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Eu, João, Madalena e as galinhas escuras - Marcos Samuel Costa

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Ilustração: Heather/ deviantART



Por trás destes panos de luxo,
habita um homem vazio, de luz pouca,
traria agora um espelho
             face-a-face, outrora uma
fo
   to
       gra
             fia        do teu movi
                                             -mento
           visceral interno
colmeia de verme, amontoado
de conchas quebradas,
anil, florescentes pecado,
acalmo os cães João,
Madalena criará apenas galinhas
nesta tarde, amanhã sem memoria
esquecera-te, então somente a mim
terás.


II

Ode de chuva, imaculado,
ódio, dedos nus, João,
madrugada na asa da galinha,
escurecido no peito desta pobre,
trago-a a refeição, alimento de

                  madrugada
                                   e escuridão
morrerás antes de achar a vida,
ô Madalena deixa este homem,
seja teu, tanto quanto meu
           de ninguém
Madalena das galinhas escuras


III

A lenda das aves cansadas de voo,
atravessaram o espelho
da fruta, estão aqui,
           reais
imortais como nós,
isso te deixa feliz?

Lenda que envolve somas,
lamento, o casamento acabou neste
      antes
como a palavra dói,
deixa eu deitar em ti a última vez?




Marcos Samuel Costaé natural de Ponta de Pedras, Arquipélago de Marajó, Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social (FMN), e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. Autor dos livros: Pés no chão e sonhos no ar (edição do autor, 2012), Convites para amar (editora Literacidade, 2013), Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), e Titulado amor (editora Literacidade, 2014), e um em co-autoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux). Participou de mais de 20 antologias literá­rias, entre elas I & II Anuário da Poesia Paraense

Naufrágio - Wanda Monteiro

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Ilustração: Claudia Stanciu



o desejo de ti
submerge

tudo é sede e fome
dentes trincados
fruto proibido

tudo é palavra calada nos lábios
voz abortada no ventre

tudo é grito
do que não disseram as palavras
os olhares ausentes
os gestos extintos

tudo é dor
que sangra no fio da carne
ávida do beijo estancado na boca

tudo é som
desmedido pulsar
sonora matéria que infere e fere
um coração que chove água e sal

tudo é abismo
dor escavada no peito
coberta com migalhas de afeto
misericordioso respeito

tudo é segredo desvelado

tudo é naufrágio
mergulho cego
fúria de marés

embriaguez turva de quase amor

o desejo de ti
é naufrágio




A escritora Wanda Monteiro é uma amazônida, nascida às margens do Rio Amazonas no coração da Amazônia, em Alenquer no Estado do Pará, Brasil. Reside há mais de 25 anos no Estado do Rio de Janeiro, mas, só sente-se em casa quando pisa nos leitos de seus rios e igarapés. Wanda Monteiro publicou dezenas de seus textos poéticos nas Antologias Poesia do Brasil do Proyecto Sur Brazil, participando  dos volumes IX, XI, XIII, XV. lançados no Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul. Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Editora Amazônia, 2009, Poesia; Anverso, Editora Amazônia, 2011, Poesia; Duas Mulheres Entardecendo, Editora Tempo, 2011, Romance escrito em parceria com a escritora Maria Helena Latini;Aquatempo – Sementes líricas, Editora Literacidade, 2016.

2 poemas de Anne Sexton - traducão de Antônio LaCarne

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Disse a Poeta ao Analista

O meu interesse é a palavra. Palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como enxames de abelhas.
Confesso sofrer pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas iguais às abelhas mortas num sótão,
desprendidas de seus olhos amarelos e de suas asas secas.
Sempre acabo por esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra palavra, de educá-la, até que eu tenha algo a ser dito…
mas que não o disse.

O seu interesse é observar as minhas palavras. Mas eu
nada admito. Dou o melhor de mim, por exemplo,
quando escrevo um elogio à uma máquina de níqueis,
naquela noite em Nevada: narrando como a grande sorte
estalou os três sinos sobre a tela vencedora.
Mas se você disser que isso é algo que não o é,
eu enfraquecerei, recordando como minhas mãos soaram engraçadas
e ridículas e repletas 
de crença no dinheiro.


Said the Poet to the Analyst

My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget who one words is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I worth with my best, for instances,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money. 


***


Deuses

A senhora Sexton saiu em busca dos deuses.
Ela então olhou para o céu
– esperando um imenso anjo branco de genitália azul.

Ninguém.

Ela procurou em todos os livros lidos
que cuspiram de volta em suas costas.

Ninguém.

Ela fez uma peregrinação rumo ao grande poeta
e ele arrotou e seu rosto.

Ninguém.

Ela rezou em todas as igrejas do mundo
e aprendeu muito sobre as culturas.

Ninguém.

Ela percorreu o Atlântico, o Pacífico em busca de Deus…

Ninguém.

Ela partiu ao Buda, ao Brahma, às Pirâmides
e descobriu imensos cartões-postais.

Ninguém.

Então ela fez uma viagem de volta à sua própria casa
e os deuses do mundo estavam jogados no vaso sanitário.

Finalmente!
ela gritou,
e trancou a porta.


Gods

Ms. Sexton went out looking for the gods.
She began looking in the sky
—expecting a large white angel with a blue crotch.

No one.

She looked next in all the learned books
and the print spat back at her.

No one.

She made a pilgrimage to the great poet
and he belched in her face.

No one.

She prayed in all the churches of the world
and learned a great deal about culture.

No one.

She went to the Atlantic, the Pacific, for surely God…

No one.

She went to the Buddha, the Brahma, the Pyramids
and found immense postcards.

No one.

Then she journeyed back to her own house
and the gods of the world were shut in the lavatory.

At last!
shecried out,
and locked the door.





Anne Sexton foi o uma poeta americana nascida em 1928, conhecida pelo teor confessional de seus poemas. Fez parte de um movimento literário que retratava na escrita aspectos pessoais e autobiográficos. Ganhou o Pulitzer de poesia em 1967. Durante muitos anos, lutou contra a depressão e após várias tentativas de recuperação, cometeu suicídio em 1974 aos 45 anos de idade.





Antônio LaCarneé um escritor cearense e autor de “Salão Chinês” (Patuá, 2014) e “Elefante-Rei: Poemas B” (CBJE, 2009). Participou da coletânea de contos “A Polêmica Vida do Amor” (Oito e Meio, 2011). Sua contribuição literária está presente em suplementos e revistas literárias. Formado em Letras Inglês pela Universidade Federal do Ceará, atua profissionalmente como professor de língua inglesa e revisor. 

4 poemas de Renan Chiaparini

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Gabriéla

Gabriela tem olhos de mexerica doce em setembro
Gabriela tem cabelos providos de sementes de ayahuasca e
sorrisos de lampião
Gabriela é de virgem, quase libra
Gabriela pinta quadros tarantinescos com a língua
Gabriela escreve pinturas
Gabriela é quase formada em gastronomia
Gabriela é quase formada em direito
Gabriela beira o nada e
é quase tudo
Gabriela planta sorrisos no cerrado atlântico
Procura-se Gabriela em plantas coloridas e garbosas pelo noroeste paulista
Procura-se Gabriela em flores de trombeta ao lado de estrumes naturais ao sol do meio dia no noroeste paulista
Procura-se Gabriela, que fugiu com Belchior, assasinou Paulina, beijou Ney Matogrosso, transou com Paris Hilton e entregou seus filhos ao Criolo
Encontra -se Gabriela nos corações de cordelistas famosos
Encontra-se Gabriela na Casa de Bukowski
Encontra-se Gabriela nas cóleras de Gabriel Garcia Marquez
Busca-se Gabriela pelos vãos de frestas de porta em baladas alternativas
Busca-se Gabriela para personagem em Best Seller
Busca-se Gabriela para suprir vícios
Gabriela não aborta
Gabriela pinta as unhas
Gabriela gosta das unhas curtas para não machucar ninguém
Gabriela é do amem
Gabriela gosta de vermelho
de preto
de laranja
e de mim
Gabriela é filha de Lucia
Irmã de Priscila
Tia de Miguel
e dona de si mesma
Disseram que Gabriela poderia virar verbo
Mas Gabriela é adjetivo análogo à bela
louca
feliz
Gabriela é adjunto adverbial Adversativo entre beleza e loucura
Já fui Gabriela um dia
Já quis Gabriela um dia
e agora, tenho Gabriela Pra sempre
Que mal há de todos quererem ser Gabriela?
e Por que só Gabriela, é
Gabriéla?


A maldita novela de radio

Ouvimos uma novela de radio as
11 da noite de uma história a mais
Que existiu por ai...
Uma história qualquer que
Nunca se fez presente...
Era uma moça que tutelava a ex sogra
Pedindo por um mísero afago de seu
Ex marido.
Ela tinha esperança de que o amor familiar
lhe traria bodas de THC...
Lhe traria Filhos que nunca fumariam crack...
lhe traria seu mais novo velho amor de uma noite de bebedeira
cheirando a trapo velho...
Ela achava que seus vícios seriam céleres e seu amor eterno
Pensava que com ele, não entrariam mais ratos em sua casa.
Que não importava suas falhas, seus vícios, seu cheiro, tampouco suas virtudes.
Ela queria morrer com a merda de um amor conquistado.
Sua conquista de vida pessoal era ter a porra de alguém.
E ouvimos tudo
toda aquela balela
romancista
de tragos de cigarros hollywoodianos
Esperando o ápice para um fim que parece feliz
Mas é triste
Após todas aquelas cenas
imaginativas que
traziam calafrios
nos compusemos e
tomamos 6 dramins para náusea
5 doses de risos para o ego
e levamos um vinho para ficarmos loucos em qualquer rua de qualquer cidade por ai.
Sentamos sobre a rua e nos despimos
eu me despi 26 anos, e ela uns 20 e poucos...
Eu vi
Eu estava lá
Eu vi um Cometa riscando o céu
Parecia um vaga lume
Viajando para o
Infinito
Discutimos sobre
Carmas
Danças contemporâneas
Bebendo um vinho barato
Junto com a musica que ali tocava.
Só clássicos!
Aquela radio me fez pensar que
Poderíamos viver só de clássicos
Só de lanche de
Mortadela defumada
E maionese caseira
E vendo seus olhos
Seus olhos verdes estavam lá
Eu estava lá
Ouvi suas nuances de vida
Sua vontade de ganhar um buquê de flores
Que não seja comprado pela indecência de se viver
Por um amor.
Você sempre quis um buquê de flores
De rosas que nunca murchassem e que você pudesse
Vê-las e admira-las como um amor forte
E eu farei o que se prefiro dar chocolates?
Gosto da efemeridade de um chocolate
Acredito nas nuances do tato da língua com o açúcar.
Acredito que um chocolate é mais real e palpável de quê
um buquê de flores
E que se eu lhe desse chocolates
Seus olhos verdes brilhariam em mim, por mim, naquela noite fria, e que, por um momento
Eu lhe fizesse feliz e amada
Através de chocolates
No meio de toda aquela conversa
Eu parei e
Revi seus olhos verdes de novo
Eles continuavam lá
Eu continuava lá
Eu há 5 minutos era um bêbado transeunte cheio de erros e falhas
Tinha uma vida digna de um garrancho.
Mas ali, perto de você, eu parecia um homem honesto e sagaz.
Meu hálito já cheirava flores
minhas cáries haviam me deixado
e meu cheiro, já era
bom
Olhei seus olhos mais de perto
Senti o toque dos seus lábios
e sua pele arrepiando entre meus dedos
Me lembrei da novela no radio...
e acho que
depois dessas míseras 3 horas
de poucos afagos
percebi que
o idiota aqui
cuidaria da sua mãe
só pra te ver feliz


Imagem: Laernu Sinatas


Menstrua(ação)

Era abril
Quase setembro
Outubro, sei lá!
Sua mãos me arranhavam como
o vento
do
inverno
Seu corpo era um
verão ebulido
As folhas caiam pelos
ventos como em um outono mórbido
E seus olhos eram tulipas azuis no
ápice da primavera
Fases de estação de ano
são turvas em
Terras tupiniquins
Era sábado
Eu sou de libra
E ela queria meu pau com
Ascendente em touro
Havia exatos 4 dias após sua ultima algia
E a cor do prazer era
Vermelha
Enfincava em mim suas
Unhas enquanto
Salivas eram trocadas
Na precisão
de um
conta
Gotas
Estávamos em um quarto branco
Enodoado de
vidas
Enquanto sua
boceta esfregava em minha
Barriga
Virilha
E
Coxa
Pintando toda minha
Alma
De tesão com natas de
menarquia
Ela não me
deixou chupa-la
Pois a
cor do tesão
Era vermelha
Ela Olhava meu pau
Duro com muita
fome
Muita fome!
E o embocou por completo
Me despindo de todas minhas
Ideias.
Após segundos de frenesia intensa, Eu estava perto de um colapso. Minha perna tremia como um terremoto; Sozinha. Ela já sentia meus espasmos em sua boca, então,
Com sua mão direita
Pressionou meu
tronco já inteiro
umedecido
de saliva
Subiu passando seus lábios em
meu corpo e sussurrou
na minha orelha...
“não goza”
Meus dedos já
Sangravam
Fincados no colchão.
E eu olhava para aqueles olhos
De tulipas em frente a mim
Uivando de
dor
Na ânsia de
explodir
E ela,
apertando mais
ainda meu
pau....sorriu e
Disse:
“ Calma.... Calma....”
E então eu disse:
Não solta meu pau!
Não solta meu pau!
Não solta meu pau!
Ali eu era dela
Ali eu era todo dela
Ali eu era o Ares e Hefesto em uma fusão levando flores para Afrodite
Era o crack para o viciado
Era a palavra suicídio para Schopenhauer
Ali éramos as mesmas pessoas
Eu não gozei.
Eu nem podia
Seria injusto.
“Quero gozar em você “ ela me disse
Escalou sobre meu
Corpo,
E de forma lenta
Comeu meu
Pau inteiro
Com aqueles grandes
Lábios de
Batom vermelho sangue
Ela rebolava a sinfonia de Beethoven em meu pau
E quicava ao som de Frank Sinatra
Eu a olhei, e ela estava lá
de corpo ereto
Exuberante. Com a cabeça quase toda inclinada para cima
E os cabelos esvoaçantes, no lugar
Onde ela
Queria estar
Quem sou eu para tirar uma mulher do lugar de onde ela quer estar
Toda mulher deveria sempre, em qualquer caso, em qualquer circunstancia estar no lugar que quiser, da forma que quiser, e do jeito que quiser estar
Este foi o ápice de minha noite
Pouco importa se gozamos
E um brinde a menstruação.


Chato


Eu aqui
Subtraindo de mim mesmo
A ultima gota de
Inspiração para minha
Ultima
Poesia
Eis que
Um som
De uma "escrotisse"
Musical
Vem e entra através das paredes
De meu
Quarto
Como um estupro
Intelectual
Sem que eu
Possa
Fazer nada
Nem um
B.O.
Nadinha
Queria mesmo
Era
Incorrer algo
Maléfico contra
Esses que me depredam nessa
“Horribilidade”
Mas preciso manter
A fama
De bom moço
Até porque
Tenho
Livros
Para
Vender


Fotografia: Linconl Costa   


Renan Chiaparini, 27 anos, é escritor. poeta e ativista.Reside em São José do Rio Preto, formado em Direito e cursando Letras na Universidade Julio Mesquita Filho, (UNESP-IBILCE), já com um livro publicado pela editora MODO de Campo Grande – MG chamado 1° ato, escreve profissionalmente há 4 anos e ministra aulas de poesia em oficinas de Escrita Criativa.

MARIO DOMINGUES - UM POEMA

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A vinha da baleia


Venha, meu amor, beba um gole
de vinho: é uma uva toscana,
a velha terra dos etruscos,
antigo nervo romano.

Venha, meu doce, tome uma taça
para você: esta uva
vem de um vale onde os montes
abraçam a água da chuva.

Foi nestes montes Apeninos,
entre sóis, chuvas e ventos leves
(você tem as mãos tão bonitas
e os dedos tão dormentes),

foi neste dorso de península
que o solo trouxe à luz os ossos
de uma baleia enorme, dócil,
o seu imenso corpo fóssil.

Um dia esta terra foi mar:
desse tempo lhe restou a areia
onde o Tirreno encharca a bota
ondeando as redondezas.

Plantaram vinhas e bebeu-se
vinho, e neste, meu amor,
o mineral e milenar
de sua cor e aroma:

no vinho os segredos lunares
da grande fêmea, esta fruta,
pérola rosa e terrosa,
a terra mais úmida.

Sinto ainda na boca,
depois desse beijo de língua,
o sal do mar dessa baleia
de praia tão longínqua.

Tudo o que quero agora
são beijos de sal e doçura
incontáveis
para, nua, amorná-la.

Beba mais um golinho ainda
desse vinho, o sangue da baleia,
que vaga cantando na taça,
onde tudo se decanta.


Musga (Ed. Mirabilia, 2010)












































































































































































































































  

  

Mario Henrique Dominguesé poeta, autor de Paisagem Transitória (Ed. Ciência do Acidente, 2001) e Musga (Ed. Mirabilia, 2010). Mestre em Letras Clássicas pela USP, é também cotradutor de O tigre de veludo – Alguns poemas de E. E. Cummings, (Ed. UNB, 2006), em parceria com Maurício Mendonça Cardozo e Adalberto Muller Jr.
























































9 poemas de Ruy Proença

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Chema Madoz


TERMÔMETRO


um pássaro pousou na fratura exposta pensando estar num galho. o pássaro não faz ideia do sangue pisado por onde pisa. tampouco faz julgamento moral. o pássaro é um ser lírico. feito para entoar uma ária, que repete pela vida afora, procurando seduzir. fosse um ser político, não assobiava. passava a vida arquitetando artimanhas para nunca deixar a política, nunca perder o poder, nunca perder o poder de decretar o certo e o errado (para si). sabemos que poder e dinheiro gostam de andar juntos. há muitas maneiras de facilitar ou dificultar as coisas quando se quer ganhar dinheiro. há bem poucos homens públicos que não se guiam por dinheiro. Mujicas são raros. os pássaros cantam o que já nasceram predestinados a cantar. papagaios não contam, pois, no máximo, repetem palavras ocas, divertidas. só os músicos poderiam cantar a política. mas estes andam muito deprimidos.
  


 TERAPIA


sempre que fica triste, de mau humor, paralisada, eu a abraço, beijo, saio de dentro de casa com ela no colo e a levo ao quintal para fazer fotossíntese. deposito-a docemente sobre a laje do armário de vassouras e produtos de limpeza e a deixo descansar assim, sob o sol, por meia hora. o efeito se produz aos poucos. as lágrimas vão secando e os olhinhos úmidos voltam a mexer, a piscar. as pernas principiam a pedalar. as mãos batem palmas. essa, a mulher que amo. todos os dias me esforço, rezo, para que se repita esse milagre.


  
HORAS MORTAS


o céu, esse denso azul de metileno, ameaça desabar sobre minha cabeça. vazio, belo, opressivo. meio-dia? pela manhã, Magritte passou varrendo as nuvens e as sombras, e pôs os pássaros da vizinhança para dormir. meu quintal agora é um punhal polido. nenhum ruído de cidade grande. tudo limpo, silêncio. só o gosto amargo do café. faço um esforço extremo para manter a respiração. a romãzeira não se mexe um milímetro. não tenho coragem de entrar. e se os relógios estiverem parados?


  
O TEMPO FORA DO TEMPO


mesa na varanda, vista para o vale. das mãos inaptas da mãe, antes pianista, o vento sequestrou o guardanapo, levou-o cada vez mais alto para o leste, em ziguezague, até tornar-se uma estrela, ferida de mortal beleza pela luz do sol cadente. sentadas ao redor da mesa, a mãe, com Parkinson há muitos anos, e as filhas conversavam. por alguns minutos, deixaram-se levar pelo espanto da flutuante viagem. seguindo o rastro do guardanapo, uma semana depois – 17 de janeiro de 2008 –, a mãe partiu num desastre de automóvel. muito antes, eu sabia do poema visual de Beleza Americana – um saco plástico bailando nos braços do vento. o mundo em suspensão. agora, em 2016, assisto à cena –  Dinamarca, alto de um promontório: um casal de amigos, Gerda e Hans, vê o lenço de seda ser-lhes raptado das mãos pelo vento, num fim de tarde de 1930, e seguir volteando o rastro de sua antiga dona, Lili Elbe (antes o pintor de paisagens Einar Weneger), que partira há algum tempo, convalescente de uma ousada, desejada e malsucedida vaginoplastia.
 


Chema Madoz

  
PROCURO A MORTE


quero morrer. procuro um jeito. já tentei roleta russa com arma. já experimentei salada parcialmente temperada com raticida. realidade ou fantasia? procurei um matador do bairro. pergunto quanto cobraria pra me matar. ele: não, isso não posso fazer. matar a irmã de amigo, não. insisto. sem convencê-lo, resolvo perguntar: quanto custa matar alguém? depende de quem. como começou na profissão? minha família foi morta numa chacina. comecei a matar pra me vingar. o primeiro foi mais difícil, depois acostuma. passou um tempo, fiz um aborto. abortar é uma mistura de homicídio com suicídio. a gente acostuma. hoje trabalho como cuidadora de doentes e idosos. sempre gostei. meu pai morreu. preciso falar sobre isto.



SELF-MADE WOMAN


Mara, aliás, srta. Marildes, como faz questão de ser chamada depois que se divorciou, é uma funcionária exemplar. dedicada, com iniciativa, mandona. vive para lá do Jardim Ângela. pega dois ônibus todos os dias para vir ao trabalho. 1,5 horas na vinda, 2 horas na volta, todo santo dia. srta. Marildes tem um filho já grande para criar, Huang, quase adulto, que não gosta de estudar; prefere o celular, o videogame, a internet, o tempo todo, todo dia. srta. Marildes ama shopping. gostaria de fazer carreira, mas não teve formação escolar. no início, ainda tentou um supletivo à noite, mas o tempo não deu. conta apenas, pois, com sua força de vontade. começou na faxina, passou a recepcionista (malcriada ao telefone com os clientes – a vida é muito sofrida) e hoje é auxiliar de secretária. trabalha dentro da sala do sócio-presidente. é uma pessoa feliz, a srta. Marildes. gosta de fazer selfies com os colegas. mas se sente um tanto prejudicada. deixou pais e irmãos no Maranhão, na roça, para fazer a vida em São Paulo. a maior parte do tempo, sente saudades.



MÓBILE


a escultura Black Widow (Viúva Negra) de Alexander Calder foi doada ao Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento São Paulo, em 1954, lá estando bem tombada e integrada. o instituto fica à rua Bento Freitas, 306, 4º andar – Vila Buarque. o móbile tem 3,5 m de altura. ontem, 27 de junho de 2015, 97º aniversário do nascimento de Guimarães Rosa, fui a uma conferência de Rafael RG (criador do museu da arte invisível) sobre obras de arte roubadas. a palestra versava sobre o roubo ocorrido no museu da Chácara do Céu, no bairro Santa Teresa, Rio de Janeiro, em 24 de fevereiro de 2006, uma sexta-feira de carnaval. os ladrões levaram as obras Les deux balcons, de Dalí, La danse, de Picasso, Marine, de Monet, e Jardin du Luxembourg, de Matisse. além disso, os bandidos quebraram uma vitrine para levar uma edição de Toros, livro de gravuras de Picasso. a facilidade com que esse e outros roubos são praticados, sugere a Daniel, um dos ouvintes, que alguém possa pensar que a escultura Black Widow, exposta no IAB, talvez estivesse mais segura em sua propriedade privada. então, não seria difícil produzir uma réplica perfeita e, com algum planejamento e ajuda, quando a ocasião se fizesse, retirar o original e pendurar a cópia em seu lugar. essencial, porém, uma questão se impõe. quantos já não terão tido a mesma ideia? quem garante que o móbile de Calder exposto no 4º andar do prédio do IAB, no nº 306 da Bento Freitas, não seja já a oitava ou nona cópia de um original há muito desaparecido?



NO BUTÃO


meu marido tem uma amante. pensei em falar com ele, mas não tenho coragem. para onde eu iria? tem um lugar. minha filha aprendeu na escola. todo mundo é feliz no Butão (em 2006, após pesquisa global, a revista BusinessWeek avaliou o Butão o país mais feliz da Ásia e o oitavo país mais feliz do mundo). em vez de Produto Interno Bruto, só Felicidade Nacional Bruta. você está ouvindo a Rádio Butão? e se tivéssemos isso aqui? e se eu fosse para o Butão com você? você anda muito distraído! é? minha mãe sempre dizia: às vezes, o trem errado leva à estação certa.


 
GÊMEOS


levito. os pés descolaram do chão. estou como o pobre padre Adelir, que se pendurou em balões de hélio – mil balões de festa coloridos – e desapareceu mar adentro. dizem as afiadas línguas que ganhou o prêmio Darwin por ter se eliminado da espécie. um sentimento me aquece, me torna mais leve do que o ar. eu, balão sem balões. a brisa sopra para o alto, para longe. navego sem instrumentos de bordo além do meu desejo e de meus sentidos. ikrek em húngaro quer dizer gêmeos. palavra crocante. miro a cidade pontiaguda sem saber onde nem como pousar. o padre olhou assim o mar. fascínio e desespero. sou aprendiz.


 para Ricardo Rizzo

Marisa Proença

SOBRE O AUTOR

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007); Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg (Espectro Editorial, 2015). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas(Editora 34, 2007) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).





























Tirza, de Arnon Grunberg – Literatura com caleidoscópio

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Por Adriane Garcia

Estive, por uma semana, às voltas com Tirza, de Arnon Grunberg (editora Rádio Londres). Tadeu Sarmento já havia devorado o livro e o recomendava com veemência. Assim, furei a fila de leituras e lá fui eu. Já nas primeiras páginas, sem nenhum arrependimento.

Tirza é um romance único, uma história envolvente do início ao fim. A ideia que me veio foi a de um caleidoscópio, brinquedo feito a partir de cacos de espelhos e cujas cores aparecem de forma inesperada.  Assim é o personagem protagonista,  Jörgen Hofmeester, um homem que vai nos dando os cacos de seus espelhos para que tentemos vê-lo inteiro, mas, como num caleidoscópio, o que vemos é desordenado e, ao mesmo tempo, íntegro. Hofmeester quer desaparecer.

A construção desse personagem é uma aula de composição. Dele, tudo se suspeita, mas nada assegura certeza ao leitor. O narrador, em terceira pessoa, parece estar constantemente a meio palmo de distância de Hofmeester. Essa proximidade faz com que o leitor sinta estar na casa, no quarto, na cozinha, na mente do protagonista; dá a impressão de que lhe acompanha o ato, lembrança, momento narrado, com a veracidade não dos fatos, mas desta única versão que possui, e que é totalizante.

Pai de família, abandonado pela esposa – que saiu em busca de seu amor de juventude – tendo ficado responsável pela educação das duas filhas, Hofmeester é um homem de meia idade, de classe média, procurando manter sua vida, cheia de fracassos, sob controle. E controle talvez seja a palavra chave deste livro. Para auxiliar a si mesmo na recomposição de si, o ser fragmentário que tenta não dar vazão aos instintos, Hofmeester resolve se alojar na paternidade. Quando a filha mais velha desiste da carreira acadêmica, sonhada pelo pai, e parte para a França, para ser proprietária de uma pousada, Hofmeester fica apenas com Tirza,  a filha mais nova, essa personagem que ocupa seu pensamento como uma obsessão, como a obsessão por uma salvação única, ou mesmo como a obsessão por uma amante. Quanto mais o protagonista pratica seu autocontrole, mais o leitor se vê diante de uma desconfiança. Tirza é um romance em que sabemos, todo o tempo, e ficamos em estado de alerta: algo vai acontecer. 

A narrativa se inicia exatamente no momento em que o pai começa os preparativos para a festa de Tirza, decidida a ir conhecer a África, após a formatura do ensino médio. Para agravar a situação, a esposa que sumira reaparece como se nada tivesse acontecido. Daqui, eu não poderia mais descrever a história sem privar o leitor das surpresas deste livro. Mas saiba, é um livro que vai longe, Arnon Grunberg nos leva a nós mesmos, como raça; à lembrança de algumas ideias psicanalíticas que desvendaram tanto sobre nós. Quanto custa ao humano civilizar-se? Qual o tamanho da angústia individual para formar o todo pacífico coletivo? Quanto desse todo é possível, já que a civilização gera pessoas doentes? Que tipo de ilusão é essa chamada civilização ou que garantia oferece? O que teríamos que extirpar de todos os seres humanos para obter uma civilização sincera, que fosse mais que aparências? Não por acaso, parte dessa história irá se localizar na África, continente de origem, continente que, no senso comum, ocupa o imaginário como o local das feras, da pobreza material, do encontro do homem com o solo, com a natureza, com o deserto. 

São quatrocentas e sessenta páginas, fluindo vigorosamente. Viaje com Hofmeester. O livro tem recebido muitas leituras e elogios. Arnon Grunberg os mereceu. 

"Tirza dava festas com frequência, mas esta noite era diferente. Assim como vidas, festas podem fracassar ou ser um sucesso. Embora Tirza não tenha dito, Hofmeester sente que muito depende desta noite. Tirza, sua filha mais nova, a mais bem-sucedida. Extremamente bem-sucedida, tanto por dentro quanto por fora.
Hofmeester arregaçou as mangas da camisa. Para se proteger das manchas, ele está usando um avental que comprou certa vez como presente de Dia das Mães. Do seu ponto de vista, está bastante másculo. Não se barbeava há seis dias. Não teve tempo. Logo depois de se levantar, era tomado por pensamentos que nunca tinha tido antes, não nessa proporção: planos, lembranças das filhas quando ainda mal podiam engatinhar, ideias que de manhã cedo lhe pareciam brilhantes. Mais tarde faria a barba rapidamente. Quer se mostrar bem-apessoado e charmoso. Os convidados deverão vê-lo desta forma: um homem que não viveu em vão.
Circulará com sushis e sashimis bem-arrumados numa travessa comprada na loja japonesa especialmente para a ocasião. Com este ou aquele trocará algumas palavras e dirá casualmente: "Prove o sashimi de lula." Um pai abnegado, isso é o que será . O segredo da paternidade: abnegar-se. O amor dos pais é o sacrifício silencioso. Todo amor é um sacrifício. Ninguém vai reparar nele. Também não há nada para reparar. (...)"


Tirza
Arnon Grunberg
Tradução de Mariângela Guimarães
Ficção holandesa
2015
Editora Rádio Londres

DO CORPO

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O Corpo Fragmentado (Marie Luise Emmermann)

Na tendência da sobrancelha,
Um corte, ou uma falha?
No ombro dos lábios um ato falho
(Mas qual não é?).
Na vagina do dedo
Um sinal ereto de atenção.
No caminho do ventre
Uma engruvínea escavação.
Na sola do pé uma pespegada
Tendência à desolação.
No sol do sonho do joelho
Um verme a confundi-lo
Com uma maçã.
Na penugem capilar
Um pequeno e revolto mar
Tentando soçobrar o deserto.
Na sombrícula da zona orbital
Outra penugem de luz. 

Article 1

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Imagem retirada do Google

A sombra está faminta.
Com um vago revoluteio
Engole um seio, deixando o outro
Salvo pela resistência da claridade.
É preciso devorar a claridade,
Seu sorriso aberto e salvífico,
Sua vida nervosa, vibrante.
A sombra quer expandir
Sua velhice, sua mordida de paz,
O descanso que é sua fome voraz,
A oferta de sua morte.
A passante, meio de luto,
Dor majestosa e luz cintilante,
Não faz muito caso da luta
Que carrega nos próprios passos. 

S-E-P-A-R-A-Ç-Ã-O - Silas Corrêa Leite

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Ilustração: Sébastien



“Flor-de-ir-embora
É flor que se alimenta
Do que a gente chora”

Fátima Guedes


Você me dá um revólver com uma bala só, e me pergunta “se eu vou ficar bem?”. Quem é você que finalmente se revela agora? Não, não olhe pra mim, olhe para você... você sabe o que está sendo?

Lembre-se que é você quem está indo embora. Eu vou ficar aqui caído para sempre. Ir embora é me levar, se deixar levar, ter bagagem e nenhum conteúdo ralo de inconsciência.

Ficar só é triste, é doloroso, é neutro, quase um não ser, num entre-lugar, bem perto do fatídico não-lugar. Como é que você sabe o depois de mim, se já não cabe em si, não me é nada mais agora, abriu mão do “Nós”.

Silencie sobre a sua ida. Cale-se o adeus que já está no ar. Se arrependimento matasse, eu me morreria muito antes de conhecer você, de amar você. Fique onde está.

Mesmo se indo, a sua presença restará sempre aí, ao lado do meu inerte corpo atirado aqui. A fumaça da arma como uma sentença final dada por você, misturar-se-á com o espectro final de sua ultima antiga imagem sem remorso.

Quando vierem finalmente recolher os meus ossos secos, o seu triste adeus ainda estará impregnado no ar do instante-trevas; parado dentro do espectro do seu maldito adeus.

Fixando a dor da despedida cortada de lágrimas invisíveis.

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Fragmento de Uma Cena Final de Tragédia de Amor Arrebentado



Silas Corrêa Leite, Educador, Jornalista Comunitário e conselheiro diplomado em Direitos Humanos. De Itararé-SP.  Autor entre outros de Porta-Lapsos, Poemas, Editora All-Print (SP); Campo de Trigo Com Corvos, Contos premiados, Editora Design (SC), obra finalista do prêmio Telecom, Portugal 2007;  O Homem Que Virou Cerveja, Crônicas Hilárias de um Poeta Boêmio, livro ganhador do Prêmio Valdeck Almeida de Jesus, Salvador Bahia, 2009, Primus Editorial, SP; GOTO,A Lenda do reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, Editora Clube de Autores, Romance, 2014, O Menino Que Queria Ser Super-herói, e GUTE GUTE Barriga Experimental de Repertório, Romance Infanto juvenil, ambos a venda no site Amazon, entre outros. Seu e-book de sucesso O Rinoceronte de Clarice, onze ficções, cada uma com três finais, um feliz, um de tragédia e um terceiro final politicamente incorreto, por ser pioneiro, foi destaque na mídia como O Estadão, Jornal da Tarde, Folha de SP, Diário Popular, Revista Época, Revista Ao Mestre Com Carinho, Revista Kalunga, Revista da Web, Minha Revista (RJ). e também na rede televisiva, Programa “Metrópolis”/TV Cultura; Rede Band/Programa “Momento Cultural”; Rede 21-Programa “Na Berlinda”, Programa “Provocações”, TV Cultura/Antonio Abujamra. 

3 poemas de "Forasteira" de Bárbara Lia

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Eu tive uma briga de amantes com este mundo.
Robert Frost


Já sentiu que o chão não acaricia os pés e o céu não agasalha?
Sentiu o vento da indiferença em cada rua e cada aposento?
O bafo do descaso pelos corredores, os olhares atravessados e os sussurros à sua passagem?
Já bebeu o fel amargo da água que nunca é tua, o poço que nega a veia da partilha e portas fechando-se à sua passagem?
Sabe o que é ser forasteira do berço ao túmulo?
Eu sei
Eu sou

***


Sou um estilhaço de estrela
Que passou uma temporada
Plantando rosas no inferno
Sou uma menina cega e muda
Que viveu no Lupanar de Pompeia
Sou uma guerreira destroçada
Que desaba aos pés da deusa
A ela entrega a rosa impossível
E murmura: eu a colhi!


***


Dimensão Angústia

Na dimensão angústia não cabe o sabor felicidade
Dança de folhas vivas - balé de sombras na janela
Som de sinos dos ventos a invadir veias – letargia
Carpe diem Sinatra rosa quartzo chantilly no lábio
O doce macio flutuante rascante (nuvem na veia)
Na dimensão angústia olhar degela - piche fétido
Negra lágrima rasga a pele açucarada de perdas
“Perder é uma arte”, diz Bishop – poetas mentem!    
Raça enganosa a esculpir torpes desvios para o fim
Diz para mim que água eles bebem? De que fonte?
Diz em que lugar penduram seus corações de feltro?
Onde os poetas leem suas doutrinas embaralhadas?
O que os leva ao rito estoico? A propalar belezas?
Na dimensão angústia nada sobrevive, e eles seguem
Pintando muros bradando versos tecendo a sangue
E o mundo vai virar escárnio e vai virar inferno...
Ainda assim eles estarão lá a bradar: em algum lugar
Em algum lugar eles viram um pássaro raro e único
Em algum lugar eles encontraram a nascente do céu
Em algum lugar um homem era feliz, além da dor -
Atrás do muro da vergonha. As formigas cantam
As borboletas governam e o poeta insiste, abissal
Reinventa Deus sem cerimônia e grita e grita e grita
Na dimensão angústia alguém corta sua garganta
No dia seguinte o pai diz à filha que é permitido
Na casa em frente o velho abandonado caminha
As paredes rugem dor milenar a gritar a morte
O velho está morto e não sabe e caminha e sorri
Na cadeira corpo morto emite gases ele não sabe
Que os mortos seguem mortos na sala vendo TV
Nada cessa na dimensão angústia, desmorona tudo
Só o poeta segue a tecer haicais e versos brancos
Milhares de pílulas de otimismo e doce paisagem
A dimensão angústia clama um verso purulento
Um verso ao menos que exale o cenário cruel
Um verso que diga que o mundo apodreceu há dias
Enquanto um poeta dizia da luz clara de Maria
Ou da onda azul que morreu aos pés da santa
Ou daquela tarde em que foi feliz em Biarritz
Alguma coisa qualquer que lembra ananás e flor
Esta epopeia insana: viver no mundo das matinês
Technicolor estupendo - sorriso de Marilyn Monroe -
Vendo um filme antigo na tela e o mundo lá fora
Dimensão angústia que – dia a dia – deteriora



 Ilustração – Eleusis by Marcin Owczarek



Fotografia: Daniel Castellano
Bárbara Lianasceu em Assai (PR). Poeta e Escritora. Professora de História. Publicou dez livros, entre eles: O sorriso de Leonardo(Kafka edições baratas), O sal das rosas(Lumme), A última chuva (ME), Constelação de Ossos (Vidráguas), Paraísos de Pedra (Penalux), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR) e Respirar (Ed. do autor). Integra várias Antologias, entre elas: O que é Poesia? (Confraria do Vento / Cáliban), O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar -  Verbo Atemporal (Rocco), Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo). Vive em Curitiba.

Carma - Cinthia Kriemler

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Ilustração: Lee Jefriees


Dezoito anos sem um teto. Dezoito. Ela gosta dos números pares. Duas meias de lã, duas luvas de lã, dois sapatos, dois brincos de argola vagabundos. Escondidos no carrinho de supermercado parado ao lado da barraca improvisada com panos velhos. Na rua, nada está a salvo. Tem roubo. Tem porrada. Tem sangue pingando na calçada. Por causa de um barbante, de um jornal velho, de meia garrafa de pinga, de um papelão rasgado. Na rua, morre-se por um par. De luvas, de meias, de sapatos. Com a garganta cortada. Durante o sono pesado do porre de cadanoite; de todas as noites. Na rua, dormir é luxo. Coisa de bêbado burro.
Ela se levanta às seis da manhã. Todo dia. Abre o saco de aniagem que ganhou na padaria. Confere cada item. Calça, uma a uma, um a um, luvas, meias e sapatos, e enrola no pescoço o cachecol comprido que encontrou no lixo faz alguns anos. Ela tem sorte. Sempre encontra o melhor descarte. E ainda ganha coisas boas das pessoas. Ela tem jeito de gente honesta. Não incomoda. Não toca no braço. Não cerca. Não insiste. Não grita. Não rouba. Já roubou. Muito. Mas não rouba mais. Pede. Troca latinhas e garrafas. Recebe pão, esmola, roupa velha, cobertor, sorriso. Trocas. Já roubou, sim. E já fez outras coisas.  Não interessa. Agora, ela só faz o que quer.
Dezoito anos que fugiu das porradas da mãe drogada. Surra após surra. Porque não vendia todas as balas. Porque o dinheiro não dava para comprar outra pedra de crack. Porque se recusava a ser estuprada pelos homens para quem a mãe a oferecia. Não adiantou de nada. Destino é foda. Carma. Palavra forte. Ouviu de uma mulher que pastoreava carros no estacionamento do teatro. Carma. Carma. Carma. Carma. O dela era bem ruim.
Quando fugiu de casa, carregou três coisas. O retrato de um artista americano recortado de uma revista antiga (dizia para si mesma que era o pai que não tinha conhecido); uma fé tão ingênua que era quase esperança; e a virgindade, intacta graças ao facão que encostava no meio das pernas dos homens que tentavam trepar com ela.
Perdeu as três coisas nos primeiro mês. O retrato, encharcado durante uma tempestade. A virgindade, na curra de quatro bêbados que ainda por cima bateram muito nela. A fé, destruída por cada caralho imundo que se enfiou dentro dela. Naquela noite e em muitas outras. Chorou no dia da curra. E sangrou. Depois que o choro e o sangue secaram, sentiu alívio. Perder tudo assim, de uma vez. Restar mais nada. Apenas realidade, essa ferida que só dói no primeiro corte. Sorte dela aprender assim tão rápido, tão de uma vez.
Fez a vida nas ruas. Trepou, fodeu. Abriu as pernas para qualquer um que pagasse ou lhe desse alguma coisa. Dinheiro, droga, boneca, casaco, comida, batom. Trepou em beco, em mato, em ferrovia, embaixo de ponte. Entrou em carro para fazer boquete. Em carro. Um deslumbre. Aquele cheiro bom que vinha dos bancos. Os vidros parecendo uma vitrine; separando dois mundos. Queria ter um carro. Ia morar dentro dele, pensou enquanto chupava o pau nojento do homem que gemia e puxava os cabelos dela como se fossem rédeas.
Pegou barriga três vezes. Tirou dois. Um vingou. Descuido. Só percebeu quando não tinha mais o que fazer. Ninguém quis fazer. Ela tentou sozinha. Não deu certo. Sangrou tanto que foi levada para o hospital pelas mulheres da caridade que passavam uma vez por semana. Ninguém desconfiou dela. Ou sei lá. Desconfiou. Médico sabe. Mas achou melhor fingir que o sangramento era natural. A enfermeira lhe deu um remédio e a pôs numa maca suja e estreita no corredor. Dormiu feliz. Pensando em como era bom dormir numa cama. Esquecida de que a criança ainda estava dentro dela, viva.
Acordou mãe. Convicta. Ia ter a cria, ia lutar por ela. Um pedaço de carne que tinha forças para sobreviver a tanto pau espetado no útero merecia viver. Nem faltava muito. Três meses. E ela começando a imaginar coisas demais. Pensando na cara do menino. Na cor do menino. Eram tantas as cores dos homens com quem trepava. Pensando no nome do menino.
Nasceu menina. Magra, calada, parecida com ela. Não, menina não! Que pesadelo da porra! Ela não ia criar carne para nenhum fodido estuprar. Preferiu não dar nome para a criança calada. Fez bem. Não ia viver mesmo a infeliz. Ela sem leite, a caridade deixando alguma coisa uma vez por semana. Ela sem poder fazer a vida.
Tem tempo. Mas ela ainda se lembra. Da menina arroxeando numa madrugada gelada. Do cobertor fino, cinza, enrolado no corpinho pequeno. Da morte feito passarinho, sem soltar um som. Teve inveja de uma passagem tão bonita. Queria morrer igual. Sem piar. E ficou lá muito tempo, olhando aquele rosto sem nome. Depois, aconchegou a menina nos braços, como gente viva. Caminhou muito tempo. Com pressa. Precisava chegar a um lugar antes que fosse de manhã. Quando deitou o corpo miúdo da criança na escadaria da igreja, faltava pouco para a primeira missa começar. Às sete horas algumas pessoas chegariam. Algumas delas veriam o cobertor e se aproximariam. Um susto, um grito, um choro. Olhos procurando ao redor tentando achar a filha da puta que tinha deixado a menina morrer. Ela já estaria longe. De volta para o seu canto sem igreja, sem hospital, sem cobertor. A pequenina ia ganhar solo sagrado no dia seguinte. Em cova rasa, como qualquer pobre fodido. Mas ia. Que esse povo de igreja não deixa ninguém sem enterro, sem reza.
Porra. Não é para ficar lembrando a cria morta. As coisas que o tempo leva pertencem ao tempo. Carma. Carma. Carma. Duas meias de lã, duas luvas de lã. Guardadas porque o dia esquentou. Dois sapatos de homem de tamanho grande. Calçados para proteger os pés do asfalto quente e das calçadas imundas. Sapatos de pedir esmola. Encontrados no lixo. Tão novos que deveriam ser de gente que morreu. Falta pendurar nas orelhas pretas de sujeira o par de brincos de argola vagabundos. Ela gosta de números pares. E de pensar na morte dos passarinhos.



Cinthia Kriemleré contista. Carioca, mora em Brasília. É autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (Editora Patuá, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Editora Patuá, 2014); Do todo que me cerca (Editora Patuá, 2012); Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Participa de diversas antologias de contos, minicontos e poemas. Publica na Revista Samizdat todo dia 16. Tem textos publicados também em:Escritoras Suicidas, Gente de Palavra, Germina, Diversos Afins, Conto Afora, Revista Biografia, O que é o jantar? (blog português), Revista InComunidade (portuguesa).

4 poemas de José Antônio Cavalcanti

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Barco migrante


Hora de fechar-
se
o caracol
na concha
que o mar
quer
por que
quer
tsunamizar-
se
as lágrimas de crocodilo
desceram o rio Nilo
já estão a se avolumar
em ondas de dez metros
de encenação
o mar plastificado
sans fraternité
pulsa
a cem metros do litoral
l'égalité
barco à deriva
la liberté.

Neurodemônios

No cérebro,
pela medula espinhal,
exército vindo
de estados terminais
avança contra a linguagem.

Invisível no espectro
de ampliação mais vasta,
devasta as muralhas
espalhadas por décadas
de combates violentos
sempre terminados
em 0 X 0.

Nervos rompidos,
falência múltipla
de qualquer sentido;
crimes e carnificinas
caem no esquecimento
como o nome da mulher de bermuda preta,
havaianas lilás entre joanetes,
lenço na cabeça
atravessada por bala perdida.

Volta

Voltar de viagem
e não caber mais no corpo
habitar o ponto
onde extremos se tocam
ser o rosto que fecha os olhos
e o vulto do outro lado
incapaz de enxergar o limbo
apesar de olhos bem abertos

tanto deixar de ver
e ver-se
que a face escapa do foco
para se instalar no vácuo.

Hotel suspenso

Por uma fresta
entre a janela e a cortina
entra um suspeito de asas
à procura de pouso e almoço.

Hierático,
suspenso em silêncio na neblina
da lateral esquerda do quarto barato em Ouro Preto,
olho com ódio o hóspede inoportuno.

Permaneço imóvel
enquanto os olhos rezam promessas,
apesar do intruso miserável.

Não posso perder
o ouro fino da memória de teu corpo
na ladeira sinuosa
que sobe pedras e serpentes
de lençóis puídos
até o ponto mais alto da ausência.





José Antônio Cavalcanti. Contista, ensaísta, poeta e professor. Autor de Anarquipélago– poemas (Ibis Libris, 2013), Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst– tese (Annablume, 2014), Fora de forma & outros foras– contos (Ibis Libris, 2015) e Movimento Suspeito– poemas (Urutau, 2016). Mantém o blog Poemas da página que falta (aqui).



5 poemas do "Lábios-Mariposa" de Rosa Maria Mano

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Ilustração: Katerina Plotnikova



ENTERRO FUNDO MEUS DEDOS DE INVERNO

"O inverno tem dedos azulados para o banquete dos fungos e a terra dorme"
Andréia Carvalho Gavita

...e os meus, de azul cobalto,
reviram as raízes sob a terra.
É um vício delicado. Serpentear sob o barro,
colher as últimas flores de maio,
encher o coração de brancos pendões de estrelas-d'alva.
Dedos de azul, fincados, onde a sementeira prepara
uma estação mais úmida.
Preparo, eu mesma, os setembros
chuvosos, de verdes ramas intocadas ainda.
O sono da terra me compromete.
O solo e a pedra guardam em mim o segredo das fontes.
Sob a lua, nos veios da terra,
enterro fundo meus dedos de inverno.



O SEGREDO DE DEUS

Lenine tem razão.
A vida é tão rara...

E nos atira no meio de um giro que nunca termina,
um pouco mais de esgarçar a alma,
um muito de tudo cozinhando a fala,
o gozo e o pavor da condição humana.
E remenda a carne que já foi inteira.
A vida sabe ser nojo, crueza com a dor da gente.
Fácil desistir dela... que tem mordedura fera. 
Que escarra a sua ferida e gela no fundo do rio.
Fácil a paixão por ela. No bico do beija-flor, 
na desmedida mistura 
que ela faz de sangue e bruma.
No que edifica na espuma, nas escarchas espinhosas, 
nos lagos que bebem lua.

Eu quero ser um girassol mutante.
Um caminho azul para mim mesma.
Ter mais que solidão, filhos e sonhos.
Beber da vida o que não é visível.
Quero o segredo de Deus.
Sua garganta. E seu banquete 
de vidros sobre a mesa.



AS CORES SABEM GRITAR
Para Claire Alice Jean

Somos todas lama e gesto.
O que não diz a voz, que limitada.
Somos nas cores quase imanifestas
e nas que inventamos, intuímos, captamos.
Sons de gargantas de alvoradas.
Da pedra brotam gritos e chamados
que o útero da Terra pariu nos seus primórdios.
Ouvir é ter as mãos em chamas.
Somos filhas e amantes, berços e sepulturas.
Onde o sol caminha lento de manhã,
a língua furta um sabor de compreender,
a pele cavalga o corpo sem arreios,
a água distrai o medo de escorrer.



TRANSVERSO

Minha alma espocou com um pós-destino,
inclinada em transverso, atenta,
não sei bem se por conta
de umas águas que já vieram com ela,
translúcidas, azuladas, cheias
 
de luas cheias – de outras luas.
Ou susto da pele encarnada,
tecida de uns inconformes.
Com um capuz de invisibilidade,
uma estrela na nuca que se mudou
do silêncio e me deixa ouvir seu pensamento.
Saio com ela quando está chovendo
e me despeço dos olhos e da fala.
Eu – fora dela. Ela – fora de mim.
Cavalgo seu dorso e finco esporas,
com a ponta da estrela esfolando as costas.



ANÔNIMA

Anônima água e sem mistério.
O cheiro dela infernizando a sala,
chamando pra ser. Solta e indomável.
Não sei onde começa, porque verte em tudo.
É uma liga entre mim e o visgo
que a noite planta sobre os arvoredos
carregando coisas antigas.
Meu nariz, os cordames do violão partido ao meio,
o quebra nozes que não dancei.
Leva meus sapatos, os frutos
que apodreciam na cesta.
Leva meus olhos que não sabem 
o endereço da lágrima.
Pra onde ir quando ela vira torvelinho?
Passa por meus ombros, pelos pães
acabados de cozer na pedra ao largo da estrada.
Leva o trigo, o gosto, o ouro do sol.
Passa por minhas pernas, pelas algas
adormecidas entre cerejas e conchas.
Leva o gozo, íntimos laços, mistura os líquidos.
Anônima água engole uma lua inteira.
Quebra meu braço, preenche o ventre cego.
Desliza em mim, peixe afogado.



ROSA MARIA MANO, Mariana de São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras . Licencianda em História, pela Universidade Estácio de Sá. Premiada no Concurso de Poesia do SESC – Rio de Janeiro de 1999, tendo A Lua Negra em primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo concurso. Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016. Publicou: Fruto Mulher – coletânea de poesia–  coautora, Autoras: Rosa Maria Mano, 1982,Ed. Semente, São Paulo; Xamã,1983,  Poesia – Companhia Litográfica Brasileira, São Paulo; Três Marias e um Cometa, Conto infanto-juvenil, 1985, Companhia Editora Nacional;  O Gato, Conto,  1998, D.O. Leitura, São Paulo; Coletânea Prêmio SESC de Poesia, 2000, Editado pelo SESC, Rio de Janeiro;  Vento na Saia, poesia, 2015, eBookAmazon/Kindle. Publicando, atualmente, nas revistas eletrônicas: Mallarmargens, Revista Carlos Zemeck,  O RelevO. Colaboradora da Revista do Choro.

cala cala estrelinha - quatro poemas de Emmanuel Santiago

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Screenshot "The girl with all the gifts"





Alegoria


Quimeras
na câmara
de gás; seus corpos
caleidoscópicos
se decompõem
na aurora boreal.

Valquírias psicóticas
circuncidam uma locomotiva.

Despenca
a cabeça
do grande
girassol
de chumbo.

Gárgulas arregaladas
copulam sobre o túmulo
dos homens de vidro
e o espírito de Deus
paira sobre a face das
águas, boiando afogado,
feito uma carcaça de boi.




A chuva não veio


A chuva não veio
dispersar a areia
que satura o ar, não
veio lavar as calçadas
do sangue fresco, do
mijo seco, das seringas
e camisinhas usadas, de
nosso medo, que escorre
pelos poros dos muros.

A chuva não veio,
não veio o alívio,
o orvalho converteu-
-se em cinzas
e agora sufoca
a tundra noturna
do solo lunar.

A chuva, afinal, não
veio (como um cachorro
sarnento) lamber as feridas
do cadáver furado à bala
no fim de semana.

Ficamos esperando
que a chuva, lírica,
venha dessedentar
nossos sonhos desidratados,
mas a noite
é de concreto armado:
impermeável ao gozo

(mas a noite
é esse gosto
de chumbo
que fica no horizonte
depois do último gole
de crepúsculo).

Não choveu, mas,
mesmo que chovesse,
a alma é esse deserto de sal,
onde o verde não deita
suas risonhas raízes.




Acalanto para Mariana


A barragem rebentou:
toneladas de entranhas
(sanguinolentas
lesmas) vazaram
sobre o vilarejo,
o pequeno vilarejo
de Bento Rodrigues.

Com a boca banguela,
a lama engole as casas,
lambe esqueletos de gente,
de bicho, de gente, e chupa
o ventre da terra até sobrar
só o bagaço, até
soçobrar o bagaço.

O Rio Doce sufoca
de tanta lama; os
peixes perdem o gume
e morrem cegos, lâminas
corroídas de tétano;
o Caboclo D’Água
agoniza à flor do coágulo
que era o Rio Doce e já
não é mais; o rio apodrece
feito um cadáver insepulto.

A lama tritura
gente e bicho,
suas moles engrenagens
moem a paisagem, emporcalham
as barbas de Deus.

Revolveram
o miolo da terra
e a terra, solúvel,
tornou-se lodo venenoso
e envolveu nossas crianças
num abraço ácido.

Noventa por cento de ferro nas calçadas,
trinta mortos boiando na lama.
Agora dorme, Mariana!




Soneto decadentista


A noite, encurralada entre os prédios de Sampa,
debate-se qual pombo estúpido e ferido;
suas asas sem fim, em tremendo alarido,
fecham-se sobre nós — uma terrível campa!

O céu, feito um tecido esgarçado, se estampa
em grande confusão de estrelas e resíduos,
onde adeja o Desejo à luz do luar lívido,
mariposa febril em torno de uma lâmpada.

Em madrugadas como esta, de tédio e insônia,
concebo uma visão fascinante e medonha:
chega perto de mim um vulto de mulher

altivo e decadente, arcanjo e prostituta,
que me oferece, atroz, um gole de cicuta;
eis a Musa — não é? —, meu brother Baudelaire.






Emmanuel Santiagoé poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de Pavão bizarro (poemas) e A narração dificultosa (crítica literária).

A ironia deliciosa na literatura de Adriana Brunstein

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eu acredito. em propagandas de detergentes que rendem mais. eu pago mais caro por eles. acredito nas previsões de 6.3 na escala Richter num ponto remoto do japão. acredito em terapias com crochê e em dicas de manuais de boas maneiras. acredito nos eletrodomésticos do Polishop e no vale-brinde de uma dose de felicidade sem colesterol. acredito em cupons da Reader's Digest e no esmalte que não descasca quando tentamos a sorte em raspadinhas. acredito em saudade e em qualquer um que diga que foi o primeiro a exclamar que saudade é uma palavra que só existe em português. acredito no amor inteligente dos filmes noir e em fantasmas traídos que ocupam velhas casas abandonadas. acredito na autenticidade dos reality shows e em edições não tendenciosas de debates políticos. acredito em sinais de SOS emitidos em madrugadas silenciosas e em senhoras que discam incessantemente o 156 do PSIU. acredito na substância tóxica de número 3573 dos cigarros vendidos avulsos. acredito em punhetas batidas para bonecas infláveis e vudus que pequenas garotas escondem debaixo do colchão. acredito na promessa do último gole, do último tiro, do perdão embutido no último suspiro do paciente com câncer terminal. eu acredito no mundo de caras, em cirurgias reparadoras e na melancolia de quem vive com o estômago reduzido. acredito no ano bissexto de calendários promocionais e em dias comemorativos de consciência de qualquer coisa. acredito em correntes do bem e convites para entrar em pirâmides financeiras jogados pelo vão da porta de entrada. acredito em telefonemas de sequestradores que mantêm em cativeiro um parente que eu não tenho. eu acredito em cartas suicidas feitas com animações do Power Point e na fatura do cartão de crédito que acusa a compra excessiva de veneno para rato. acredito em mágicos de buffet infantil e em pais de aniversariantes que trepam com as cunhadas na hora do parabéns. acredito nas sete ondas puladas à meia-noite de 31 de dezembro e no imenso tanque de pesque-pague que deus montou pra se divertir. um anzol machuca meus lábios. eu acredito em você.

Adriana Brunstein é phd em Física, escritora e romancista, com trabalhos em várias vertentes e meios de comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Grafic Novel Prontuário 666 - Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão  e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books 2012.
Ilustração: colagem de Marcelo Moreau


A Poesia de Aline Guarato - Uma mordida no Universo

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Maçã

ante o rubro mistério
a sombra da boca 
não recua
crava os dentes 
no abismo
branco branco branco
cava até 
o tutano 
da estrela mais longínqua
as sementes cospe 
o fruto 
(do conhecimento) 
tem raiz na morte


Eco

qual solidez molda o vazio
que se estende
do átomo 

até a estrela

qual nudez é mais sólida 
que o silêncio
da luz 

até o escuro


A primeira estrela

cai a tarde inteira
numa nesga de sol
qual faca
cega
na pedra se afia
o metal
a soltar faí-scas
riscando contra o corpo
o espaço em queda
livre
a iridescente estalactite
do punhal

Aline Guarato é poeta. Nasceu em Junqueirópolis, São Paulo.
Ilustração de Pilar Zeta.


5 poemas de "Gota a gota" de Chris Herrmannn, ilustrações de Cristina Arruda

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O tempo


o que me assombra
não é o tempo que perdi
reverenciando inutilidades,
nem a imagem refletida
que tiveram de mim.

me assombra é o tempo,
o que se perdeu na carcaça,
que me fez caça e prisioneiro,
que não mais me serve.

mais ainda me assombra
não é a sombra que eu era,
mas a que ficou vazia e só

nas águas de um tempo ido.




Cerzideira


das tuas dores
alheias às minhas
fui toda cerzideira

hoje, à procura
do meu fio da meada
na tempestade

descobri que sou
aquela gota de lágrima
no palheiro




Pegadas


as ondas da praia
desmancharam
as nossas pegadas.

uma parte de mim
ainda vaga por lá...

formou-se enseada
pra sentir a tua brisa
deixada à beira amar.




Tsunami


enquanto
a saudade
desancorava
seu peito

peixes
salva-vidas
fugiam-lhe
pelos olhos




Sujos & mal lavados


a humanidade
continua lavando
sua roupa suja
nos tanques
de guerra




Nascida no Rio de Janeiro às nove horas da noite de uma sexta-feira sob o signo de câncer, Chris Herrmann[Christina Herrmann Kuhn] cresceu numa família numerosa. Quando aprendeu a escrever, antes mesmo de ir para a escola, desenhou suas primeiras palavras nas paredes de casa, para desespero de seus pais. No Brasil, estudou Letras, Música e trabalhou como secretária bilíngue. Após mudanças de planos e águas foi recomeçar do outro lado do oceano. Na Alemanha, constituiu família, trabalhou como tradutora, webdesigner e fez a pós-graduação ‘Musikgeragogik’. Agora atua como musicoterapeuta. Porém, o amor pela literatura sempre foi seu porto seguro, como podem testemunhar seus livros de poesia “Voos de Borboleta”, “Na Rota do Hai y Kai”, “Gota a Gota” e diversas publicações e antologias das quais participou, editou e organizou. É uma das autoras da Revista Plural e edita em parceria com Adriana Aneli o blog ‘Boca a Penas’. Os ventos a levaram para outros mares, mas a metamorfose do voo a penas não calou o grito do céu da boca… apenas o provocou.


Mineira de Belo Horizonte, Cristina Arruda é artista plástica, formada em ciências biológicas e odontologia pela UFMG. Artista plástica autodidata há mais de 15 anos, vive em Belo Horizonte onde realizou as exposições individuais "Universo Feminino" e "Rebento". Ambas no Centro Cultural Lagoa do Nado, além de exposições coletivas. Participou como cenógrafa e figurinista voluntária do grupo ENCENARTE com indicação para prêmio de melhor cenário no VII Festival de Teatro Estudantil (Festim), promovido pelo teatro da Assembléia do Estado de Minas Gerais. Participou do “Encontro com a Arte“, projeto vinculado à linha de incentivo à cultura da prefeitura de Belo Horizonte, no Centro Cultural de São Bernardo, 2001. Ilustrou diversos livros de poesia, como a antologia "Sobre Lagartase Borboletas", organizada por Adriana Aneli, Adriane Garcia, Chris Herrmann e Maria Balé (ed.TUBAP/Scenarium, 2015) ; "Amor Expresso" de Adriana Aneli (ed. Scenarium, 2015). Participou com ilustrações do livro “Memórias Embaralhadas“ (Vários Autores, ed. Leonel Prata, 2015) Entre os projetos de 2016, estão as ilustrações dos livros de poemas "Gota à Gota" de Chris Herrmann (ed. Scenarium), e "Tudo é beija-flor" de Lázara Papandrea (ed. Penalux).http://christinaarrudaartes.blogspot.com



A perversa migração das baleias azuis – O olhar épico de Alberto Lins Caldas

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Por Adriane Garcia

Já na orelha de seu livro, Alberto Lins Caldas nos escreve: “sem violência política não há poema, só poesia, só crônica, só relato da latrina do eu, esse pobre eu q todos sabem, todos reconhecem, todos gostam e entendem – essa coisinha q os poderes e o poder adora porq podem dominar, amedrontar, inverter, perverter, redirecionar e por “nas salas de aula, das salas de jantar e nos quartos”. o poema não é coisa de poeta mas de libertino.”

E eis que pelas cento e cinquenta e quatro páginas é essa fidelidade ao pressuposto acima que reconhecemos. O poema de Alberto Lins Caldas está fazendo algum caminho que não o usual, que não a estrada sinalizada e tão batida; seu poema despe-se do eu, de qualquer confessionalismo, para estender-se a uma história maior. É novamente a epopeia, milênios depois, que é retomada por Alberto Lins Caldas. E se Homero, ou as vozes que se fizeram de Homero, cantou os grandes feitos do homem e enalteceu as nobres virtudes ligadas à guerra, à vingança, à coragem e à ação, o autor de A perversa migração das baleias azuis vem dar-nos o final da história, agora, quando o resultado, escrito em seus versos, entrega-nos o nosso homem reconhecível, raquítico, reduzido, de cujos instintos só sobraram os piores: a humanidade que somos. Nossa guerra não passa de covardia, nossa vingança é substituída pelo medo e pela preguiça, nossa coragem nos faz valer menos do que valem os ratos e nossa ação – quando acontece – é na esperança de poder oprimir, jamais libertar.

Fosse uma pintura, os personagens de A perversa migração das baleias azuis seriam telas bizarras de Arcimboldo, o maneirista pervertido, em que todas as figuras se formariam por adição de comida, pois disso é feita a espiritualidade do homem em Alberto Lins Caldas, o predomínio da gula, o seu aspecto glutão que, na verdade, significa todo o consumismo desenfreado e a destruição dos ecossistemas. Neste sentido, não um Arcimboldo da integração com os elementais, mas ao contrário, um Arcimboldo da destruição em massa e, por que não?, lentamente.

O mais interessante é notar em Lins a sua proposital citação – seja explícita, seja implicitamente – de grandes obras, autores e personagens da literatura, incluindo-se a Bíblia e as fábulas de Esopo e La Fontaine. Durante toda a leitura somos colocados diante do grandioso, subvertido, para – ao mesmo tempo, e por antagonismo – sermos bombardeados com retratos contínuos de nossa pequenez e avareza. Isso, obviamente, aumenta o efeito de nossa percepção. É a tragédia grega, mais especificamente em Sófocles, dizendo-nos “não fugirás ao seu destino”, mas é a tragédia grega desvendada por Lins, cujo tom nietzschiano também é inequívoco: não há nada fora de ti.

hoje so sei q é preciso pagar ●
as contas q entopem a vida ●
so fazemos isso agora ●

sobre essas viagens ●
não digo nada a ninguém ●
nem como a coisa terminou ●

o velho capitao inda dorme ●
onde escondemos o corpo ●
inda não sabe q ta morto ●

agora é a dor nessa perna ●
essa coceira no rabo as tosses ●
sabendo q deus castiga ●

Neste sentido, impossível não pensar que A perversa migração das baleias azuis foge de toda metafísica, encontra-se com a fenomenologia, ou seja, Lins nos relembra que a verdade é provisória e informada pelos sentidos, de acordo com a experiência de cada pessoa; porém, não é uma verdade confortável entre pastores e ovelhas. Num ritmo impecável, de canção, em poemas narrativos, Lins narra o homem civilizado – no pior sentido – que já inventou verdades suficientes para não questionar mais nada. O homem de A perversa migração das baleias azuis é um ser anestesiado. E é do poeta o último esforço para fazer perguntas sem muitas esperanças de resposta, como neste poema, Jonas, composto de 5 partes, em que aqui transcrevo as duas primeiras:

jonas ●
? como é a baleia por dentro ●
a baleia viva ●

tão vasto aquele abismo ●
nela ali adentro ●
jonas ●

? tem musica ●
? coisas vivas vivendo ali ●
? ha a respiração das ondas ●

de todas essas ondas ●
q podem ser o mar ●
? ha o mar jonas ●

ou so a baleia ●
a baleia sem o mar ●
jonas ●

2

jonas ●
? como são as noites ●
as noites da baleia ●

? ou não são noites ●
jonas ●
aquilo dentro da baleia ●

? Ou a baleia é deus ●
torcido de mar e baleia ●
travestido de dor ●

porq a baleia jonas ●
vc sabe e bem sabe ●
é dobra de carne e dor ●

se não sabia jonas ●
saiba agora ●
pra sempre ●

porq deve haver ●
depois da tormenta ●
depois das viagens ●

das viagens assim ●
jonas ●
como essa na baleia ●

a hora do sono da razão ●
porq a baleia jonas ●
sem isso não sera ●

jamais a baleia ●
a baleia mesmo ●
nem deus sera deus ●

nem jonas sera jonas ●
os dois na baleia ●
como as ondas jonas ●

as ondas do mar ●
as ondas as ondas ●
as ondas e a baleia jonas ●


Um livro de um mestre. Não menos. Questionador já na própria linguagem, A perversa migração das baleias azuis é sobre nosso corpo, nossa casa, nossa rua, nosso país, nosso mundo. É uma poesia-antena, pré-apocalíptica (mas o apocalipse já houve e não foi percebido), em que a religião também foi a arma da nossa derrocada. É o poema da falta de sentido, da desistência pela busca do sentido, de um tempo onde a tecnologia suplantou toda filosofia. Ao mesmo tempo, é, em si, uma crença na beleza, pois, de verdade, nenhum poeta que escrevesse esses versos, estaria livre de crer nela.


A perversa migração das baleias azuis
Alberto Lins Caldas
Editora Ibis Libris

2015

indesejo abstenção e outra trilhas - dois contos de Teofilo Tostes Daniel

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Escultura de Yuichi Ikehata





O filho bastardo de Tawantinsuyu

“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.”
(Os três mal-amados – João Cabral de Melo Neto)

Era uma mulher desejável antes mesmo de ser uma mulher. Quando ainda estava em vias de, mal saída da infância, já apetecia aos homens. Ariana poderia preencher o lugar da mulher da vida de qualquer um. Era bela, inteligente, vinha de uma família rica. Tinha muitos predicados.

Sempre namorou somente os mais desejáveis. Todos os namorados foram aprovados primeiro pelas amigas, depois pelos pais e familiares. Quando era a vez de ela prová-los, no entanto, o amor se esvaía. Teve os rapazes mais desejáveis de seu colégio e de seu círculo social. Todos belos, lindos, civilizados. Príncipes ou futuros gentlemen, herdeiros ou donos precoces de fortunas, que cheiravam a brilho e a cobre. Todos, modelos de beleza e sucesso. Não que o sucesso fosse lá muito importante, como havia sido para sua mãe, uma mulher de classe média que se casou com o empresário Aristarco do Albuquerque Prado. A mãe de Ariana mentiria se dissesse que a construtora, as fazendas de gado e soja, e os milhões em bancos no país e no exterior não conferiam um charme especial ao pai de sua única filha.

Ariana era filha de um amor de conveniência, mas não havia nascido para desejar o desejável. Havia um fôlego de égua selvagem em si – ainda ignorado – que não a permitiria jamais se contentar com o que todos aprovavam, com o que todos estabeleciam como os contornos precisos e saudáveis do querer. Seus quereres tinham um visgo insólito de insanidade que ainda se havia de descobrir.

Não conseguia ainda formular desse jeito, mas tinha em si uma certeza muda de que só poderia amar um homem que ela também fosse capaz de odiar. Essa certeza a habitava silente, inconfessável dentro de si mesma. E o primeiro passo para esse caminho, que fatalmente a conduziria a se tornar aquilo que era, passava pela solidão.

Quando se viu sozinha na faculdade, sem a influência das amigas, que sempre eram as vozes primeiras das escolhas que ela fazia, pareceu parar de desejar. Passou mais de um ano longe de flertes. E que alívio sentiu ao deixar de entregar seu corpo ao que não lhe despertava nenhum apetite. A solitude lhe deu a oportunidade de assenhorar-se de si e de seu corpo, que parecia, então, jamais ter sido verdadeiramente seu. Com o silêncio, passou a ouvir as urgências da própria carne, da própria pele. A voz material do corpo e dos instintos, sufocada desde cedo nas gentes.

Embora quisesse fazer belas-artes, deu início ao curso de arquitetura. Seu pai jamais lhe havia falado nada a esse respeito, mas não imaginava que ele quisesse uma filha artista. Mas com um ímpeto que era ainda tão desconhecido e lhe parecia estrangeiro, saltava as cercas da própria grade curricular para cursar, com frequência, disciplinas do curso de artes como matérias optativas.

Supunha que estava à beira de se tornar um ser assexuado, quando se inscreveu para fazer aulas com modelos vivos. Durante quase meio semestre, desenhou com esmero belos corpos desejáveis de homens e mulheres que não lhe apeteciam em absoluto. Olhava sem pudor e desenhava com paixão.

Num dia que tinha tudo para ser igual aos outros, entrou na sala em que fazia as aulas de desenho. Mas aquele dia não foi igual. Entre os modelos, já nus e dispostos nas mais diversas posições, estava: ele. Ariana o viu. Tudo ao redor desaparecera. Só restavam aquele homem e um dilúvio inaudito entre as pernas.

Passou duas horas e meia desenhando, com fúria, o próprio desejo incontido. Terminada a aula, fora falar com o estranho de traços indígenas e uma cicatriz de facada no ventre.

– Oi.

– Olá – respondeu, com acentuado sotaque castelhano.

O estranho lhe ofereceu com um sorriso, incentivando que ela continuasse. Era o homem mais belo que já tinha visto na vida. Em seu rosto, se destacavam os fortes traços indígenas. Não parecia qualquer um dos meninos desejáveis com quem já havia ficado. Naquele instante, Ariana procurava palavra e refúgio.

– É que eu queria saber quanto você cobra. Eu não acabei de te desenhar.

Mostrou o desenho para o desconhecido. Um esboço rico em detalhes, ainda sem braços ou pernas. A cicatriz no ventre e o sexo, no entanto, já estavam prontos.

– Eu não sei ainda quanto vou ganhar. Acho que vão me pagar setenta ou oitenta mangos. Foi um amigo que me arranjou esse trabalho. É a primeira vez que faço.

– E você tem tempo? Pago o triplo, se for preciso.

– Tenho todo tempo do mundo.

– Quando?

– Quando quiser.

– Agora?

– Pode ser.

– Então vamos. Eu te levo para meu estúdio – disse, puxando o desconhecido pela mão.

– Só preciso de dois minutos para me vestir. E de meia hora para eu receber o que vão me pagar.

– É verdade, você ainda nem se vestiu. Se sair assim na rua, pode acabar preso – disse tateando um gracejo. – Eu te espero na entrada da faculdade.

– Juan Luna – disse, estendendo a mão.

– Prazer! Ariana – disse-lhe dando dois beijos no rosto enquanto sentia o sexo de Juan roçar-lhe, leve, a coxa direita.

– Encantado!

Por mais óbvio que seja, não custa dizer que Ariana não desenhou nada naquela tarde. Levou Juan para seu pseudoescritório de arquitetura prematuramente montado pelo pai, numa ampla sala comercial perto de sua casa, nominado sacra e secretamente seu estúdio. Ela jamais se dera a ninguém da forma como o fez àquele desconhecido. E que jamais gozou tanto na vida. Menos pelos méritos de Juan como amante, embora tivesse qualidades lúbricas, e mais por conta daquilo que descobrira ser capaz de forjar, engendrar, arquitetar nas próprias carnes desejantes.

Naquela mesma tarde, Ariana quis saber o que havia causado a cicatriz que Juan ostentava no ventre.

– Quase morri. Desde então, nunca mais subestimei uma fêmea – disse, ao iniciar o vago relato.

Sem dar muitos detalhes, Juan contou que levou uma facada de uma mulher em fúria, ao ser abandonada. Ele jamais havia suposto, antes, que uma mulher seria capaz de machucá-lo daquela forma.

Juan Luna também contou que descendia de uma nobre estirpe de guerreiros incas. Nascido em Cuzco, considerava-se filho, embora bastardo, do grande império chamado Tawantinsuyu.

– Eu nasci exatamente no umbigo do mundo – explicou, destilando depois palavras em sua estranha e sonora língua ancestral.

Entre os seus ascendentes, também havia, segundo contou, um africano e um espanhol. O africano foi levado à região do Caribe, mas fugiu, subindo a cordilheira, e se casou com a filha de um líder espiritual inca. Havia sido retirado da mesma região onde a mitologia afirma ser a pátria de Mêmnon, herói que era sobrinho de Príamo e filho da Aurora. Quanto ao espanhol, tratava-se de um conquistador que procurava prata na região e estuprou a filha de um guerreiro. Foi capturado e colocado, vivo, para assar. Sua carne foi comida pelos familiares da moça violada e seus ossos, abandonados na selva.

A mãe de Juan descendia dessa violência. Sem conseguir estancá-la, sofreu sem remissão nas mãos do marido violento e autoritário.

– A sorte de meu pai foi ter morrido antes de eu ter idade suficiente para matá-lo – disse, com uma ponta de ódio cortante no céu da boca.

Ariana se encantou com as palavras de Juan em defesa de sua mãe, sem se dar conta do quanto elas eram um eco da mesma violência. Ao fim daquela tarde, ela já sabia ao menos uma dezena de coisas sobre Juan. Mas parecia que quanto mais aquele homem se revelava, mais estranho ficava. Estranheza que culminou quando ele, antes de ir, resolveu cobrar o preço combinado para posar para ela, como se ela o tivesse ficado desenhando apenas.

A cobrança que ele fez havia deixado nela uma sensação incômoda. Tinha ido para casa com a razão extraviada pelo desejo. Sentia como se tivesse comprado o corpo daquele homem – ideia que lhe causava um misto de excitação e vergonha.

No segundo encontro, mais estranheza se acrescentou aos contornos de Juan. Descobriu que ele não era michê, tampouco modelo vivo. Aquela atividade de fachada era só um bom motivo para poder circular entre os estudantes sem levantar suspeitas.  Não conseguiu descobrir, no entanto, por que no primeiro encontro ele havia cobrado o preço combinado para posar para ela.

O negócio do peruano era vender drogas no campus da universidade. E o sucesso do empreendimento era garantido, pois não lhe faltava mercado consumidor e a repressão era nenhuma. Aliás, nenhuma ali dentro, já que para chegar com a droga naquele lugar era preciso ter perícia. Entretanto, a partir dali, Ariana se tornara uma espécie de passaporte de Juan para onde ele quisesse ir.

Pouco a pouco, ela foi sendo enredada nos negócios de seu homem. Transportava drogas de todo tipo em seu carro, estocava entorpecentes e armas em seu estúdio. Chegou a viajar com ele para a Bolívia, durante as férias, trazendo drogas e subornando policiais rodoviários no caminho de volta. Quanto mais e mais intensamente amava aquele homem, mais sua relação com esse mundo marginal se estreitava.

O período imediatamente posterior à viagem para a Bolívia foi aquele em que Juan mais faturou. Revendia a droga que haviam trazido, o que elevava às alturas seus lucros. Alguns meses depois, no entanto, começou o período da crise. Nos negócios, não na relação. Em pleno milagre econômico, apreensões de drogas em todo o país fizeram faltar material no mercado. O que se conseguia era de má qualidade e rendia pouco. Além disso, a venda na universidade não estava fácil como antes, com milicos agora ostensivamente o tempo inteiro lá dentro.

– Em ocasiões como essas, é preciso diversificar – sentenciou Juan.

Tal diversificação consistia em agir onde havia brechas. Tinha bons contatos e uma mulher que não levantava suspeitas. Diante do quadro, o sequestro era a opção mais fácil e segura. O casal não atuaria no grupo de frente, que se arrisca para raptar a vítima. Simplesmente tomaria conta dos sequestrados. Com isso, aquela menina rica, nascida e criada numa mansão nos Jardins, passou a habitar barracos e cortiços de diversas periferias. Chegou a dormir em chão de terra batida, em cima de jornais velhos. E realizava fantasias em matagais, represas ou mesmo em chãos diversos. À família, disse simplesmente que passaria a morar em seu escritório, mas raramente era encontrada por lá.

– Essa juventude… – lamentava sua mãe, sem supor qualquer nada.

Até que um dia a polícia estourou o cativeiro de um sequestrado que ela e seu homem vigiavam. Algemada, no camburão, imaginava a proporção nacional do escândalo. “Princesa bandida” ou “patricinha pistoleira” poderiam ser dois epítetos seus a partir dali. Especialistas de toda sorte emitiriam juízos vazios, tentando explicar o incompreensível: como ela, a filha de Aristarco do Albuquerque Prado, pôde ter se envolvido com um bandido daquela laia.

Talvez estivesse chegando perto do momento em que começaria a odiar Juan Luna. Mas nada disso lhe importava agora. Carregava e alimentava em si um filho. Filho bastardo de Tawantinsuyu. E contra tudo – medidas, projetos, possibilidades, evidências, conveniências, conivências, projeções e estatísticas – ela amou. Amou. Amou desbragadamente. E quem ama não sabe calcular.




***




Eleições gerais

Tinha noção da desvalia de seu voto. Se com efeito escolhesse alguém, fatalmente se tornaria cúmplice de crimes que não conseguia sequer supor. Mas essa sensação era embaçada. Permanecia velada. Sombra assombrosa assombrando o não-pensar.

Na prática, tinha o claro desejo de não eleger ninguém. Sem, no entanto, anular o voto ou votar em branco. Puro capricho de quem não se sente, de fato, emanante do poder. Para isso, criou uma metodologia intrincada e de eficácia duvidosa. Dentre os candidatos para os cargos cujos números têm dois dígitos, votava sempre nos que estivessem menos bem colocados, de acordo com os institutos de pesquisa. Mesmo numa época em que tais estatísticas – e suas margens de erro – têm andado tão desacreditadas e incertas, a chance de seu voto para esses cargos eleger um candidato era bem remota, se não impossível. Quanto aos candidatos cujos números tinham três, quatro, ou cinco dígitos, só havia uma forma de decidir o voto: mesclando a sorte com a avaliação, o aleatório com a escolha.

Fizera isso nas três ou quatro eleições anteriores e teve a sorte de não eleger nenhum dos candidatos nos quais votou. Saia no dia da eleição a procurar no chão, entre os milhares de folhetos jogados, os candidatos nos quais votaria. Se simpatizasse com a figura, as cores e o número do candidato, o levaria consigo para a urna. Precisava, ainda, ser alguém que lhe fosse completamente desconhecido. Qualquer familiaridade no rosto da persona em questão, o candidato era prontamente descartado. Era uma escolha estética e empática. Das outras vezes havia dado certo – embora nas últimas eleições gerais quase tenha elegido um candidato de três dígitos. Para piorar a situação, dessa vez era ainda mais difícil. Tinha de escolher dois desses candidatos, quando da outra vez fora apenas um.

Lamentava essa extensa procura. Era tão mais fácil quando as eleições eram em ano de Olimpíadas. Tinha de votar em apenas dois candidatos. Em ano de Copa do Mundo, as coisas se complicavam muito. Tinha de escolher quatro ou cinco candidatos. Se bem que pior do que isso era quando havia o tal segundo turno. Seu voto sempre corria o risco iminente de ir para o candidato eleito. Ficava de olho em todas as pesquisas, até às vésperas do pleito. Em dúvidas muito cruciais, chegava a anular o voto – o que era contra seus métodos, mais do que contra seus princípios. Não se lembrava bem, mas tinha a impressão de que, na última vez em que votara com alguma esperança, o Brasil foi campeão mundial de futebol.

Naquele domingo, como em todas as últimas eleições, saiu já de manhã à procura de seus candidatos. Como eram escolhas aleatórias, estéticas e empáticas, havia necessidade de muito tempo para fazê-las. A combinação de cores do folheto, as expressões do rosto do candidato, tudo influenciava em sua decisão, que sempre trazia, no entanto, o risco quase certo de compactuar com algum crime, algum delito, algum embuste. Era assim que sentia. Era assim o seu temor.

Presto passou o dia. Eram mais de quatro horas da tarde e ainda estava à procura. Além dos últimos colocados nas pesquisas para os cargos de dois dígitos, já havia escolhido os dois candidatos para o cargo de três dígitos e um para o cargo de quatro. Todos absolutamente incógnitos – ao menos para si. Faltava ainda o candidato para o cargo de cinco dígitos. E como havia chovido, estava cada vez mais difícil encontrar folhetos apresentáveis. Uns estavam rasgados, outros desbotados. Muitos estampavam candidatos reles demais, conhecidos demais, familiares demais. Havia também diversos amálgamas desses chamados “santinhos”, numa indecifrável mixórdia de massas, cores, rostos e números.

Começou a se afligir. Em menos de uma hora se encerraria a votação. Não gostaria de se abster, bem como não gostaria de votar em branco ou anular seu voto. Puro capricho de quem não se sente, de fato, emanante do poder. Aquela chuva fora de hora parecia pôr fim a seu método, cultivado com tanto empenho, durante tantas eleições. Não se lembrava de ter votado num dia de chuva. Talvez, no ano em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo. Quem sabe? Mas nesse ano, nessas eleições de agora, mais uma vez a seleção não havia ganhado nada. Não havia esperanças carmesins com que vencer os temores. Ao menos era assim que via as coisas. E elas se mostravam com um feitio seco, oco, fatigado.

Não havia jeito. Precisava se dirigir a sua seção eleitoral. Era urgente votar, mesmo faltando aqueles cinco dígitos. Os dígitos que abririam a votação. Começar votando assim era sinal de mau agouro. Era assim que estremecia diante do imprevisto.

Com passos irresolutos, se aproximava da escola em que votava. Não se sabe se por conta de um buraco na calçada, de seu próprio andar vacilante, ou da providência divina, tropeçou e caiu, estatelando-se na calçada. A rua, àquela hora deserta, não abrigava uma testemunha sequer daquela queda ridícula. Ralou um pouco mãos e joelhos. Mas não se importou. Não reclamou sequer. E nem teve tempo para isso. O “santinho” que lhe faltava estava na sua frente. Uma paleta de cores perfeita, um número digno de confiança e, principalmente, um candidato de rosto simpático.

No entanto, talvez pela perturbação da queda ou pela turbação da pressa, não percebeu que o “santinho” era mais um desses amálgamas forjados pelas águas de muita chuva. A metade do número era de um candidato e a outra metade, de um candidato outro. O nome e a foto, de um terceiro candidato não identificável. A paleta de cores era resultante da fusão dos três folhetos, impressos em papel de qualidade duvidosa.

Sem notar esses pormenores, o achado devolveu-lhe a confiança, a incisividade dos passos. Rapidamente chegou ao local de votação, já quase vazio. Em sua seção, além de si apenas dois eleitores – um deles já na urna – e os mesários. Esperou pouco menos do que cinco minutos. Na urna, o primeiro número que digitaria era aquele último, achado ao acaso há poucos minutos.

Concluídos os cinco dígitos que figuravam naquele folheto, a surpresa: o número não existia. O voto seria nulo, caso o confirmasse. Só então percebeu que o “santinho” que tinha em mãos era um mistifório forjado pela união de três ou mais folhetos fundidos pluviosamente num único e ilusório exemplar. Percebeu que a própria técnica de fugir ao logro que lhe parecia ser o processo eleitoral, com seu sistema proporcional temperado pelo voto obrigatório, lhe ludibriara.

Experimentou um sentimento contraditório, uma espécie de desespero agradável, ao se ver naquela situação sem saída. Era profundamente antagônico tudo quanto sentia ali, diante daquela urna que, eletronicamente, demandava um voto impossível. Uma desesperança sem medo se apossava de tudo. Foi quando imaginou que aquele seria o número do candidato no qual gostaria de votar. O candidato ideal. Irreal. Imaginou e confirmou. Cortando sempre os últimos dígitos, foi votando em outros candidatos daquele mesmo partido nulo. Inexistente.

Decidiu ali os votos daquela e, muito provavelmente, das próximas eleições. Nunca mais correria o risco de eleger alguém que não quisesse. Votaria sempre naquele partido fictício cujo número – sugestivo – é 69. Puro capricho de quem não se sente, de fato, emanante do poder.







Teofilo Tostes Danielé poeta e escritor nas horas cheias. Nas horas vagas bendiz o ócio, lê, canta no chuveiro e nas aulas de canto. Nas plenas, conversa com amigos, reúne-se em família, brinca com suas cachorrinhas e é feliz com sua esposa. E em horário comercial é analista de comunicação do Ministério Público Federal. Nasceu a tempo de aproveitar os últimos seis meses dos anos 70, o que talvez justifique alguns traços de sua personalidade. É formado em Produção Editoral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e vive em São Paulo desde 2006. Publicou “Trítonos – intervalos do delírio” (Patuá, 2015) e “Poemas para serem encenados” (Casa do Novo Autor, 2008). Participou ainda das coletâneas “Escritor Profissional – Volume 3” (Oito e Meio, 2016), “Antologia Inaugural – Patuscada” (Patuá, 2016), “Di Menor” (Publicação digital na plataforma Issuu, 2015) e “História Íntima da Leitura” (Vagamundo, 2012) – projeto em que também realizou, junto com Paulo Mainhard e Fabiana Turci, um documentário com os autores. Colaborou ainda com a “Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX” (Elsevier/Campus, 2004). Tem contos e poemas publicados em revistas literárias, além de artigos nos sites "Musa Rara", "Las Abuelitas", “Transfeminismo.com” e “Rio&Cultura”. Escreve habitualmente em http://teofilotostes.wordpress.com/.
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