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3 poemas de Evandro Alves Maciel

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Dançar.:

dança lúdica da pedra
dança enorme da pedra
dança falha da pedra
dança leve da pedra

dança amálgama, pedra
dança-vento-da-chuva;
dança úmida, pedra, revolvendo o céu.

dança inóspita, pedra
dança gosto-de-terra;
dança frívola, pedra, esgarçando peles.

Roda, menino, roda...

  
O Abraço.:

abraçar o universo
com um beijo

minha língua
é uma constelação

o meu ventre engolido pelo sol

tornou-se em onda
e erra, incerto

em todas as direções

- com uma fome
assustadora.


Universo Diamante.:

diante da minha dor
o invisível é indizível
o visível é risível
e o entremeio
é passível de explodir
feito míssil;

se, rio comum,
seguisse o curso dos acontecimentos
que mar seria?
o tempo tem seu ritmo para pulsar
o homem sua felicidade para perder.

e isso pertence ao ontem
e isso pertence ao agora,
hoje quero pensar sobre outra coisa
colocar-me, sem demora, na galeria
dos que sabem o silêncio.
ofertá-lo é dádiva.

diante do meu espelho, dizia:
"eu te amo e por amor a você
preciso matá-lo;
se tanto não for possível,
que sejas uma escultura
no jardim de minha casa;
ou te tornes estrela
ou te tornes vazio".

acaso é chegada a hora?
a verdade é uma chaga
a consciência é o pus da chaga
o meu desejo é a língua que lambe...
como poderia te dizer?
teus olhos cheios de palavras luminosas
e meu gesto a penumbra projetada na umbra
de tuas retinas.

Vê-se o homem no canto da cela
seu corpo encostado na parede da sala
a cabeça pendente pendendo pêndulo perdido
suspirando seu nutritivo ciclo
completando o amor na morte do amor mesmo que renasce
- mortal desejando o imortal -

"para sempre os mesmos sem roteiro tristes périplos"!

eu te conquistei e eu te libertei
e, no entanto, ontem havia sonhado
que o teu segredo era apenas
simples efeito do fogo refletido na palavra
que te condensa e te limita;
e quando berrei por deus, meu deus, teu deus
(clamando por entre os dentes)
me veio, decerto, um estremecimento
que pensei ser aquele que tantos dizem ser Aquele,
mas era apenas raiva.

A parte que fui
não é verdadeira.

estampada na terra que via
a criança riu-se do oco dos meus olhos
e rolou à sombra dos meus dedos inexistentes
dizendo:

"me foi comunicado
por meio da Voz
que vento espalha
e fogo produz toda sorte
de naturezas;
deus é natimorto
deuses nunca existiram
a vida que enxergas na Vida
é desde sempre;
nós que aqui estamos
ao passado escavamos
houve céu e antes
houve o caos e antes
nada houve".

então me encontro dentro da caverna
e ouço os sinos em meio à tarde
- fenômeno arcaico
em meio ao pântano do meu quintal
- cúmulo, cúmulo!
é o chamamento:
"minha palavra é sopro", diz a criança
e venta com a tempestade;
"minha palavra é fogo", diz a criança
e queima o fundo da terra.

"no princípio, eu era mudo", diz a criança...
um dia chego a ser boca ao invés de cabeça,
Dioniso, nos permita!
nos permita o vinho dos teus cantares;
que o ponto encerre a cena e comece o poema
e eu que não sou eu
possa, acaso, deixar de ser o que sou.
mas o que sou se não sou eu
o apogeu da coisa minha?
eu vejo o vento presumir em meus olhos
milênios e milênios de vozes antigas e mínimos gestos
cristais de sal no mar igual e desigual
da sombra mesma que cantava...

domingo!
domingo!
a janela
a rua
o céu
um mundo redondo
a girar
numa fotografia;

domingo!
domingo!
a chama
da vela
dançando
no vento,
o meu amor
sendo pavio.

a verdade é meu estômago
fervendo seu sal.

no dia em que me mudei
houve um trovão que mais parecia
terremoto.

no dia em que me mudei
meu corpo havia explodido como
terremoto.

entre o relâmpago e o trovão
a expectativa do susto faz nascer
a lua.

o que seria meu corpo senão
o susto gerado e a lua parida?
o teu amor é tua sombra
sobra em um pasto inatingível;
um dia esquecido é um dia novo
e a memória um atordoamento
onde luta e luto se mesclam
lusco-fuscamente...

abro aspas:
- meu rosto no espelho
é a dança das olheiras
no carnaval -
fecho aspas.

abro aspas:
- a flor na garganta
gritando seus pés
de janeiro -
fecho aspas.

abro aspas:
- tua língua
intensifica a primavera
dos meus andares -
fecho aspas.

quem irá nos salvar da salvação?

eu temi o temor
e ele cresceu em mim.
um monstro de escombros
gozando a feliz idade
de uma criança alada;
sumimos, então, de nós?
morremos e não fomos avisados?
na névoa de nossa memória
tudo explode simbolicamente;
haverá ainda a catástrofe
após a catástrofe?

adeus meus dias frios
meu universo diamante
as ruas desapareceram no mar
e as árvores tomaram o lugar dos prédios;
os sinos tocam uma vez mais
e cada nota é um compassado susto;
eu abro os olhos e fixa-se em mim
outros olhos maiores.
"é o sinal", diz a criança;
"é o fim", diz a criança;
"mil máscaras cairão ao seu redor", diz a criança.

O último som é como um rosto novo.

A hipótese que sobra:
se o raio frio deste inverso diamante
corta a folha
o mar
o tempo
haverá os interlúdios.





Evandro Alves Maciel, paulistano-aquariano do dia 02/02/80, graduando em Filosofia pela Faculdade de São Bento, de São Paulo, fotógrafo amador e poeta estreou em janeiro de dois mil e dezesseis, com o lançamento de Veneno de Ornitorrinco, integrante da Coleção Patuscada 2 – Editora Patuá – premiada com o ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. 

Contos Luminosos: Krishnamurti Góes dos Anjos resenha Artur Ribeiro Cruz

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A Editora Penalux editou recentemente o livro “VAGALUMES SEM NOITE: contos entre sombra e luz”, do Senhor Artur Ribeiro Cruz. O conto praticado por esse autor é o conto clássico, sem exorbitâncias formais, entendido sucintamente da seguinte forma: 1 – A adoção de um plot, que é o acontecimento central ou os fatos que conduzem a tal acontecimento, conjugado com os desdobramentos no destino da personagem central. 2 – Um ponto de vista com seus traços negativos e/ou positivos e reflexos nas reações das personagens e; 3 – Um cenário, os diálogos (esses variando formalmente conforme intenções particulares dentro de cada narrativa), o monólogo pela mesma forma, os prolongamentos da ação, os conflitos, a abertura e o final. Cabe aí, nesse arcabouço, e com folga, a condição humana que, no caso específico desse autor, é tratada com apurada técnica narrativa e concorre com a vida em inventividade.
         Já que falamos em final, comecemos com o último conto do livro que se chama “Um sofista” e vem a ser uma metaficção abordando justamente a construção de um conto, de forma densa, inteligente, agradável de ler. Muito bom. Recomendamos leitura e releitura, sobretudo para os novos escritores. Vale a pena reproduzir um trecho: “Pesquisei um bocadinho e soube que autoficção está em voga. Tem vendido no mercado em crise. Também li que os críticos têm uma queda por desconstrução do gênero, dissolução do enredo, busca que não progride, enfim, qualquer coisa que se conte é conto”. P. 114.
         Versatilidade também é uma marca notável desse contista. Seja no conto de fundo quase anedótico (embora de profundo lirismo), que é “Tio Valdim”, seja no conto de personagem com aquele efeito singular e único extraído de estados emocionais extremos (a que se referiu Edgar Allan Poe) -  “Canção noturna” e “Arquitetura de um voo”, seja no conto de teor moralizante (quase um apólogo), como lemos em “O retorno do cavaleiro andante” e, mais difícil ainda, o conto impressionista que é “A procura”. São contos de uma linguagem de expressão trabalhada, aflita, profundamente criativa, a indicar que nasceram das profundezas da imaginação e da intuição, de um contato profícuo com o fascinante espetáculo da existência e, melhor ainda, aliam a tais características a maravilhosa faculdade da observação precisa. Na justa medida.
         Seria o bastante até aqui, mas não há como nos furtarmos de reproduzir mais um trecho, do conto (o primeiro do livro), “A última ceia”, onde observamos ao longo do texto, as sutis minudências e o singular “efeito único” conduzido de forma tão  cumulativa, que o leitor, mesmo de sobreaviso, parece sentir o toque da emoção e estremece com o desfecho. Aqui temos a prosa do verso e o verso da prosa com uma verdade própria, com uma lógica inseparável:
         “Contou os passos até o quarto, deixando uma trilha aromática em cada cômodo, até alcançar o vestidinho inédito, florido de hibiscos, esticado metodicamente sobre a cama. De onde vinha a luz que fazia brilhar o mínimo gesto? De onde o fulgor refletido nas ondas dos cabelos moldados em betume? O corpo de Elen rememorava naquela noite o antes-corpo, livre do visgo que entope os poros dos renegados; era ela a forma delicada que guarda em si o mistério, inacessível às sombras diluidoras da vergonha e da maledicência”. P. 23.
         Dentro desse contista há um facho a guiá-lo na noite escura da criação, a identificação profunda com as personagens num processo de refletir dores e alegrias alheias. Esse facho cresce em suas narrativas e se torna tocha viva. Assim os contos luminosos do Senhor Artur Ribeiro Cruz. Com efeito, pelo que lemos na orelha da obra, uma estreia (na prosa), muito promissora.

P.S. O tratamento de “Senhor” ao autor não é pedantismo, trato-o assim por duas razões: a primeira é que não o conheço, e a segunda é que após a leitura, lembrei-me do bruxo do Cosme Velho (Machado de Assis), pois senti gratas ressonâncias no estilo sóbrio, irônico e contido no brilho da frase. Coisa de outros tempos, como os homens se tratavam, mas, se querem saber, sempre atuais.




Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos,  Embriagado Intelecto e outros contos e  Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional -  Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.

Tabuada do 7 - André Rocha

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Trinta e Cinco Centavos.

resgatei nossas sombras transando na parede
hoje há um girassol na minha janela
não respeitei seus sonhos de eternidade
eu disse que amores são passageiros
e te ensinei á embalar pó
sua ingenuidade ficou pelo caminho
conheci outras mas sem o seu carinho
tudo ficou meio vazio
mas nunca praguejei teu nome
fantasiei em segredo
com prostitutas e adolescentes
na sala
na cama
no meio da semana
sem tentar entender nada que me doía
me convencendo que o céu deixa tudo mais bonito
testei com a língua outras líbidos
e gozei no cabelo da Camila
tive medo de te esquecer
no final do ano passado
bebi demais e tomei um monte de bala
me comportei como uma criança down 
e dei vexame no natal
te procurei nas manchetes dos jornais
alguém me disse que era tarde demais e me faltou coragem pra assumir
não consegui chorar
desculpe querida
mas meu estado de graça
depende do crime e da quantidade de cachaça
só amor não me basta

Ilustração: Sarah


Sombra na Calçada. Incêndio Dentro de Casa.

meu santo se enforcou
o seu eu nem sei
nos lugares românticos que ainda não fomos
das drogas que ainda não usamos
pensei em você e no jeito que seu olho muda de cor
mas ouvi sua banda preferida
e também pesquisei sobre seu signo e seu ascendente
invernei nos comprimidos de ecstasy
gozei na boca de outra garota
a noite apareceu cinza
choveu flores de seus olhos naquela foto
minha vida pareceu vazia diante das garrafas de vodca que bebi
é que espero uma armadilha do destino pra te encontrar
uma punhalada certeira no coração
e os clichês de todo amor
num novo tempo pra sorrir e namorar
e todas as outras coisas que o vento leva e traz
como um samba triste que só se canta bêbado



Tabuada do 7.

seu nome deveria estar em todos os meus boletins de ocorrência
pichado em cada boca de fumo que frequentei
em todo banheiro sujismundo dos botecos que eu ia
seu sorriso deveria estar estampado em todos papéis que tomei
desenhado com batom nos azulejos da cozinha
nos semáforos hipnóticos na rua daquela igreja evangélica
deus deveria acariciar seu sexo com a boca
sua carne deveria ser proibida na quaresma
do peito descoberto que eu espiava como um anjo rejeitado
sua malícia deveria ser passada de mãe pra filha
igual receita de bolo
e eu não deveria ter entregado
seus brincos
colares e
aquele seu óculos de sol
que tua amiga veio buscar aqui



André Rocha, 28 anos amante de mulheres bonitas e de drogas boas. Famoso por encher a cara em bares de S.J do Rio Preto e região. Vulgarmente conhecido como Cascola nas biqueiras que frequenta. Já foi ladrão de carros e namorou três prostitutas. Quando tinha 22 anos tentou o suicídio depois de tentar matar um homem por motivo banal, se enforcou numa manhã de sexta. Apesar de ter sobrevivido André Rocha teve sequelas na fala e coordenação motora por conta da falta de oxigenação no cérebro. Atualmente é adepto da farra e da putaria desgovernada. Vadio, circula pelos sambas e puteiros e conta com orgulho de quando fugia da polícia e dos assaltos. André Rocha é autor do livro de poemas Suzana Sem Calcinha Na Calçada De Paralelepípedos, pela Editora Carrancas. Ele nunca se regenerou.

CLASSIFICADOS DO DISK MUSA

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CLASSIFICADOS


Éramos seis. Estávamos questionando lógicas do capital cultural e dos circuitos artísticos. Quem diz o que é bom? Com base em quê? Por que tantas vezes em círculos poéticos nossa expressão era taxada de “poema de mulherzinha”? Como mulherzinhas invisíveis, fugimos, desaparecemos e diante do eterno retorno com a poesia, decidimos nos reunir.



Daí nasce a Disk Musa – “alô, estou ocupada querides, tenho mais o que fazer com o meu poema do que inspirar você ou me ser formatada nas suas regras!” Assim vão seguindo as reuniões “artivistas” – muito de arte e muito mais de empoderamento das expressões únicas de cada uma. Nós, antimusas, somos completamente diferentes entre si, tanto em vivência quanto em potência artística. Participamos de exposição, intervenção em evento cultural, apresentação em saraus de rua e museus, feira de feituras feministas. Não existe um produto a não ser o desejo que cada uma tem em se engajar, e o respeito pelo quanto cada uma pode se engajar. Entradas e saídas de participantes, a Disk Musa é mais um lugar de articulação do que de pessoas articuladas. Usamos e ousamos questionar a palavra-chave em voga #mulheres




Nossa proposta é estar em todos os lugares em que haja abertura, sem abrir mão da crítica necessária para que não sejamos um commoditie. Nossas práticas silenciadas são afirmadas livremente, com teorização. Mas entendemos que é mais urgente haver um espaço e possibilidade de atuação. E nesse lugar não há conceito que dê conta dessas vozes “subordinadas”: INSURGÊNCIA POÉTICA. POEMA DE MULHERZINHA. ARTE PANFLETÁRIA.




Em novembro de 2015, o Renato Rezende estava atento aos artistas que empurravam a fronteira entre arte e política. Ele convidou a Disk Musa conversou sobre um incômodo: ao se deparar com a campanha #amigosecreto viu muitas denúncias, situações que nem saberia mais como lidar. Procuramos todas as #hashtags e condensamos em linguagem publicitária. Como nosso incômodo pode ser multiplicado? Retirando dos murais virtuais diários e levando para os muros colados, reunimos depoimentos e denúncias, sintetizamos e transformamos em classificados. DOA-SE PREFEITO AGRESSOR DE MULHERES / PROCURA-SE HOMEM QUE CAIA DE BOCA EM CABELUDAS. O íntimo é político, o íntimo é sistêmico, o íntimo provoca essa crise.




Os lambes diagramados por Nathalie Peixoto, que hoje é co-fundadora da Facção Feminista. Eles já circularam: Experiência Mesa n.4; 8 de Março na cidade do Rio de Janeiro; Observatório de Favelas; Circuito Grude Nacional; Sarau da Caixa Cultural; 28 de setembro na cidade do Rio de Janeiro; Sarau do Escritório – Baile de Gala 2016. E circulam ainda sem rastro. Quem fazia parte da Disk Musa: Carolina Turboli, Anna Terra, Simone Vieira, Liv Lagerblad, Yasmin Nigri, Gabriela G. Quem faz parte da Disk Musa: Carolina Turboli, Flora Mangini, Simone Vieira, Yasmin Nigri, Gabriela G.










*    *    *


A Disk Musaé uma coletiva de mulheres-poetas cuja missão é amplificar vozes e expressões femininas nas mais diversas linguagens. Seu nome é uma ironia à exclusividade de atuação da mulher como musa, sem a percepção delas como artista.

facebook - Disk Musa

dizquemusas@gmail.com


KATARSIS NA WAYNE ENTERPRISES, UM BAT-POEMA DE ALEXANDRE GUARNIERI

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há algo novo
em sua mecânica quântica

há algo lasso
em seus músculos de aço

sarcasmo,
                asco,
                         mau hálito

há algo insone
em sua sanidade
enquanto cultiva,
trancado na caverna,
tantos hábitos insólitos,
alimenta morcegos,
destila humor negro

e rouba a cena

numa tragédia grega.



*    *    *




Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU). Seu segundo livro é Corpo de Festim [livro ganhador do 57o Jabuti/ 2a Edição pela Penalux]. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. Seu terceiro livro, Gravidade Zero, está no prelo e sairá em 2017 pela Penalux.  

7 poemas de Patricia Laura Figueiredo

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poema

que o poema
seja

a única
resposta

a única
defesa

a única
vingança

que o poema
seja


unha e carne

essa manhã fiz as pazes com minhas horas
como quem não dormia há anos

como se não houvesse pedras suficiente
colhi a rosa

como unha e carne
o mar correu de volta


lázaro

incinerado
em segredo
sem amigos
em lugar
desconhecido

sem família
sem cerimônia
sem público
sem privé

a morte reinventada
parte imensa calada
queima sem alarde
sem brasa

o amor nunca precisou
de terra nem de fogo
nem de olhos ou choro

o amor
pó enraizado
esfumaçado em canto e mãos
de lázaro
cobriu as pálpebras
e se transformou


águia

e ela tenta ficar
menor
menor
menor
e caber nele
como uma águia
um pássaro
roda
em volta dele
um homem ele
sentado ao lado de um copo
num sofá
visto de cima
ela águia - pássaro
agita as asas
em volta dele
na penumbra da sala
ela bate as asas
contorna o corpo dele
bebe ele
e fica menor
menor
menor
até caber feito um soluço
dentro dele


corpo

vc precisa conhecer
as pernas da minha dor

os braços da minha dor
os dedos as unhas da minha dor

a boca os dentes os olhos
as olheiras da minha dor

ouvir quando ela geme
quando engasga e ri

conhecer os rins
o fígado os pulmões

os sonhos os desejos a fome
a febre da minha dor

vc precisa conhecer
o corpo da minha dor


o mar é mais antigo que a vida

tanto o conhecimento
das entranhas do mundo
quanto os passos vaidosos
são perigosos
prefiro o livro encontrado no lixo
na hora de jogar fora a luz a noite
prefiro o canto largo
o riso de estranhos ao meu lado
se os átomos são as lágrimas
de todas as coisas
meu passo
meu passo


fim

acabou pra mim
os atalhos e as barragens
que se cruzam
me deito no verde
sem o velho medo
do peso da máquina
deixo pros outros
a grama macia trabalhada
e o vento me apaga


 Ilustrações: Ünn/deviantART


Patricia Laura Figueiredo, entre São Paulo, onde nasceu e se dedicou à poesia e ao teatro desde cedo, e Paris, onde mora desde 1990 amadureceu seus poemas numa vida dedicada a tornar o poema uma experiência essencial. Publicou o seu primeiro livro de poesias, Poemas sem Nome pela editora Ibis Libris em 2011 e seu segundo No Ritmo das Agulhas, em março de 2015 pela Editora Patuá. Participou de várias antologias, no Brasil e na Alemanha e também em diversas revistas digitais de literatura e poesia. Em março 2016 publicou pela Editora Dasch seu terceiro livre de poemas, Poemas Bebês.

5 contos de Diego Moraes

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Pragas do egito   


Tava de bobeira comendo um x-salada e um maluco cola na minha mesa: “paga um lanche aí, irmão.” Rosto todo fodido. Cabelo caindo. Zoadão. Aí puxei 3 contos do bolso e pedi um salgado e um suco pra ele. Ele disse que era missionário. Que rodou a áfrica pregando a palavra de Deus e tal. E que traiu a mulher com uma feiticeira no congo. E que essa feiticeira fez um trabalho intitulado “sete pragas do amante ingrato”. E que ainda estava pagando a segunda praga. A primeira fez com que ele andasse feito cachorro por seis meses. “eu latia e mijava como vira-lata em postes. Meus joelhos ficavam todo tempo em carne viva” Aí ele apontou pra boca e disse assim: “a terceira praga é a dos gafanhotos. Vai sair gafanhotos da minha boca quando eu usar o nome de deus em vão” dei minha última dentada no sanduba e disse “melhoras, bicho. Que o senhor tenha misericórdia da tua alma. Que sare tuas feridas”. Atravessei a rua. Entrei no ônibus e vi uma nuvem de gafanhotos em cima do telhado da lanchonete. 


Carinho


Você engorda. Emagrece. Faz cooper. Matricula-se no inglês. Senta direito. Anda com postura. Come com talher. Bota menos sal no picadinho. Come mais frutas pra cagar molinho e nunca deixa o celular descarregar pra ela não pensar que você está fodendo com outra no horário do almoço. Você exclui os nudes das leitoras. Fala que agora é algo sério para sua melhor amiga de Porto Alegre. Bloqueia os trafica e jura que agora lerá livros mais edificantes como “A história do direito em 12 fascículos”. Você varre o quarto e junta boletos de cobrança e diz pra si mesmo que prosperará. E que talvez vá até à igreja no domingo só para fingir que se emociona com o teatro do pastor ladrão. “viu só? Estou mudando” e ela vira pra você num sábado quente como o cu de Cleópatra virgem e fala: “acho que estou gostando do meu professor de química. Ele faz diferente. Não é brutal como você. Quantas vezes pedi pra você meter com carinho?” então você corre pra sala. Para o esconderijo onde está a arma carregada. Ela ri. Debocha. Caga para seu sofrimento. Você então chora e acerta dois tiros nela. Um em cada joelho. “agora quero ver se ele vai abandonar mulher e filhos pra meter em você com carinho” ela grita. esperneia na poça de sangue. “Nem aleijada volto pra ti! Seu corno desgraçado!” então outro tiro acerta a cabeça dela. Miolos mancham o quadro falso de Dali. “E agora, Ana? Ele ainda faz com carinho?”.



Então Tá

Então você escaneia o corpo dela esparramado na cama. Os seios rosados. A buceta lilás. O abajur que ilumina mal as páginas viradas de Borges. A boca com hálito de lagoa Rodrigo de Freitas amanhecida. “não deu. Às vezes não dá”. E a blusa do flamengo molhada de chuva lá fora e passarinhos que descansam no telhado antes de partirem rumo a frutos em arvores distantes. “já viu como estão às coisas lá de cima? Viu quando cê foi pra Curitiba? Estão desmatando tudo pra criação de gado.” Então você se ajeita na beira da cama e pensa em outra coisa. No livro foda que terá pra lançar. Fica com medo de sofrer um infarto do nada com as veias entupidas de bistecas gordurosas fritas com margarina com sal e também nas declarações precipitadas que fez pra outra. As lágrimas que derrubou para uma decepção inesperada. Não. Precaução. Não posso enfiar os pés no lugar das mãos. Ainda é cedo. Lembro-me da música chata da legião urbana. E de como todas essas incertezas e desejos confusos parecem com as coisas que Renato Russo cantava. É tesão, mal estar e poesia escrita sem ninguém entender nada em interface cibernética. Um corpo branco. Bege. Um pulmão que fez natação. Braços que nunca seguraram ferro de ônibus e pés que poucas vezes sentiram a umidade da terra ou da cerâmica da casa dos pais. E eu só queria esquecer que já me fodi tantas vezes quando botei nome de mulheres na minha literatura. Que tudo fica mais prático quando acaba em sexo, pó e batidas de portas sem números anotados em agendas de celulares nokias e samsungs. Seria melhor mentir. Dizer que gosto de uma atriz drogada da Praça Roosevelt. Que nunca entendi a tabela periódica e acabei virando gay. Não. Ela gosta de rir de coisas sem graça. Eu só quero tirar esse engasgo. Essa ressaca de paixão nova. Esse cheiro de anal, latinhas de budweiser e perfume francês com fumaça de mentolados. Então acorda. O braço buscando por mim no lençol bordado com florzinhas “cadê você?” “estou aqui”. Então fico mais perto. Ela sorri de olhos fechados e diz “eu sei que você quer dizer pra mim, mas sente medo” “o quê?” “deita aqui do ladinho. Eu já sei que você está apaixonado por mim”.


Coveiro     


- Você pensa nela quando me fode?
- Em quem?
- Não se faça de besta. Sei que você não gosta de mim. E que ainda gosta dela. Você fecha os olhos e pensa nela quando mete em mim. Sei que também não gosta de mulher branca. Você gosta de preta. Gosta de chupar boceta preta. Gosta de beijar boca preta. Gosta de bunda preta. Sei que sou apenas uma passagem na tua vida. Que não vai durar. Que fingirá que nada existiu quando eu sentar numa mesa ao lado da sua num bar. 
- Preciso ir. Quanto deu a pernoite? 60 reais? Tem 80 em cima do frigobar. Pode ficar com o pó. Não estou no clima de dar uns tiros.
Ela liga a tevê. Um negão goza na cara de duas loiras. Então desliga e respira fundo. Uma respiração de peixe-boi atravessando o rio negro. Uma lágrima vadia escorre do rosto dela.
- Não quero mais te ver. Não quero mais te ler. Você me renega. Vai lá sofrer por tua preta. Fodido de merda. 
- Você quer que eu faça o quê? 
- Fecha a porta. Sabe o que é mais cruel? Você nunca escreveu 
um poema ou conto pra mim. Só pra ela.
Bato a porta de nossas almas. O dia amanhece em Manaus. Toca o sino da igreja de São Sebastião. Atravesso a rua dez de julho e espanto os pombos repousados na calçada do teatro amazonas. Penso na preta. O passado é um coveiro que lacra o caixão do amor.

Galeria:Antoine d'Agata


Diego Moraes é poeta, contista e romancista. Autor de 6 livros. Publicado no Brasil e Portugal.

ALVOROÇADAS - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: June Kim & Michelle Cho


meus olhos ainda sangram
                                            ainda
depois de tantos rombos
arrombados em aromáticos e clássicos
herméticos frenesis de civilização

pingam como quimeras aquecidas de porvir
                                          há de vir
acetinadas acenadas confrontadas

                                  pós conclusão

como feixes enfeites
enfileiram grãos descafeinados de confusão
nesse lírico onírico cenário
                                                e deus
(ateu ateu ateu ateu ateu ateu............
...........................ateu)

               atiradas aves
alvoroçadas

ao largo enfileiradas
em nadas

enquanto navegam os barcos reenviados

estrelas e nádegas
fronteiras e espadas
o espaço não é vão


ainda esse feixe (terno tonificado esquálido laço sem perdão).


JANDIRA ZANCHI

3 poemas de Natasha Felix

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EXTRAVIADA

se foi o jeito de dizer eu não sou
daqui, eu nunca nem conheci minha cidade
natal no quente da embriaguez com os ombros
de gavião pronto pro ataque.

se foi como comprimiu os beiços no baseado
com raiva ou quando embaraçava ainda mais os
cresposdo cabelo na mão enroscada de gozo
e quase nenhuma ternura.

se foi a castidade reservada
na curva do piercing da buceta, se foi o
maxilar contraído quando falava
do rio de janeiro e do amor que deixou
na glória com cinco pilas pra condução
e a lembrança de uma foda mal conduzida
no banheiro de um bar na lapa.

se foi o ódio pelo cláudio assis
na mesmamedida do tesão pelos filmes
do cláudio assis.

se foi a descoberta de que
o reverso do que se espera não passa
de uma insinuação marrenta de homens
e mulheres cegos por escolha, roçar os
sexos pelo jeans das calças.

fazendo justiça à tradição
ocidental até o tutano da baleia:
como se não fosse
possível amar A e odiar A
ou se deixar na glória e
ir embora da glória
ao mesmo tempo.



CONTÁGIO

o corpo sujo é barrado no ___
mercadinho municipal na farmácia no
enterro do sobrinho na missa do galo na
reunião de moradores do bairro. no hospício o
corpo sujo é bem vindo. o meu corpo
sujo é hospício
enquanto no banho lugar de onde
saio cada vez mais imunda
porca sem rabo preso azul no entanto
a língua suja de mulher suja não se aguenta
tem nome de urubu quando fala urubu
tem nome de tesão quando fala tesão
tem nome de socorro quando fala
é suja também imunda muito a língua
quando ousa o sistema linguístico
deixa água de lastro por ele inteiro
o sistema contaminado pelo chorume
o sistema linguístico agora extraviado
do cômodo bem instalado onde habita e o
corpo sujo ainda treme e vacila os joelhos
como um fungo uma doença como
árvore de joão bolão o corpo desavisado
permanece assim no entanto
incomodando, sujo imundo mesmo




DUAL

numa floresta qualquer na indonésia
a mulher conversa com o gravador ela,
sem língua, usa o objeto não como um espelho
mas de repente ele é outra mulher
que a responde com as mesmas perguntas. onde
está meu pai. cadê
minha família. onde ficou a minha casa.

parece, em outro de repente,
a voz dela dribla a saliva desconfiada
e seu idioma, lobo sem matilha,
isolado entre o corpo o gravador a acústica,
como somente o lobo fica entre seu corpo
o monte e o uivo, a voz da mulher
é aquele poema da wislawa
quando diz não saber de nada mais.

você deve se lembrar nessa altura precisa
saber ao fim do poema da wislawa perguntam
'esses são seus filhos' e a wislawa a segurar
o gravador como a mulher sem língua na
floresta da indonésia segura o seu próprio, a
wislawa não está na cena saiba.

apenas enquanto
objeto imóvel uma distorção de sons que
parecem respostas porque
afinal assim vive o poeta e seu uivo e seu corpo
longe de todo o resto inclusive dali
a mulher sem língua catalogada
por estudiosos
linguistas da universidade de são
paulo, antropólogos e cientistas políticos
de nada entende das viagens internacionais do
preço das bananas ou das lutas sociais dentro
do contexto patriarcal, a mulher
sem língua pergunta ao gravador onde está
meu pai. cadê minha família. onde
ficou a minha casa.

e ao fim da gravação os estudiosos da
universidade de são paulo guardam a aparelhagem
recuperam as mãos no bolso e limpam o suor da
testa com lencinhos umedecidos enquanto
quando a mulher pergunta 'suas mãos
são como as minhas' escavando a terra a resposta
é a mesma de antes com o gravador ligado.


 Imagens: David Drebin



Natasha Felixé de 1996. Nasceu em Santos e hoje vive em São Paulo. Teve poemas publicados em revistas digitais e lançou o zine “Anemonímia” em 2016. 

Campo de Pouso - José Maria Carvalho da Silva

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POUSO I
  
Quando os urubus chegaram ao deserto dos sonhos, um ipê floria...


O VIGIA QUE LIA DRUMMOND

A Rosa do Povo dormindo
em meus braços, feito criança.
E eu acordado, morto de sono
e ao mesmo tempo deslumbrado
com os diamantes de Drummond.
Não há lua nem conhaques,
(proibiram-me de beber em serviço,
mas, a lua eu posso espiar à vontade)
E já não estou mais comovido,
apenas chateado com o Alfredo,
Drummond me contenta,
tenta explicar a chuva
c
a
               i
                   n
                         d
o
no telhado da guarita.
“ o bonde não veio
O dia não veio”.
E Alfredo também não veio.
-Imbecil !
- E agora José?
-Espero duas coisas, Drummond,
o safado do Alfredo vir me substituir,
e essa chuva passar!


CAMUFLAGEM

Fui rio, para enganar o sertão dos meus dias;
fui cão, para despistar o faro de outros cães.
Na terra do silencio,
o meu grito revoltou os donos da morte.
Então, abandonei o barco,
o barraco,
os cacos de coragem,
e fugi.
Fui viagem para não ser estátua.
Alcei voo para não ser pedra.
Na fuga,
fui me achando estranho,
irreconhecível...
Já não precisava ser herói,
apenas dormir com a consciência
de que o dia fora azul.
Quando os urubus chegaram ao deserto dos sonhos,
um ipê floria.


PRISÃO DOMICILIAR

Situação atual:alvo encontrado.
Descrição do alvo: Casa do poeta zé,
Posição geográfica: Fim do mundo-MA.
Latitud: enquanto é vira lata
denunciando os ladrões de galinhas,
os namorados no escuro
e os maconheiros de plantão.
Longitud: e de todos os tempos bons
(tradução: liberdade, grana, mulheres, festas e sonhos)
Situação do alvo encontrado: preso em casa.
Motivo: sem nenhum centavo no bolso, sem transporte,
sem love, sem roupa legal, com crise de pânico,
e um incrível medo de morrer depois de velho.


ESPELHONÍRICO

Minha pressa entre ruas confusas
de  uma cidade desconhecida
leva-me à contemplação de casas, sobrados e igrejas
outrora imponentes e belas,
agora silenciosamente arruinadas e esquecidas.
Noto a ausência dos pássaros nos telhados caídos,
e o cinza das lagartixas nas paredes demolidas.
O barulho da cidade e o silencio secular
coabitam as estruturas úmidas e abandonadas.
Há uma semi claridade em tudo
e tudo parece ser metade.
Apenas as plantas expressivamente
verdes entrincheiradas no chão
e agarradas aos musgos falecidos nas paredes pálidas
parecem completas e desafiam a ruina e o caos.
E eu continuo anestesiado e extasiado em meio
à orquestra de um vendaval,
assistindo a lenta decomposição de mim mesmo,
sem saber ainda o que sou e o que resta de mim afinal.




POUSO II

O assovio edifica uma ponte entre o rio e a tarde das memórias...


O CONSERTADOR DE TARRAFAS

A linha das ideias se enrola na agulha do tempo
E vai se soltando como olho d’água
Que se liberta das cacimbas
Como chuva das nuvens,
Como agua das torneiras
Caindo nas sobras de desejos
E mãos sujas de conversas e corpos.
-Poemas paridos ao relento-
A linha constrói outra malha.
O olhar mergulha noutro olhar
E afoga-se.
O assovio edifica uma ponte
entre o rio e a tarde das memórias.
Outros peixes ficarão presos
Na tarrafa do dia seguinte.
Os sonhos serão pedras,
Mais dias menos dias
A linha puída da tarrafa
Irá se romper.
Então o consertador de tarrafas
Entrará em cena e dará um nó
Na linha dos sonhos e buscas.
-Recomeço...

  
MOLDE IDEOLÓGICO

Eu amassei
a argila com os pés do amanhecer
e comecei a esculpi o pensamento.
Tinha a ambição de mudar o mundo,
refazê-lo à minha maneira,
porém, minhas mãos
não eram hábeis,
e a argila que eu usava era fraca.
Então, a força do sol
rachou minhas obras.
Fiquei com a cara no chão
e o mundo começou a me esculpir.


VESTÍGIOS DE UMA PESCARIA

Pedaços de sono na areia
derretendo ao sol.
A lenha de ontem
se fez cinza
e o vento a espalha
lentamente por entre
gravetos, formigas e carcaças.
Já não existe mais
o suor do querer
apenas o cheiro de histórias
que grudaram nas folhas e seixos. 


Ilustrações: Georg Grie




Me chamo José Maria Carvalho da Silva, nasci em Vargem Grande –MA,  ainda jovem, antes de completar os meus estudos, viajei Brasil afora, como a maioria dos meus conterrâneos nordestinos fizeram nos idos dos anos 80. Conheci o Pará, um pouco de São Paulo, Manaus, e morei também em Roraima. Depois de tantos anos voltei pra casa, completei meus estudos e hoje sou professor concursado e atuo na rede pública de ensino do meu município. Acho que a poesia foi pra mim antes de tudo uma forma de sonhar o mundo que eu suspeitava existir, porém, depois que viajei Brasil afora e conheci tantos personagens, vi e vivi situações diversas, a poesia passou a ser também o meu pesadelo e refúgio, pois, é com as palavras que recrio o meu mundo perdido ou talvez vivido, pra ser mais exato.

ruas - um poema de Bruna Mitrano e Ricardo Escudeiro

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Daido Moryama, 1978, untitled





ruas


tocar a morte no mínimo
umas duas
ainda que dessas do tipo

num era pra ser

até reconhecer a saliva de cada bicho tocar
tambor numa rua vazia
acordar quem te faz dormir é preciso
dançar com aquele cego às duas

cegos num olham só pro próprio

escuta
uma umbigada de resistência
toca o tambor feito de pele de rua vazia
de ferocidade e simetria

e de cesuras e de sintomas

a linha a grade
a mão que em braile embala o arame a farpa
que pega pela mão e carrega
a estrada
de meio fio a meio fio de sono a sono
luz arrastada de calçada até portas

o som do fóton no tapete de boas chegadas

antes e depois
os meios os muros que dizer

as fachadas

também é perguntar isso é entrada ou isso é saída
a simples sustentação de falas cognatas

num tinha um poste aqui

bandeira de luz fincada ou uma catraca
demarcações

que nos vinculam



(Bruna Mitrano e Ricardo Escudeiro)




Foto: The Street Sweeper, Barry Goldwater, 1966
Foto: Suzanne Stein



***





Bruna Mitrano (1985) desenha e escreve. Publicou o livro “Não” pela Editora Patuá.








Ricardo Escudeiroé autor dos livros “tempo espaço re tratos” (Editora Patuá, 2014) e “rachar átomos e depois” (Editora Patuá, 2016)

32 perguntas sobre dada (por paulo guicheney)

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A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa. Tão logo começamos a pôr nossos pensamentos em palavras e frases, tudo sai errado.
Marcel Duchamp


pergunta n° 1
A pureza de uma flor é dada?

pergunta n° 2
O odor do sangue é dada?

pergunta n° 3
O fazer desses senhores dadaístas, tão distante no tempo, ainda é capaz de causar incêndios?

pergunta n° 4
A música, essa arte tão pouco dada a iconoclastias, pode ser dada?

pergunta n° 5
Eric Satie é dada? Provavelmente, mas não seria mais correto afirmar que ele influenciou mais do que foi influenciado? Quando surge o dadaísmo, ele já é um compositor maduro, completamente dono de sua linguagem.
Satie foi o único integrante de uma igreja que ele próprio fundou e escreveu as “Três peças em forma de pêra” (que, na verdade, eram sete), a composição com um dos nomes mais estranhos da história da música, quando os dadaístas ainda eram crianças de colo: chistes que combinam vida e arte. Teria sido Satie um protodada?

pergunta n° 8
E Cage? Quanto há de dada em Cage? A iconoclastia, o gosto pelo acaso, a renuncia à expressão, vida e arte tornando-se uma só coisa, materiais inusitados – qualquer material é um material possível: premissas dadaístas que povoaram a poética de Cage. E, não por acaso – difícil imaginar palavra mais importante que “acaso” ao falar de Cage –, Satie e Duchamp foram seus heróis.
Algo dadaísta está presente em Cage, Kagel e em boa parte dos compositores de vanguarda, nos compositores do Fluxus e em tantos outros – incluso Peter Ablinger (para citar alguém da atualidade) –, ainda que o “dadaísmo clássico”, em toda sua ingenuidade – falo dela com admiração, não com ironia –, tenha evaporado. No entanto, as artes da busca não existiriam sem ele. O dadaísmo está presente hoje, como Schoenberg, este homem impregnado de harmonia, está presente em qualquer obra feita apenas de ruídos.
Assim como o vermelho da flor habita o sangue?, eu pergunto.

pergunta n° 13
É importante colocar que nós, músicos, somos afeitos a sistemas. Sempre. Sempre?

pergunta n° 21
Como se comportariam os dadaístas hoje, teriam um lugar na Terra? Quando as convenções desapareceram e tudo foi despedaçado. Após Auschwitz, Hiroshima, Kolimá e Chernóbil. Eles não pareceriam desavisados, crentes em um papel transformador da arte? Mas não haveria neles uma força extraordinária? Essa força que forja o novo?

pergunta n° 9
A imagem de uma arte no extremo, própria do dadaísmo, não seria capaz de incutir um pavio no mundo conformado das salas de concerto, dos títulos estéreis da Universidade, das exposições que nos causam tédio e/ou asco, da literatura de forma e caligrafia redondinhas?

pergunta n° 10
“O cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim”, Francis Bacon citando Ésquilo.

pergunta n° 11
Alterar os números das perguntas desta fala utilizando uma seqüência de Fibonacci é dada? Ou ainda, não responder absolutamente coisa e continuar a perguntar, perguntar, perguntar e fazer sete perguntas dentro da mesma pergunta? Qual o significado disto? O que pretendemos? Um Koan? Uma composição dada? Um poema?

pergunta n° 12
“As palavras adquirem seu significado verdadeiro e seu lugar certo na poesia”, disse Duchamp. A difícil tarefa de “poetizar” um objeto qualquer, por mais absurdo que este seja, não foi uma conquista dadaísta? Nesse sentido, suas obras não assemelham-se aos Koans? E ainda, não foram eles “videntes” como nos ensinou Rimbaud?

pergunta n° 34
Uma roda de bicicleta é um Koan. Um poema feito de recortes aleatórios de jornal é um Koan. Uma composição prenhe da matéria do silêncio é um Koan. Uma coreografia talhada nas impossibilidades do corpo é um Koan.
Não aprendemos com os dadaístas que a arte aspira ser Koan?

pergunta n° 14
A obra de arte tem o poder de alterar a trajetória da luz?

pergunta n° 15
Os Sex Pistols conheceram os dadaístas?

pergunta n° 16
Quais são os limites para destruir uma linguagem sem que ela nos destrua?

pergunta n° 17
Onde fica a fronteira que separa a arte da própria barbárie à qual ela se opõe, ou deveria se opor?

pergunta n° 18
Os dadaístas conheceram esta fronteira e isto faz deles artistas admiráveis. Nós a conhecemos?

pergunta n° 19
Paul Celan, envolto nas memórias da destruição, concentrado na batalha silenciosa com a língua dos açougueiros que mataram sua família, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 20
Francis Bacon, afeito ao “confronto com a carne”, nas suas palavras, “essa verdadeira escoriação da vida em estado bruto”, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 55
Ingmar Bergman, dissecador dos relacionamentos humanos e pregador da solidão e do exílio, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 22
Pina Bausch, que cometia “erros tão bonitos” ao criar seus Koans do corpo, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 23
Helmut Lachenmann, compositor que instaurou uma nova fisicalidade nos instrumentos e nos arrancou do lugar confortável da escuta para nos arremessar em espaços inauditos, às vezes, dotados de grande violência, conhece esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 24
Imre Kertész, dono de tratados sobre a “felicidade nos campos de concentração”, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?

pergunta n° 25
Como opor-se às pilhas de corpos sem que nos tornemos também pilhas de corpos?

pergunta n° 26
Esta não seria uma questão essencial, a criação de uma obra de arte capaz de se opor a um statu quo dilacerante, mas que, na qual, não transborde o horror? Sem que o horror nos sufoque?

pergunta n° 27
Assim fizeram os dadaístas? Questionaram a bestialidade da guerra sem que se tornassem panfletos ou bestas?
pergunta n° 28
Assim fizeram os dadaístas? Nem sublimação total, nem dejeto?

pergunta n° 29
Assim fizeram os dadaístas? Nem a pureza da flor, nem o odor do sangue?

pergunta n° 30
Não seria esta a morada da poesia, um espaço humano? Algo entre?

pergunta n° 31
Tarkóvski diz, “só há uma maneira de conceber o cinema: poeticamente.” Ainda que cheguemos à conclusão de que o dadaísmo e a música nunca estiveram diretamente ligados, esta revolta que completa um século não nos instigaria a conceber poeticamente a música? Uma música que abra os nossos ouvidos e que afronte sempre a barbárie? Uma música nem flor, nem sangue?

pergunta n° 32
Contra o horror, a poesia não seria uma máquina possível?

pergunta n° 33
Algo vai muito mal nos dias de hoje. Como diz Kertész, “concordamos que algo terrível está projetando seu sinal. Em tudo e em toda parte se vêem prenúncios do horror. A linguagem racional nem se aproxima desses prenúncios. Deve-se usar a linguagem antiga, a da Bíblia, que conhece Satanás e sabe do fim do mundo.”
Não sei dizer se os dadaístas conheceram horror igual ao nosso, se a experiência deles foi pior ou melhor. Felizmente, não existe uma escala para medir a desgraça humana. O que interessa é que eles foram capazes de uma resposta.

(fala#5, com Marta Soares e Kleber Damaso, DADASPRING. 29/09/2016, Goiânia-GO)

***


REFERÊNCIAS

Hogue, Raimund. Weiss, Ulli. Bandoneon, em que o tango pode ser bom para tudo? - Texto e fotos sobre um trabalho de Pina Bausch. São Paulo: Attar Editorial, 1989.
Kertész, Imre. Eu, um outro. São Paulo: Editora Planeta, 2007.
Kertész, Imre. Sem destino. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Maubert, Franck. Conversas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2010.
Tarkovski, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Tomkins, Calvin. Duchamp, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.





Mais cinco sonetos de Shakespeare na tradução de Emmanuel Santiago

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Soneto 26

Meu amado senhor, a quem sirvo submisso,
Cujo mérito atou afinal meu intento,
Por escrito te envio este meu compromisso,
Atestando o dever, porém não meu talento.
Grandioso dever! Meu engenho conciso
Não consegue expressá-lo e ei-lo aqui: nu em pelo;
Mas espero que teu refinado juízo
Com alguma clareza consiga envolvê-lo.
Isso até que uma estrela qualquer com seu brilho
Me conduza p’ra perto de teu belo ser,
Adornando com fausto este amor maltrapilho
E mostrando-me digno de teu benquerer.
Só então ousarei divulgar ter-te amado;
Até lá, não me exponho p’ra não ser testado.



Sonnet XXVI

Lord of my love, to whom in vassalage
Thy merit hath my duty strongly knit,
To thee I send this written embassage,
To witness duty, not to show my wit:
Duty so great, which wit so poor as mine
May make seem bare, in wanting words to show it,
But that I hope some good conceit of thine
In thy soul’s thought, all naked, will bestow it:
Till whatsoever star that guides my moving,
Points on me graciously with fair aspect,
And puts apparel on my tottered loving,
To show me worthy of thy sweet respect:
Then may I dare to boast how I do love thee;

Till then, not show my head where thou mayst prove me.


***


Soneto 35

Não te aflijas co’aquilo de mal que fizeste:
Rosas trazem espinhos, as fontes têm lama,
Nuvens cobrem mesquinhas os corpos celestes
E a lagarta asquerosa se oculta na rama.
Todo mundo comete erros, eu mesmo, agora,
Justifico teus erros de modo florido,
E corrompe a si mesmo quem teu mal ignora,
Desculpando até mais do que tens delinquido.
Para tua luxúria, a razão apresento, —
Pois quem mais te defende é também delator, —
E eis que contra mim mesmo um litígio sustento
Numa guerra civil entre meu ódio e o amor,
E me faço de cúmplice, nesse motim,
De tal doce ladrão que me rouba de mim.


Sonnet XXXV

No more be grieved atthat which thou hast done:
Roses have thorns, and silver fountains mud:
Clouds and eclipses stain both moon and sun,
And loathsome canker lives in sweetest bud.
All men make faults, and even I in this,
Authorizing thy trespass with compare,
Myself corrupting, salving thy amiss,
Excusing thy sins more than thy sins are;
For to thy sensual fault I bring in sense,
Thy adverse party is thy advocate,
And ‘gainst myself a lawful plea commence:
Such civil war is in my love and hate,
That I an accessary needs must be,
To that sweet thief which sourly robs from me.


***


Soneto 40

Rouba, sim, meus amores, amor, eles todos,
O que acaso tu tens que não tinhas outrora?
Verdadeiros amores, nenhum, mil engodos;
O que tenho era teu, e isso não é de agora.
Pelo amor que me tens meu amor me tomaste,
E de usar meu amor nunca posso culpar-te,
Entretanto te culpo, se tu te entregaste
Por capricho a quem sempre deixavas à parte.
Eu perdoo teu roubo, ladino gentil,
De ti mesmo furtaste esta minha pobreza;
Eis que o amor sempre soube que é muito mais vil
Suportar-lhe os enganos que a dor da crueza.
Charme lúbrico, fonte de males extremos,
Com desprezo me mata, mas nunca lutemos.


Sonnet XL

Take all my loves, my love, yea take them all;
What hast thou then more than thou hadst before?
No love, my love, that thou mayst true love call;
All mine was thine, before thou hadst this more.
Then, if for my love, thou my love receivest,
I cannot blame thee, for my love thou usest;
But yet be blam’d, if thou thy self deceivest
By wilful taste of what thyself refusest.
I do forgive thy robbery, gentle thief,
Although thou steal thee all my poverty:
And yet, love knows it is a greater grief
To bear love’s wrong, than hate’s known injury.
Lascivious grace, in whom all ill well shows,
Kill me with spites yet we must not be foes.


***


Soneto 96

Uns te acusam de jovem, uns dizem devasso,
Uns que tua graça é seres moço e galante;
Tal graça, ou vício, agrada do nobre ao mais crasso:
Tu convertes o vício num bem cativante.
Assim como no dedo de altiva rainha
Mesmo a joia ordinária se faz estimada,
Essa falta de pejo que em ti se adivinha
Se transforma em virtude, por boa é tomada.
Quantas presas um lobo teria a predar
Se pudesse fazer-se passar por cordeiro?
Quantos se perderiam por te contemplar
Se quisesses mostrar teu valor por inteiro?
Não o faças, pois te amo com tal regozijo,
Que, por seres meu, tomo p’ra mim teu prestígio.


Sonnet XCVI

Some say thy fault is youth, some wantonness;
Some say thy grace is youth and gentle sport;
Both grace and faults are loved of more and less:
Thou makest faults graces that to thee resort.
As on the finger of a throned queen
The basest jewel will be well esteem’d,
So are those errors that in thee are seen
To truths translated, and for true things deem’d.
How many lambs might the stern wolf betray,
If like a lamb he could his looks translate!
How many gazers mightst thou lead away,
If thou wouldst use the strength of all thy state!
But do not so, I love thee in such sort,
As thou being mine, mine is thy good report.


***

Soneto 105

Não se diga, do amor que tenho, idolatria,
Nem o amado qual ídolo se represente;
Minhas preces, canções, nada disso haveria,
Porém, não fosse ele, ele sempre, ele somente.
Gentil este amor hoje, gentil no futuro,
Imutável na sua excelência sublime,
E meu verso, que tão permanente afiguro,
Uma só coisa diz, todo o resto suprime.
Belo, bom, verdadeiro, eis aqui meu resumo,
Belo, bom, verdadeiro, em palavras sortidas;
Revezando esses três, meu engenho consumo,
Três conceitos em um, de extensões desmedidas.
            Belo, bom, verdadeiro viviam distantes,
            Sem poderem se unir num ser único antes.


Sonnet CV

Let not my love be called idolatry,
Nor my beloved as an idol show,
Since all alike my songs and praises be
To one, of one, still such, and ever so.
Kind is my love to-day, to-morrow kind,
Still constant in a wondrous excellence;
Therefore my verse to constancy confined,
One thing expressing, leaves out difference.
Fair, kind, and true, is all my argument,
Fair, kind, and true, varying to other words;
And in this change is my invention spent,
Three themes in one, which wondrous scope affords.
Fair, kind, and true, have often lived alone,
Which three till now, never kept seat in one.




 Emmanuel Santiagoé poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de Pavão bizarro(poemas) e A narração dificultosa(crítica literária).



Abre o esterno e planta um girassol, poema de Viktor Schuldtt

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Vincent Van Gogh

Abre o esterno e planta um girassol. Começarei
a crescer na fortuna

do teu delírio pra que me chames teu irmão.
É toda a necessidade,
e dura um segundo.

Ou o tempo de pegarmos no cordão umbilical para o enforcamento; há espaço ainda para nos alardearmos no pólen e de nutrirmos com o barro das solas, das barras das calças, com as insuficiências respiratórias de quem ferido corre os vagões de um trem, a ninhada de lobos que invadiu o quarto escuro desta funda cidade com o peso instantâneo da moção.

Temos a nossa doença, temos insalubre como a rocha o porvir
e temos sobretudo o pavor.

Mas vêm, de dentro desse tufão negro e metálico, os animais
rápidos como flores carregando a carne fresca na boca; vêm os derradeiros, vêm já os extintos sem lugar na terra tomados pelo instinto de morte:

abrir o esterno, por um
segundo, é toda a
necessidade.

-

Bendito - Adélia Prado

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Adélia Pradoé poesia brasileira no grau máximo de significado e transformação em forma de linguagem. Revelada por Drummond em uma crônica no Jornal do Brasil em 1975, o poeta dizia que São Francisco de Assis estava ditando poemas para uma dona de casa da pacata cidade de Divinópolis em Minas Gerais, assim apontando a relevância de sua poesia existencial e religiosa. Particularmente o contato que tenho com a poesia de Adélia me revela o sagrado do próprio fazer poético, não a toa Drummond escolheu São Francisco, um dos santos mais poéticos e humanos da igreja católica para colocar como "padrinho" literário da poeta mineira. Muitos anos depois, com diversos prêmios nacionais e internacionais, muitas traduções e mesmo depois de também consagradas montagens teatrais oriundas de sua obra como "Dona Doida", solo com textos de Adélia e encenado por Fernanda Montenegro sua poesia se reafirma como um dos grandes legados de nossa literatura e "Poemaria" decidiu então, e por que não, chamar nossa poeta para adentrar também na linguagem documental e cinematográfica.
Estava então eu na frente da história viva, personagem e ser humano real, poesia que fere e cura, que abençoa mais traz dúvidas, que tantas vezes recorri em momentos difíceis como em "Poema Esquisito" Adélia diz: "O zelo do espírito é sem meiguices", fui tentando aos poucos conhecer essa grande alma, humana, generosa e de uma lucidez indescritível. Fica para mim como diretor/pesquisador, as dúvidas do fazer poético que traz o mistério dos olhos dos grande escritores, e principalmente do silêncio após nos ler um poema.
Como diria em sua poesia "Não quero faca nem queijo. Quero a fome." Vou então perseguindo meu desejo e tentando escutar essa unidade poética que só a beleza da criação nos traz. Na poesia de Adélia entendi que somos todos criadores e isso sim é sagrado.


Davi Kinski


Ficha Técnica:

direção, produção e argumento 
Davi Kinski

direção de fotografia

Fernando Cavalcanti
diretora assistente 
Flavia Guerra

segunda assistente de direção
Alethea Ruas Miranda

roteiro e edição
Lívia Cappellari

produção de casting e set
Gandia Silva

web designer e programação
Evandro Carnevalli
IronSoft Plus 


som direto
Fernando Cavalcanti
mixagem e finalização
Lívia Cappellari
pesquisadores 
Joao Luiz Vieira
Beto Mettig
 
Keyllen Nieto
Greta Benitez


Blog
Fernanda Fazzio
Emmanuel Santiago


Ilustração "Poemaria"
Marcos Garuti

assessoria jurídica
Bruno Borin
revisão
Greta Benitez
redes sociais 
Rodrigo Ferraz

6 poemas de Ruy Proença

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Robert Doisneau





TUBARÃO VEGANO

             para Marc

só come:

a batata
da perna

as maçãs
do rosto

a planta
do pé

a palma
da mão

a flora
do intestino

o pomo-
-de-adão

a raiz
do cabelo

sobremesa?
só o coco



MENOS OPACO


Antonio Houaiss
um notável
filólogo
disse certa vez
que

uma das iguarias
mais exóticas
que provara
em suas viagens
por aí

foi uma aranha

diante do espanto
do jornalista
arrematou:

era
muito crocante

quando criança
na chácara
de meus pais

gostava
de caçar vagalumes
e colocá-los
num vidrinho

hoje imagino
exótico seria
comer vagalumes
vivos

quem sabe
tivesse feito
de mim

um homem
brilhante



O X DA QUESTÃO


cachimbo não tem x
mas xote tem

xícara tem
chácara, não

xepa e xampu, sim
chupim e chuchu, não

cheque de pagar, não
xeque de risco, sim

xá da Pérsia, sim
chá de beber, não

xale tem
chalé, não

ó língua cruel
ó dúvida sem fim

xará, nossa língua é mesmo
uma charada!



PARA QUE TANTA PERNA?

             para Luiza Castelli Rizzo


como será
que dança
a aranha?

com tanta perna
como não tropeçar
na própria
perna?

como dançar xaxado
forró?

com oito pernas
mais dois braços

sério é o risco
da aranha
ficar sem par

a menos que
no salão de sua teia
receba

a improvável visita
de um amigável
polvo



CADEIRA GIRATÓRIA


socorro,
acudam!

de tanto girar
girar

a cadeira
ficou tonta
caiu
quebrou o braço

rápido,
acudam!
direto
pro ortopedista!




ESPANTO

para Fernanda Crancianov e Paulo Ferraz


os sofás
bem desfiados
nas quinas

o ap.
tinha gatos –
isso se via!

o que era
inimaginável
– e que susto! –

foi quando
um dos sofás
pariu um gato

na verdade
(descobriu-se depois...)
uma gata

Marisa Proença

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007); Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg (Espectro Editorial, 2015). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas(Editora 34, 2007) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).





 

Foda-se a gramática - Renan Chiaparini

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Em uma conversa de bar
Em que brancos discutiam sobre supremacia
E desovavam seus ideais liberais e podres
Defecando pela boca
Foi dito e posto como regra que o “mim” não fazia nada
E que o “eu” era quem dava a letra e fazia a conexão da vida e da gramática
E eu pobre curumim
Regado à literatura marginal
Sentindo-me parente de Sergio Vaz e Mano Brown
Vaguei-me pelas interessâncias estruturais da sociemática
E pensei... pensei , visualizei entre nuances didáticas literárias de
nossas histórias verdadeiras contadas pelos filhos de nossos pais.
E encontrei o mim em alguns momentos, em alguns lugares.
O mim já perambulou pelas florestas e se fez presentes nas tribos pataxós, guarani, ticuna e terená
O “mim” já usou ecstasy com reiveros em rituais de musicas que seguiam as batidas dos corações acelerados das moças e dos rapazes nas tardes de domingos azedos e loucurantes.
O “mim” já andou de ônibus, apé, à cavalo, de carroça, e de bike.
O “mim” já participou de churrascos da família proletária liberal brasileira que discutiam sobre como tirar a Dilma e enfiar todo o resto no cu
O mim veio da favela, dos becos, das ruas
O mim é parte das moças dos lares, dos pedreiros, serralheiros, dos leiteiros.
O mim tem sangue quente
O mim tomou uma cachaça com o Lula e fez moradia, bolsa geladeira e Fome zero.
O mim conseguiu chegar à faculdade onde só o “eu” era quem rosnava e vomitava conversas fétidas sobre tênis da nike e camisetinhas de marca.
O mim é primo do “noiz” tio do “mano” parente distante do “Brother” e filho das mães putas, por consequente, não livres.
O mim toma cachaça e joga sinuca com o diabo em uma tarde quente e sólida no inferno
O mim é palpável
O mim é uma tarde de samba com Jorge amado no pandeiro e neguinho da beija flor no vocal, assistido por gente da nossa gente.
O mim já tomou enquadro, cuspiu na cara do polícia, pichou muro e escondeu o baseado dentro do tênis para não lhe ser desferidos golpes de “eu” em suas costelas pobres.
E ainda dizem que só o “eu” faz coisas.
E mim vos digo:
Enquanto o Eu e os ricos forem filhos de Deus
E o Mim e os pobres filhos de chocadeiras
Continuaremos a vociferar ódio para os pobres
Marginalizar o mim para os seres
Oferecer todo o crédito aos ricos
E dizer que o “eu”
e a meritocracia
são
Os corretos,

E as verdadeiras verdades



Fotografia: Linconl Costa   


Minibiografia: Renan Chiaparini, 27 anos, é escritor. poeta e ativista.Reside em São José do Rio Preto, formado em Direito e cursando Letras na Universidade Julio Mesquita Filho, (UNESP-IBILCE), já com um livro publicado pela editora MODO de Campo Grande – MG chamado 1° ato, escreve profissionalmente há 4 anos e ministra aulas de poesia em oficinas de Escrita Criativa.

6 poemas de Fabiano Silmes

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Ilustração; Weltengang


IMPACTUS VITAE

Vida que subitamente me escapa
Pedra corpo nu e verso lançado...

Na delicada vidraça que se quebra
Espalhando-se em mil pedaços:

Uma alma partida entre os estilhaços.



O ETERNO FIM DE TUDO

Coisas de tempo atrás
Parece que foi ontem
Aqui viveu um rei
Lá morreu um plebeu
Entre ontem e hoje
Apenas Eu.



CINZAS DO CREMATÓRIO

O fogo consumirá,
Tão logo aceso,
O corpo imobilizado,
Crestará os pêlos das axilas,
das virilhas e das pernas.
Queimará os olhos
E todas as possíveis visões de beleza.

O fogo queimará a memória
E o coração já apagado.

Desnudarão o selvagem peito
As chamas milimétricas.
Derreterá todos os contornos
De impossíveis perfeições 
O Hálito quente das labaredas
[ Incandescentes.

O fogo queimará a pele,
Os músculos e os sentimentos,
E espalhará até acabar
Com as últimas vaidades…

Nem poder e nem riqueza
Tudo jazerá igual nas cinzas:
- O mais, por certo, se dissolverá
No tempo e na fumaça.



AMY

A voz de veludo
O tom perfeito

A mansa transição
Entre os espaços 
Complexos do ser

Jazem aprisionados 

Definitivamente
No interior da boca 
Da cantora morta e 
Enterrada 

Sob o silêncio das flores.


Ilustração; Weltengang


O MERGULHO

estranho silêncio pelo apartamento
nenhuma musica
nenhum grito
nenhum barulhinho sequer ao meu lado.

entre esta noite e tudo aquilo que acredito
ouço apenas minhas lágrimas caindo lentas...
e num torpor de queda constato o meu salto.



A MARGEM

pelos subterrâneos e bulevares

pelas prostitutas da noite
pelos bêbados da madrugada

meu poema pede licença
e meus sonhos pedem passagem.




Fabiano Silmesé escritor, poeta e publicitário, graduado em Produções Publicitárias e Marketing, pela Universidade Estácio de Sá-RJ.Em 2011, lançou o seu primeiro trabalho literário de poesias: Comida para Bicho-Cabeça, pela editora Multifoco. Atualmente, colabora com seus poemas e crônicas em blogs alternativos, contando com a parceria de outros poetas.


5 poemas de Felipe Pauluk

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SLOW-MOTION

às vezes chegamos perto do abismo 
rodeamos o inferno
chegamos à conclusão de que nada mais vale,
de que o passado foi um saco de merda
& o futuro será uma mina explodindo em slow-motion
debaixo do pé esquerdo
aquele negócio de que o amor tudo suporta,
tudo espera,
não passou de um sonho apostólico de paulo,
& a maior virtude do ser humano é sentir saudade

amor é um perigo,

é uma faca afiada
nas nossas mãos de menores infratores da vida



AUTO-DEFESA


das coisas sólidas não resta nada
aquele teu iogurte de jabuticaba
com pedaços de frutas vermelhas acabou
vendi teus sapatos de salto baixo ao brechó
& a ração do gato mofou

dei um jeito no bidê da cabeceira da cama,
outrora cheio dos teus livros da elena ferrante
& alguns auto-ajuda da rhonda byrne
transformei-o em covil de bulas & fracos vazios

meu expediente é cama,
solidão, cachaça & granada

meus escritos estão abertos no computador
& não salvei nenhum.
o prédio não tem para-raios,
sendo assim, basta o céu fumegar
e o meu notebook torra como um carvão do inferno

das coisas sólidas só restam um peito cheio,
um nariz escorrendo & um decálogo
que escrevi na parede da sala com seu batom esquecido

regras básicas para minha auto-defesa caso você volte




VERBO


e o silêncio
tornou-se saudade
e habitou entre nós



RESQUÍCIOS

eu estou tentando me livrar, baby
todos os resquícios
todos os frascos & resíduos
todos os cheiros e toques
a lembrança é um encosto que afaga
tomei o tal banho de sal grosso
fui na benzedeira que tua vó tanto falava
ela me chicoteou com os ramos e repetiu malditas palavras,
algo do tipo: "jesus te acompanhe" e "deus te proteja"
você deveria se chamar "legião"
estou me desintoxicando
limpando os órgãos internos & toda minha poesia
passando o avast no corpo
arrebentei o escapulário de são jorge
lancei pela janela o anel de pentagrama
e dei descarga nos absorventes
que você deixou debaixo da cama
o mundo precisa de mim
as ruas gemem pelos meus pés
eu preciso sair sem você por aí
asas limpas
cabelos ao vento
cigarro acesso
cabeça a mil & uma cidade inteira como amante



FILHADAPUTICES

até logo mais
ela disse
e nunca mais voltou
quanta saudade
daquela filha da puta
e suas filhadaputices


Imagens: Hossein Zare 



Felipe Pauluk é um curitibano residente em Londrina, jogou na loteria da vida e, numa quina fodida, tirou o menor prêmio, a literatura. Tentou se enforcar lançando seu primeiro livro, Meu Tempo de Carne e Osso (2011). Depois vieram algumas contas à pagar e saiu Hit The Road, Jack(2012). Em 2015, foi detido nas redondezas da ala mais perigosa da cidade portando Town. De frente com os homens da lei, ele negou, no entanto, foi provado que se tratava de mais um romance. Pauluk coleciona passagens por poesia-breve, fragmentos e roteiros de clipe. em 2016 a vida não foi diferente, ainda dentro do submundo da literatura cumpriu pena pelo lançamento do comida di butequim (2016), um pocket livro de bolso, considerado uma arma branca de lirismo. Está aí o elemento.


"AGRÁRIA", POEMA DE U.H.LAUTERT

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ocupa
essa terra devoluta
nua
mata impoluta
coisa de ninguém
merece
por justiça humana
ser tomada
encarnada
então,
toma essa terra
se apossa dela
invade seus espaços
vagos
te assenta
nas curvas desabitadas
da gleba
sem culpa
te ocupa
desse solo
finca o mastro nele


enterra
nele
o pau
da tua bandeira
em brasa
finca
nesse chão
enfia
crava o teu arado
revira
com a tua vara
dura
a carne
crua
explora o monte ramoso
com a boca
linguaruda
e chafurda
nos vãos da racha
quente
e úmida
bate forte com o martelo
ereto
força a entrada
do reto
e ara as terras infecundas
da bunda
deixa escorrer o suor
do rosto
mostra o esforço
que antecede o gozo
semeia, enfim, a terra
derrama a semente
joga,
esporra
teu sêmen nela


essa carne
agora impura

é a casa tua


Foto: Carl Warner



*    *    *





U.H.Lautert, carioca de 1971, é editora da EnCaderno. Lançou seu primeiro livro de poemas, "Canção para o Amor e outros poemas", em 2016. 

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