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ROBERTO DUTRA JR. RESENHA NORA FORTUNATO

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O CHÃO É O AR

Roberto Dutra Jr.

            Algo que espero de um livro de poemas é um título que me atinja de alguma forma. Seja por uma provocação poética ou mesmo uma frase de impacto, que fique latente, no limite da consciência. Aquela sequência de palavras que, subitamente, começo a encontrar em tudo no meu cotidiano. Por isso acho que O chão é o ar, de Nora Fortunato (Editora Patuá, 2015), já começa poema desde a capa.

            Não é todo dia que uma poeta, já em seu livro de estréia, consegue uma abertura para seu universo lírico tão dramática e convincente, como Nora Fortunato. A linguagem da autora chega aos olhos como sussurros de segredos cotidianos e surpresas que florescem diante dos olhos da autora, logo, dos nossos olhos. O leitor é convidado a entrar em um caminho onde a poesia se instala desde a capa. Um parêntese de destaque para o tratamento gráfico incomum, que retira o leitor do conforto habitual da leitura. Há páginas negras e linhas invertidas que insistem em lembrar que poesia não é para o conforto da poltrona, sim para a surpresa dos dias.  

            Parei logo no poema de abertura, estatelado com a poderosa invocação do desejo: “Fale desejo para que ele irrompa, para que ironize a pele”. Vamos entrar na esfera do desejo dessa autora, suas múltiplas possibilidades apontam para a leitura e também para a consciência do corpo. Alguns poemas ressoam na mente, outros ficam gravados, latentes, na pele. Assim, O chão é o ar, já prende desde o primeiro poema.

            Outro momento digno de nota é o poema “Os teus cílios te parecem com teus cílios”. Um texto claro e simples que traduz alumbramento sobre um pequeno detalhe de todos nós. Um poema pautado de pausas na respiração, com um tema corriqueiro – o que há mais simples do que os cílios de uma menina? A pergunta que em mim se seguiu foi: “Poesia não seria exatamente isso? A capacidade da poeta em suspender em palavras a beleza do minúsculo universo que nos passa despercebido?”

Claro e sem enigmas, uma leveza drummondiana de amor às palavras transparece em O chão é o ar. Podemos notar isso na escalada lírica que autora realiza, crescendo em imagens e fazendo com que o leitor exerça tempo e maturação da poesia, antes anunciada na pele, agora se aprofunda. Digo isso tendo em mente os versos de “Diante das pedras, minhas mãos se entregam” e “Amor”. Este último, que inunda a imaginação, quando deparo com versos como “pernas caligrafam o ar / ... / espelho de movimentos”. Não tenho dúvidas que nessa página há uma poeta ciente do poder da imagem e da metáfora.

            Há uma característica epigramática nos versos de Nora Fortunato, que encontramos em alguns poemas, como, por exemplo: “Não é justo que as coisas se repitam”, no poema “Erva”. Esta possibilidade concretiza-se em epigramas de conteúdo poético ao longo do livro, pequenos obstáculos no chão, pedrinhas poéticas. Ainda, se preferir uma metáfora aérea, frases que acenam como pontos de respiro na composição do livro, assim como “As formas que a escrita dá à ponta do lápis”, e “Os amantes não sabem colher do não.” Outras vezes, como em “Uma chave que gire dentro da mão”, sinto o ritmo das imagens acelerar de tal forma que algumas vezes eu me obrigo a uma segunda leitura para novamente ver o encanto lírico em semear as palavras com imagens. O chão é o ar conquista como possibilidade de releitura, e na mão dupla da descoberta (as da autora e as do leitor). O livro almeja lugar na cabeceira da cama, principalmente quando me deparo com um vaticínio como: “Palavra: espécie de oráculo para interpretações mais nítidas”.

            Outro aspecto que percebi em O chão é o aré uma prosa poética e memorialista.  Este algo que não sabemos direito o que é e que invade o verso e que aborda problemas que se abatem em todos os artistas do século 21. Esse limiar entre verso e prosa que deixa todos inquietos, na ânsia neurótica de catalogar a literatura como isto, ou aquilo, mas que na impossibilidade acaba desqualificando autores contemporâneos. Nora Fortunato teve a coragem de colocar no papel que o dinheiro move tudo no mundo – tabu silencioso na literatura. Atitude que esculacha o sistema editorial que deixou há muito de apostar no talento de escritores novos, relegando a auto-publicação como única saída. Ora, se não se pode pagar o aluguel, como publicar, como escrever até? A poeta traz as aflições de si mesma, e seu micro-universo é o macro-universo social e encontramos um pedacinho de cada um de nós em seu livro.

Há desafinações, como em todos os livros de estréia. Talvez subjetiva demais em algumas páginas, talvez descritiva demais em outras páginas, talvez inalcançável – não seriam assim todas as pessoas tomadas pelo impulso da arte?. Contudo, obra alguma é perfeita, a grande maioria dos poemas que amamos não são perfeitos. Um grande livro faz-se de pontos altos e outros nem tanto e O chão é o aré prolífico em pontos altos para que o leitor tenha certeza que diante dele há uma poeta pronta para mais. Espero que não pare de escrever, não cesse de mostrar seu chão poético e volátil.  No ar de seus versos, possamos sempre colher a palavra certa “para além das imagens, a sonoridade corpórea do tesão [...] vivência através da palavra”.


Como escrevi no começo, reitero, um livro de estréia como poucos, uma poeta que busca sua voz nas palavras à flor da pele, humana, cotidiana, sujeita a releituras constantes e mais envolventes. Seus sussurros poéticos em versiprosa acenam para os leitores de poesia mais sintonizados nas novas vozes da literatura. 



*    *    *




Nora por Fabricio Menicucci


Nora Fortunato nasceu em Jundiaí, SP, em 1975. Tem poemas publicados na revista Inimigo Rumor (números 18 e 19), na revista  Modo de Usar & Co (número 2), na revista francesa Action Poétique, com a antologia "Poètes du Brésil aujourd´hui" e no blog as escolhas afectivas. Faz e fez cursos na Estação das Letras (RJ). Seu primeiro livro de poemas é "o chão é o ar" (Patuá, 2015).




Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.


Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea: Seis poemas de Mell Renault

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Por Marcelo Ariel

A voz lírica que se move oceanicamente dentro de uma dimensão epistalográfica, resiste a ser fantasmagorizada, desde suas topologias repletas de irradiações intensas e cifradas até uma outra enterrada no espaço museológico do espírito humano, esta voz é de certo modo ressuscitada nos poemas de Mell Renault  e encontra  neles uma potência sutil  que se move na contramão de nosso tempo de dissipações e nadificações.  Como em Florbela Espanca, estamos em uma zona limite onde a evocação do fenômeno amoroso tenta escapar de racionalizações e de um esquadrinhamento lógico, sentinentos vastos se movem em espaços do impossível que para além de nomeações constroem as bases do que chamamos de vida  real, pulsões e emanações da natureza se movem de dentro para fora de conceitos e ilusões, há um coragem em assumir um deslocamento e estranhamento que aparentemente parece ser simples porque seus códigos foram cada vez mais gastos e até assassinados pelo senso comum, por isto há uma urgência de pássaro contornando os vidros de arranha-céus no resgate do lirismo romântico.


*1*

a ausência agita a página.
Te crio aqui
impressão da sua imagem consagrada.
- Sua falta fez brindar as taças.
...
Estou afetada
pela esperança
       Vontade de fugir
e escondida
me mudar
para dentro do silêncio profundo.
No canto superior
do teto mofado
Ser rocha
que se dissolve
na onda.
Ser o caminho final
do passo,
a marca do sem nome
           na areia.
...
Só queria respirar profundo
diante a ventania
e
Sent(ir)
que ali também estou.
Fica.



*2*

O silêncio se desgasta
     e o verbo solto
          em constante perigo
  Se perde.
A palavra dissolve
   no céu da boca.
Tudo escapa.
    Sentimento expande,
        o limite.
O corpo em intervalos
de acasos
alimenta
o que em mim é crú.
Teu verso reverbera
E enche de ar meus pulmões.
...
Em nós, o amor ama.
      Versos cheios
       de carne.
Fica.



*3*

Corpo Casulo
Corpo Fatal
aqui me entrego
       à deriva.
Coração prisioneiro
         da vigília
Suspenso
em suspiros
     Deixo-me inteira
para que me leias
com a alma aberta.
      a pressa da pressa
empurra
           a palavra
nesse
     Corpo Beco.
Então hoje,
      Corpo degustação
      rasgando o silêncio
      das impressões.
agora, não sei falar.
           Sinto.
Teu olhar nú
me espia
     pela fresta da porta.
Fica.



*4*

amo em ti tantos outros que neguei.
Eu sei, a cicatriz
            da outra
             Cicatriz
        não curada,
nesse momento
a palavra inflamada
Arderá
no (anti)verso
que escrevo.
              Verás assim minha outra face,
                   Coração estalando.
Ficaremos tu e eu cercados por dentro,
teu verso dirá o indomável.
...
Amar, Poeta, é além.
Fica.



*5*

salgada e úmida é minha palavra hoje.
Meu corpo não quer mais ser corpo.
                 Dói
                   as mãos
                   a voz
o lado esquerdo da alma.
(...)
Essa vida aqui inventei para continuar vivendo, em ti.
Logo
Tudo acaba,
menos o amor
esse
Transvive.
Fica.



*6*
procuro teu abraço na asa aberta do pássaro.
...
Teu verso, profundo oceano
             acalma meu corpo.
Nessas noites líquidas, busco-te.
           São teus olhos
            que regam meu amor.
Na língua, minha fala calada,
entalha enredos na sua boca.
...
           Frágil mudez grita em mim.
               a vigília dos gemidos.
Fica

Pobre de mim, criança - José Maria Correia

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Ilustração: Amy Ridgeway



Pobre de mim criança ,que ainda aprendendo a falar já era aterrorizado com o fogo do inferno.
Não bastasse a finitude, a morte, havia ainda a expiação eterna.
Pobre de mim que por minha máxima culpa soube que por pecado original causei a perda do paraíso .
Que havia partes proibidas do meu corpo, e se causasse prazer tocando em meu sexo ficaria cego.
Que deveria me confessar de joelhos e seguir as tenebrosas penitências severas.
E se não confessasse, ao comungar a hóstia sagrada se converteria em sangue em meus lábios.
Era o Deus do horror, da procissão do senhor morto ao som das terríveis matracas levadas pelos homens de capuzes negros.
Penso que fui bem educado pelas convenções , não em casa, mas na rua e na igreja aprendendo no catecismo popular que os judeus jamais chegariam aos céus, assim como os protestantes.
Que as mulheres separadas se tornavam disponíveis à todos e que as pobres amantes perdidamente apaixonadas por homens comprometidos não valiam mais que prostitutas.
E que as prostitutas podiam sim serem surradas impunemente.
Que os doentes deformados deviam estar escondidos em quartos fechados .
E que os jovens em busca das drogas não lícitas deveriam ser internados em manicômios até enlouquecerem .
Que os negros na televisão não eram nada discriminados, tinham seus espaços, eram os empregados domésticos e para um papel maior um branco seria tingido.
Tia Anastácia e Mamãe Dolores sabiam bem disso
Que ser músico , escritor e poeta era coisa de desocupado ,e que viemos à este mundo somente à trabalho e mais trabalho.
Que um homem verdadeiro jamais expressa suas emoções ou chora como nossos pais não choravam.
Bem ,mas no cinema havia mais erudição, tive grandes aulas sobre geopolítica e antropologia explicando a ferocidade dos índios norte-americanos, bêbados que escalpelavam e estupravam as donzelas loiras e por isso deveriam ser exterminados e expulsos de suas terras, como foram .
Também descobri que na guerra o lado dos bandidos era o dos árabes que resistiam aos colonizadores, assim como os italianos eram todos mafiosos e os nobres ingleses com seus navios e canhões desbaratavam as quadrilhas de chineses traficantes de ópio para assegurar o monopólio da rainha.
Que espanhóis e portugueses vieram salvar nossos povos primitivos de suas crenças e deuses como os cruzados salvaram os muçulmanos pelo fio da espada com os batismos de sangue.
Claro, logo soube que os russos estavam chegando e viriam de muito longe para tomar meu quarto e meus brinquedos .
Aprendi ainda que a menina inocente que perdia a virgindade por amor e sedução juvenil era galinha.
E os meninos que gostavam de rapazes eram veados e tinham que apanhar para aprender a serem homens e sofrer bullyng com apelidos jocosos .
E no ginásio descobri que finalmente os militares iriam salvar o país fechando os parlamentos, os sindicatos e os grêmios estudantis.
Que era importante queimar livros, censurar filmes e peças de teatro.
E que as chamas das fogueiras da inquisição e da intolerância continuam muito vivas e os muros entre os povos não param de ser erguidos .
Aprendi muitas coisas úteis sobre a superioridade da raça branca, a inferioridade dos emigrantes que não podiam frequentar os clubes tradicionais fundados por também emigrados e seus filhos.
Sobre a prevalência dos mais ricos e a importância das aparências sobre todas as coisas.
E quando imaginei que pudesse ter sido afinal deseducado dessa forma tão indigna , vi que no país mais poderoso do mundo o líder eleito pela maioria do povo - é a síntese disso tudo, Donald Trump.




Jose Maria Correia é advogado e delegado de Policia aposentado. Foi Vereador, Prefeito e Secretário de Estado.Escreve contos, crônicas e criminosamente poesias. Colabora em Blogs e Jornais esporadicamente. Tem uma família linda cria animais abandonados e é motociclista muito veterano.

8 poemas de João Henrique Balbinot

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Ilustração: Marcel Karam



O monstro à mostra do oco que sou

inomináveis homens das trevas em mim
na dobra da obscuridão do entorno
um foco de luz pequeno não guia
apenas deixa à mostra
ao relento neste lugar que não é dentro nem fora
na concavidade que vou, me desconheço
com a dor do “mas poderia”
estando, não estou
na crista de uma onda que não quebra
vou ao alto, como em uma cruz
ao menos sem nunca ser um mártir



Palavreados para colorir

Pedaços de lirismos aqui e ali
Deitando palavras fora
Para por a poesia por toda a vida
E vida à poesia




Lantejoulas e latejos

Passo os olhos por tudo que eu fui
Percorro o olhar pelos corpos que amei e me amaram
Ainda que nem sempre os mesmos
Em cirandas, houv’éramos
Os olhos passam como eles passaram por mim
Descuidos e ânsias
Um estrondo marca uma ruptura
Semidesperto sinto o sonho se dissipar
A sobriedade do desencanto
A gana em não ser miserável toca piedosa a solidão
Sorrisos constrangidos

É passado
Sou passado
Fui passado para trás
Na ordem de importâncias, beirando as desordens
Prioridades inconclusas
Desejo e falta incontestes
Bocas manchadas de vermelho
Roupas marcadas de suor

O corpo pulsa na pulsação do grave da música
Dedos que até então desconhecia, criam o instante presente
E é como se fossem as mãos de todas as pessoas em todos os tempos
Amortecimento
A lembrança de todos os instantâneos passeia pelas gentes
O jorro me insere no presente
A paz do mundo cabe na transitoriedade
Um zunido precede a surdez




Longe das mentiras confortáveis

Deixo de ouvir o que diz
Finjo entender os resmungos que me chegam
A música cobre sua voz, ou assim desejo
Aceno com a cabeça a minha dissimulação mais covarde
Saco um cigarro na carteira
Tento colocá-lo em meio aos meus lábios
Constato contrafeito que ali um cigarro virgem já espera ser aceso
Ridículo que passei a ser, não consigo disfarçar o meu lapso
Meus erros só fundamentam o seu desejo
Acendo meu cigarro
No hábito te empresto ele para que você acenda o seu
Quando você me devolve, enfio rápido ele em minha boca
Fecho os olhos e busco o invisível


Volto e tudo continua ali insuportável
Com a sobriedade que a tontura do cigarro me dá, te escuto uma última vez
Ao final concordo/aceito
Inspiro desesperadamente e meu cigarro acaba em poucos tragos
Você com calma termina o seu muito depois
Objetiva, joga o filtro no cinzeiro como os que não têm dúvidas
A legião que és, perco de vista na multidão
Olho para as nossas bitucas e outros restos
Seu filtro vermelho de batom, o meu vermelho de sangue e lábios mordidos
As brasas ainda chamuscam por algum tempo
A fumaça insiste frágil
Até que éramos.


Ilustração: Marcel Karam


Dos enganos e engasgos

deixe um equívoco
como uma réstia de erro
por misericórdia
não há perfeição em humanidade
nem alguém que nunca errou
o poeta deve amar seus enganos
pela nossa miséria

ninguém faz líricas como bate um mecânico coração
a vida pulsa e pulsa e vaza
a palavra vivendo entre arritmias e saltos neuronais
nos sulcos das caramiolas
o rigor técnico põe todo o acaso em risco
escapar errante é o que resta
na poética convulsionante da teimosia




Manchetes e outras sanguinolências

Do corruptível se sabe apenas a história oficial:
Ameaça

Do outro lado,
Trabalhador honrado e pai de muitos;
Homem de bem.
Na eterna luta contra o mal
Mal pago, mal alimentado: obediente.
O degenerado, veja a ironia, mora no bairro ao lado.

Para a água sanitária
E a moça da limpeza que eternamente limpa:
Iguais.
Geridos na mesma injustiça: irmãos.




Pescoços, peitos e virilhas (na entropia sintrópica de eu-você: o mundo)

corre
em rio ou mar
janaína ou iemanjá

anunciados
animalescos
às estreitas, espreitas e esquadros
entre flocos de açúcar ou cristais de sal
de confeiteiro por tudo que é suave
de pedras por toda a organicidade coesa do mineral inorgânico
o inverso, cambiante, amplia
entre a leveza e o peso
o espanto de nosso paladar
entre vários sabores
você comida mediterrânea não deixa de surpreender
o sublime em realidades imanentes

correndo
como lágrimas, suores, fluidos e sedes
os lábios vertem tudo que há
sedentos, gulosos
de partes de você que eu tenho que reaver
de partes de mim que eu tenho que criar
de partes que eu: quero

sim

preso, pois anseio a liberdade de suas curvas, volumes e reentrâncias
pulso
e sinto meu sangue pulsar em diversas partes de mim
pau, coração e vísceras ondulam em sintonia
sentires que depois de tanto tempo soam inéditos
me sinto livre, pois te anseio
as mãos passeiam por entre tudo
cada pedaço, cada palavra
para daí partir

vem




"E o que que a gente faz daquela angústia?"

novamente penso e sinto através da mesma dor
tenho que tirar das pedras o sumo
e desse martírio excludente criar um novo curativo capenga
e sobreviver a essa dor, mais uma vez
variações sobre o trauma
variações sobre aquele que treme e varia
não é por falta de novidade e outridades
é necessária a reincidência
escrevo para passar como você que passou e não voltou
meu recurso é repetir
é por esperança que volto para onde não saio
o eterno retorno e possível estorno

quero a falta estéril
calejado e calcinado também
sua ausência em mim tem que cessar
por ora, não cessa, se assenta e vai além
aos poucos vou sentindo novas urgências
meu pesar vai das respostas não dadas para as conversas não iniciadas
descanso e desinteresse
não sei se evoluo ou retrocedo




João Henrique Balbinot, nascido em 1989, paranaense de interior, gosta de viver rodeado de músicas, palavras e pessoas. Quase sempre. Além de escritor, é também psicólogo.Como autor, além da participação em diversas antologias, publicou os livros de contos No arco-íris do esquecimento (Ed. Multifoco, 2012) e Permeabilidades do Intransponível (Ed. Patuá, 2016) e também o livro de poesias  Pequenezas e outras infinitudes (Ed. Multifoco, 2014). Mantém no Facebook a página "Poesia fugidia". Contato: jh_balbinot@hotmail.com.

"SOLEDADE", CONTO DE RUBERMÁRIA SPERANDIO

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Fim de expediente.
Ela está em trapos. Joga sobre a cama os restos de carne que lhe sobraram para cobrir os ossos.  As molas do colchão dão seus últimos rangidos. Foi-se o último vampiro, noite adentro. Acende um cigarro juntando as oito notas de cinquenta. Poderia ser melhor se tivesse conseguido abrir a veia para, ao menos, mais dois sanguessugas, já está ficando velha. Amarra as notas em um elástico. Todo cuidado é pouco com aquele sangue derramado que vai lhe desbotando as faces a cada dia.  Não tem nenhuma reserva de vida. Nada lhe espera. Muitas lembranças também se foram neste espaço onde não cabe nem o tempo marcado. Muitos minutos são golpeados pelas horas. Não tem nada escrito. Nunca terá.
Só aquela fotografia. Cinco centésimo de um segundo. É a sua história. Já está desbotando também. Do território onde distribui suas sesmarias, todos os dias, olha um pouco para aquela imagem, uma menina de cinco anos, descalça, vestindo apenas uma calcinha para economizar roupa e sabão, brinca na terra. O vento penteia seus cabelos. No final do dia ficava toda enlameada, disso nunca esquece. Ela sorri, é o primeiro entre os gemidos do dia. Gostaria de voltar ao barro. Poderia vir a ser uma panela, outra cadela, ou, quem sabe,
Andorinha
Agora ela está indo dormir enquanto outras estão acordando.
- Sol...

- Só passei para dar boa noite, também estou indo.

*    *    *

Rubermaria da Silva Sperandioé formada em comunicação social com Mestrado em Estudos de Linguagens pela UFMT. 

PÁDUA FERNANDES POR LEONARDO D'ÁVILA

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O lado mais cruel de uma língua
Resenha de
FERNANDES, Pádua. Cidadania da bomba. São Paulo: Patuá, 2015.

Leonardo D’Avila

Cidadania da bomba, livro de contos publicado pela editora Patuá e recentemente ganhador do prêmio Guavira, proporciona um realismo cuja força não reside em imagens comovedoras, mas, ao contrário, no desconforto que proporciona em termos de linguagem. O leitor preferiria não ter lido as ironias sobre a verborragia dos meios de comunicação da atualidade. Também preferiria não ter encontrado tantas alusões à violência paraestatal em textos que seriam melhor assimilados se pudessem ser considerados “meramente literários”. Mas esses e outros detalhes que incomodam no último livro de Pádua Fernandes nunca oferecem trégua e, por isso, à medida que os contos de Cidadania da bomba se sucedem, a narração se torna cada vez mais fria e técnica, em um esforço de sintetizar o indizível. Verdadeiras tragédias são intercaladas como anedotas, transformando assim o que pareceria um livro de realismo urbano em algo mais próximo ao ensaio especulativo, do qual o leitor se torna copartícipe com a complacência de um dissecador ou com a evasão de um escolástico.
Uma das passagens que mais pode sustentar essa hipótese se dá em “Contos da mesa”, quando uma série de imagens violentas da perda de membros do corpo são reoperacionalizadas de uma maneira absolutamente cruel, porém transformando-se em especulação, revelando perguntas de teor metafísico. Questiona-se o narrador, sobre cortar ou não a mão do amigo: “Como tocar a realidade com dedos fatiados? Ou melhor: como não tocar a realidade com dedos fatiados? Melhor ainda: como não tocar várias realidades com os dedos fatiados? Ao menos uma para cada fatia?” (p. 29) Pádua, que compôs a Comissão de Verdade do Estado de São Paulo, sabe muito bem que os torturadores tinham nos dedos uma das partes mais preciosas para se manipular e esfolar. O autor de Cidadania da bomba, exposto a esse saber de porões, sabe que não ficou imune a tamanha crueldade após haver se debruçado sobre tantos papéis que buscavam documentar o inexprimível. Mas a tentativa de se esquivar dos gritos remete a um segundo nível de dignidade, a partir da qual elabora uma série de especulações que surpreendem.
Quando o foco da narração parece ir além da neutralidade de uma câmera de segurança, aparece a principal virtude desta coletânea: o incômodo sempre retorna, fazendo com que as narrações pareçam atrapalhar o desenvolvimento de um raciocínio especulativo, uma espécie de gnose: “A pia não sai de lugar. A água sai de lugar, ainda bem. Os dentes continuam fixos. A espuma não permanece no lugar...” (p. 23) E dentro do panorama, as próprias narrativas têm sua maior força quando são expostas como obstáculos ao prosseguimento dessa especulação cruel, onipresente. Assim, dores e desejos se tornam entraves, esvaziados em detrimento do funcionamento retórico de argumentos corretos, porém carentes de sentido, em última instância. E assim, a violência se justifica em função de lugares-comuns como a liberdade de pensamento ou o direito de ir e vir. Nessa gnose técnica, conforme se desenvolvem os contos, tanto índios quanto ocupantes de prédios ociosos tornam-se os principais óbices, contrários à livre fruição de bens ou mesmo ao desenvolvimento do Brasil. E quem lê se revolta facilmente contra a violência dos torturadores, mas nem por isso deixa de adentrar em algumas divagações que se aproximam daquilo que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal, a indiferença caracterizadora dos burocratas da morte de ontem e possivelmente dos “cidadãos de bem” de hoje.  
Esse sequestro das narrativas, as quais são oprimidas por uma vontade geral de racionalismo a qualquer preço, chega também a sufocar os diálogos a ponto de romper com qualquer condução lógica das falas de seus personagens, que normalmente são apenas tipos criados por um autor que se reconhece impotente para a liberar a expressão desses outros e mais ainda para lhes conferir introspecção. Isso não implica uma falta de dialogismo. Muito pelo contrário, há uma série de encadeamentos de significantes que formam progressões dentro das narrativas, nunca isentas de violência. É o que se dá no conto “A pontaria de Deus”, no qual um grupo de policiais busca fundamentos banais para matar um homem qualquer. Ao saber que o procurado era mulher, a vítima afirma, pela lógica: “— Eu não sou mulher! Me soltem!” E então respondem os fardados: “— Não é mulher, mas é veado. É a mesma coisa para mim. Então bem que pode morrer no lugar de outra.” (p. 12)
Esse aflorar de realismo, que, como já se afirmou, mais incomoda do que cativa, acrescenta-se a uma série de outros obstáculos à especulação fria que — essa, sim — é capaz de cativar quem lê. Entre esses obstáculos, aparecem também chavões acadêmicos, como os conceitos de desterritorialização e reterritorialização, de Gilles Deleuze, que certamente preferiríamos não encontrar imiscuídos na vala de banalidades da qual o narrador não deixa de ironizar. Não que Pádua banalize conceitos importantes de filosofia ou de teoria literária. O autor não deixa passar em branco o fato de que separações como incluído/excluído, central/marginal, dentro/fora, desterritorialização/reterritorialização não são mais do que problematizações segundo as quais instituições e sujeitos se moldam mas que, em última instância, são indiferentes para a matéria, como a imobilidade da cerâmica da pia, a mobilidade da água que molha ou a imobilidade dos dentes de Cálcio, nome do livro de poemas do autor no qual esse apelo à química como limite aparece com maior clareza. De qualquer maneira, os muros, objetos muito recorrentes em Cidadania da bomba, são compostos, em última instância, por tijolos (para separar proprietários de ladrões), sacos de areia (para separar o espaço devido ao mar ou à cidade), por pessoas (para separar os ordeiros dos desordeiros) ou por imagens (para tipificar o ilícito do lícito). Independentemente das fronteiras que esses muros, isto é, essas separações conceituais, criam, pode-se pensar, a partir do conto “Seis patas de liberdade”, que esses espectros nada importam perante o andar de uma barata, a matéria vivificada, que passeia pelos muros. Independentemente do muro estar limpo ou grafitado, de ser liso ou estriado, a barata não se importa com nada disso, exceto talvez com os furos de bala, que poderiam confundi-la.
Assim como em outros contos, essa saga da barata, intitulada “Seis patas de liberdade”, certamente alude a Clarice Lispector ou — quem sabe? — a Kafka, mas também pode ser aproximada à fragmentação do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas justamente nesse ponto é que surge em Pádua o verdadeiramente insuportável e o que há de mais cruel da parte de um escritor. Cidadania da bomba procura tratar verbalmente as referências ou obras de arte mais queridas de seus leitores com a mesma violência e banalidade com que sofre um desgraçado qualquer, despojando versos, citações e imagens de suas auras éticas ou estéticas. Nesse sentido, a violência está sempre à espreita da obra de Pádua Fernandes, mas não se manifesta nunca onde desejaríamos encontrá-las: no sofrimento de seus personagens, o que lhes conferiria certo heroísmo. Se a cultura erudita foi satirizada no modernismo e se a poesia marginal levou mais dor e a violência até ela, o livro de conto de Pádua Fernandes perfaz algo até mais cruel quando leva fragmentos do que se costuma considerar como as mais ricas experiências expressivas da língua a um mosaico de frieza, não tanto o da tensão do paredão, mas o da indiferença da vala tornada comum.


*     *     *

Leonardo D’Avilaé Doutor em literatura pela UFSC. Traduziu ao português os poemas latinos de Rimbaud (Cultura e Barbárie, 2014) e atualmente é pesquisador do CNPq, para o qual investiga a obra de Prudente de Moraes, neto.  

3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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de quando


de quando fui um navegador português,
não de alta patente: marinheiro apenas,
mas feliz, a enfrentar o mar sem fim
(e de humor instável) no rumo dos
brasis. e de quando, já com a terra à vista,
regozijo, a costa da bahia!, a nau,
por piloto inábil mal conduzida, com
forte vento de través, raspou o casco
num parcel, gemeu e soçobrou. e de quando,
mergulhado na água cinzenta, salgada e fria,
sonhava a terra, e não mais a via.


viagem noturna
  

mais cedo, quando saíamos, ainda, da cidade,
o lusco-fusco, a luz do sol laranja e forte, do fim
do dia, deixou bonita, por instantes, lembra?,
a paisagem, de resto tão pobre, tão triste,
tão postes, carências e tijolos. e agora

tufos de capim-gordura, na beira da estrada,
fugazmente iluminados pela luz dos faróis,
nas curvas. o som do carro tocando uma
canção de amor e saudade. e o aconchego
da velocidade, das luzes do painel,
da temperatura controlada.

  

um sacrifício humano


o corpo estirado na areia da praia. um
homem grande e gordo. bermuda preta, corpo peludo.
barriga para cima, soltando um pouco de água
pelos buracos do nariz e pelo canto
da boca. grãos de areia nos cabelos, nas orelhas.
afogado. roxo e morto.
todo verão é assim. eles comem muito, eles
bebem muito, eles se preparam para serem
dados, em sacrifício, a algum deus dos oceanos.

*    *    *






André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento.



Lançamento e 2 poemas de "Inventário de Rumores e Quimeras" de Marcelo de Angelis em Curitiba

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Lançamento do livro Inventário de Rumores e Quimeras, de Marcelo De Angelis, pela Contravento Editorial. O livro contém 10 poemas do autor e duas ilustrações de Eva Giller Parisi. Impresso em xilogravura, tipografia e off-set, é uma edição artesanal de tiragem limitada. 
O evento será no Museu Guido Viaro, dia 14 de dezembro, quarta-feira, à partir das 19 horas.


Conheça 2 poemas do livro: 


Distrações para lidar com as insistências do acaso

Ter olhos para o imediato.
Dar ouvidos ao inaudito.
Arquitetar irrealidades.
Prelibar o crespo das horas.
Converter, turva e insidiosa,
em boa dor, a dor que julgas ter.
A palavra
sempre abaixo.
Abaixo do silêncio
a palavra.



Lembretes para transfixar memórias

Do outono servir o pão
Do inverno beber o vinho
Da primavera abrir uma janela
Do verão
 a luz imperecível 



Marcelo De Angelis é natural de Porto Alegre. Formado em Comunicação Social pela UFRGS, atua na área editorial e também nas artes visuais. Participou das antologias Fantasma Civil e 29 de Abril.
Em 2016 lançou Gilda, revista literária.
Tem poemas publicados no jornal Relevo e nos sites Mallamargens e Germina. Vive atualmente em Curitiba.





4 poemas de Carvalho Junior

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Ilustração: Gilad Benari





Na cabeça do mundo

quero desabar sobre a cabeça do mundo,                       
explodir meus fracassos no cotovelo do abandono.

quero desabar sobre a cabeça do mundo,
ficar ao lado daquele cavalo morto na entrada da cidade.

quero desabar sobre a cabeça do mundo,
fundar doze novos tristes jardins no seio da silenciosfera.

quero desabar sobre a cabeça do mundo,
gozar no íntimo de uma folha de palmeira da língua vermelha.

quero desabar sobre a cabeça do mundo,
festejar a pedra, a queda, a ferida e a utopia.



Somente...

somente quando ardem a cabeça do meu sexo e do meu poema
projeto algum sentido de existência e renasço como o filho
que a mãe não desejou ter e a família expulsou de casa.



Machadadas

me fortaleço nesses silêncios
que gemem como um porco
antes do machado na cabeça.



Lâmina de fogo

a sintaxe do silêncio,
uma faca com sucupira nos lábios.



Carvalho Junioré a assinatura literária do professor/versicultor, índio fantasma da tribo Quirola, Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior. Vencedor do Troféu Nauro Machado de Poesia no I Festival Maranhense de Conto e Poesia promovido pela Universidade Estadual do Maranhão. Publicou 3 livros de poemas, o mais recente Dança dos dísticos (Patuá, 2014). É um dos organizadores do sarau Na Pele da Palavra e faz parte do coletivo de poesia Academia Fantaxma. Tem poemas publicados em antologias e revistas literárias nacionais. Prepara a publicação do novo livro de poemas No alto da ladeira de pedra.  [professorcarvalhojunior@gmail.com]



Quando o poeta encontra o seu Mefistófeles - trecho do romance "Febre de enxofre", de Bruno Ribeiro

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Mefistofeles1, por Beatriz Carrera, DeviantArt



Quando o poeta encontra o seu Mefistófeles
Um trecho do romance Febre de Enxofre, de Bruno Ribeiro

O começo. O taxista disse suerte e eu bati na porta da Mansão Tomada. Quando as portas grafitadas da mansão se abriram, Beatriz me recepcionou com sua expressão autista e sem vida. Ela me entregou um bilhetinho: mi nombre es Beatriz, yo trabajo para Manuel di Paula. Por favor, me siga. Um lapso de brancura tomou meus pensamentos e me vi submerso em um nada. Caminhamos por um corredor íngreme, o som da chuva no lado de fora embalando os passos, ¿Manuel está aqui? Beatriz riu da pergunta e abriu a boca, mostrando a falta de língua. Um buraco negro preenchido somente por dentes. Continuamos caminhando até chegar ao salão da mansão, onde estavam vários mendigos mudos, bêbados & drogados, pedaços de tubos de ensaio, jalecos melados de sangue, jornais velhos, restos do que já foi uma casa, pedaços de um passado que habita a mente do biografado; Beatriz me levou até a pista de baile, onde Manuel estava ajoelhado ao lado de uma caixa de som. Achei estranho, mas familiar. Ao lado dele, havia uma vaca mugindo. Poeta, ele disse, finalmente você veio. Fiquei em silêncio e assenti com a cabeça. Beatriz se retirou. Não havia mais retorno. Manuel ficou de pé, alisou a vaca e pediu para segui-lo. O fiz como um hipnotizado. Ele me apresentou os aposentos principais da mansão, disse que ela foi abandonada pelo governo e se tornou moradia dos marginais, Manuel assumiu a liderança e organização do lar pelo simples fato de estar sóbrio e limpo; recebe grana pública para manter os desolados vivos através de alimentos, atenção e carinho; eu deixei minha bagagem no quarto e fomos à Sala de Discussão. Manuel me rodeava e gesticulava; olhos brilhando vermelho, apressado, prolixo. Poeta, feliz por você ter vindo, ele disse, pois nós somos a sintaxe do místico: aquele que sempre busca... O inquieto que alimenta traumas para continuar no mesmo lugar, mas seguindo em frente. Rimbaud não abandonou a poesia por ser um fraco, ele a abandonou porque a zerou; um místico nunca se contenta com um único espaço. Por isso ele sempre busca e, quando alcança, procura outros caminhos; um místico é um viciado em estradas, um enfermo maldito, mal dito, porque nunca estará saciado: seus bichos estão pregados como os pregos na mão de Cristo. O fim da estrada não importa para o místico, o percurso sim. Este é essencial. A eterna busca. Por isso você foi escolhido para escrever minha vida. Você deve desligar o apego, o passado, os nomes que lhe marcaram desde então, inclusive o seu e o do todo: só assim conseguirás realmente concluir minha história. Manuel relou o dedo na minha testa e lambeu meu rosto. Ele começou a fuçar nos livros que estavam na enorme estante da sala e pegou um estetoscópio e colocou a campânula no lado esquerdo do meu peito. Fiquei calado. Poeta, eu não escuto nada. Respirei fundo. Eco. Pulmões e corações queimados. Nós conhecemos todos os símbolos do mundo e nós somos fragmentos de arquétipos, eu, Manuel di Paula, sou um inconsciente que habita o lirismo, você me conhece assim como qualquer um que tenha mordido a maçã da vida & morte, qualquer um que habite os poços escuros, aqui em Buenos Aires, onde tu viveste algumas semanas em seu passado obscuro com sua família fragmentada, se encontra o centro indivisível do Eu, o desespero e o gatilho da sua carreira de escritor; essa vertigem que você sente agora, e Manuel tirou sua arcada dentária, mas dessa vez não senti nenhum cheiro terrível o que muito me surpreendeu e chocou, pois sua voz se tornara grave, amplificada, e meu coração martelava a campânula do estetoscópio, mas eu não o escutava e isso me desesperava e já estava arrependido de ter vindo poderia ter ficado na minha cidade no meu lar no meu suicídio constante e continuei escutando sua liturgia, poeta, ele apertou meus cabelos, este transe que passa do meu corpo para o seu é a simples e lógica multiplicação dos demônios que quando se veem precisam se juntar numa legião forte o bastante para combater o Paraíso; isto é o pacto que estás a fazer comigo: o poeta é uma lança contra Deus, uma arma grávida de ódio, ¿mas qual ódio você irá parir? ¿Nosso? Meu hálito o trouxe até aqui, a varanda de que agora você nem deve lembrar mais, já que o esquecimento se fez presente no avião que o trouxe até mim, foi o último suspiro do seu Eu; aquele último sorriso da mãe, a praga do alcoolismo do pai, a família desregulada, um ninho de lesividade que insiste em tentar redimir esse coração caído, mas poeta, não é possível definir, apesar de o gatilho ter sido disparado nos minutos finais da mãe, abra os olhos, e os abri, abra a boca, e a abri, veja-me, e o vi, eu sou o Lazarus que saiu da tumba... ¿O que há em minha boca sem dente?¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas noches e saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno.
A mansão de Manuel di Paula, chamada por todos de Mansão Tomada, é mixada com música eletrônica e de vanguarda 24 horas por dia. Manuel passa as noites remixando e criando novos sets ou alugando sua pista de baile para músicos alternativos. A priori foi incoerente este fato, mas após algumas semanas, por algum motivo, tudo se tornou tão comum que parecia até que fazia parte de mim. Nos momentos de pausa do trabalho incansável do biografado como DJ e produtor musical, ele, na escuridão da Sala de Discussão, contava sua história e me entregava inúmeros documentos, fotos e cartas sobre sua vida. Eu perguntava bastante, principalmente em relação a datas e outras questões pontuais, mas ele omitia e omite muita coisa. Evita dizer quando aconteceram alguns eventos e evita me explicar porque o nome Malena, e principalmente da sua última amada, Luciana, me soam tão familiares. Inúmeras situações da sua vida esfaqueiam minha cabeça, residem em algum ponto que eu tento alcançar com minhas mãos, mas uma espécie de avalanche de neurônios me afoga e eu não consigo alcançá-las. Geralmente quando faço muitas perguntas, o lado esquerdo do meu peito – onde ele me marcou feito gado com a campânula do estetoscópio – começa a arder. ¿Manuel di Paula é um arquétipo de que exatamente? ¿De um vampiro? Ele é aquilo que tanto neguei; negamos: sua vida é minha cocaína, a cheiro sem parar, um vício que injeto, fumo. Não consigo largá-la, por mais que, desde o primeiro dia em que cheguei, minha sanidade ordenou: saia e volte para casa. ¿Que casa? Minha operação é de sacrifício, não é possível voltar, eu até posso retornar para meu lar, ou seja, lá para onde, mas o homem que estará voltando não serei eu, será outro: melhor ou pior, mas outro. E a sanidade que tanto me alertou nos primeiros dias agora se vai, lentamente, como a luz do sol que aparece no canto inferior do quadrado que é meu quarto, à direita de quem entra – Beatriz ou Manuel ou os loucos da Mansão Tomada – e este raio de esperança que some às 19h50min, que pode até ser o único vestígio de vida que me ilumina, aparentemente anda se esvaindo; essa luz e minhas eventuais saídas da mansão – todas lisérgicas e bizarras e incoerentes – fazem com que Buenos Aires seja uma prisão de escritura, onde o único sentido possível de criar e de recuperação da minha sanidade seja através da biografia de Manuel, e o que faço é isso: pesquisar, escrever, reescrever, apresentar a ele, mudar, escrever, pesquisar e perder, pois aparentemente eu não serei vitorioso neste tabuleiro de sinuosas variações insólitas.







Bruno Ribeiro nasceu em 1989, um mineiro radicado na Paraíba. Autor do romance Febre de enxofre (Penalux, 2016). Escritor, tradutor, roteirista e membro da banda Creepypasta. Já publicou em diversos jornais, revistas, blogues e antologias. Autor do livro de contos Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero, editor da Revista Sexus, foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon, também foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2016. Edita o blogue: brunoribeiroblog.wordpress.com

Condor - Tereza Du'Zai

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Ilustração;Barbara Cole



A noite se encheu de estrelas mortas,
estrelas de sombra,
filhas, netas, bisnetas de meus antepassados;
esposas de Deus, amantes de Maria,
penetradas e lambidas.
Invejei-as,
clamei pelo sêmen divino.
Desnudei-me, santifiquei-me.
Um minuto de silêncio, um sussurro débil,
e renasci como um poema oculto no ventre de uma casa vazia,
presa à sombra de um verso nu.
Um dia, talvez, Deus haverá de me comer.



Tereza Du'Zai, natural de Itajaí, SC, é poeta, contista, cronista e professora de Língua Portuguesa e Literatura. Atualmente,  a autora tem se dedicado à produção, à organização e à divulgação de sua obra literária.

Lançamento da antologia "Blasfêmeas" em Porto Alegre

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Convidamos a todos que estiverem em Porto Alegre, no próximo dia 21 de dezembro, às 19h, para, no Café Cartum, prestigiar o lançamento da Antologia Blasfêmeas (uma homenagem a Hilda Hilst), organizada por Marilia Kubota e Rita Bittencourt, com capa e projeto gráfico de Roberto Schmitt-Prym, editada por Laís Chaffe pela Casa Verde Editora.

As autoras:


Adelaide Ivánova, Adriana Zapparoli, Adriane Garcia, Ana Elisa Ribeiro, Ana Mariano, Ana Mello, Ana Peluso, Ana Rüsche, Andréa Catrópa, Andréia Carvalho Gavita, Angélica Freitas, Bárbara Lia,Celia Musilli II, Claudia Manzolillo, Claudia Roquette-Pinto (Cau Pema Konchok), Concha Rousia, Daniela Delias, Eliana Mara Chiossi, Eliane Marques, Estrelinski Ruiz, Etel Frota, Francine Canto, Gabriela Silva, Germana Zanettini, Greta Benitez, Jandira Zanchi, Jane Sprenger Bodnar,Josely Vianna Baptista, Juliana Meira, Jussara Salazar, Katyuscia Carvalho, Karen Debértolis, Laís Chaffe, Leila Guenther, Ligia Regina, Liria Porto, Lisa Alves, Lota Moncada, Lubi Prates, Luci Collin, Lúcia Santos, Mari Quarentei, Maria Rezende, Marília Garcia, Marilia Kubota, Micheliny Verunschk, Miriam Adelman, Monica Martinez, Neysi Oliveira, Nina Rizzi, Nydia Bonetti, Priscila Merizzio, Priscila Prado, Regina Bostulim, Roberta Silva, Rose Mendes, Sabrina Lopes, Sandra Santos, Stela Livina Siebenichler,Telma Scherer, Vássia Silveira, Virna Teixeira, Yassu Noguchi, Zoe de Camaris.

Venial - Lucas Alvim

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Uma hora toca o almoço.

Varais armados ao hino da pátria amada de uma verde lambida do sol na quadra de voleibol.

Me chamo atrás de mim, de chinelas e camisa cavada.

Sentado na escada, veio o vazio do céu esbugalhado
na onipresença do meu miolo de pão.

Um corpo deitado é um corpo desarmado,
e a terra esta de bruços, eu soluço seu salmo,
sem poder ver o que na noite anterior deixei para mim,
um diálogo ou um sonho?
Cavalgo por ela com cavalo sem ferraduras
de meus brônquios dedos arbustos,
chegando lá, depois que acabou a festa.

O vento me disse que é um tremendo idiota.

O dia segue-se amanteigado
e eu me sigo, já não sinto nenhum cheiro,
dentro do balde da ultima madrugada
vestindo mais um discurso,
da assembleia de só eu e meu pão.
Uma sacola!

Enquanto o vento tosse em minha orelha,
Tolo, aonde vou,
se as paredes do copo são águas cristalizadas?
E prendo entregando-me em suas palavras mágicas:
Fusca Branco, Saco de Ração e me trás um Galão de Água Mineral.

Visto meu manto para descer o precipício,
é sempre bom manter-se agasalhado
lembre-se do maço maternal
do argumento da quinta covardia
onde escorro, veneno.

O vento gosta de cantarolar Peter Gabriel,
seu inglês é tão horrível quanto o meu,
“I like what I know, I know what like”
Uma tartaruga de guerra, uma criança subdesenvolvida,
o que sei é que escrevo
neste céu de pão seco,
poderia rimar, mas sou apenas um suspiro,
mais quente que o vento areadense
mais burro que Peter Gabriel.




Lucas Alvim, nascido em oito de abril de 1990 em Areado-MG, é um típico e pacato mineiro fã de Rock Progressivo que escreve poemas. Publicou Maço de Março em 2013, finalista no Prêmio Gloria de Sant’ana 2014, e em 2014 publicou Exergia, segundo lugar no Prêmio LiteraCidade jovem 2014 categoria poesia, ambos pela Editora LiteraCidade. Também possui participação em Antologias. E foi menção honrosa com o Livro das Evaporações no Prêmio LiteraCidade 2015, categoria poesia. Em 2016 lançou Contorcionismos pela Penalux, e depois fez mais nada. 

6 poemas de Mara Senna

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Ilustração: Mira Nedyalkova




Corte

Mantenho os cabelos longos
como as longas esperas,
como as listas compridas de desejos.
O tempo vem, sutilmente,
aparando as pontas,
cortando aos pouquinhos.
Permito que apare dois ou três dedinhos,
e, quando me dou conta,
ele passa a foice.
Foram-se os desejos,
a cabeleira foi-se.



Cebola

Na pressa,
foste tirando as minhas camadas,
uma a uma,
e não encontraste nada.
É que foste me perdendo
pelo caminho,
tão ocupado estavas em me achar.



Provérbio

Não choro o leite derramado.
Para dizer a verdade,
eu nunca gostei muito de leite.
Por mim, podes derramar a Via Láctea,
que eu nem ligo.


Ilustração: Mira Nedyalkova


Mil e uma

Até que aconteça o milagre,
fica na boca esse gosto acre,
e caminha-se descalço
sobre a lâmina do sabre.
Até que aconteça o milagre,
não chove,
ninguém abre a janela,
não se acende a luz.
Quero as mil lágrimas de Alice
e uma a mais,
por garantia.



Sapatos

Quero fugir daqui.
Os pés traçam a rota de fuga,
à revelia dos sapatos,
que querem permanecer onde estão,
seguros e intactos.
Se eu fugir descalça,
eles irão ao meu encalço.
A gente não se livra tão fácil
assim
da tirania dos sapatos.
Às vezes,
só na hora da morte.



O que não pode ser

O que não pode ser
não se contenta em ficar guardado
nos porões
ou escondido nos desvãos.                                      ,
Traz no peito convicções anêmicas,
na boca uma recusa fajuta
e tanta ternura entranhada
no corpo
que chega a sentir uma coisa
que fere por entre as costelas.
Por vezes, veste-se de coragem
e despe-se dos seus pudores.
Mostra os seus humores,
prepara a mesa
e faz um alvoroço
que se faz ouvir até a esquina.
Mas, ao menor sinal de encontro,
treme
e recolhe-se mais uma vez à sua sina
de não ser.
E volta a latejar lá no fundo,
tentando derrubar paredes.



Mara Senna: nasceu em Araxá – MG e vive em Ribeirão Preto, SP. É autora de Luas Novas e Antigas (edição da autora, 2009), Ensaios da Tarde (Editora Coruja, 2012) Eternidades na palma da mão (Editora Patuá, 2015).Participou de diversas antologias entre elas: Ave, Palavra(2009)10º. Concurso de Poesias da Universidade Federal de São João Del-Rei, MG (2010)Prêmio SESC de Poesia Carlos Drummond de Andrade (edições 2009, 2010 e 2011 e 2013), Poesia para Mudar o Mundo (2013, 2014, 2015), Antologia da União Brasileira dos Escritores - UBE (Global, 2015), Antologia Patuscada (Patuá, 2016). Recebeu, respectivamente, o primeiro e o terceiro lugar noConcurso de Crônicas da ALARP em 2009 e 2010, menção honrosa no Concurso Nacional de Poesias Helena Kolody noParaná (2010) e terceiro lugar na categoria Poesia do Prêmio Mário Sérgio Cortella da Feira Nacionaldo Livro de Ribeirão Preto em 2016. É filiada à União Brasileira dos Escritores (UBE) e membro da Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto (ALARP).

Rolê das Minas: 6 poemas de Patrycia Waltrick

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E aqui não foi assim
com tanta rasgação de seda azul,
tanto gomo, tantos dedos
foi com um sempre riste,
no meio da testa,
das pernas,
das tetas.
um riso de malícia,
um desdém,
um apossar-se 
uma cadeira puxada é pagamento
pra não dizer que tomou a força, 
pro julgamento na posteridade.
Aqui é na trovoada,
na peixeira, 
no murro, na ponta de faca.
É cravado na clavícula do psicológico,
é ameaça de tirar as crias,
de infernizar a vida,
tudo em nome do amor.
Aqui é na base da quebradeira,
da pancadaria.
"Faz lá meu ovos bem mexidos, e do pão uma fatia"
É na base dos princípios do príncipe.
Aqui a lei que te tira pra loqui,
nos joga mais pro descarte.
Cê qué se fazer de 
" trataram como casca a minha banana"
Teu ego fétido se inflama.
Eu quero mais que te traia a braguilha



Não sei quantos sambas,
deitada nesse mesmo quarto,
já te dancei à sala.
Daqui, me entreguei aos teus quadris, descalça.
E na cuíca meu pescoço passou a receptáculo de beijos,
e nos tambores teu sorver.
E vide em versos.
Cabelo solto na tua mão.
poros a postos,
paredes que evitam o chão.
E eu fico tão nervosa quando cá estou,
que pareço ter dois pés esquerdos.
Até parece que és a primeira, 
que me chamou pra dançar.



Engole ou vomita

Diz que vai permanecer 
as lingeries nas minhas gavetas
pois não tenho como ser pior.
E eu só com vinte e sete,
com um nervo quase novo 
que se enrijece,
a subestimares romantizados,
vou guardando um já coalhado
leite morno pra tua sede.
Tu sabe que não quero ser a vilã,
mas já desvendei o nó dos teus novelos,
e sei o que é esperar tuas costuras
nua, no inverno.
Tem essa dureza da água,
aqui no meu mapa,
e eu tô guardando feito idoso,
esses teus porta-retratos quebrados,
que nunca guardam o meu rosto.
Não é vingança,
porque frio ou quente, não me apetece o paladar.
Chame do que quiser o que te sirvo no jantar.



Que morte lenta é o fim do encanto

Enquanto caga de manhã, de porta aberta,
livre de todas as amarras da sociedade,
vai me falando:

-Namaste bonitinha, que lindo dia de sol, minha flor de maracujá.
E depois, do jeito estranho de Francisco. 
Que Marcinha da venda, já tá de rolo com outro,
mas que o último era mais bonito.
Do fedor de trabalhador de obra do seu Kiko da portaria noturna,
que achas que ele é pedreiro de dia.

Diz que Deus abençoe essa gente pobre e sem decência.

Enrola um papel de folha tripla,
macio pro seu cu de gente rica,
em três voltas generosas, e limpa um freadinha
de merda dura, e ainda ri.

-Sujou nada!

Eu vou me enervando de ser sensível
à tua já tão manjada hipocrisia,
começo a cagar também no seu dia,
com meus silêncios maçantes.

No fim do dia já cansada,
dou beijinhos na sua adorada,
tu sente gratidão lambuzada.
e eu fico meio enojada.

Mas nunca sirvo pra Mártir...
Sei que exponho teu orgulho,
escondendo o meu tipo o Mário,
atrás do armário,
e sei que ele também já te fodeu,
em outros poemas.

Amanhã tá decidido, tô indo embora.



Dor de garganta

ocê é só palavra, ela falou.
Bem assim:
" você-é-só-palavra! "
E eu fiquei, com palavras trancadas na garganta,
e no dia seguinte jatos e jatos de própolis com mel,
duas folhas de malva, água morna e uma colher de sal.
Palavras nos cigarros apagados no incensário antigo que virou cinzeiro, 
cinzeiro de incensário antigo cheio de palavras cinzas,
Palavras em negrito nos pedações de pulmão na pia de manhã,
palavras roxas de olheira.
As portas quebradas do guarda roupa de infância, 
escritas as palavras inocentes,
nas paredes do quarto de dormir estavam as palavras de sonhos recorrentes,
nos cadernos de rascunho, rasuradas as palavras de devaneios,
até na pasta de protocolo de desenhos, 
tinham as palavras de 6b e faber castell.
No pente de cabelos, fios de palavras emaranhadas, 
na mesma letra emendada das palavras das entranhas,
palavras escondidas nas rachaduras da boca,
palavras arrepiadas no bico dos seios.
E eu com palavras trancadas na garganta,
só queria dizer: -olha aqui ó moça....
....
...
Mas as palavras não saíram.



Rolê das minas

E rimos gostoso, de lacrimejar e ter uns espasmos,
de fazer barulhos estranhos,
e abrir a boca como temos vergonha, 
de quase nos mostrarmos por dentro, 
de bater compulsoriamente a mão no encosto do que nos encostávamos,
de acordar os cachorros, 
os que dormiam, e os bebês.

Como se não tivesse cessar, 
assustasse quem fosse passar, 
como se quisesse mascarar, 
enfeitiçar, atiçar, os pobres meninos.

Rimos tanto da alegria,
que eles pensaram em bruxaria.

Querido que besteira, 
a parte que ri sem eira-nem-beira,
não queima na fogueira.




Patrycia Waltrick, lageana, parida em Agosto de 89, começou a desenhar sozinha antes de falar, começou a falar sozinha antes de escrever, e na escrita encontrou em si uma multidão. Todos a arranham,  vezes aqui http://misstheunderworld.blogspot.com.br/ vezes acolá https://www.facebook.com/amalgamadaa/?fref=ts.

La Garçonnière: Babel.

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No próximo sábado, 17/12/16, o Estúdio Lâmina abre as portas a partir das 20 h para 8a. Edição de La Garçonnière: Babel. A poesia da língua & a língua da poesia. Movimento & arte & música & livros.
 

2 poemas de Junior Bellé

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quero estar em algum canto da tua memória, em cada momento, em todo lamento
no teu poderia ter sido, onde possa ser um pouco tua dor, saber se sofri demais, ou se depois
 por mim, você chorou, quero teu pranto, ser o espanto da centelha surpreendente
que se acende de repente, e como cicatriz deixa a certeza de que voltará
quando entre suas coxas, com os lábios assoprando meus verbos
e desejando seus arrepios, digo que já não sou mais o mesmo
afago seu rosto e bato a brasa no cinzeiro
anoiteço
não ignoro nossas revoluções, apenas as temo, explico isso com cuidado ameno
 dizendo que te amo de qualquer jeito, tua lágrima deságua 
debaixo da tua tempestade

adormeço


***


é preciso apegar-se à mão de um amigo
a qualquer sinal coletivo de gratidão
a qualquer minúscula evidência empírica de solidariedade
às raras empatias capazes de comungar os homens e as mulheres
é preciso apegar-se às flores e às frutas maduras
e à manga rosa que é as duas

faça outubro ou faça verão

não há outro jeito, compadre
comadre, de algum jeito a insanidade se apossou da razão
e tudo começou quando vendemos o último naco de nossa dignidade
por um prato de arroz e feijão

quem consegue esquecer desse dia?
os olhos abrindo-se fatalmente após uma noite de tormenta fria
ainda assim desejando retornar a ela e matar os sonhos de hipotermia
como esquecer a maré cheia e súbita
ao abrir as duas densas cortinas?
uma de couro e outra de insolência intempestiva
e deixar que a luz inunde as ideias
e da nascente dos olhos verta
a garoa antes seca
de realidades fundas 
tão logo trovoem-se os cílios
e do atrito, a fagulha
faz brotar a manhã depois da manhã
numa ressaca de amanhecer
trazendo de volta tanto ontem
trazendo um hoje pra tanto talvez

é preciso acreditar na petulância do adolescente
é preciso acreditar na coragem
do sorriso esperançoso de um velho trabalhador
capaz de vencer as memórias e o cansaço de viver delas
e nelas restar-se um pouco maior
desgarrar-se da brevidade da existência, arrancar-se
das próprias raízes
já abraçadas à morte
para dedicar à vida uma homenagem de quem
caso pudesse
jamais a esqueceria, jamais
a deixaria à míngua
e a ela voltaria
quantas vezes ela quisesse

é preciso creditar o amanhã
aos que ontem acreditaram
é preciso creditar o ontem
aos que acreditaram no amanhã
mas também é preciso creditar a fé
ao presente
mesmo estando ele
mais desacreditado do que a gente



Nascido no sudoeste do Paraná, Junior Bellé   publicou em 2010, de maneira independente, “O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas”, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Seu segundo livro, “Trato de Levante” foi publicado pela Editora Patuá em 2014.

RODRIGO GARCIA LOPES - 10 POEMAS

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(seleção do autor)



WARHOL, Andy - Shot Blue Marilyn, 1964








O FOTÓGRAFO


Não perdia tempo com palavras
“Você ama de verdade?”
Nu, na sacada do hotel em Tanger,
a propos de rien
olhando a cena como quem celebra —
Um copo de suco, cigarros, ideogramas chineses,
cartões postais e fotografias
espalhados numa mesa negra:
o piano de Einstein
tecia linhas de fuga
formando espirais
que desapareciam.
Imagista obsessivo, ele havia penetrado
no outro lado do espelho e saído
à procura de Alice e do coelho da lua.
“Previsão de neve no domingo”. No deserto,
“tudo é phanos: essas nuvens distantes se elaborando
e refletindo-se de volta
no espelho da piscina”.
“Você vem?”.
Então fotografava o futuro, apreciava um processo
de vir-a-ser, ondulações e o ar-reflexo das ondas
depois de um corpo mergulhar.
O mundo todo num clic.
Arqueiro de Herrigel,
a roleta russa do olhar
dispara setas à deriva, em direção ao céu,
revelando polaroides & esquizofrenia.
Ruído de oceano e pássaros
se mixando com as imagens
sem som do vídeo.
Você imaginando a neve, breve,
de novo caindo como antes,
nossas faces se dissolvendo com os galhos
agora distantes
levados para sempre
pela violência do vento.
Tudo se solidifica.
A linha do céu retém o último poente
até que ele explode o índigo da noite.
Ondas de oxigênio: um céu de seda.
À velocidade do tempo, um aparelho
condiciona o ar, umedece nossas vozes.
Uma sucessão de flashes
nos mixa com cartas e fotografias, brancas, numa mesa.
As mesmas imagens
voltam misturadas aos ruídos
e a alucinação do real recomeça:
o fotógrafo havia decidido
se deixar levar pela fúria dos eventos, seguir
as dicas sutis dos hieróglifos
e recolher os dados em silêncio.
Afirmar:
os instantes não seriam mais
tensos como antes mas
intensidades,
temperaturas, imprevisíveis
retornos.
A luz azul de ozônio oscila e acaricia
suas retinas —
nuvens dirigidas pelo vento
Sul,
Você se debruça sobre ele,
o vidro do céu te silencia, seco,
com a sede de um deserto.
Dedos
trêmulos
olhos nômades
desembaraçam sombras
gatos-pêndulos caem sobre a grama: fotografamos.
Sentidos se bicam como pombas
— como podem —
depois levantam voo
Sem nosso sim. Zoom, ou
nossos olhos cruzando a cena
linhas de fuga se supersonizam, neste deserto,
volume de ondas simulam Odessa
ou Santorini, vulcânica.
Essa chuva:
o som do rádio sibila com o rufar das árvores
perdido na estática, na impossibilidade das estações.
A estrela da manhã equaliza
nosso senso de tempo e direção.
Estas palavras:
outubro ou outono, um outro ano.
Eu vejo a neve na TV fora do ar
caindo em você.


De Solarium (Editora Iluminuras, 1994)





sem som
esquecida em seu
refúgio de

sombrasúmidas
de cuja seiva espessa
sobrevive

alguma coisa miúda,
muda, num
ramo qualquer

onde possa se
sentar
ela nos espreita

hesita, pressente,
espera-nos passar
(até a razão
estar ausente)

para que recomece
segura

a cigarra


De Visibilia (Sette Letras, 1996)





C:/POLIVOX.DOC


“Para mim tudo se desintegrava em partes, estas partes em outras partes; nada mais seria abarcado por uma ideia só. Palavras isoladas flutuavam à minha volta; elas se solidificavam em olhos que me encaravam e dentro dos quais eu era forçado a olhar de volta-redemoinhos que me davam vertigem e, girando incessantemente, me levavam para dentro do vácuo” (Hugo von Hofmannsthal).
                                                          
“corte as linhas de palavras” (William S. Burroughs).

“Um pouco de ruído, o menor elemento do acaso, transforma um sistema ou ordem em outro” (Michel Serres).


On-line.  Psiu: “Épico é poema
contendo história”.  Demais.
“E se um Plano de Saúde
Pudesse expressar
sua
Individualidade?
Você não é como todo mundo.
Sua individualidade é algo que gostamos
e entendemos. Também sabemos que
seu seguro tem que ser
importante para você. Ele também
é importante para nós.      Enquanto
isto,   flores
falsas, carniça, neve
negra. “Eu não procuro o que eu acho”.
Linguagem escapa:
Desde quando oceano
É Céu? Acesso negado. 
PARA MUITOS, TEMPESTADES ALÉM DA COMPREENSÃO
/“...viram tornados
jogarem seus carros como brinquedos e vacas voando nos quintais…”.
Este, o Sonho Americano. Pétalas de chuva, postal estranho,
bilhete em esperanto
obscuro   do Além: Cézanne: “A
paisagem pensa a si mesma
através de mim. Eu sou sua consciência”. Livros mudos, o vermelho das
árvores se alastra em frases falsas, e o deserto devora o tempo.
Shift.
O que faz de Dell
a escolha ideal? Dell
sempre almeja lhe oferecer
a perfeita combinação de potência, performance,
e preço. QuANto MAis pERtO o-
LhAMos PaRa UMa pAlAvRra
mAioR a DiStâNciA cOm QuE ElA
nOs eNCara. Todos os direitos reservados ©
Deixe sua mensagem após o bip.
Cerejas amargas: antes, flores.
“Se um leão pudesse falar
ele não entenderia o que rugimos”.
Ideologia é linguagem vestida de transparência.
Megaugnil: devagar eu te direi quem és. Remédio ou veneno.
O homem não é contemporâneo de sua origem.
Aumentemos o volume da linguagem.
Esta página está em construção. Zip! Ninguém escuta pensamentos como aqui. Agora
você não precisa mais de mim, agora forma
é uma extensão do conteúdo. Bapel.
Nadar
nesta espuma, virgem verso, pampa nevado com paredes negras.
“Poesia é a suprema realidade virtual, menina”.
Mundo. Mudo. No qual entramos des-
nudos.
Assim termina o mundo
não com um tiro
mas sem um sentido.
A resistência dos materiais. “Isto
vai doer mais em mim do que em você”.
A frase está fora de foco.
“Ao dissecar, a matamos”.
“Dor é impossível de se descrever”,
A dança do duende entre a floresta de signos.
“Se sempre escrevêssemos a não ser
o que já foi entendido
o campo do conhecimento
nunca seria estendido”. O tempo virou, esta
página-(de pangere, prender, fixar, ligar)-manhã.
Mesmo porque,
“uma dúvida que duvidasse de tudo não seria mais
uma dúvida”. E
o que muda depois de tudo. Muda,
depois de tudo. A dança do duende
entre a floresta de signos. Madame Yahoo,
não há nada épico em acender um cigarro:
ou talvez sim, como o gesto heroico de
abrir a porta e retirar o lixo. “O difícil é conseguir
saltar o muro”. Esta linha de mentira.
O hímen está testando a memória estendida.
Um banho quente é a conquista do Egito.
Quem disse isso?  Fui
teu amuleto no meio do tumulto:
te protegi da guerra, deusa —
Eu era a lâmina afiada na mão de Thoth
no meio do tumulto.
A queda da caneta no carpê é uma aurora de outono.
Céus de cristal líquido.
Limalhas de ferro formam uma rosa imantada.
Restos de conversas são nossas profecias.
Um beijo é a conquista do Egito.
A cada manhã é preciso remexer o cascalho para alcançar,
debaixo dele, de repente,
a semente viva e quente.
Vox, Vak, vácuo. Vai ver o homem
não é contemporâneo de sua origem.
A miragem não é contemporânea de sua imagem.
Aumentemos o volume da linguagem.
Nas matinês americanas nos ensinam a assistir um filme
no velho estilo: em silêncio.
Com tempo, nos tornamos
Invisíveis:
Sub verborum tegmine vera latent, ou
por trás do véu das palavras, a verdade. Vozes na sala
da Mente? Mas acordamos ao mesmo tempo para nós e para as coisas.
“A trilha árdua da aparência”.
O OLHO SE ABRE.             O OLHO SE ABRE E SE DIVIDE.
Ar, articular,
como um bicho saindo de seu ninho.
O cinema grotesco nos ensinou
a configurar uma ação, instante negro, não reflexo
de realidade.
Uma maçã flutua na luz: este seu sentido
(“aceitamos cartões de crédito”)
que se movimenta como quem respira, imediato,
enquantO mira espirais de tempOs, arOs de fumaça.
Não há como escapar.            

De Polivox (Azougue Editorial, 2001)





ZEITGEIST


Nocauteando celebridades disfarçadas de pinguins
Monitorando a muvuca das transações e trapaças alpinistas
Serpenteando entre escadarias cravejadas de citações
Chutando o balde do crepúsculo com o bebê da aurora dentro
Chegando firme na dividida com a mentira, pisando o calo da calúnia
Colecionando estoques de paciência e delatores pederastas
Beliscando morenas de fiberglass e pixels de altíssima definição
Pegando marqueteiros pela orelha, levando o bispo milionário pelo pescoço
Mostrando seu catálogo de golpes de jiu-jítsu para web designers
Apavorando editores de moda com crucifixos de merda
Partindo pra ignorância pra cima das floriculturas
Esfaqueando a manhã e as boas intenções com sua adaga afiada
Pulverizando jogadores de genoma e modelos chipadas
Dando geral nos arquivos adulterados dos tribunais de justiça
Assaltando pipoqueiros metafísicos e banqueiros artistas de fim de semana
Distribuindo pirulitos de ácido para críticos literários
Arrebentando a boca da razão com denúncias inconsequentes
Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music
Pregando a irresponsabilidade fiscal, e anthrax para todos,
Rifando o shopping lotado de ideias fixas com um grito de jihad
O homem-bomba entra no poema.


De Nômada (Editora Lamparina, 2004).





ECLESIASTES


Você bate na mesma tecla, repete
aquele surrado clichê: não há nada
de novo sob o sol. Mas quem garante
que isto é real, não um conto de fada?

Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,
a mesma coisa desde o começo
dos tempos. Não estou convencido.
Se há algo que não muda, desconheço.

Nem sempre o vento é sul, nem todo rio
segue pro mar. O que está acontecendo agora,
por exemplo, não era pra acontecer. Ora,
você nunca viu este filme. Fica frio:   
                                                              
Não há nada de novo sob o sol
só para o sol, que é sempre o mesmo.
Esta é a verdade toda, não se dissol-
ve numa rima ou pensamento a esmo.

Aqui embaixo, tudo muda, todo dia:
a moda, o medo, e mesmo a luz do sol
passa dias assim, arredia, e me arrepia
pensar que é diferente. Olha só:

Pare de ficar repetindo isso. Acorda. Mete
em sua cabeça de uma vez por todas:
nenhum sol se põe a oeste. E este
poema, eu sei, nem ele existe. É foda.


De Estúdio Realidade (Editora 7Letras, 2013)





NOTÍCIAS DO MUNDO

                                               
Águas muezins no vale das sombras
África agoniza
Iraque se debate
Índia se indigna
Impérios definham
Morro em guerra fratricida
Irã se ira
Um terrorista que se aterroriza
Palestinos palestram
Arábia se ouriça
Europa se gripa.
Mentiras, mentiras.
O mundo é um parque de mentiras.
Diplomacia
Na mão de ignorantes
Nada vale, vale nada.
Barbárie é o nome
Dessas notícias.
Mundo implodindo
Rumo à extinção
Não atenção ao ser, mas atentados ao ser,
Mundo confluindo
Para uma desaparição
Onde, quem ficar, se der, vai ver.
E, no entanto, eu aqui
à sombra de um pensamento
de um amor que seja um lugar,
um lugar como um pensamento.
Mas isto é ir muito longe:
Isto é acordar.


De Estúdio Realidade (Editora 7Letras, 2013)





GUARUJÁ SALEM


linchada por um boato
numa tarde de sábado
mundo-barbárie

fabiane

ainda ergue a cabeça
para um último olhar
à multidão de agressores

filmando com celulares
e smartphones


De Experiências Extraordinárias (Kan Editora, 2014)





SOLILÓQUIO


Querido pensamento,
nunca fomos tão nós
quando estivemos a sós
no instante de seu advento.

Foi pouco, me lembro,
sua face, de relance:
mas como estar, inteiro,
em dois lugares
ao mesmo tempo?

Simples.
Sempre estivemos a sós.
Pensar é o nome desse osso.
Corpo a seu lado, quente a nuca,
mas a mente, aqui quase nunca,
sempre em algum lugar do passado,
em hokkaido, almeria, terra do fogo.

Viajo a seu lado, parado.
Todos os sítios são este.
Mesmo olhos nos olhos
sou cego aos seus pensamentos
e você aos meus.
Mútuo degredo.
Tateio o mundo em transe
sem poder sair da cabeça.
Nutro um segredo.
Estou no topo de mim,
no exílio, quem sabe.

Então, de novo, sozinhos,
quando menos se espera,
aliviados, percebemos:
outros nos habitam.

Solidão, sólida e real,
e a consciência
o nome dessa experiência, dessa demência,
o nome dessa conversa que levamos conosco
o tempo todo.


De Experiências Extraordinárias (Kan Editora, 2014)




IMPÉRIO DOS SEGUNDOS


Se eu fosse parar pra saber
o sabor deste instante
não iria jamais perceber
do que é feito o durante,

a carne de cada segundo,
minuto de cada poente
de que é feito este mundo,
sangue, esperma, poeira,

não ia jamais me lembrar
da trama da tarde, museu
onde moram as velhas horas,
nem o duro rosto deste outro

outono, matéria, mistério,    
nem a memória, esse mármore
em fluxo, rugido em estéreo
de uma incessante cachoeira.


De Experiências Extraordinárias (Kan Editora, 2014)





MAR DOS SARGAÇOS


Nas praias sonolentas de seu dorso
Dedos ávidos criam dunas de carícia,
Setembro, sereia de lúdicas delícias,
Exploro seu litoral sem carta de corso.

Entro na angra gentil da sua mente
sem vestígio de pegada humana.
Lanço a âncora sutil que me prende
à realidade que de tudo emana.

Pirata de um sonâmbulo Caribe
Rapto a praia em forma de mulher
que tudo oculta, trama, mais que exibe

Minha ilha do tesouro onde sinos de vento
Despertam de seus mais íntimos degredos,
Tomam de assalto meu pensamento.


De Experiências Extraordinárias (Kan Editora, 2014)






Foto: jacqueline Sasano


RODRIGO GARCIA LOPES (Londrina, 1965) é poeta, compositor, jornalista e tradutor (Whitman, Rimbaud, Sylvia Plath, Laura Riding, The Seafarer, entre outros poetas). É autor do CD Polivox, do livro de entrevistas com artistas norte-americanos Vozes & Visões (John Cage, William Burroughs, Chick Corea, Marjorie Perloff, Allen Ginsberg, Nam June Paik, entre outros, 1996) e dos livros de poemas Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2000), Nômada (2004), Estúdio Realidade (2014) e Experiências Extraordinárias (2015).A Record publicou em 2014 seu romance policial-histórico O Trovador. Desde 2002 edita, com Marcos Losnak e Ademir Assunção, a revista Coyote. Em 2013 lançou seu segundo CD, Canções do Estúdio Realidade. Em breve a Ateliê Editorial lança Epigramas, com 219 poemas traduzidos de Marco Valério Marcial (38-104 d.C.). Site oficial www.rgarcialopes.wix.com/site



6 POEMAS DE MASÉ LEMOS

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Ir a lugar nenhum
uma ideia idiota
estacionar em
estremecendo
constantemente o
advérbio

Percorro o verso com
passada para não
comprimir pulo espaço
quero fazer uma linha mais comprida bem mais esticada
desfazer o cubo
fio

__


Hoje o dia está radiante
talvez seja apenas um senso
mas algo comum assim
sempre quando se entra
se compartilha no elevador ou
na sala de aula cheia de atenção
janelas abertas olhamos para cada
uma sofrendo dessa irradiação.

__


Setembro começa o vento frio mas não tão frio.
um Cristo no alto da montanha denuncia
toda a geografia
isso é daqui aquilo é dali entretanto
entretanto está no meio
misturando um tanto
você está na janela
depois partiu
verbo sem
complemento
apartamento
numero
tal
a
página
do livro no circuito das linhas
pretas na folha de papel pardo
isso é tão circunstancial um contexto um
volume de lombada virada para o mundo.

__


queria dizer algo importante mas o momento passou e já
esqueci queria dizer algo importante para você algo que
pudesse mudar sua vida algo sobre o olhar diante
das pequenas folhas verdes que ainda estão grudadas nas
árvores algo como quando daqui a um tempo elas cairão
quando se tornarem amareladas elas caem mesmo
aqui nesse país tropical elas costumam cair pelo menos
algumas folhas caem em determinada época do ano aqui
nunca é muito determinado ainda mais com esta mudança
climática tudo tende a se embaralhar queria escrever algo
muito interessante a respeito de um determinado olhar
uma visão poética que me fizesse sentir bem viva
como é viva essa fulana mas toda vez
acontece isso sento para escrever palavras cheias de
boas inspirações e elas caem sobre
as folhas abobadas boquiabertas estupefatas com a
total banalidade e desinteresse em encontrar algo relevante
para dizer sugiro então que você preste atenção a cada
palavra grudando uma nas outras da maneira que
preferir (duração de 2 minutos).

__


Uma bomba localizada em meu peito – outras estão por aí
– a cada lado esquerdo uma bomba e eu escrevendo. Agora
você pode ler – pode também reler – repetir e bombear –
dizer que um ritmo é seguido – a partir de seu mecanismo
lírico. O estado sentimental deste mecanismo – ele
continua bombeando meu sangue com maior ou menor
rapidez – se resulta em um estado de angústia a cabeça
produz pensamentos desconectados – o sangue circulando
– um ardor é sentido no plexo – Quando você estiver
lendo recomece tudo de novo.

__


Entendimento esquivo
a máquina do mundo se entreabriu
Carlos Drummond de Andrade

uma atenção intensa
basta para conquistar não
o mundo não basta estar no mundo
ficar distraído forçar mudo
a visão a máquina a máxima a
atenção
mesmo contorcida
veja bem o meu caso
olho fixamente para o seu poema
suas mãos me tocam ou quase
raspam minha cara
aquela palavra funda distorce um sentido fundo
eu não vejo nada
a carícia
em torno o sol não se move volta
escurece
tapa

*    *    *

POEMAS DO LIVRO

No circuito das linhas. Rio de  Janeiro: Oficina Raquel, 2016.

*    *    *


Masé Lemos nasceu em Belo Horizonte e vive no Rio desde os 7 anos. Poeta, tradutora e professora da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, é autora de Redor (7Letras, 2007) e Rebotalho (2015, Cozinha Experimental).












Só um trago - Willian Delarte

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Foi no último dia de trampo antes do recesso, sexta-feira anterior àquele Natal.  Sem trânsito algum, cheguei mais cedo no centro. Passei por uma banquinha de jornal e vi aquele cigarro free me chamando (havia parado de fumar há uns três meses, creio) e pensei: por que não? Dia propício este para matar a saudade e exorcizar o ano.

Pedi um solto e segui meu trajeto.

Adentrei a Praça da República, pouco movimentada nesta hora, e notei que um imenso feixe de luz rasgava espaço entre as árvores e iluminava um círculo bem à minha frente. Entrei no círculo e olhei para o alto, sentindo o astro-rei vagarosamente adentrar em todos os meus poros sedentos, e cansados ...

... e pensei: obrigado, Cosmos! Este ano foi de fraturar todos os ossos, mas você, Sol, faz valer cada segundo que erro e rastejo sobre este planetinha enfadonho: obrigado, Universo!

Fiquei ali tragando meu cigarro em completa epifania, sentindo os fios da Beleza e de todo o Sentido-da-vida se juntarem e me revelarem seu rosto mais transparente, mais iluminado, mais meu.

Eis que surge um sujeito mal-encarado e me rouba de mim-mesmo:
- Ei, tem um cigarro?

Respondo:
- Tenho não, comprei-o solto.

Não satisfeito:
- Então deixa eu dar um trago neste aí.

Replico:
- Mas já está no filtro ...

O puto emenda:
- Então enfia essa porra no cu!

Claro que desci do meu cósmico salto e falei para ele vir enfiar se fosse Homem! O sujeito deu no pé e eu o chamando para a briga, xingando-o com todas as dez maldições capitais de todas as infernais escrituras! ...

... Ah, bem-feito para mim que não pude ser cristão o bastante e oferecer o último pedaço de pão - no caso, um trago - para o infeliz e desejoso filho-de-deus. Também não passei no teste quando, ao invés de dar a outra face, cerrei os punhos para o renegado filho-da-mãe. Senti-me reprovado em todos os testes divinos, ouvindo aquela sirene "peeeeeeeeeeeen" vindo do céu, a indicar que tirei zero, mais uma vez. 


Contudo, sai dali totalmente revigorado, nervos e músculos a fio, praguejando os céus, chamando Deus para a briga e agradecendo ao Sol que já começava a torrar o dia: valeu, Universo! 


Willian Delarte


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