O CHÃO É O AR
Roberto Dutra Jr.
Algo que espero de um livro de poemas é um título que me atinja de alguma forma. Seja por uma provocação poética ou mesmo uma frase de impacto, que fique latente, no limite da consciência. Aquela sequência de palavras que, subitamente, começo a encontrar em tudo no meu cotidiano. Por isso acho que O chão é o ar, de Nora Fortunato (Editora Patuá, 2015), já começa poema desde a capa.
Não é todo dia que uma poeta, já em seu livro de estréia, consegue uma abertura para seu universo lírico tão dramática e convincente, como Nora Fortunato. A linguagem da autora chega aos olhos como sussurros de segredos cotidianos e surpresas que florescem diante dos olhos da autora, logo, dos nossos olhos. O leitor é convidado a entrar em um caminho onde a poesia se instala desde a capa. Um parêntese de destaque para o tratamento gráfico incomum, que retira o leitor do conforto habitual da leitura. Há páginas negras e linhas invertidas que insistem em lembrar que poesia não é para o conforto da poltrona, sim para a surpresa dos dias.
Parei logo no poema de abertura, estatelado com a poderosa invocação do desejo: “Fale desejo para que ele irrompa, para que ironize a pele”. Vamos entrar na esfera do desejo dessa autora, suas múltiplas possibilidades apontam para a leitura e também para a consciência do corpo. Alguns poemas ressoam na mente, outros ficam gravados, latentes, na pele. Assim, O chão é o ar, já prende desde o primeiro poema.
Outro momento digno de nota é o poema “Os teus cílios te parecem com teus cílios”. Um texto claro e simples que traduz alumbramento sobre um pequeno detalhe de todos nós. Um poema pautado de pausas na respiração, com um tema corriqueiro – o que há mais simples do que os cílios de uma menina? A pergunta que em mim se seguiu foi: “Poesia não seria exatamente isso? A capacidade da poeta em suspender em palavras a beleza do minúsculo universo que nos passa despercebido?”
Claro e sem enigmas, uma leveza drummondiana de amor às palavras transparece em O chão é o ar. Podemos notar isso na escalada lírica que autora realiza, crescendo em imagens e fazendo com que o leitor exerça tempo e maturação da poesia, antes anunciada na pele, agora se aprofunda. Digo isso tendo em mente os versos de “Diante das pedras, minhas mãos se entregam” e “Amor”. Este último, que inunda a imaginação, quando deparo com versos como “pernas caligrafam o ar / ... / espelho de movimentos”. Não tenho dúvidas que nessa página há uma poeta ciente do poder da imagem e da metáfora.
Há uma característica epigramática nos versos de Nora Fortunato, que encontramos em alguns poemas, como, por exemplo: “Não é justo que as coisas se repitam”, no poema “Erva”. Esta possibilidade concretiza-se em epigramas de conteúdo poético ao longo do livro, pequenos obstáculos no chão, pedrinhas poéticas. Ainda, se preferir uma metáfora aérea, frases que acenam como pontos de respiro na composição do livro, assim como “As formas que a escrita dá à ponta do lápis”, e “Os amantes não sabem colher do não.” Outras vezes, como em “Uma chave que gire dentro da mão”, sinto o ritmo das imagens acelerar de tal forma que algumas vezes eu me obrigo a uma segunda leitura para novamente ver o encanto lírico em semear as palavras com imagens. O chão é o ar conquista como possibilidade de releitura, e na mão dupla da descoberta (as da autora e as do leitor). O livro almeja lugar na cabeceira da cama, principalmente quando me deparo com um vaticínio como: “Palavra: espécie de oráculo para interpretações mais nítidas”.
Outro aspecto que percebi em O chão é o aré uma prosa poética e memorialista. Este algo que não sabemos direito o que é e que invade o verso e que aborda problemas que se abatem em todos os artistas do século 21. Esse limiar entre verso e prosa que deixa todos inquietos, na ânsia neurótica de catalogar a literatura como isto, ou aquilo, mas que na impossibilidade acaba desqualificando autores contemporâneos. Nora Fortunato teve a coragem de colocar no papel que o dinheiro move tudo no mundo – tabu silencioso na literatura. Atitude que esculacha o sistema editorial que deixou há muito de apostar no talento de escritores novos, relegando a auto-publicação como única saída. Ora, se não se pode pagar o aluguel, como publicar, como escrever até? A poeta traz as aflições de si mesma, e seu micro-universo é o macro-universo social e encontramos um pedacinho de cada um de nós em seu livro.
Há desafinações, como em todos os livros de estréia. Talvez subjetiva demais em algumas páginas, talvez descritiva demais em outras páginas, talvez inalcançável – não seriam assim todas as pessoas tomadas pelo impulso da arte?. Contudo, obra alguma é perfeita, a grande maioria dos poemas que amamos não são perfeitos. Um grande livro faz-se de pontos altos e outros nem tanto e O chão é o aré prolífico em pontos altos para que o leitor tenha certeza que diante dele há uma poeta pronta para mais. Espero que não pare de escrever, não cesse de mostrar seu chão poético e volátil. No ar de seus versos, possamos sempre colher a palavra certa “para além das imagens, a sonoridade corpórea do tesão [...] vivência através da palavra”.
Como escrevi no começo, reitero, um livro de estréia como poucos, uma poeta que busca sua voz nas palavras à flor da pele, humana, cotidiana, sujeita a releituras constantes e mais envolventes. Seus sussurros poéticos em versiprosa acenam para os leitores de poesia mais sintonizados nas novas vozes da literatura.
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Nora por Fabricio Menicucci |
Nora Fortunato nasceu em Jundiaí, SP, em 1975. Tem poemas publicados na revista Inimigo Rumor (números 18 e 19), na revista Modo de Usar & Co (número 2), na revista francesa Action Poétique, com a antologia "Poètes du Brésil aujourd´hui" e no blog as escolhas afectivas. Faz e fez cursos na Estação das Letras (RJ). Seu primeiro livro de poemas é "o chão é o ar" (Patuá, 2015).
Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.