio
ávida
ao teu encontro-
vou roubar, num beijo,
todas as horas
da tua ausência


É sempre assim-
sutil mas
decisivo
o modo como
você me anula.






Heresia


valha-me deus
ser chamada de
mulher da vida,
de ouvir
que não valho nada,
de ser condenada
à vala
dos marginais
transgressores

mas como conter,
como negar,
como esfriar
a lava
que fervilha
na minha carne,
que me leva
a impulsos-libido,
que me eleva
ao milagre do prazer?

como me lavar
do pecado?
como da lama
fui feita carne,
vulcão em erupção,
lava erosiva
e ácida?

como me lavar
desse cheiro
de cio
que me brota
da fonte,
da gruta
úmida
termal?
como não cavar
na carne
os espasmos
da alma?

como não ser bruxa?
como não ser herege
pedindo as chamas da fogueira,
clamando pra ser enterrada viva?

lavra-me, deus…






screenshot The witch




Desapego


O peso da decisão
é a cruz salvatória
que se carrega-
o caráter ambivalente
do desap ego.








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Natalia Ribeiro da Conceição nasceu em São Carlos (SP) em 28 de fevereiro de 1994. Na mesma cidade cursa Engenharia Ambiental (USP) e desenvolve programas de Educação Ambiental junto ao Grupo de Estudos e Intervenções Sócio-ambientais (GEISA) da USP-São Carlos. Cresceu anos em apenas um, enquanto morou em Compiègne (França), período que consolidou seu livro de estreia, Inconfidência Primeira (Patuá, 2016).

5 poemas de Fiori Esaú Ferrari

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Marcel Fernandes

A vocação e a mesa

A longa mesa de madeira
sombreada de quietude
no calor da infância
impunha inteira
a rotação da tristeza.

Hélices giravam a flor
do menino louco
que fechava os olhos
pra construir palácios
equinociais de brilhantes.

Assumia velocidades.
Enfrenava a dor.

O cavalo aparteando as crinas,
o fogo das narinas,
o lombo sextavado
de tatuagens hídricas.

O menino louco de ausentar
paz cumpria de detalhes
cada vazio do dia.

Vendia princípios
discricionários
de alegria.

Certa vez contou aos seus
uns descomedimentos.

Tiraram-no do céu,
puseram-no na mesa.

Foi quando descobriu o lápis e o papel.


O cesto

A canção vem
como quisesse
recompor o quarto.

A mão do pai
era um breve
aceno.

A mãe sussurrava
suas dores.

Trançava
os carinhos
num cesto.

Domava o tempo
na mandala,
o cosmos
era ali
dominado arquétipo.

Ela cantava timidamente
aos domingos.

Um terço quase à mão,
o menino do lado
procurando o fundo
e o fundo talhado
de certas texturas
e a vida dura,
a vida dura.

Ela cantava timidamente
aos domingos. Ela existia.

A interdição da lucidez,
a utilidade dos dias,
o lucro dos bancos,
o riso cainho dos bancos.

No domingo,
o cesto era arte
e o delírio,
o lenço na cabeça,
rosas, espirais,
ondulações
e corpos dizendo dança.

A flauta fazendo uma música
de muitas curvas.

E o pai num breve lenço de adeus.

Ela tirava do cesto
o ócio com uma delicadeza
de colibri
e se espalhava
diante do menino que sorria,
que desmanchava sua prisão,
sua timidez.

E o mito levantava-se das águas
sem fé alguma.

Talvez, por isso,
tenham fundado Deus.

Chema Madoz

Uma grande poeta

Eu sei passar invernos sobre aquarelas.
Eu trago das nuvens frias
as cinzas que na quarta
cingem suas cabeças.

Eu sei contar os passos
dessa via.
A cotovia cantou.

Pra arte abstrata,
pro poema concreto,
pra melíflua lua
na metáfora prostituta.

Todo grande poeta
é analfabeto.

Todo poeta seminal
é sem nenhum teto.

O poeta é o animal
que não aprendeu
palavra.

Eu sei articular
a dor ao  símbolo.

Foi quando eu aprendi a trair
a vida
e fez-se o primeiro verso
e foi minha primeira covardia.

Tenho frutas no cesto
e um sabor
de desencanto.

Minha avó acontecia
num só instante
e depois doía nos olhos.

Tenho saudades.

Ela não sabia ler
nem escrever.

Mas doía nos olhos
com amor.



Meu povo

Era pra eu me lançar
atado de azuis
e conchas nos rins,
era, sim, um pouco
de destino,
completar o signo
no papel
e num ato de desespero
ele se partir,
cerâmicas ancestrais,
cada letra num caco,
o ladrilho dos passos
pequenos do meu povo.

Dá uma paz pisar os pés nus no chão.

Meu povo me enamora
e me emociono com seu jeito
na passagem da vida,
meu povo vestido
de mantos,
a poesia na distribuição de renda,
meu povo que masca fumo
na tela do iPhone.

Era pra eu me lançar
aturdido
como quando Portugal
adormeceu pensando
Deus.

Sou o ato de ser brasileiro.

Amo, amo meu povo
que estendeu seu corpo
sobre o campo
como a rede mais suave
da morte.

Esses campos onde o vento
é dono, estou achado
e abro os braços
e canto um hino nacional.

Conquisto o império das flores
mas não colonizo nenhum desejo.



Agrafia

Eu não suportaria
viver entre escritores,
conversar com escritores,
entender o discurso dialógico
dos escritores,
a sua distinção
tão insuportável,
a sua petulância em se
auto proclamarem
escritores.

Eu não suportaria
o seu olhar crítico
sobre a obra do outro,
seu amor cheio de autopiedade
e a exibição erótica
da seu palavreado
com pretensão de arte.

A articulação dos escritores
me faz rir.

Eu não compreendo
a inteligência capaz
de se posicionar sobre
tudo,
a sagacidade de se exibir sobre
tudo,
eu não suportaria
a inteligência aguda
que os escritores têm.

Não.
Eu não sei dizer nada,
não falo outra língua
senão aquela que me dói,
sou adido de um canto de galo
invadindo a tarde,
e a crítica literária
é um eco distante do Sócrates
deitado sobre o catre
quando Platão inaugurou
a morte do mundo feliz.

Eu não suporto o português culto dos escritores!
Nem suas traduções, nem suas tradições.

Eu sou avesso ao livro
e me entrego mais
às asas do passarinho
que marcou a janela
do apartamento
e proibiu por um instante
o poema.

Um instante eterno
em que a digitação bloqueada
foi o útero
e o paraíso enfim reencontrado.

Quando seu Ramiro olhou
a mancha interna nas patas
da mula disse pra mim:
são uns zóiodi vê a noite.

Nenhum artista da palavra
olharia assim.

E se olhasse magoaria o mundo
quando grafasse.

Meu filho de 4 anos
escreve seu nome.
Sua caligrafia treme.

Treme porque quer voar.

As crianças caem
quando,
aos 4 anos,
escrevem sozinhas seu nome.

Um abismo.

A escola vai saber depois bem cavar profundidades.

Por isso fico triste.


Eu aguardarei com saudades
o dia em que calaremos todos.

E o pão e a água
vão ser nossa melhor escrita.

E a vida vai seguir
seu rumo de esquecimento
suave como quando éramos ágrafos.

Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. É professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa pelo município de São Paulo. Em 2016, lançou, pela Editora Penalux, seu primeiro livro, Tensão Superficial da Poesia.

jorra mas jorra contido - doze poemas de Leandro Rafael Perez

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Screenshot The Neon Demon





pensa nas estruturas de carbono
que do seu corpo continuarão
a viver, a sustentar

pensa na cor do sangue
pequenininho

a morte é um tangram
vermelho


___


Deus croupier de folga
não se faz de rogado ao sorrir a banguela
se espraia pelo céu da boca leporino
alcança o crânio acéfalo jamais natimorto:

imita a paisagem externa, sua única vaidade



___



caboto que é caboto
prova na terra a proximidade do rio.

Teme,
mas teme o que não existe.

um marginal a se guiar por fronteiras,

horizontes viciados pelo que não está.

Teme,
mas leva nos braços um buquê de músculos.

O grotesco de um náufrago de lagoa,
mas nunca mais a graça de um Baudelaire.





Screenshot Aguirre





ali repousa noutra retina
uma imagem dentro

dói imitar os detalhes da fécula,
reforçar as pontes quando esfria



___



estas aulas de como
manobrar o desvio

esfolam a mão
& tentam criar a reta

míope
viado
desempregado
irrisório

em vão.



___



arrancar as unhas
embora tortura
eficiente

se mostrou, por fim,
impraticável

— De que nos serve
a verdade,

se as taças estão sujas?

— É saber comum
que lavar direito
privada ou escumadeira
requer unhas, prefiro

louça limpa
a confissão.



___



peito glabro (largo)
com a legenda passivo

sem mais detalhes
além de querer local

as orelhas fugindo do rosto,
os lábios tão parecidos

o de baixo com o de cima,
bigode incipiente

pescoço curto,
nome bíblico:

motel labareda,
consolo de bronze.



___



eu
rastejo pelo único
mármore feio do mundo
de apoio os cotovelos e joelhos

me arremessam moedas vencidas
(aqui não chegam restos)

"aranha", me elogiam
não ganharão minha simpatia
pintaram de azul todas as grades
e gozam nuvens

empino a bunda intacta
dos que não precisam trabalhar
é preciso que se deitem

(quase não babo mais)

tenho uma joenete na bochecha esquerda,
a outra mantenho tão lisa quanta a bunda
te esperando fazer festinha

o mundo é cônjuge de ninguém:
você sabe onde me encontrar.



___



caxumba na alma, ele disse

Na alma?

Sim.

que raro

Sinto que às vezes sobe

Pra cabeça?

Não, pro pau

mas ela fica nos pés?

Ela?

A caxumba.

A alma.



___



não importa o quanto eu bata no cinzeiro
o quanto mire, o quanto pare a leitura
e me concentre

o quarto novo está cheio de cinzas



___



há miniaturas demais
sobre o móvel funcional

digamos ursinhos de pelúcia
sobre esta escrivaninha

ou bitucas onde carece incêndio



___


cutelo hecatombe
jorra mais do que tinha

cutelinho hemorragia
um pouco mais do que tinha

deve dar
pro gasto

deve dar
pro desgaste
de viver

pro desgaste
de ter vivido

será?

o truque é não merecer
o tapete púrpura

o resto é encomenda,
pagamento prévio






________________________________________________________________




Leandro Rafael Perez cresceu na divisa com Diadema, São Paulo, e hoje mora no centro. Fez linguística na USP, mas não ganha dinheiro com a área. Aliás, quem ganha? Mede 1m57. Tem 3 livros pela Editora Patuá, nesta ordem: lança além do real só, turnê a meio mastro e pau mole (prelo, 2017). Um poema seu consta na terceira edição impressa da Modo de Usar e fez uma série inédita para a sempre incrível revista online Geni, saudades. Email: perezlrp@gmail.com

3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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chuva, vento

o céu: chuva, vento
o céu, escuro,
tem estado assim desde cedo, e
minha alma em tormento.
agora: cinco da tarde,
mais chuva, mais vento.
no horizonte, mal
se distingue: o vago ponto
onde termina o mar
e começa o firmamento.


as roupas

Depois de “The sadness of clothes”, de Emily Fragos.

a pior parte (uma das piores partes,
pelo menos) é a de abrir os armários,
as gavetas, olhar as roupas, decidir
o que fazer com elas: pegar para si, para algum
parente, doar? porque quando abrimos
os armários e olhamos as roupas e
sentimos o cheiro delas, nós nos
lembramos de tanta coisa, de tantos
momentos. e revivemos um pouco,
e morremos um pouco. e, em
silêncio, de nós para nós mesmos,
rimos, choramos. ainda que não derramemos
lágrimas, choramos. por quê?, ah, porque,
ora, o momento de abrir os armários
e as gavetas, o momento das roupas, é o pior.


conselheiro mata

o que eu adoraria estar vendo
agora
é o seu perfil, tão
meu conhecido, tão bonito
diante do horizonte
sem fim
da estrada (de terra) que leva
a conselheiro mata.

*    *    *






André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento.




A força gravitacional de líria porto – cadela prateada

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Por Adriane Garcia


Estive às voltas com o livro “cadela prateada”, de líria porto (ela gosta assim, minúscula) por cerca de uma semana. Um livro de poesia que, sem dúvida, se leria de uma só vez, em algumas horas, pois de leitura extremamente fluida. Mas isso faria um leitor que não tivesse, como eu, quase uma relação gastronômica com palavras. líria porto oferece um banquete precioso, onde saber e sabor se misturam, e feliz é aquele que, privilegiado, pode sorver nuances, sustos de mudanças, inversões, duplos e triplos sentidos. Por isso li três vezes cada poema.

A coletânea é temática e aborda de criativas maneiras este nosso satélite, habitante do céu e do imaginário: a Lua. A cadela prateada uiva e faz uivar. É mulher, tem luz própria, é corporificada, amamenta, é força, é dionisíaca, erótica e vive de um amor complicado: o Sol.

De forma absolutamente ritmada e, portanto, musical, passear pelos poemas de “cadela prateada” é ouvir música. Brinco (de forma séria) que quando algum poeta tem problema de ritmo em seus poemas eu lhe recomendo, de imediato, ler Cecília Meireles. Faço-o agora também com líria porto.

A linguagem é atualizadíssima, bem humorada, sem deixar de falar da tragicidade da vida; as metáforas, riquíssimas. líria porto é uma poeta que consegue fazer uma poesia sensível, comunicante, filosófica e, ao mesmo tempo, falar de sentimentos ou mesmo de política. Em “cadela prateada” nada é panfletário, nada é ingênuo, nada é forçado, nada é gratuitamente confessional.

Da cosmogonia própria, elaborada em belíssima narrativa à solidão diária e noturna, os temas vão-se dando, página a página, de forma surpreendente, leve, mas com força de atração natural.

Fim de livro, penúltimo poema especificamente, "contabilidade", eu, que ria e me deliciava, chorei. Ali estavam também dois temas que a poeta desenvolve com maestria: a morte e o tempo. Eram minhas marés internas sendo movimentadas. Um livro que coloca a lua na palma da mão.

pálpebras

de manhã abro a janela
e deixo o sol penetrar
no corpo da casa

à noite fecho-a de novo
(estrelas ficam lá fora)
eu durmo dentro
do ovo

na lua cheia
não tenho regra


biografia

na guerra foi concebida
ficou-lhe esta ferida
rasgo no espírito

quando chegou outubro
envolta num manto rubro
quis ser feliz

à meia-noite e meia
na hora da lua cheia
rompeu o escuro

assim nasceu uma bruxa
alma cor de puxa-puxa
nome de flor-de-lis


adiamentos

a lua esperava o sol
redonda um talismã
quando ela se despiu
ficou de manhã

o sol lambia a lua
o meio o lado as beiras
lamberia a face oculta
a nuvem veio

só amanhã


poder

ora tímida ora escandalosa
essa lua bipolar puxa e empurra o mar
com os olhos


à amiga rina bogliolo

estejas onde estiveres
ao contemplares a lua
(dela não arredo os olhos)
poderei ver-te

dir-me-ás
é pouco

dir-te-ei
nem tanto
aos loucos
basta uma gota
e o mar virá


minguante

lua
o rato roeu
tua cara de hóstia

caíram uns farelos
que o gato lambeu
com os olhos

cão pobre vadio
uivou no vazio
tristeza de morte

a vida é o quê
senão o aguardo
da hora

***

Cadela prateada
líria porto
Editora Penalux
2016







CASÉ LONTRA MARQUES - POEMA INÉDITO

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Desenho do autor

 




Cansar os dentes na cor dos dias





Os pombos toleram nas asas a areia que um dia esteve em meus dentes. A poeira que já procurou outros olhos.
O minério. A pneumonia que envelhece depois do alambrado. Enquanto o sol amassa
a moleira
dos prédios. Levanto do asfalto a coluna destroncada pelo calor que contudo me alarga. Me agride e alarga.
Levanto
parte da camada de silêncio sobre o asfalto equilibrando
na nuca um pouco
da brita que me abrigou por instantes espessos
ou séculos
sucintos. Verões esparsos. Anos ou meses ou semanas. Semanas e não sei quantos lutos. Alvos inconsistentes. Gestos reabilitados
pelo
sarcasmo. Às vezes pela raiva
ou pelo desânimo.
Às vezes
a partir da mágoa e após o êxtase e
não
muito longe
do
pânico que a cidade
alaga tateando
mais
mundos. Os pombos que frequentam minhas hesitações. Que fecundam meus entusiasmos. Os pombos são aquilo que ainda não apodreceu em mim. O ruído das imagens
que arranho. Este ruído intransigente.
Quase
respirável. Que as imagens recobrem. Perdão.
Que
as imagens incubam no palato ou na pupila ou no pulmão ou na patela.
A
voracidade é sobretudo um ambiente, a mulher que ainda serei diz para meus rins; a voracidade nos envolve e turva, nos instaura e desestrutura (o ambiente — este ambiente — é um lugar e uma lesão ou um lugar que é uma lesão mas não só): espaço propiciador. Que perturba
o
pulso. A voracidade
,
escuta. É um ambiente: lapso — ou repositório ou espasmo — em que a vida (a montagem da vida) pode se desfigurar. Em que a vida (a modelagem da vida) é convidada e incitada/é compelida e convocada/é intimada e seduzida,
incessantemente,
a se reformular, de incêndio
em incêndio. Ou
nem tanto: de esquecimento
em
esquecimento. A voracidade é um ambiente que propicia a vida e propiciar a vida é mais do que ofertar vida à vida é mais do que oferecer formas de vida à vida que se forma propiciar a vida é também ameaçar a vida e suas formas ameaçar a vida e o que nela se forma como vida ao nos arremessar outras interrogações ou ao nos arremessar a outras interrogações a voracidade é sim um ambiente mas não qualquer ambiente a voracidade muitas vezes tão volátil a voracidade é um ambiente que nos afasta da oportunidade e até da vulnerabilidade de ter um ambiente é um ambiente que nos destina a novos ambientes e que nos impede de viver nesses mesmos ambientes isto que então nos deflagra e refuta não para de nos interrogar não para de se interrogar sobre os ambientes onde nos encontramos e construímos ou nos encontramos e colidimos ou nos encontramos e consumimos sem a possibilidade de neles viver de fato tais ambientes constituem uma contínua uma convicta conturbação impõem ou implementam quase todas as nossas desarticulações e recondicionamentos e interlocuções com catastrófica desculpa com claustrofóbica violência. Você me pega
pelo pescoço
e suspende
toda a surdez. Sem adotar nenhum delírio.
Você
me pega pelo pescoço e
estende tudo
o que em mim é surdez. Sua
língua
ilumina os vértices do labirinto. Os vértices
ou túmulos. Os vértices ou úteros
do labirinto
onde os ecos se chocam. Onde os ecos nos cortam
e penduram e desossam.
Os ecos das vozes
que vestimos. Que revestimos.
Os
ecos são as vibrações a que voltamos nesta manhã.
E toda
manhã é infinitesimal. Como os furos.
Como os dígitos
que a fuligem tatua no osso.
Toda
manhã agora é este areal. Brisa ou
fumaça
que rola de boca em
b
oca e depois
faz falta. O troco. O tranco
e
o troco da gasolina. A postura no escritório. A
posição
do computador ou a altura da cadeira onde renascemos
para a hipocondria com
um sorriso incompetente mas
tomara
que tragável. Toda manhã
enfim
é um litoral. E cada memória
manhã
nenhuma. Máquina
fática
ou mímica
intestinal. Aperfeiçoando
o furor
com alguma
afasia.





Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Mora em Vitória, Espírito Santo. Publicou Enquanto perder for habitar com exatidão (2014), Saber o sol do esquecimento (2010) e Mares inacabados (2008), entre outros. 
Reúne o que escreve em caselontramarques.blogspot.com.br.











03 poemas de Felipe Bustamante

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o mundo não estaca na frente do armário
para escolher as roupas pela manhã
o mundo já acorda resolvido
penteado
valsando em torno de si
o mundo é organizado pra cacete
se ocupando
da produção do próprio mundo
o mundo
manda e o mundo
obedece
o mundo cospe na via láctea
chicletes de bola sem gosto
o mundo tem as pupilas dilatadas
o mundo tem o hálito quente de cigarro
o mundo curte assistir sex tapes
em conveses
de ogivas nucleares
o mundo é sacana
e organizado
(mais sacana que organizado).
o mundo é um tenor que canta uma nota só
o mundo vomita dos parapeitos dos edifícios
o mundo só trabalha sob pressão
e – pelo que tudo indica-
cochila no sofá durante o turno
o mundo não vale nada
o mundo é o que menos importa
o mundo dança
sobre uma nuvem em chamas
pra depois recolher os pés debaixo do cobertor
o mundo é vagabundo por vocação
o mundo tem pressa
o mundo sente dor nos olhos
o mundo só aceita cartão
o mundo lambe as costas
dos selos
das cartas furtivas de amor
o mundo foge do padrão
o mundo é figura pública
o mundo anota frases de efeito em guardanapos molhados
o mundo não dá margem
ele apenas sugere
interpretações suspensas
o mundo abafa as rachaduras
que permitem entrever
os diabos mil
o mundo não quer nem saber
o mundo vai direto ao assunto
o mundo não perde a oportunidade
o mundo já está totalmente
perdido
o mundo caiu do cavalo
e nunca mais
quis levantar


***


eu sou pecador, confesso
um pecador cristão que esconde os chinelos
debaixo da cama
e o litro de bourbon na geladeira
meu pecado maior, pra você ver, cristo não lavou
nem a chuva
nem a peste
nem os beijos sangrentos
de vinho tinto

nada-nada disso daqui

nem daquilo outro

dei volta

corri pelo mundo, pelos canteiros
pelo trambique
pelo terremoto

dei pernada dupla

pra me rebentar
nessa condição
de cachorro ilhado
a vigiar fragatas
de papel

cauterizando os rabos

dos diabos
da minha cabeça
concordei que tinha duas opções: era o trapézio
ou a lona.

sei que meu destino é a lona.
mas ainda não caí.


***
  
Língua preta e fumaça


Diz que é envolvida com sagitarianismo e outros problemas
e que morde os lóbulos das árvores
enquanto assiste a superlua
Diz que esculpe os silêncios das encostas
e que vive lavando as calcinhas
na máquina de chope
Diz que roga pragas com voz de locutor AM
condenando ao dilúvio
todas as baias castradoras
do telemarketing existencial
Diz que evitou o bacanal pq tava com cólica naquele dia
e que ao invés disso tentou o suicídio
num carrinho de churros
Diz que travou uma briga com o próprio capital
- de capa, chifres e rabo -
quando trabalhou na Renner no último verão
Diz que da próxima vez que o pau dele não subir
vai assobiar um hino triste do Rent
se equilibrando no meio-fio
sem olhar pra trás
Diz que se afetou com o cheiro da chuva que
 a lembrava de tempos que não vão mais existir
pelo menos não
essa semana
Diz que se arrependeu de ter jogado fora
algumas camisetas de bandas em extinção
alguns flyers com telefones anotados em caligrafia tremida
alguns cupons de desconto na loja de depilação
 Diz que esse lance
esse jeito
esse tchans
de falar bagarai
é só mais um jeito de descartar
todos os pensamentos que nunca mais poderão
ser considerados inéditos




Felipe Bustamante é zineiro. Vende suas publicações na rua. Ou simplesmente dá de graça, se for com a cara da pessoa. Por sorte, não costuma ir muito com a cara de ninguém. Também aceita bicos como ator, diretor de teatro, garçom, animador de festa infantil e outros muitos trambiques. Criou o selo editorial Bílis Negra, por onde lançou a cartonera de poemas "Ricochete", em 2015. É dramaturgo do Carranca Coletivo, grupo de teatro do Rio de Janeiro.
 Ilustração: Kurutta ippêji (1926)

9 poemas inéditos do poeta angolano Abreu Paxe

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A poesia de Abreu Paxe é a exposição de uma potência  da memória que  se expande em poemas concisos , há uma mestiçagem aqui entre a transparência de um pensamento que é capaz de perceber e comunicar uma narrativa lúcida do sentimento de deslocamento do numinoso secreto que atravessa tempos entrelaçados e o poeta faz se utilizando de imagens evocatórias de uma topologia ancestral, dotada de profunda energia, recuperando  o sutil  estatuto cosmogônico-naturante de certas expressões e atos cotidianos que alcançam uma dimensão  etnopoética  praticada e germinada, não como síntese, mas como cartografia de recuperação  das raízes imanentes potencializadoras do  sensível como visão e recuperação do mundo. Abaixo o poeta selecionou nove poemas entre suas escrituras mais recentes.

Marcelo Ariel



I

... enquanto dança o mar em silêncio himba era o murmúrio de um rio
ao falar... atravesso a fronteira uma floresta de imagens aquela
embala de calor seco ... vukula oh messo ... os meus olhos também os
herero de rupestres sentidos ... o deserto se desenha a criança que
junto cresce aqui o tombwa ... na verdade  não se trata de um bosque
em pé, nem sentado ...



II

... as vozes deixadas litúrgicas trazem leves enxurradas as líquidas
texturas do deserto neste ambiente de oxigênio zero como cifra ... sem
chuvas aquelas árvores altíssimas forradas por sedimentos de sílica
... com vozes estridentes das mulheres ... as madeiras foram
mineralizadas ... contrastando com os sons graves dos homens ... de
floresta os esqueletos à floresta as dunas ao mar as danças ...


III

... as glândulas cerebrais eram do corpo da água essa voz que se solta
... sentado por cima da carne seca as gaiolas desse corpo ... dya
munito ... a água do corpo ajusta-se nas percepções orgânicas lenhas
secas ... a cabeça como um instrumento de problematização continua
seus sons de fogueira ... vwa mina ... gerir as dissonâncias era um
banho de água fria o corpo em vibração ... esse que pensa o corpo e a
vida dos suores ... estes existem sem palavras e chega antes de nós e
fala as línguas cerebrais da natureza ...



IV


 ... fumo imagens nos chifres de nsessi esse cocar de penas era briga
de galos me picotando ... makoko ou seja os galos sem chifres a ordem
de esquecimento definição dos pés ... sem contudo ter visto nisso
devagarinho a cabeça, os pés ou seja o que for que nos orientasse ao
andar ... devagar desce um cachimbo ... afinal estou a morar no mato
...


V



 ... a memória alheia era a covardia que cultivava ruínas azuis também
 ... as pedras que tenho, os bolsos que nelas germinam, aquela terra
do que faz parte ao melhor mal de se afogar ... os ruídos é todo o
nosso pesar solidárias paisagens estavam cheios de paz nesses ruídos
...kebanguilako ... um frio  jantar de imagens o lugar desse fumo de
Imagens ...


VI


 ... eram os ritmos da vida adulta como lógica dum corpo falado em
kikongo ... cenários de quadros simbólicos e tempo do espaço do tempo
em umbundo ... são sim ritmos do rio duma infância acordada os corpos
que se unem ... sai da memória comunicativa para a memória cultural
... o desenho de uma planta um jantar cria uma imagem de si mesmo aí
mesmo ...


VII


... eu sou a minha mão ... e a uso para desenhar as árvores que
crescem em mim ... u mboka ... esse chamamento desfocada montra ... os
dentes fora de si a raiva contida em nós ... éh como se vivesse em
assentamentos de rituais de iniciação ... porque me caso hoje, as
partes destes corpos e daqueles que recebo os movimentos imaginários
... agora num só corpo o agora duma infância na vida adulta duma
árvore que se desenha ... também os ritmos dum calor tropical o ritual
nos rituais ...


VIII


 ... um fio de poesia o formato é uma caveira preta ... como simples
objecto de uso doméstico a meia luz os azuleijos ... conduzindo a
experiência de crânios são as formas,  as imagens da cultura eram
também chaves dispersas, eram cheiros íntimos o chulé dum corpo meias
sem chulé ... a montagem no alheio de um mosaico móvel o alheio desses
outros odores verdes ainda ... a encenação dos rituais eram kimbos de
dentes um atravessar de lenhosos pés descalços ...


IX


 ... as árvores como corpos em troncos usados um arranjo de ritmos
desarticulados ... nkay ya dya mwini ya tungulula eh sisa ... essa
kingana é a música nevada como estepe é a abertura da música ... em
gestos e deitadas no cansaço delicadas as folhas é uma vontade de
dormir os cheiros as roupas são despidas roupas ... os ramos como
cabeças de braços estendidos, inclinadas mãos essas unidas vegetações
...



ABREU CASTELO VIEIRA DOS PAXE nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe, província do Uíge, Angola, país africano com população estimada em 22 milhões de habitantesAngola tornou-se independente de Portugal em 1975. Paxe licenciou-se em Língua Portuguesa no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda, cidade com cerca de oito milhões e meio de habitantes. É professor de Literatura Angolana no ISCED e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA). É autor, entre outros, de A chave no repouso da porta (2003 − Prémio António Jacinto) e de O vento fede de luz (União dos Escritores Angolanos, 2007). Em 2000, foi o ganhador do prêmio “Um Poema para África”. Para ele “a poesia se realiza nos elementos que se perdem no cotidiano”

4 poemas de Antonio LaCarne

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Morro de inveja


À meia-noite eu deitei na cama e rolei na madrugada sob os lençóis do abandono enquanto, ao deus-dará, eu me perdia na cidade entre o asfalto, o calor insuportável, adolescentes maquiavélicos e suas calças jeans grudadas ao corpo que nem eu, ou os deuses mais próximos, seriam capazes de alcançar. Mas quem sabe, num universo paralelo, Mercúrio seria o centro do universo onde cachoeiras de fogo rompem o amor que você joga no lixo. O amor por você é uma espécie de bruxa que sofre horrores, encara uma super barra e dança sozinha na noite. Você é bruxa num castelo sem homens, sem músculos, sem a piedade das esquinas. Morro de inveja de você, de mim, de todas as mentiras. Morro de inveja do quadrado, do oceano Pacífico e das pérolas aos porcos.




Amante babaca

Plantei a florzinha da paixão guardada no peito e você veio de mansinho e cortou o mal pela raiz, como se eu fosse um vilão de novela, ou um robô de sentimento plastificado. Aí não curei a mágoa do coração aos pedaços. Enchi a cara de cerveja e te liguei quando tudo era tão tarde, quando a noite foi a melhor amiga. Amanheci ao léu de mim mesmo, cutuquei onça com vara curta, aluguei os amigos com os dramas da solteirice e o choro preso na garganta. Surtei de segunda a segunda. Exagerei no cigarro, marquei um pacto com a solidão, me tranquei no banheiro, dediquei 14 noites ao baixo astral que não me salvou de você: tão babaca e sem um pingo de sensibilidade. Então 2013 deu o ar da graça e pude então traçar planos, pensar em mim como sobrevivente do amor que não deu certo. Acordei livre do passado e dos arranhões. Aquele lance do “quando casar, sara”. Mas eu só queria uma coisa, que você me amasse pra caralho. 




& na TV o sol brilha

noite& a redenção da culpa, você estava ali perto & não percebeu.
tracei mais uma vez o registro dos fatos, das supostas mortes.
paranoia apocalíptica num papo ao telefone enquanto eu cruzava a rua.
faço de conta que tudo é uma questão de ordem.
outro item para a lista de afazeres.
o manifesto ideológico que eu tanto planejei & descartei.
as esferas de cada um em cada canto.
o beijinho doce na madrugada mantida em segredo.
perplexos, eles não saberão dos detalhes sob a lua das drogas & conversas leais.
transmuto o sim no olho da caveira.
porta aberta, livros amontoados, dor na garganta.
nó no peso das costas & papo fugaz de desocupados.
mas mantendo engasgado o próprio tempo, acendi mais um cigarro.
low profile que se reverte na falta de paciência.
seguro os nós, baixo a guarda naquele passo rápido demais para que não me alcancem.
& na TV o sol brilha: fumaça que sai da boca.
convite pro cinema, virgíniawoolf escrevendo sobre a tarde inglesa.
you are there&not-there.
aproxime-se um pouco mais enquanto me apresento & explico a origem do nome.
sabe-se lá quem quis, amou, pecou & saiu correndo.
à deriva da ameaça pedi conselho aos montes.
um dia depois telefonaram para amenizar os mares.
21:22 antes da meia-noite no meu voo de bruxa sanguinária.




Paixão extraterrestre

li os teus dois poemas no jornal
durante aquela vasta solidão
em que me vi sem homens,
os dois braços que me partiram
ao meio do percurso numa
refrescância de piscinas ao deus-dará
onde eu mataria um leão por dia,
salpicando de dor o livro e o
meu corpo sob a chuva tempestiva
de verão, azul, um menino descalço,
sujo e sem nome, duas mulheres
que sorriem enquanto ando tão
rápido e com as mãos nos bolsos,
pois em todas as esquinas eu
esqueci perdidamente o olho
no buraco da fechadura, e você
não entende do que é feito o meu país,
mas as tuas andanças oscilam
entre uma ponte-aérea ou viagem
internacional de cegos, pessoas
sem a mínima classe, ou uma
echarpe que te consome e que
não me ensina a viver a grosso modo,
cada traço devidamente organizado,
os dois beijinhos na festa,
eu fugindo do sexo já a me satisfazer
numa futura crise de remorsos,
compaixão, inveja do que eu jamais
permitiria, à mercê dos numerosos
amantes aqui destronados, molhados
de prazer, gênio indomável,
nave espacial do extraterrestre
que se apaixona por mim e
anota o número do meu telefone.




 
Antônio LaCarne é cearense, com formação em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Autor de “Todos os poemas são loucos” (Gueto Editorial, 2017), “Salão Chinês” (Patuá, 2014), “Elefante-Rei: Poemas B” (CBJE, 2009). Além de ter participado da coletânea de contos “A polêmica vida do amor” (Oito e Meio, 2011). Escreve poemas, diários, fragmentos e assina o blog pessoal O Impenetrável (oimpenetravel.tumblr.com)

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