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Pluralia tantum - Vássia Silveira

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Ilustração: Alberto Guerrero



Acho que foi aos treze anos a primeira vez que ouvi dizer que era preciso usá-los sempre. Na época, ganhei um modelo com lentes que escureciam bruscamente à luz, uma escuridão repentina que, para azar meu, não protegia da zombaria alheia nem do fogo amigo. Além disso, colocá-los pela manhã era experimentar a turbulência de uma montanha russa: o chão afundava, ondulava, abria outra dimensão e eu demorava alguns minutos até me acostumar a ela.

Não tenho como garantir se foi este o desconforto que me fez, contrariando as orientações recebidas, abandonar os óculos. Tampouco recordo se a decisão foi acatada com suavidade por meus pais que, afinal, tinham empregado um bom dinheiro para garantir que eu enxergasse melhor o mundo. Sem saber, é claro, que para uma menina tímida, rodeada por colegas de escola cuja beleza e desenvoltura alargavam distâncias, usar lentes de humor tão volátil para enxergar melhor o mundo não era lá muito atraente.

Mais tarde, dei mão à palmatória e assumi que se quisesse ler tinha que usar os óculos. Dispensei, por via das dúvidas, as lentes fotossensíveis – por sinal, mais caras que as tradicionais! –, mas fiz questão de comprar uma armação grossa, colorida, indisfarçável.

A questão é que descontando os momentos frente a um bom livro ou filme, o que eu gostava mesmo era da perplexidade de ver o mundo sem tanta nitidez. Entristecia-me, por exemplo, a descoberta de que o cartaz que eu havia lido antes sem os óculos não anunciava a venda de ASAS, mas de CASAS; e que junto ao gentil e solidário aviso VENDE-SE FIADO, havia sempre uma frase em letras menores a enterrar a esperança.

Ah, que mundo mais sem graça este!

Daí que por mais de vinte anos, usar ou não os óculos era a medida para saber até que ponto eu estava disposta a enxergar de forma nítida, imagens provavelmente mais interessantes quando turvas. Não pense o leitor ou a leitora que tal decisão foi tomada impunemente. E digo isso lembrando, por exemplo, de algumas aventuras amorosas – sobre as quais me pergunto, hoje: Eu as teria vivido caso estivesse de óculos?

Vai saber. O fato é que por muito tempo mantivemos uma relação que se assemelha àquelas cujas pequenas alegrias se dão em segredo. Isso significa dizer que quando estava trabalhando, lendo ou ia ao teatro, cinema, exposição, usava-os. No mais, eram para mim dispensáveis.

E tudo ia muito bem, obrigada: Eu conseguia tomar o ônibus certo, pois tinha desenvolvido a habilidade de reconhecer, pela extensão do nome, aquele que me levaria ao local desejado; não dependia do cardápio dos bares ou restaurantes para saber o que ia pedir; e se não enxergava os amigos na rua, a culpa nunca foi da ausência dos óculos, e sim do hábito de caminhar com o pensamento em outras paragens.

Ah, mas as peças que o tempo prega na gente! Há dois anos descobri, com certo desespero, que não lia mais a bula de alguns remédios. Fui correndo ao oftalmologista. Saí de lá com uma receita de lentes multifocais, o grau aumentado e o desconsolo de saber que a tendência era ficar cada vez pior.

Isso dito, o tempo se encarregou do resto.

Aos poucos fui percebendo que para enxergar a hora no celular eu precisava usar os óculos; para saber quem estava me ligando também; a mesma coisa ao tentar adivinhar o letreiro dos ônibus; as placas de sinalização; os avisos nos caixas eletrônicos. E quando me dei conta, eu já precisava usá-los para cozinhar, lavar a louça, limpar o chão da casa, falar sério com as filhas e até para comer.

Outo dia, sem perceber, eu entrei no chuveiro com eles. Foi o fim da picada! Senti-me vencida pelos óculos. E um pouco solitária, um pouco triste, um pouco traída por aquela menina de treze anos que, na sua indulgência, me fez crer que enxergar melhor seria sempre uma questão de escolha.

As bulas de remédio, para as quais resolvi comprar uma lupa, estão aí para provar que não.




Vássia Silveira, jornalista e escritora. É autora de Febre Terçã (Selo Off Flip/2013), Indagações de Ameixas (Redondezas, 2011); Quem tem medo do Mapinguari? (Letras Brasileiras, 2008) e Braboletas e ciuminsetos (Letras Brasileiras, 2007). Vive em Florianópolis e escreve o blog Toda Quinta (https://todaquinta.blogspot.com.br/).  

Lançamento de "A palavra algo" de Luci Collin em Curitiba

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A palavra algo, que reúne 47 poemas, é o 17º livro de Luci Collin. Sobre o livro, o crítico literário Sérgio Alcides diz:“”É uma fascinação, A palavra algo, de Luci Collin. Esses poemas fascinam pelo muito que afirmam justamente a partir de uma tenaz negação. (...) Por isso o gume afiado da poesia de Luci Collin é bálsamo também, sem deixar de ser cortante.”



LUCI COLLIN, poeta e ficcionista curitibana, tem diversos livros publicados entre os quais A árvore todas (contos), Querer falar(poesia, finalista do Prêmio Oceanos 2015) e Nossa Senhora D’Aqui (romance). Participou de antologias nacionais (como Geração 90 – os transgressorese 25 Mulheres que estão fazendo a literatura brasileira), e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Uruguai, Argentina, Peru e México). Também já traduziu Gertrude Stein, E. E. Cummings, Gary Snyder, Eiléan Ní Chuilleanáin, entre outros. Leciona Literaturas de Língua Inglesa na UFPR e atualmente cumpre estágio pos-doutoral na USP.  



SERVIÇO:
Livro: A palavra algo– Editora Iluminuras, 2016.
Lançamento: dia 08 de dezembro a partir das 18:00 no Jokers Pub Café (Rua São Francisco, 164 – Curitiba - www.jokers.com.br)

eles flutuam aqui embaixo - seis poemas de Gabriel Felipe Jacomel

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screenshot "It", 1990





Momento mágico


há pouco presenciei
um daqueles momentos mágicos
em que no entardecer de uma praça
uma criança perde o balão
roxo
minha cor – pensei vagamente
em meio a sirenes onipresentes
aquele balão gerou comoção
de tão severo acidente
um dos guris que ali bolavam um
arrematou, solene
já era, parça
só se ficar preso na árvre
os olhos do mundo naquela goleira
final de campeonato mesmo
não acreditei quando ele, num drible
ameaçou parar justo em cima de mim

e talvez por não acreditar
não parou




Pontilhismo urbano


uma oração
para que pelo menos
todos os carros
estejam indo
pro lugar
que quisessem




Personagens


na mesa em que tou
enquadro certinho
o cinema pornô
nunca tive assim
tal tela só pra mim
um filme de pessoas várias
que ao sair olham pros lados
achando que ninguém viu




Cotonete


entre o céu e o inferno
alguns milímetros




Loco


você me deixou louco
em casa
sozinho
você me deixou louco
uivando
pro Sol
ao relento
em casa
nossa filha me estranha




Fabergé


gema preciosa
ovogalinha
às claras, Clarice
encerra o Novo Mundo









Gabriel Felipe Jacomel é autor de Deflora (Patuá, 2016). Escreve no faziafagiaebulimia.blogspot.com.

VIRNA TEIXEIRA - 10 POEMAS

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                                                                                                                    PLOTNIKOVA, Katerina











repetição

o argumento é incomunicável. como visitar o passado, sua cartografia
a incomunicabilidade me leva além. mar, bósforo, os rostos de estranhos
cruzando a ponte
ruínas, resíduos, estruturas que desabam
istanbul modern
e as tábuas do ferry deslizando rapidamente entre continentes, sem
compreender
como escapa o corpo, sua rota de fuga sobre a água, como migra e se
recolhe em refrações
nestes lugares onde se confundem as projeções, como espelhos









Le petit chaperon rouge dorme. O lobo mau se perdeu no bosque. Em Wimbledon Common. Mary mary quite contrary. Meu jardim cresce sem rimas. Vejo um guarda florestal num cavalo negro, recolhendo galhos. Vejo tenistas. Na feira anual, alguém desmonta o circo. Um carrossel com um ônibus vermelho. Um trailer com palmeiras de néon. Não há acrobatas, nem picadeiro. É só uma tarde de verão com nuvens que se desmancham em formas, se dispersam. Entre o rastro de voo neste equinócio, que desaparece, simétrico, na direção do sol.



           
                                                                                  




Vai começar. Picadores e malhas colantes, muchachos de cabelos negros, cores andaluzes. Compro um tíquete onde o sol se levanta. Ofuscada pela luz, apesar do sombrero. Peço um tinto de verano ao gordo que passa com um balde. A capa se agita na arena, sangra o primeiro touro. Um casal discute. A garota loira levanta, llorando: mercy, mercy.

But it’s my birthday! Primeira baixa na arena, seguida por mais turistas. Silêncio ritual. Os espanhóis agitam os lencinhos brancos. Nos bastidores, velhos toreros esperam, fumando. Cenas de El Matador, imagens de Rineke Dijkstra. Tomo gazpacho. Palavras extremas em frente ao canteiro de rosas rojas. Quase meio-dia, rumo a Sevilha.








                                            
orquestra ilimitada música escute os acordes profunda dissipa mergulho apneia corais medusas blefe poisson cor de rosa leonilson oceano verte sem limite lampedusa quem ancora terra movediça magreb tanta água pérola marujo escamas ondina ilusão escapa cortina ondas transborda a nado luzzu ilha poseidon videiras senza tardare nuvens lago infinito









Passou uma criança vestida no roupão de nuvens. Ando com lapsos de memória, esquecendo datas. Quando despertará Blancanieves? Lento nado de costas, com uma touca salmão. A escada conduz a um quarto acarpetado, com brinquedos dos anos 70. Lembrança remota de polaroide. Ela manuseia o passado com suas mãos pequenas. Aquaplay. Miniaturas, tamanhos não importam no país das maravilhas. Palavras são neologismos, depois se perdem. Da caixa salta jack-in-the-box, brinca toda a tarde dentro de um cubo de acrílico verde ao sol. Sobre a grama. Mergulho com imagens, e há desenhos de golfinhos nos azulejos.









Do livro de composições

Um instinto: a verdade por trás de uma figura escondida. Como entender o seu self secreto. Eu queria dizer isto de uma maneira afetiva mas única, sem tentar encontrar conexões. Um mito não pode ser particular ou pessoal, mas uma vez dentro da mente, as percepções deixam um traço de memória. Na infância uma pessoa é muito impressionável. O pré-consciente controla a atividade motora. Um sonho irrompe no mundo externo. Esta é a vida desperta.









Rumo à estrada certa, vejo uma floresta de lâmpadas. Mapa topográfico de sentido desconhecido, com estórias escritas em outra língua, quase ilegíveis. Geografia íntima que chega até a infância. Entre a sentimentalidade e um mundo de contos de fadas onde as coisas não são bem o que parecem.








                                                         
Uma mulher fuma ópio e nada importa. Um fluxo de água molhando a tatuagem de dragão nas costas, no abraço simbiótico que transcende o movimento das ondas, em câmera lenta.

A água escorrendo sobre os corpos parados, esta sensação física, imóvel. Os sentidos ampliados, a luz, a calmaria de praias desertas e distantes.

Então mente para proteger esta adicção serena. E foge de violências a nado, foge da realidade das conversas externas, do que percebe e finge que não percebe e tudo se desfaz e dissipa em anéis de fumo. Inteiramente submersa na fumaça do ópio, cavalgando o desenho do dragão.









Margem contínua de ansiedade,
explodindo plástico inevitável

Visão esférica, borrada,
retina alinhando a superfície interna do globo
o aço da porta corta-fogo pintado de branco

Se todas as coisas pudessem ser contadas

Escute o medo. Prova contras as emoções mais ásperas,
luxúria e solidão sob efeito de anfetamina

A armadura faminta da adicção,
uma antiga marca japonesa de hipnóticos chamada
dançarina das nuvens










ginebra, limão, angostura
um travo de liquido amniótico
e pastis, lavando-se no cloro
da água estagnada de uma
lua tóxica, quem segura
o mareo no olho do dilúvio
na ebulição do fogo queimando
demônios íntimos pelas ruas
para renascer na névoa do dragão,
no gole de champs d’amour
com charteuse e rosas
amarelas











Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta e neurologista. Tem três livros de poesia publicados no Brasil, e uma plaquete em Lisboa (A Terra do Nunca é Muito Longe, Não Edições, 2014) que saiu este ano em edição bilíngue no Reino Unido (Neverland is Too Far Away). Publicou três títulos de poesia escocesa em tradução, traduziu e publicou poetas latino-americanos (Hector Hernandez Montecinos, Horacio Fiebelkorn, María Eugenia López, entre outros), e publicou plaquetes com poemas traduzidos de Tristan Tzara e Paul Éluard pela Arqueria Editorial. Virna iniciou em 2015 uma atividade como editora com a Carnaval Press em Londres, onde vive e trabalha atualmente.













5 poemas de " Manuscritos de Água" de Rosa Maria Mano

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Ilustração: Katerina Plotnikova


Bilboquê de Rosa e Chuva

A alma dói, mas é só um minuto. Só enquanto dói. Só enquanto sangra.
O que ela guarda, semente de sol, respiro de saudade de beija-flor. Bilboquê de botão de rosa e chuva.


Água

Vou buscar uma fonte, um gêiser, um jato de água de onde eu renasça.
Pra ser líquida com ele e te receber, evaporar pelos teus poros e chover por dentro, até deixar de ser.



Trapezista

Ele sorriu pra mim, antes do último salto. E fechou os olhos e cerrou os punhos. E fechou a boca, prendeu as mandíbulas.
Não me deu a mão e saltei sozinha, sem nenhuma rede, sem nenhum amparo, sem o braço dele.
Silencioso picadeiro, o nariz vermelho.
Cômica trapezista sou eu.



Todo o Amor é Céu

Ninguém ama por acaso. Ninguém se veste de amor pra trancar o coração e dormir sozinho dentro dele.
Ninguém pisa os campos do amor se não merece, se não procura por eles, se não precisa da sua chuva de primavera.
Todo o amor é bendito, bem-vindo. Todo ele redime e liberta o que, em nós, precisa de ar, de vida, da bênção dela, do seu sustento.
Todo o amor é céu. O inferno é por nossa conta.



Poema do Sim

Não meço a distância entre pensamento e gesto.
Mãos de aparar o que flui e toma a luz que pousou no console da memória.
O passo é sem pegadas e sem volta, o ar falta, suprime a fala.

Tenho uma farpa no umbigo, ferida lenta.
Tiro o que dói, antes do abraço.



ROSA MARIA MANO, Mariana de São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras . Licencianda em História, pela Universidade Estácio de Sá. Premiada no Concurso de Poesia do SESC – Rio de Janeiro de 1999, tendo A Lua Negra em primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo concurso. Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016. Publicou: Fruto Mulher– coletânea de poesia–  coautora, Autoras: Rosa Maria Mano, 1982,Ed. Semente, São Paulo; Xamã,1983,  Poesia – Companhia Litográfica Brasileira, São Paulo; Três Marias e um Cometa, Conto infanto-juvenil, 1985, Companhia Editora Nacional;  O Gato, Conto,  1998, D.O. Leitura, São Paulo; Coletânea Prêmio SESC de Poesia,2000, Editado pelo SESC, Rio de Janeiro;  Vento na Saia, poesia, 2015, eBookAmazon/Kindle. Publicando, atualmente, nas revistas eletrônicas:Mallarmargens, Revista Carlos Zemeck,  O RelevO. Colaboradora da Revista do Choro.

10 poemas de Jovino Machado

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Jerry Uelsmann
a dama das trevas !!!

sabe dançar a falsa valsa
seu voo é um presságio sombrio
no impulso lúdico caiu da torre
e perdeu a terceira perna
pode andar sem ela com muletas
mas vai sentir muito a sua falta
fala baixinho como uma fada
mas fere fundo como uma bruxa
sua saliva é venenosa e cruel
anda com passo de gazela
para não despertar os cães
deu um salto trapezista
quando o cupido se abaixou
para apanhar a flecha
sabe fingir em alemão
ou sabe-se lá qual idioma
demônio medieval
disfarçada de anjo barroco
pode ser vista ao lado de satã
na divina comédia de dante
ou rezando uma ave-maria
aos pés de nossa senhora do desterro
no altar da igreja do pilar
numa estranha alquimia
entre o sagrado e o profano
vai passar a eternidade
no nono círculo do inferno
ao lado de caim e judas
virgilio vai lhe virar a cara
sua beleza é uma cadela
que me envia em seus latidos
um ganido de socorro
que a vingança transformou
em cantiga de maldizer



lúcifer no cio

seu próximo passo
é retocar o batom
e assassinar
o amor que não existe

seu próximo passo
é pintar as unhas
e furar os olhos
da menina triste
que quer ser madonna

seu próximo passo
é usar os novos brincos
e derrubar do viaduto
o menino pobre
que quer ser guevara

seu próximo passo
é escolher a minissaia
e comprar a alma
do último trovador


vermelha

seu pé lindo
desfila sob a saia
não sabe se vai
se fica
ou se desespera

dentro da saia rubra
você rebola
intensa e trágica

o amor não anda de uber


satanás de saia

satanás de saia
não quis ser viúva
morreu na praia

seu fogo era frio
sua forca era fraca
seu punhal era podre

se enforcou no ego
se queimou na vaidade
se matou na maldade

não quis envelhecer
antes de apodrecer
belo pasto para os vermes

a cruz é espelho
doentias são as flores
contaminadas pelo abismo
Laura Makabresku

      
a vida não presta
quando eu adoro
e você detesta

a vida é uma bosta
quando eu amo
e você não gosta

a vida é vazia
eu vício
você vadia

a vida é neblina
eu enlouqueço
você sublima

a vida é enfadonha
você fuma maconha
eu como pamonha

a vida é careta
você pula do acaiaca
eu bebo no maletta

a vida não presta
quando eu subo bahia
e você desce floresta

a vida é inimiga
quando eu te odeio
e você nem liga



noite aos 50

engov
epocler

backer
bohemia

algum carinho

brahma
budweiser

engov
epocler



narciso

debaixo da saia vermelha
se esconde seu chute burro

seu charme é a antessala do vômito

não existe inocência em seu ego

você é uma cinderela de príncipes gripados

narciso não anda em bando
narciso prefere fechar a cara
narciso prefere beber sozinho

é que narciso acha feio
o que nunca vai ser poesia


Laura Makabresku

futuramente ruiva


não faça piada do meu poema
não faça pouco do meu desejo
não faça galhofa da minha gargalhada
minha vida é um verso tosco e torto
quando estou distante de sua beleza
que pode ser negra e pálida sob a lua
ou futuramente ruiva
como as mulheres dos cabarés de dublin
que joyce amava em 1904
espero dançar com você
na próxima temporada
espero que o strip-tease da sua verdade
não seja o seu dom de iludir



strip-tease

tire as sapatilhas
minha alma
é abismo aberto
peito pulsando
não pode se poupar do belo
sem o calcanhar aquiles seria impossível

tire os empecilhos
seus seios acesos
são os únicos faróis
como força e poder
para iluminar
as sombras do tédio

tire os penduricalhos
não alimente
as andorinhas do seu telhado
não corte as asas
das gaivotas do seu penhasco

tire todas as amarras
liberte ulisses da caravela
a sereia espera por você
poesia só ganha o mar
ignorando a calma do cais

tire o batom
do guardanapo
levante a taça
com a mão esquerda
a do coração

tire a poesia
de sua biblioteca
eu sei que você tem mais livros
do que sapatos
o discurso da ação
é falado com o corpo


tire os óculos
o amor precisa
de sua cegueira
o navio só naufraga navegando
o leonino está rugindo no coliseu


            *

o que eu mais queria
acabou acontecendo
antes
de acontecer
o que eu mais temia

o que eu mais temia
acabou acontecendo
depois
de acontecer
o que eu mais queria


JOVINO MACHADO nasceu em Formiga (MG), em 1963. Foi criado em Montes Claros e vive em Belo Horizonte. Publicou 15 livros de poemas: Só Poesias (1981), Em Cantos e Versos (1982), Uma Mordida Para Cada Língua (1985), Deselegância Discreta(1993), Trint'anosProust'anos (1995), Disco (1998), Samba (1999), Balacobaco(2002), Fratura Exposta (2005), Meu Bar Meu Lar (2009), Cor de cadáver (2009), Amar é Abanar o Rabo (2009), Cantigas de Amor & Maldizer (2013), Meu Jeito Bêbado de Ser (2015) e Sobras Completas (2015). Publicou poemas no Suplemento Literário de Minas Gerais, Jornal Rascunho e no Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná. Tem textos poéticos publicados do Portal Cronópios, na revista Germina Literatura e no blog: http://jojomachado.zip.net.

Insônia - Bárbara Lia

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Este é o século da nossa insônia
Mentes plugadas em telas isonômicas
Longe dos mitos e da cosmogonia
Dopados de “soma” e monotonia

Este é o século lavado à amônia
Escravos cardíacos da luz de néon
Escravos maníacos dos mantras
Escravos agônicos do abutre Mamon

E havia esperança no pássaro
Havia luz nas colmeias tardias
Havia ar nas barricadas de Paris
Havia armar-te. Havia amar-te... Havia.



Ficha Técnica:
Direção e Trilha: Adriano Esturilho I Curadoria: Ricardo Pozzo I Produção: Samara Bark I 
Ass. de produção: Gustavo Borralho I Montagem e Fotografia: Giuliano Andreso I 
Assistência de fotografia: Lucas Kosinski I Captação de Áudio: Lucas Maffini I 
Figuração: Bella Souza I Desenho de Som: João Caserta I Gravação Trilha: Estúdio AudioStamp I
 Realização: Processo Multiartes e Casazul



Bárbara Lia Poeta e Escritora. Nasceu em Assai (PR). Publicou: O sorriso de Leonardo (Kafka), O sal das rosas (Lumme), A última chuva (ME), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR) Respirar (Ed. do autor) e  Forasteira (Vidráguas), entre outros.  Integra várias Antologias, entre elas: O Melhor da Festa 3 (Festipoa),  Amar -  Verbo Atemporal (Rocco), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo), . Destaque em vários Prêmios, entre eles: SESC, Helena Kolody, Cataratas, UFES e na primeira edição do Prémio Fundação Eça de Queiroz (Portugal), com o romance inédito As Filhas de Manuela.

5 poemas de Clarissa Macedo

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há cavidades como a lua
e todas elas exploradas
todas elas um córrego
plenas de nomes engraçados:
                                   periquita, pepeca, menininha, chave da sedução

a vulva nunca foi um dilema
nem o clitóris um parnaso;
a buceta é fala e é carne

e é lá, bem no meio,
que mora a liberdade.



Panorama

Em cada paisagem
há uma mulher plena de garganta
que sussurra acordes do espírito:
uma mulher é uma mulher é uma mulher 
não é uma rosa
(ou uma ideia de rosa)
não é um homem
é um sabre, um orvalho
átrio preso por 100 bilhões de anos
chave que abriu à força os cadeados.

cosendo a linguagem da existência
e não colchas à costura da máquina,
mortes e fogueiras crucificaram paixões

mas feito redemoinho,
tão violento quanto sereno por dentro,
fazemos gérmen do pó
e desde sempre
parimos a imensidão do mundo. 



Silêncio
  
Lança de ponta envergada
audição de terríveis pensamentos
fala enterrada na carne

cacto que acena com a casca

pranto de criança sem lamento;

queixume lento de casa
rumor que ouve o que chega:
o amor, com seu manto de raiz amarga.



Pecado
  
De tocar o intocável
de comer o sonho
de outro mundo,
de querer aportar em mares
sem ter que descascar
vilões.

Se o caminho não fosse
tão feroz, um porto ainda
me veria.
E eu, ilha bruta que chora,
fingiria que um dia nasci.



Das emoções marítimas
  
Nem liturgia, nem santo:
o que o salvou foram os sargaços
do mar de todos os monstros
que uma mãe pôde imaginar.



Clarissa Macedo, nascida em Salvador (BA), residente em Feira de Santana (BA), licenciada em Letras Vernáculas, mestra em Literatura e doutoranda em Literatura e Cultura, éescritora, revisora, professora e pesquisadora, com diversos projetos em andamento, como a tradução de poetas (espanhol/português – português/espanhol). Apresenta-se em eventos pelo Brasil e no exterior (Colômbia, Peru, Cuba), com convites para mais de 18 países. Está presente em dezoitocoletâneas, além de diversos blogues, revistas (como a Machado de Assis) e sites. É autora de O trem vermelho que partiu das cinzas(Pedra Palavra – 2014) e de Na pata do cavalo há sete abismos (7Letras – Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia – 2014), ambos de poesia. Sua obra está traduzida para o espanhol e em processo de tradução para o inglês. Integra a plataforma do Mapa da Palavra (http://mapadapalavra.ba.gov.br/clarissa-macedo/) eapresenta o programa Feira Literária. Prepara dois novos livros.Contato: clarissamonforte@gmail.com/http://clarissammacedo.blogspot.com.br.

Bolo marianinha - Rafael F. Carvalho

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A vida inteira comi, e como, o mesmo bolo de chocolate. De tanto ver a minha mãe fazer, decorei a receita por completo. Talvez não saiba as quantidades exatamente, mas isso não é uma coisa ruim. O que eu acho engraçado é que ela tem em si mais que os ingredientes, tem eu, minha mãe, meu irmão e minha irmã. Sempre que ele era feito, era a mesma coisa. Assistíamos ao processo todo, ajudávamos quando possível. E disputávamos para lamber as colheres, os potes, eu e o meu irmão, minha irmã não gostava da massa crua. São tantas as lembranças, os detalhes, que esse bolo, um bolo marianinha, é a manifestação daquilo que se chama família.




Rafael F. Carvalho (São Paulo, 1978) é autor dos livros de contos A Estante Deslocada (2011), A Cor do Sal (2013) e Terceiro Livro (2015), todos pela editora Patuá. Bacharel em Letras pela USP. Colunista da revista Samizdat desde 2012. Tem textos publicados em antologias e revistas brasileiras, sendo os mais recentes no Suplemento Literário de Minas Gerais.

neolib (Nuno Rau)

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Susana Soares Pinto | Obturador de sentidos | http://users.fba.up.pt/~lap09093/pendulum/?attachment_id=1083


neolib

/por Nuno Rau/

estou no coração do centro da cidade do rio de janeiro.

ando pela avenida atordoado com meus desejos
de classe e converso com um desconhecido
amigo que trabalha em frente à mesma
janela de onde vejo a torre órfã de uma igreja
em cujo topo uma mulher pisa a orbe
diminuta como são diminutos os meus sonhos
de classe mediados por páginas que querem que eu
veja as coisas como as coisas realmente são
do jeito que nelas aparece sob a fina membrana
ou névoa que a tudo envolve enquanto salta
do papel um sorriso platinado e úmido
que me desvia os sentidos do medo que sinto
que da curva abrupta da próxima esquina
pulem na minha frente os meus pesadelos
de classe na forma de garotos armados
até os dentes cariados que entopem bocas
falando dialetos que não entendo e empunhando
lâminas pra riscar a verdade bem fundo
em minha carne.

se bem me lembro era um mês de junho quando
nesta mesma avenida assisti descerem de carros
alegóricos da polícia militar elementos à paisana
que se infiltraram na multidão fortemente armada
de flores e palavras - eles traziam máscaras
ninja escondidas nos bolsos e outros apetrechos
para insuflar a massa em direção às brigadas
fardadas e alinhadas atrás de escudos em todas
as rotas de fuga portando amplos estoques de balas
de borracha e sprays de gás de pimenta adquiridos
pela alocação de recursos que custam o massacre
da educação dos garotos que saltam do meu pesadelo
de classe para as casas de detenção enquanto aspiram
o vapor azul cobalto do crack antes de empunharem
armas brancas que são espelhos dançando
na frente de meus olhos numa hora em que a membrana
invisível não me protege.

paro na frente da banca de revistas com meu interesse
na cotação de hoje das ações da empresa estatal
que despencaram inacreditavelmente pensando
em comprar um substancial lote delas porque lastreadas
na imensa riqueza nacional que também é dos garotos
que no meu pesadelo interpretam o papel de feras
filhas de um massacre e penso a vida virou um drama
burguês de quinta categoriaenquanto as imagens
do papel jornal mostram a cara de um servidor
do sistema democraticamente eleito pelos cidadãos
de outra cidade que exibe seu sorriso
blindado e sem cáries afirmando ser preciso virar
a página do massacre do bom senso e da educação
porque tudo não passa de agitação de elementos
infiltrados que tornaram imprescindível o uso
da repressão violenta do aparelho de Estado
governado por sua pessoa acessível e aberta
pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
do garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.

a noite alcança a cidade maravilhosa.

minha fé se desloca entre os abismos das palavras:
assim como tudo um dia espero emudecer
e não gosto de versos de circunstância (não faças
versos sobre acontecimentos, ele disse) como
também quase sempre não gosto quando poesia
e política se amam muito abertamente – mas
espero emudecer
 espero emudecer enquanto
meu corpo inteiro pensa: cinquenta anos 
e nenhum




_________________________
Este poema integrou a Antologia Poética 29 de Abril O Verso da Violência, da Editora Patuá.

Marcelo Labes resenha 2 livros de Tiago D. Oliveira

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Difícil escrever sobre livros de poesia por duas razões: sou também poeta e não domino aquela linguagem altiva com que os críticos costumam elogiar ou depreciar obras literárias. Dadas minhas desculpas, devo dizer que minha relação com a poesia é de gosto. Se gosto, gosto. Se não gosto, tenho certeza que um dia poderei voltar a ele, ao livro, e encontrar ali o que não tive capacidade de encontrar numa primeira leitura. Faz uns dias, me chegaram pelo correio dois livros do baiano Tiago D. de Oliveira. Até esse momento, não tinha lido muito de sua autoria, nem mesmo na rede, pois Tiago aguardava o lançamento de seu segundo livro, “Debaixo do Vazio”, para me enviar também “Distraído”, sua primeira publicação.
Li e reli os dois. Posso então falar do que me fez querer ler mais do Tiago, do que me chocou, do que me fez pensar que não poderia ter terminado 2016 sem ler estes seus dois volumes de poemas.


Distraído



O primeiro livro de poemas de Tiago, publicado pela Pinaúna, em 2015. Corri os olhos pela introdução, li rapidamente a orelha, queria mesmo ir adiante para saber o que este autor escrevia. Distraído tem três momentos: “Pedra de Atiradeira”, “De véspera” e “A nuvem de gafanhotos”. Tiago é vários, no mínimo três, pois cada volume de poemas neste livro pertence a uma voz distinta, dando a entender que a polifonia tematiza e permite que surjam vários poetas.
Aqui, o autor muitas vezes dá toques de linguagem rebuscada, sem ser pedante. Tive de procurar por onde teria andado o poeta antes de publicar seu livro em Salvador: Tiago teve uma temporada Portugal, e venha daí ─ e de suas leituras ­─ este cuidado lapidar com a língua. Mas é em “A nuvem de gafanhotos” que surge o poeta que arrebentará o meu fim de ano, através de seu próximo livro, de que falarei mais adiante.
Gosto da poesia cotidiana, que nos mostra o que ninguém mais, senão o poeta, poderia nos mostrar daquela forma. Os títulos dos poemas dão conta desse ar pedestre, observador de tudo que se passa a sua volta: “Da janela do ônibus”, “Salvador, domingo de manhã”. “Zumbido” transfere para o leitor um incômodo que, como coceira, nos incomoda também:


Há um zumbido
entre os girassóis,
revelia, sob um bater e outro
das asas, há um zumbido.

Abriu a porta, olhou a rua
nada admirado. Voltou,
pensou – há um zumbido.


Em “A rua”, o poeta-voyeur observa do prédio, contempla e poetiza a vista:

Do segundo andar, vejo peças embaralhadas
à espera de um tropeço.

Os metros que nos separam
permitem o papel, a caneta.

Somos partes de uma imagem,
a bunda, as coxas, os seios.

Quando debruço-me na janela,
a contemplá-la, simplesmente

esqueço.




Pergunto-me: por que o poema precisa chegar a algum lugar? Por que não pode simplesmente ignorar as respostas e as perguntas e ser, ele somente, um poema-em-si? É por aqui que anda o Tiago, neste seu “Distraído”. Hora acompanhamos o poeta em suas memórias de infância, hora divagamos em suas reflexões (e o refletir, aqui, é acompanhado da seriedade das mesóclises e afins), mas quando finalmente o poema se permite e simplicidade do caminhante, do observador da janela, é quando o livro mais me toca.


Debaixo do vazio



A leitura do livro anterior escondia, atrás de si, este livro-bomba que é o “Debaixo do Vazio” (Córrego, 2016). Simples, tímido, tem apenas 31 páginas. Mas não nos percamos em preconceitos: são trinta e uma páginas através das quais vamos desmoronando, e quando há tempo para perguntar, entre um suspiro e um susto, perguntamos: o que está acontecendo aqui?
Tiago não espera lamentos do leitor. Não. Com a nudez do poeta ─ senhor poeta, digamos, porque o poeta, aqui, é um ente social ─ o leitor se vê também despido. Somos a nudez do rei enquanto somos expostos, tortos e perturbadoramente tontos, nos poemas que Tiago nos joga na cara e que nos expõe como humanos e bestas ao mesmo tempo.

Em “andamos tão acostumados”:

as linhas dos contornos das coisas
não são só as linhas dos contornos
das coisas. acumulam funções do
sentido que aprendem com o tempo
ele sabe que linhas e contornos
podem até nunca ter se encontrado.
por tatearem os limites já não sabem
do início ou fim, apenas servem
de linhas e contornos das coisas

Em “com os olhos cheios de fumaça”:

é como exercer o desencanto
sobre o desprazer diante do dia,
da incapacidade de levantar da cama,
muda, durante uma vida inteira (a tomar
todos os planos). a fé são os espaços entre
o sono e a falta dele (somos ela, a cama).
as propagandas de tv dizem que 1/3 da vida
você passa sobre ela (o resto, a desejá-la),
como abrir ou fechar os olhos na fumaça

E assim “Debaixo do vazio” segue, atual e hermeticamente calculado. Não com aquele hermetismo batido que quase sempre procura esconder um autor imaturo. O hermético, em Tiago, é como um favor que o autor nos faz: dissesse tudo, não sobraria nenhum de nós para contar como foi passar pelas páginas-obstáculos deste livro.
Entre porrada e outra, Tiago reflete com seriedade sobre os pedais de sua bicicleta passeante. Mas duram pouco os passeios. Já o autor retorna com “você não consegue sentir duas dores ao mesmo tempo, uma anula a outra” ou, e aqui seria a hora perfeita para desistir desta leitura, leitor fraco que sou, o poema sem título que discorre sobre como somos, leitores, humanos, tão coitados, emocionados por redes sociais e manchetes de jornal e ignorantes da realidade que não passa nas telas de nossos celulares e televisões.
As experimentações de Tiago, às vezes, parecem ir longe demais. Como em “anúncios”, uma série de poemas com epígrafes de Marx, Paul Celan e Manuel Bandeira. São anúncios ou denúncias? Tiago não responde, deixando ao leitor, entre a angústia do novo e o constrangimento da bricolagem sorrateira que nos põe ao mesmo tempo como cúmplices e vítimas de uma leitura crítica da sociedade e, por que não?,do próprio fazer poético.
O poema-tema que lemos na contracapa me faz pensar na relação do poeta com seu livro, na minha relação de leitor ao ler Tiago D. Oliveira e no meu próprio fazer poético (porque escrever sem se perder em reflexões sobre o próprio texto, simplesmente não me faz sentido), e termino este meu texto com ele:

deus morreu,
o rei foi decapitado.
mesmo que tudo volte
a ser como antes,
nada voltará a ser

como antes, nada. 



Marcelo Labes tem 32 anos e é natural de Blumenau-SC. Autor de Falações(EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Hemisfério Sul, 2015), O Filho da Empregada (Hemisfério Sul, 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Poeta, prefere o simples ao hermético. Escritor, prefere ainda a poesia à prosa. Costuma conviver mais entre palavras do que entre pessoas.

A JUSTIÇA REVOLUCIONÁRIA - Um poema de Adriane Garcia

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Há flores no campo
E nas frestas dos muros
Homens e mulheres vão para o trabalho
(Se há trabalho)
Crianças não brincam mais
De roda

A vida e a morte do senhor embaixador estão nas mãos da ditadura
Se ela atender a duas exigências, o senhor Burke Elbrick será
Libertado
Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça Revolucionária

No céu passa um avião
Passam dois aviões, indo
Alguém espera alguém
Voltando
As nuvens querem se despir
De tanto calor

A publicação e leitura desta mensagem, na íntegra
Deve ser feita nos principais jornais do país
A ditadura tem 48 horas
(Quantas batidas por minuto 
No coração
Do senhor Burke?)

Finalmente, queremos advertir aqueles que torturam
Espancam
Espoliam o povo
Matam:
Não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa

Há um poço
Um barulho de água
Barbas de molho

Uma mulher finge que cozinha:
Olho por olho
Dente por dente.

Adriane Garcia 



Sobre o manifesto da Ação Libertadora Nacional (ALN)
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)
Publicado em 04 de setembro de 1969

Ilustração : guilhotina, via Google, sem indicação de autoria

Físico e química - Didier Ferreira

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Ilustração: Sigurd Quast


No seguimento de «Laura»

Triste. Assim recosto a cabeça no assento que me sustém o corpo. Sinto-me cansado, o copo com os lábios da Laura pesam-me nas mãos. Pouso-o no chão, próximo dos pés. Pesam-me as pálpebras. Encerro-as sem dar por isso. Sinto o silêncio. Mais, vejo-o. A solidão propaga-se-me nos sentidos. Deixo de sentir as pernas. Estou vivo. Sim, ainda vivo. Testemunho a lenta passagem do sangue nas veias, cada vez mais demorada, pachorrenta, pacífica. Percebo a ronceira mas progressiva deterioração do sistema arterial. No que penso não sei. Vivo, sim, ainda vivo este estado de deterioração com a maior inércia possível, já sem abdómen nem tórax. Arteríolas? Foram-se. Artérias de médio calibre? Foram-se. Artérias de grande calibre? Morro!
Triste. Assim nasço para uma nova vida. Sou alquebrado por reminiscências de vidas passadas. Vozes que no destino conduzem tenções. Em cada vida, cada nascimento, os restos de outras passagens persistem. Com elas, um ligeiro, quase impercetível odor do apodrecido conserva-se entranhado na nova existência. Resquícios que comprovam o renascimento.
«A reencarnação existe. O corpo morre mas a alma não. Esta conserva-se na terra à espera que Deus lhe atribua um novo corpo. Cada alma tem centenas de anos. Nós nascemos pecadores. A nossa missão na terra é tornarmo-nos dignos de penetrar naquele paraíso do qual um dia fomos expulsos. Mas, desta feita, só nele entrará quem passar pela provação. E a provação ocorre aqui na terra. Uma alma habita um corpo com a finalidade de expurgar pecados. Cumprido o prazo – quando o corpo morre – a alma é submetida a julgamento. Ao se concluir que nela persistem pecados, então voltará a cumprir nova pena em novo corpo, que viverá por determinado prazo. Assim, nós reencarnamos para solucionar os defeitos que na vida anterior não havíamos conseguido. E reencarnaremos infinitamente até cumprirmos uma vida em conformidade com Deus. Só então as portas do paraíso se abrirão. Acredita, meu amigo, há muitas almas em sofrimento na terra», recordo a conversa com Santos Cabral.
A intensidade do olhar descobriu-nos. O aeroporto estava apinhado de gente. Ombros embatiam-se uns nos outros. Alguns pareciam ter toda a pressa do mundo, enquanto outros, decerto, teriam muito tempo para ocupar. Eu esforçava-me para chegar à fila que daria ao balcão de informações. A pressa fez-me esbarrar num jovem rapaz. Olhei para trás a fim de me desculpar. Ele fez o mesmo. E, no momento, tudo parou. Perdi o controlo sobre mim. Descontrolei-me racional e emocionalmente. Não conseguia pensar em nada. Não pude ver nada. Tudo escureceu. Naquele instante, somente os olhos dele fixados nos meus. Que aconteceu? Ainda balbuciei «desculpe-me». mas já não havia discernimento em mim. Apenas um desejo imenso de morder-lhe os lábios. Dei por mim com a mão esquerda calcando-lhe a grande dorsal e os dedos cravados na vértebratorácica. Um toque. Palavras sussurradas ao ouvido. «Como te chamas?» Um calafrio prolongado na espinha. Na nuca tão próxima a voz afagava-me os cabelos. E os lábios, húmidos, pronunciaram «adeus.»
            O acaso colocou-nos no mesmo voo. «Posso sentar-me ao seu lado?» «Não sei», respondi, «o lugar deve estar ocupado.» E, de facto, chegou o titular do assento, pronto para se instalar. Mas o rapaz estava obstinado. «Meu caro senhor, importa-se que eu lhe ceda o meu lugar, ali, junto da janela, para que eu tenha o prazer de acompanhar este senhor?» «Não. Claro que não me importo.»
Antes de pronunciar qualquer som, percebi-lhe uma longa inspiração. O peito alteou-se-lhe ligeiramente. Então, dos pulmões, o ar silencioso percorreu toda a traqueia até à laringe. O peito descendeu no sentido dos ombros. O colo. Fantasias brotaram num ápice do alto da minha imaginação. As cordas vocais cumpriram o seu papel no contacto do ar com a glote. Ele falou. Consoantes mudas saíram da sua garganta vozeadas. Ao pronunciar as bilabiais, com lentidão, o lábio inferior contraía, os dentes incisivos superiores mordiam-no, soltavam-no, os lábios encostavam-se e logo desencostavam. Ele falava. «… Escolhi o jornalismo porque adoro escrever…» Era um homem lindo. Um verde intenso brilhava no seu rosto com a mesma facilidade com que uma Iris Reticulata se impõe em qualquer jardim. Talvez a imagem duma estrela cadente em céu escuro adjetive o que quero dizer. «…Filhos? Não tenho nem penso ter. Como diria Diógenes, o cão basta ao homem para viver em conformidade com os seus instintos. O que distingue o humano do animal é somente a Palavra. Pois é. Racionalidade? Nãé por aí! O amor que devoto aos meus cães em nada fica a dever ao que qualquer pai vota aos seus filhos. Posso dizer que os meus cães são os meus três filhos. Eles são tão meigos, educados, e, acima de tudo, amigos. O que faz um cão que não faz um humano? É dependente? Também nós o somos. O cãé como uma criança perene, abençoada por viver eternamente nessa condição de dependência, carente de atenção, carinho e cuidados…»Reparo nas sobrancelhas finas, muito longas, sobre duas Granadas Demantóides exemplares. Os olhos, tão comuns em rostos vulgares, são impressionantes quando na expressão facial exata. «… Que pensamentos os meus. Não tenho-me como nico, apenas como bebedor do saber clássico. Por que havemos nós de entender os problemas atuais com a estranheza de quem nasceu na era contemporânea, quando humanos perduram na Terra, acumulando conhecimentos, há milénios?» Os lábios grossos, largos e avermelhados, distendiam-se para perpetuar o sentido do sorriso no rosto. Ele tinha o nariz pequeno. Perfeito. «… “que ninguém hesite em se dedicar à filosofia, sobretudo quando se é jovem, nem se canse de fazê-lo mesmo em idade já avançada, porque nunca se é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito, disse Epicuro… Hoje percebo que quem tem a felicidade tem tudo. E parece-me que a minha felicidade está dentro de si.»
O que espero do corpo é a saciedade de desejos hormonais desvendados pela sedução. Uma troca de olhares. Um beijo numa boca que bebe a saliva da outra nas nuvens. Naquele instante, próximo do seu corpo, desejei entregar-me a sentimentos concupiscentes. «Desejo morder os seus lábios», disse-lhe. Aquele anjo respondeu com um melífluo acenar das pálpebras. Quando dei por mim, tocava-lhe na língua. Já só por instinto me conduzia. Senti suor no tronco esculpido com carnes maduras. Desatei o cinto. Meti a mão entre as suas pernas e senti duas esferas moles, sedosas. E depois o pénis ereto, duro, marcado pela veia grossa em todo o seu comprimento. Precipitei-me sobre ele, encoberto pelo silêncio apenas interrompido pelo ressonar que nos chegava. Juntos partimos na aventura de descobrimentos bárbaros, até que libertei-o com um beijo. Fiquei-lhe com os lábios, e os olhos.
Separamo-nos no aeroporto de Inglaterra.



Do livro de contos “O diário poético de um empregado de balcão”, que saiu no ano de 2015 pela editora Esfera do Caos, em Portugal.



DIDIER FERREIRA. Nasceu em Luanda em dezembro de 1985. É também nacional de São Tomé e Príncipe e residente em Portugal há mais de vinte anos. Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade Nova de Lisboa, onde frequenta atualmente o mestrado em Estudos Portugueses. É fundador do movimento Jovens Poetas Vadios, com o qual tem vindo a realizar, desde 2008, diversas sessões de poesia em escolas, universidades e associações culturais. O diário poético de um empregado de balcão marca a sua estreia na ficção de género contista.

Não, de Bruna Mitrano, por Gabriel Resende Santos

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Embora eu não desgoste de quem usa a poesia pra conjurar mundinhos idílicos docemente apaixonados, aquele êxtase intenso da maresia de Copacabana, a verdade é que este recorte edulcorado, hegemônico sabe-se lá como, alcança a saturação muito rapidamente. E mais do que encher o saco, propõe uma visão de mundo que é muito parcial, classista, minoritária (e não venha o cínico falar em “exceção”), tão insular quanto a poesia por si só, tornando-se quase um empenho, me parece, em intensificar este isolamento. Daí que as elegias escritas da França, as trocas de e-mails afetuosos de diferentes lugares do país e do mundo, a experiência epifânica de pegar um ônibus na Glória, o primeiro contato com a violência no filme do Tarantino, a marginalidade de morar em Ipanema, embora curiosos em seu manifesto cosmopolitismo, falham em captar uma realidade muito mais complexa e definitivamente menos cheirosa.

Veja, a poesia não tem necessariamente um compromisso com a realidade. Por mais que uma análise sincrônica sempre leve em conta as repercussões de um texto conforme o seu contexto, não creio que uma análise sobre o agora, o agora que se configura cultural, social e politicamente, seja imprescindível. A poesia pode muito bem voltar-se sobre si mesma, sob a égide da crise, e diluir ou hipertrofiar a linguagem; retomar uma tradição visionária, solenizadora e por vezes críptica; ou reduzi-la à herança modernista do lúdico urbano, processo que quando bem-sucedido areja novos temas e novas formas.

Mas é legal quando os voos poéticos não se contêm. A poesia também serve aos propósitos, nunca mutuamente excludentes, de ocultar suas imundícies na amenidade apenas aparente de sua dicção, questionar tabus num tom de maior urgência política, dilapidar tronos em uma sanha iconoclasta de abolição dos axiomas e, sobretudo para mim, expressar um cansaço que não é apenas da linguagem, mas de uma realidade ou de uma perspectiva da realidade.

Nada garante que um poema bom vá sair destes intentos. Na maioria das vezes não sai. E a biografia não tem tanta influência sobre isto. Não vou negar a importância da autorreferencialidade, as coisas que a ocupação de determinado espaço social ensina, mas tenho a impressão de que os poetas mais malditos do planeta nunca se farão conhecer porque foram poetas muito ruins. Ou seja, a vida não faz a obra. Esquece a vida. Bruna Mitrano certamente Não (Editora Patuá, 2016) precisa expor a sua. Ela é simplesmente uma excelente poeta.

Tecendo um comentário sobre Não, acho desnecessário martelar a quase quebrada tecla do seu vigor poético, sua fúria incontida. No prefácio, nos comentários, nas conversas sobre a poeta, o caldo inflamável que cobre seus textos, na iminência de um fósforo aceso, é sempre trazido à tona. Seus poemas são bombas, mísseis, facas pontiagudas, o grito ensurdecedor de uma mulher aos ouvidos dos que tentam recusar sua voz. Sim, é uma poesia do confronto, da resistência, da recusa.

O problema é que já falaram tanto nessa direção e com tanta eloquência, com tanto senso de verdade inquestionável, que eu fiquei cansado. E para não tornar este meu arremedo de comentário crítico uma tautologia, e porque eu acho que a poesia da Bruna merece mais, eu prefiro, supondo uma dialética que talvez seja o legítimo cerne político de seu livro, falar um pouco sobre a face de sua poética oposta (ou complementar) a essa obstinada ideia de resistência: a desistência.

Então. O conjunto do Nãoé formado por poemas e ilustrações-poemas, texto e imagem. Há uma heterogeneidade de recursos e escolhas formais vinculados, porém, a uma unidade temática que se afigura, sob uma visada ora surrealista/surrealizante, ora quase antipoética, como um desvanecimento do cotidiano e suas imagens típicas (que talvez soassem de antemão atípicas para o leitor de poesia médio, habituado a outra realidade). Vale notar que a poeta coligiu textos produzidos num longo espaço de tempo e tais intermitências explicitam as tantas dissonâncias de abordagem formal, sempre uma escolha arriscada ao constituir um projeto de livro, mas que não se tornou vã graças à força singular dos versos e também a esta espécie de enlaçamento semântico, seja ele fortuito, refletido ou inevitável.

Agora leiam isto: odeio refrigerante mas/bebi coca-cola/só pra fazer sentido.//nada de bom ou terrível aconteceu hoje.É um dos poemas de Não, um dos mais sucintos. Na página contígua, a imagem de uma mulher estendida sobre o que parece ser um solo rachado, até percebermos que as rachaduras são madeixas soltas. A esta ilustração, somam-se outras de mulheres e homens recolhidos, jacentes, cercados de ratos, às vezes solitários, às vezes transando, sempre nus. Um rosto sendo esmurrado, uma mulher enforcada pelo próprio cordão umbilical, gritos. Rostos velhos e monstruosos, corpos naturais, belos.

Nessa apresentação da vida como ela é, sem maquiagens, sem os adornos das posses, há de fato uma lógica de embate, a intenção patente de induzir um deslocamento incômodo. Trazer de volta e à força o humano à sua essência, despojado de amarras sociais e pudores. No entanto, isto também é uma atitude de fragilização que eventualmente nos levará à solidão, ao delírio, à crise e à empatia. Empatia, sim. Rotular a poesia da Bruna como incessante golpe de um aríete (observem o poema de abertura do livro: “abro minha guerra./estou na sua frente./me olha./”) sem reconhecer seus intervalos exaustos, sua piedade, sua vulnerabilidade e sua necessidade de alcançar o outro, seja o amante anônimo, a criança de chinelos ou a mulher enlouquecida, antes de se ver às voltas com o próprio apagamento, é fechar os olhos para um caminho mais intimista, mas também fundamental, do Não.

Atente ao poema do refrigerante. Atente aos corpos cansados das ilustrações, à mulher enforcada. Atente a estas passagens: “a raiva ainda alinhada -/é difícil, ele disse,/morrer” ou “ah esse calor terrível/deito no chão –/você acha que vai chover?”. A dica está dada: o Não é uma ordem, um comando intransigente ao desavisado leitor, mas também negação de si próprio, reconhecimento da frivolidade de suas próprias demandas. Consciente do alcance do grito, Bruna Mitrano grita, mas também sussurra, a voz quase muda após o uso de toda a sua força para articular uma guerra tão interna quanto externa. O eu-lírico não pode apenas rejeitar o que o outro tenta lhe impor: ele se vê forçado a acolher suas próprias negativas, dada a impraticabilidade de qualquer contenção da vida, essa caprichosa.

O Não, perdão pela antinomia óbvia, implica também um quase sim, uma quase aceitação. Não que Bruna aceite passivamente a merda que lhe arremessam. A poesia corrobora justamente sua rebeldia – e inúmeras vezes ela se reveste de fato da potência e da agressividade que tantos já apontaram. Contudo, há igualmente uma espécie de serenidade impregnando o delírio e uma generosidade inabalável ao descrever com algum grau de afeto os personagens tortuosos de um cotidiano duro. A força de Bruna Mitrano não é apenas uma porrada: ela convence, cativa, abraça. Sim, se não for forçar demais a barra, rola até um abraço. Um abraço em outras mulheres. Um abraço em outros marginalizados. Um abraço sujo, torto e insuficiente. Mas um abraço.

No fim de tudo, Nãoé mais uma negativa da linguagem, este inevitável lugar-comum. Consciente do início ao fim, ele sabe que vai fracassar. E fracassa. Mas não lamentemos. Este é um belo fracasso, como todo grande livro aspira ser.



*        *        *






Bruna Mitrano (1985) nasceu e vive na periferia do Rio de Janeiro. É artista plástica, articuladora cultural e escreve. Em setembro deste ano, lançou seu primeiro livro de poemas e desenhos, o Não, pela Editora Patuá.






Gabriel Resende Santos é escritor nascido no Rio de Janeiro em maio de 1994. É autor do livro de poemas Elevador (Patuá, 2014) e do inédito Vista Cansada. Já apareceu em antologias, jornais e revistas, mas ninguém o reconhece na rua.
















FENDAS NA PERFEIÇÃO: O MUNDO PERFEITO - Fernando Rocha resenha Claúdia Marczack

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O sucesso angustia, porque não é um objeto que você possa possuir nem trancar num cofre. De fato, o sucesso é um atributo do olhar dos outros, os quais, repentinamente e de maneira na verdade bastante arbitrária, decidem olhar para você com placidez e agrado, dando-lhe o incerto presente de considera-lo bem-sucedido.
(Rosa Montero)


Um grande feito pode ser medido, quando o admiramos e nele não enxergamos a presença do extraordinário logo de cara, assim, ele nos transmite a sensação de que qualquer um poderia tê-lo realizado, contudo, basta uma tentativa de realização e atingimos a impossibilidade de concretização. Bem, este é o caso do romance recém-lançado O Mundo Perfeito(Penalux), de Cláudia Marczack, como bem escreveu na orelha Maria Valéria Rezende, o leitor não encontrará velhos truques com malabarismos de linguagem, é uma narrativa fluída que obedece a linearidade cronológica, todavia, está aí a busca pela manutenção de uma espécie que Walter Benjamin detectou a extinção, na primeira metade do século passado: o narrador. Narrada em terceira pessoa, neste ponto, encontramos a mão talentosa da autora, que escolhe a onisciência para o cúmplice da protagonista Luísa. Campeão da asma e princesa da banha, sorriu Luísa, em seu íntimo. (pg.15)
Luísa uma mulher que goza das comodidades da riqueza, Eduardo o marido provedor ausente por conta das viagens de trabalho, emprego este que lhe paga um salário e o permite manter a maquete-vida em pé, Eduardinho garoto fragilizado pela ausência de necessidades na vida, e Valéria filha mais nova, a família parece ter sido retirada de um comercial de margarina, contudo, a noção de perfeição é desfeita logo na primeira página: Achava intrigante isso, a felicidade nunca lhe parecia completa. (pg. 9).
Neste tempo de brados políticos por todos os lados, Cláudia fazendo bom uso de sua escolha narrativa, consegue discutir o tema da velha e boa luta de classes, sem soar panfletária e/ou oca, o que pode ser a mesma coisa:
Esperava naquela tarde, ansiosa, a casa tranquila. Já havia feito tudo o que tinha planejado para o dia, compras para os filhos, visita àquela ONG de assistência a crianças carentes- graças a Deus, só na área administrativa, para combinar uma nova doação de recursos. Mais crianças, e ainda por cima pobres, ela não aguentaria. (pg. 19).
A rachadura que acrescenta ànarrativaum novo movimento dentro do tédio da rotina é a contratação de um pedreiro, para reformar um banheiro, cômodo que serve como uma interessante metáfora para a interioridade das personagens, afinal neste lugar é onde todos nos apresentamos sem máscara, mesmo sendo sabido o que fazemos lá, nunca falamossobre as secreções despejadas, afinal dizem ser falta de educação tratar de tal assunto. O profissional introduz na paisagem do belo quintal, crianças seus filhos os gêmeos W, correndo livre pelo quintal, diferentemente, dos pequenos da casa, Luísa os admira, os acha belos.
Se toda obra de arte acrescenta uma discussão de temas, mas não se encerra neles porque há na emissão a preocupação do tratamento estético, esta escritora nascida em Santos dá a sua contribuição grandiosa para a literatura praticada em nossos dias. 

O mito de que toda mulher nasceu para ser mãe e que ama seus filhos: Ficou olhando osfilhos.Um olhar sem carinho, de observação quase científica. Como poderia considera-los seus. Seus filhos? (pg.10); a felicidade dos retratos familiares, hoje, compartilhados em redes sociais: Eduardo a prendia em um mundo confortável e incômodo. (pg.101); a noção de moral: Safadeza, transa, trepada. Fosse qual fosse o nome daquilo, ela tinha coragem de ir até o fim (pg. 53). Tudo isso aparece no desenrolar da obra com a mesma destreza que o artesão usa em seu trabalho, a sensação que o leitor tem no encontro com o romance de Cláudia é que algumas palavras como quem não quer nada estão espalhadas ao longo das páginas, como se fossem pistas, um convite para o leitor-detetive seguir decifrando e saboreando enigmas presentes no carrossel das personagens que giram em frente aos nossos olhos.


CLÁUDIA MARCZAK em 2009, parceria com uma editora portuguesa, publicou Lugar Algum, livro de poemas. No ano de 2010 veio o Caos, publicação independente, também de poemas.  Autora de A Flor da Pele pela Editora Penalux.


Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo. Fotógrafo amador, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento) e da novela Oslaços da fita (Penalux), Possui um conto na coletânea Descontos de fadas (Alink editora). Colabora com as páginas Letras inacabadas e Letras et cetera. Tem textos publicados nas páginas Musa rara, Cronópios, Jornal O Relevo, Meleca-chiclete.

crus os cantos das bocas - cinco poemas de Cecília Floresta

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"Triple Portrait of E", 2014, de Sophie Kahn





ensaboa


o que me preocupa, carlos
é como o amor pode virar espuma
no canto da boca dos outros




desamélia


existe neste mundo
um consenso muito grande
por carne crua & sangue dos outros

apesar talvez
em virtude de minha pena
ser ainda muito tenra
os itens elencados
pudessem caber em louros
na cabeça de camus
ou naquele livro póstumo
esquecido em gaveta
de roupas íntimas

meu amor
ainda chegará o dia
em que andaremos na rua à noite
e nossa maior preocupação
será qual pé pisar primeiro:
ao contrário do que tememos hoje
nos ocuparemos em aprimorar
as figuras de linguagem
e não a animalia alheia

há de chegar esse dia
quando então amélia será liberta
daquele samba restando apenas
a melodia muito alegre
e nosso inteiro consentimento




sete cabeças


deus me livre de samuel
das ideias de samuel
dos diálogos em desencontro
dos pensamentos fragmentados
das línguas incompletas
que nada dizem de sentido
efeito algum que não seja colateral
& no entanto nenhuma bula

gogo & didi pelo menos eram dois
fossem mais
teriam recriado o movimento do mundo:
repetitivo contrário louco aos pedaços, mas com certas ocasiões notáveis, talvez até um pôr do sol, quem sabe se godot ou aquela cena sem sentido de flash dance, muito embora um conto de edgar allan poe em noite fria & chuvosa, contudo um solitário merlot

ou o fluxo de gente
na linha 4 amarela do metrô
na rodoviária tietê
na avenida paulista em horário de pico

por isso
deus
deus me livre de samuel
que não foi profeta
mas previu assustadoramente nítido
o movimento do mundo
muito mais do que têm se provado certos
os versículos do apocalipse




trio sonata II


você faz tanto barulho
dentro de mim
que o trânsito da consolação
parece buzinar uma sonata de bach
em dó menor




arrecife


inexata
deslizava os passos
em caminho de pedras
despertas da areia pela maré baixa
numa manhã que pouco queria nascer
incompleta de alguma saudade
cravada em unhas
num coração cansado de gente

a senhora um dia ainda se deixa afogar num copo d’água.

veja:

o horizonte
não é assim tão longe quanto parece
se calhar
dá pra atingir aquela linha ali
num piscar de tempo

é tudo quesito de gosto
o soltar-se tem um
o deixar-se há de ter outro
mas sem questões
de um melhor que aquele
& etecétera

cada boca sorve aquilo só
que faz salivar
pelo amargo ou pelo doce
por um ou outro lado
o de dentro que sangra em vermelhos segredos
o de fora que derrete em suor transparência

mas quem só enxerga as coisas de longe não consegue atinar pra quase nada do mundo.

que seja:

inexata
caminhava com os pés
polvilhados de areia
os olhos atentos
apontados pro horizonte
que ninguém mais vê:
esse abismo todo nosso
que cavamos ilusórios
peito adentro






Cecília Floresta nasceu na capital paulista em dezembro de 1988. É graduada em Letras pela PUC-SP, ganha a vida editando livros e não passa sem amores ou literaturas – com apreço especial à brasileirada contemporânea. Vive pelos bares, escreve torto uns poemas sem métrica & desconversa. “Poemas crus” (Editora Patuá, 2016) é seu primeiro livro.

VÍCTOR SOSA - 10 INÉDITOS

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 PICASSO, Pablo - Femme Assise et Joueur de Flute





tradução – adriano wintter






Nestas dez prosas poéticas, sob um tênue fio narrativo, Víctor Sosa agrega, une e intercala termos provenientes dos campos da medicina, da arte, da música, da botânica, da náutica, da mitologia e da transtextualidade. Ele maneja tempos, lugares e personagens de modo simultâneo; fragmenta, mescla, mina e retorce a linguagem: separa a sintaxe, cria elipses, multiplica hipérbatos. Usando predominantemente a música da língua para criar um mundo pessoal e prolífico (fora da lógica, além do aqui e do agora), ele encanta a escritura com sua flauta de fractais sonoridades e sentidos (Sosa-Pã, Sosa-Anfion). E a Beleza segue-o.

Fernando Soriano Bensusan





  

1




Había abuelos entre los intersticios de los muros. Osamentas, abuelas en enaguas cocinando el sustancioso áspid porvenir. Un habla había de jergas tan extrañas, qué de encalado adobe. Judíos egipcios entrelazando quipus entre los incas muros milenarios. Y en el muro un lamento va silbando áspides entre Andes. ¿O dunas y no Andes esos riscos? Semita cóndor mira mas no habla. Insensatos abuelos que hoy son tótem, fetiches de argamasa entre los muros, eslora de una nave que ora quieta reposa de Noé entre cordilleras. ¿Quiénes, ancestros, somos?, me pregunto. Y suena un silbo ronco entre los juncos.  


 Havia avôs entre os interstícios dos muros. Ossamentas, avós em enáguas cozinhando a substanciosa áspide porvir. Uma fala havia de gírias tão estranhas, que de caiado adobe. Judeus egípcios entrelaçando quipos entre os incas muros milenários. E no muro um lamento vai assobiando áspides entre Andes. Ou dunas e não Andes esses penhascos? Semita condor olha, mas não fala. Insensatos avôs que hoje são totem, fetiches de argamassa entre os muros, amura de uma nave que ora quieta repousa de Noé entre cordilheiras. Quem, ancestrais, somos?, pergunto-me. E soa um silvo rouco entre os juncos. 




2


Salvo alacrán no hay santo.
Salvo sobre sartorios aguijón, sobre aductores pasmo, salvo y de sí mismo liberado, ensalmo su goteo. Su deseoso goteo de cenzonte, ázimo que en sandalias gorjea semen. Entonces qué saetas, alacranes. Vengan a mí aguijones, los alados, como flechas perfectas penetrándome en glande exhausta dermis, dice el santo. O no dice y gametos que gotea sobre, infértil, sandalias. Trenzándose en tenaza al alacrán como antílope a fauces homicidas, al puro acto reflejo del león, al fin salvo de sí tan inaudible que en aguijón se ensalma su gorjeo.    


Salvo escorpião não há santo.
Salvo sobre sartórios aguilhão, sobre adutores pasmo, salvo e de si mesmo liberado, ensalmo seu gotejo. Seu desejoso gotejo de tordo, ázimo que em sandálias gorjeia sêmen. Então, que setas!, lacraus. Venham a mim aguilhões, os alados, como flechas perfeitas penetrando-me em glande exausta derme, diz o santo. Ou não diz e gametas que goteja sobre, infértil, sandálias. Trançando-se em pinça ao escorpião como antílope a fauces homicidas, ao puro ato reflexo do leão, ao fim salvo de si tão inaudível que em aguilhão ensalma-se seu gorjeio.




3

                                                  
Pero me quedo echado, desnudo, sobre la enorme, derritiéndose, nieve, sobre la negra jactanciosa, abierta de piedras en extensa nieve y su risa que arrasa, ase de cuajo, asierra candomblé entre los incoloros abedules. Claro que me quedo con la negra, pegadito a su vientre arrellanado a su resuello de yegua que renace. Paralizado por su ébano, su enorme en nieve ébano, succionando su extenso clítoris de ébano entre las negras piernas duras y nocturnas – piamadre nerviosa, duramadre espinal – sobre la jactanciosa, muda nieve. Allí llorando mujo, prendidito a la ubre de la negra como un becerro entre los altos cerros de sus extensas ubres, más extensas aún que la estridente nieve bajo los silenciosos abedules. Y abre como ría densos muslos para que salga, para que asome cráneo el predilecto, de cuajo echándolo, cayéndome del vientre de la negra al mundo blanco, al nevado, al incoloro nevado de mudos abedules. 


Porém estou deitado, desnudo, sobre a enorme, derretendo-se, neve, sobre a negra jactanciosa, de pedras abertas em extensa neve e seu riso que arrasa, agarra pela raiz, serra candomblé entre as incolores bétulas. Claro que eu fico com a negra, pertinho de seu ventre, acasalado ao seu folgo de égua que renasce. Paralisado por seu ébano, sua enorme em neve ébano, chupando seu extenso clitóris de ébano entre as negras pernas duras e noturnas – pia-máter nervosa, dura-máter espinal – sobre a jactanciosa, muda neve. Ali chorando mujo, bem preso ao úbere da negra como um bezerro entre os altos cerros de seus extensos úberes, mais extensos ainda que a estridente neve sob as silenciosas bétulas. E abre como na ria densas coxas para que saia, para que assome o crânio predileto, pela raiz jogando-o, caindo-me do ventre da negra ao mundo branco, ao nevado, ao incolor nevado de quietas bétulas.




4


Nací de madre negra, dice el nacido.
Cópula a cópula, dice, inseminé en mi madre semen negro, un espeso esperma como mármol, como antracita mineral tiñó mi semen la sangre de mi madre, la blanca sangre tiñó de un negro gutural, como de mármol. Eso, o algo parecido, dijo el nacido saliendo del vientre de la muerta. Acuclillado, saliendo, sobre la ensangrentada nieve, del vientre de la muerta. Juzgue la historia esta poción amarga, dijo, escupiendo, el íncubo, el vientre negro abierto de la madre, la extensa cesárea roturada bajo las ventiscas, bajo las roturadas auroras boreales, de la madre. Y entonces cercenó. Cortó pezones negros. Con las filosas hojas plateadas de abedules cercenó negra leche espesa madre para así, gutural, untarse paladar con el marmóreo semen. Y repitió, ecolálico, por años, acuclillado entre boyales dehesas, el negro, espeso nombre de la madre.    


Nasci de mãe negra, diz o nascido.
Cópula a cópula, diz, inseminei em minha mãe sêmen negro, um espesso esperma como mármore, como antracito mineral tingiu meu sêmen o sangue de minha mãe, ao branco sangue tingiu de um negro gutural, como de mármore. Isso, ou algo parecido, disse o nascido saindo do ventre da morta. Acocorado, saindo, sobre a ensanguentada neve, do ventre da morta. Julgue a história essa poção amarga, disse, cuspindo, o íncubo, o ventre negro aberto da mãe, a extensa cesárea arada sob as tormentas, sob as aradas auroras boreais, da mãe. E então cerceou. Cortou mamilos negros. Com as afiadas folhas prateadas de bétulas cerceou negro leite espesso materno para assim, gutural, untar-se paladar com o marmóreo sêmen. E repetiu, ecolálico, por anos, acocorado entre bovídeos pastos, o negro, espesso nome da mãe.    



3
5


Ahora, suelto, se lo ve en la pampa.
Pampea sin yegua alguna. Sin debajo de ingles la montura que apnea en escroto ayer, que hoy bisbisea uretra en esos piélagos. Un Cid sin capa que entre sus escondrijos no campea. Lleva los huesos de la madre, la dentadura de la madre aún intacta de calostro en mochila. Porque padre no tuvo, u obtuvo ley de padre sobre la lenguaraz progenitora. Sobre el incesto – ay, Ley – su lubricada autogestión en la placenta, amniótica aunque nunca tan aséptica (que asepsia pura – arguye él – ni en Sirio). Campea en las pampas castellanas como con elefantes un Aníbal. Y lleva pródigo (sin tapujos digámoslo) la cercenada dermis, los en sal conservados pezones en su dermis, dicen que de la madre ajorcas lleva.


Agora, solto, vemo-lo no pampa.
Campeia sem égua alguma. Sem debaixo das virilhas a montaria que apneia em escroto ontem, que hoje cochicha uretra nesses pélagos. Um Cid sem capa que entre seus esconderijos não campeia. Leva os ossos da mãe, a dentadura da mãe ainda intacta de colostro em mochila. Porque pai não teve, ou obteve lei de pai sobre a linguaruda progenitora. Sobre o incesto – ai, Lei – sua lubrificada autogestão na placenta amniótica ainda que nunca tão asséptica (que assepsia pura – argui ele – nem em Sirius). Campeia nos pampas castelhanos como com elefantes um Aníbal. E leva pródigo (sem rodeios, digamo-lo) a cerceada derme, os em sal conservados seios em sua derme, dizem que da mãe tornozeleiras leva.




6


¿Cómo incircunciso y sin hermana? 
¿Por qué una núbil no de sus arterias?, se preguntaba eslavo entre abedules. Deseaba que filial fuera el incesto sobre la seducida sediciosa. Entonces el tendón estiró tanto, de cuajo, estiró tanto, el dolor del tendón estiró tanto. Los bucles, las tetillas. Las praderas lampiñas de la niña en pubis declinando. Tiró de ahí, de un hilo, estiró tanto. La hermana abrió los ojos, habló en los ojos zarcos una lengua. Abrió ocluida lengua dialectal, sedosa en su saliva, dialectal. La incestuosa nacida para él se habló de piernas blandas, blancas, blandas; como bajo una cítrica mirada el abulón que treme, así la hermana. Él abrió dulce espera. Rozó con sus pezuñas fratricidio. Su dulce hermana quieta que lo espera. Su autofagia feroz que desgarrando el abra familiar, el ancho abra hermana de su leche ahora en tendón tenso, en tenso lecho intenso, las praderas.   

                                         •       

Como incircunciso e sem irmã?
Por que um núbil não de suas artérias?, perguntava-se eslavo entre bétulas. Desejava que filial fosse o incesto sobre a seduzida sediciosa. Então o tendão estirou tanto, puxado pela raiz, estirou tanto, a dor do tendão estirou tanto. Os cachos, os peitos. As pradarias lampinhas da menina em púbis declinando. Puxou daí, de um fio, esticou tanto. A irmã abriu os olhos, falou nos olhos zarcos uma língua. Abriu ocluída língua dialetal, sedosa em sua saliva, dialetal. A incestuosa nascida para ele abriu-se de pernas brandas, brancas, brandas; como sob uma cítrica mirada o molusco que treme, assim a irmã. Ele abriu doce espera. Roçou com seus cascos fratricídio. Sua doce irmã quieta que o espera. Sua autofagia feroz que rasgando a angra familiar, a ampla angra da irmã de seu leite agora em tendão tenso, em tenso leito intenso, as pradarias.   



4
7


Y tuvo de su hermana hermosas hijas.
Anchos vástagos largos que caían como de un maple miel sobre los terrones removidos. Rubias, negras, maizales, manando entre el ilíaco, el fraternal coxal que esponja hijas. Pelirrojas galesas que en conjuros hacen sangrar zodíacos; asen con sus manos líquenes en posos. Aseándose entre sí y en higos leches, blanco charco en ombligo. Su hermana mana hijas siendo madre, se aferra a los juncales, mana hijas. Amasa él un erizo. Con las manos inanes hace masa de espinas, él ayer tan valiente, tambaleante entre tundras. Padre, aguijón, tus manos, le dicen en los poros rojas hijas. Acuna tu puñal, insiste hermana, ahora que no huesos, que ni coxal albea ante la miel, ante el terrón inane que antes fértil, insiste suave hermana. Anchos vástagos largos, sus crineras; sus negras, rubias, corren, blandas hijas.


E teve de sua irmã formosas filhas.
Amplos brotos longos que caíam como de murta mel sobre os torrões removidos. Louras, negras, milharais, manando entre o ilíaco, o fraternal coxal que esponja filhas. Ruivas galesas que em conjuros fazem sangrar zodíacos; laçam com suas mãos liquens em lodos. Asseando-se entre si e em figos leites, branco charco em umbigo. Sua irmã mana filhas sendo mãe, aferra-se aos juncais, mana filhas. Amassa ele um ouriço. Com as mãos inanes faz massa de espinhos, ele ontem tão valente, titubeante entre tundras. Pai, aguilhão, tuas mãos, dizem-lhe nos poros rufas filhas. Aninha teu punhal, insiste irmã, agora que não ossos, que nem coxal alvorece ante o mel, ante o torrão inane que antes fértil, insiste suave irmã. Amplos brotos longos, suas crineiras; suas negras, louras, correm, moles filhas.



4
8


Mi deseo no me gusta – dice el deseoso
Y fuerte en taquicardia aferra pecho, asma adentro se ahonda en su homicida. Como una hiedra aferra la corteza – erguido tronco inerme –, así el deseoso aferra anguila lábil. Sibilante entre yemas que no hallan más que proteico áspid. Un humo que en cristal empaña al mundo. Mi deseo no es – dice el deseoso – mi deseo: es otro orto siempre cada ocaso. Toca, acaso, parhelio y cree él que soles. No: me gusta – dice ése y se ase en yerro a anguila, como hiedra que un humo inerme empaña.   


Meu desejo não me agrada – diz o desejoso.
E forte em taquicardia aferra peito, asma adentro se afunda em sua homicida. Como uma hera aferra à casca – erguido tronco inerme –, assim o desejoso aferra enguia lábil. Sibilante entre gemas que não acham mais que proteica áspide. Uma fumaça que em cristal embaça o mundo. Meu desejo não é – diz o desejoso – meu desejo: é outro orto sempre cada ocaso. Toca, acaso, parélio e crê ele que sóis. Não: gosto – diz esse e agarra-se em erro à enguia, como hera que fumaça inerme embaça.  



4
9


Lo vio después del canto.
Petirrojo. En justa proporción del aire al fuego. En invisible nido lo vio al pájaro después del eco en canto. Quiso tocar, no pudo. Quiso pulir gorjeo mas no pudo. Quieto en su justa proporción de hombre, en púlsar de carótida, no pudo. Entonces mintió un mito. De aire, de fuego, sin zorzal, un pájaro. Un cenzontle de fe: virtuosa ave en abolido nido, en proporcional eco de canto, en gorjeo de hombre que quiso mas mintió un no pudo pájaro.


Viu-o depois do canto.
Peito-vermelho. Em justa proporção do ar ao fogo. Em invisível ninho viu ao pássaro depois do eco en-canto. Quis tocar, não pôde. Quis polir gorjeio, mas não pôde. Quieto em sua justa proporção de homem, em pulsar de carótida, não pôde. Então mentiu um mito. De ar, de fogo, sem zorzal, um pássaro. Um rouxinol de fé: virtuosa ave em abolido ninho, em proporcional eco de canto, em gorjeio de homem que quis, mas mentiu um não pode pássaro.



4
10


También entre sus manos tuvo un árbol.
Plantó entre los terrones de sus palmas, entre los temblores de sus dedos plantó una alta palmera. Un en humedales rojo ombú también llamado a veces bellasombra. Un sauce que llora sobre surcos. Oyameles plantó cavando con sus manos las escarpas. Dejó – si me preguntan – esos vástagos. Altísimos alerces alzados desde Upsala hasta la Antártida. Milenarias secoyas, liquidámbar. Plateados tilos, olmos, ahuehuetes. Rizomas de raicillas asiéndose a su manto. Urdimbre en fértil humus que entre manos dejó – si acaso alguien pregunta – en estos páramos.  
                                                                           

Também entre suas mãos teve uma árvore.
Plantou entre os torrões de suas palmas, entre os tremores de seus dedos plantou uma alta palmeira. Um em pantanais vermelhos umbu também chamado às vezes belassombra. Um salgueiro que chora sobre sulcos. Abetos cultivou cavando com suas mãos as escarpas. Deixou – se me perguntam – essas vergônteas. Altíssimos larícios alçados desde Uppsala até a Antártida. Milenárias sequoias, liquidâmbar. Prateadas tílias, olmos, caules de Tule. Rizomas de raizinhas fixando-se ao seu manto. Urdume em fértil húmus que entre mãos deixou – se acaso alguém pergunta – nestes páramos.  





VÍCTOR SOSA



Nació en Uruguay, 1956. Es poeta, ensayista, pintor, traductor de la lengua portuguesa y facilitador de grupos terapéuticos. Desde 1983 vive en la Ciudad de México y en 1998 adquiere la nacionalidad mexicana. Recibió el Premio Nacional Luis Cardoza y Aragón para Crítica de Arte (1998), el Premio Nacional de Poesía Pancho Nácar (2000), el Premio Nacional de Poesía Gilberto Owen (2012), el Premio Internacional de Poesía Jaime Sabines (2012) así como Mención de Honor del Ministerio de Cultura del Uruguay y de la Intendencia de Montevideo. Obtuvo el apoyo del FONCA en Proyectos y Coinversiones, 2006 y Residencias Artísticas en Canadá, 2008 y Francia, 2011 y 2014.Tiene publicados 15 libros de poesía, ensayo y crítica, entre los que se destacan Sunyata (1992), La flecha y el bumerang (Aldus, 1996), El Oriente en la poética de Octavio Paz (Secretaría de Cultura de Puebla, 2000), Decir es Abisinia (Universidad Iberoamericana, 2001), El Impulso (Praxis, 2001), Los animales furiosos (Aldus, 2003), Mansión Mabuse (2003), La saga del Sordo (2006), El principio de eternidad (2009), Nagasakipanema (2011), Gladis monogatari (Fondo de Cultura Económica, 2014, -Premio Internacional Jaime Sabines, 2012-), los video-poemas México lindo y querido (2010), La palabra (2012) y Ritornelo (2014). Su poesía ha sido reunida en un grueso volumen bajo el nombre de Oroboro (2014). Ha impartido clases en la Universidad Iberoamericana y en la UNAM, y ha ejercido el periodismo cultural en los periódicos Reforma, La Jornada Semanal, Milenio, y en las revistas Vuelta, Letras Libres, Universidad de México, entre otras nacionales y extranjeras. Es creador del Laboratorio de Escritura Autobiográfica, así como de Escritura Emocional Expresiva (método terapéutico basado en la externalización de los afectos a través de la escritura), y es fundador de ZONaUNO, Seminario Permanente de Apreciación Poética. Tomó el Entrenamiento en Psicoterapia e Hipnosis Ericksoniana con la Mtra. Iris Corzo y el Advanced Techniques & Art in Therapy, con Jeffrey K. Zeig, director The Milton H. Fundation, inc., entre otros cursos y diplomados. Actualmente es docente en el Instituto Iris Corzo, de la Ciudad de México y cursa la Maestría en Psicoanálisis en el Centro Eleia.


Nasceu no Uruguai, 1956. É poeta, ensaísta, pintor, tradutor de língua portuguesa e mediador de grupos terapêuticos. Desde 1983 vive na cidade do México e em 1998 adquiriu a nacionalidade mexicana. Recebeu o Prêmio Nacional Luis Cardoza y Aragón para Crítica de Arte (1998), o Prêmio Nacional de Poesia Pancho Nácar (2000), o Prêmio Nacional de PoesiaGilberto Owen (2012), o Prêmio Internacional de Poesia Jaime Sabines (2012), assim como Menção Honrosa do Ministério de Cultura do Uruguai e da Prefeitura de Montevidéu. Obteve o apoio do FONCA em Proyectos y Coinversiones (2006) e Residências Artísticas no Canadá (2008) e França (2011 e 2014).Tem publicados 15 livros de poesia, ensaio e crítica, entre os quais se destacam: Sunyata (1992), La flecha y el bumerang (Aldus, 1996), El Oriente en la poética de Octavio Paz (Secretaría de Cultura de Puebla, 2000), Decir es Abisinia (Universidad Iberoamericana, 2001), El Impulso (Praxis, 2001), Los animales furiosos (Aldus, 2003), Mansión Mabuse (2003), La saga del Sordo (2006), El principio de eternidad (2009), Nagasakipanema (2011), Gladis monogatari (Fondo de Cultura Económica, 2014 / Prêmio Internacional Jaime Sabines, 2012), os vídeo-poemas México lindo y querido (2010), La palabra (2012) e Ritornelo (2014). Sua poesia foi reunida em um grosso volume intitulado Oroboro (2014). Tem dado aulas na Universidade Ibero-americana e na UNAM, e exercido o jornalismo cultural nos jornais Reforma, La Jornada Semanal, Milenio, e nas revistas Vuelta, Letras Libres, Universidad de México, entre outras, nacionais e estrangeiras. É criador do Laboratorio de Escritura Autobiográfica, assim como do Escritura Emocional Expresiva (método terapêutico baseado na externalização dos afetos através da escrita), e é fundador do ZONaUNO, Seminario Permanente de Apreciación Poética. Recebeu treinamento em Psicoterapia e Hipnose Ericksoniana com a Profª. Iris Corzo e o Advanced Techniques & Art in Therapy, com Jeffrey K. Zeig, diretor da The Milton H. Fundation, inc., entre outros cursos e diplomas. Atualmente é docente no Instituto Iris Corzo, da cidade do México, e cursa o Mestrado em Psicanálise no Centro Eleia.




                                                        
FERNANDO SORIANO BENSUSAN



Nació en Granada, 1966. Coordina y presenta los “Encuentros Literarios. Libros: Materia dormida (1994); La llama inhabitable (1994); Dar contra la luz, (1997); Lluviosas tardes de verano (1999); Los rostros de la dicha (1999); Melpómene (2000); Las llamas del olvido (2004); Mi sueño vive debajo de tus párpados (2008); Hassard y Mi sueño vive debajo de tus párpados (2010); Donde no habite el olvido (Antología poética, 2011); Nunca digas para siempre (2011). Premios:2º Premio en el certamen "Cruz de Piedra" de Huétor Veja (1994); Premio "Inocente García Carrillo", de la Biblioteca de Alhama de Granada; Mención de honor en las XXXIV Justas Literarias de Reinosa (1998); Premio de poesía "Hilario Ángel Calero"; finalista en el Premio de poesía "José María Valverde"; 2º lugar en el Premio Planeta D’Agostini; finalista en los Premios Artífice de Loja; XII Premio la Espiga, Pozaldez, Valladolid; finalista en el Premio Alea Blanca, 2010; finalista en el Premio de poesía Addison de Witt, 2010; finalista en el I Premio Nacional de poesía “Poeta de Cabra 2013”. Publicaciones: Revista Luces y Sombras; Revista Ágora nº 24; Revista Experimenta (Argentina). Traducciones: italiano (Edizioni Lo Spazio, Italia, 2009) y portugués (Revistas brasileñas Germina y Mallarmargens, Revista portuguesa Triplov.


Nasceu emGranada, 1966. Coordena e apresenta os “Encontros Literários”. Livros: Materia dormida (1994); La llama inhabitable (1994); Dar contra la luz, (1997); Lluviosas tardes de verano (1999); Los rostros de la dicha (1999); Melpómene (2000); Las llamas del olvido (2004); Mi sueño vive debajo de tus párpados (2008); Hassard y Mi sueño vive debajo de tus párpados (2010); Donde no habite el olvido (Antologia poética, 2011); Nunca digas para siempre (2011). Prêmios:2º Prêmio no concurso "Cruz de Piedra" de Huétor Veja (1994); Prêmio "Inocente García Carrillo", da Biblioteca de Alhama de Granada; Menção honrosa nas XXXIV Justas Literarias de Reinosa (1998); Prêmio de poesia "Hilario Ángel Calero"; finalista no Prêmio de poesia "José María Valverde"; 2º lugar no Prêmio Planeta D’Agostini; finalista nos Prêmios Artífice de Loja; XII Prêmio la Espiga, Pozaldez, Valladolid; finalista no Prêmio Alea Blanca, 2010; finalista no Prêmio de poesia Addison de Witt, 2010; finalista no I Prêmio Nacional de poesia “Poeta de Cabra 2013”. Publicações: Revista Luces y Sombras; Revista Ágora nº 24; Revista Experimenta (Argentina). Traduções: italiano (Edizioni Lo Spazio, Italia, 2009) e português (Revistas brasileiras Germina e Mallarmargens, Revista portuguesa Triplov).






Lançamento de "O vestido de laise"de Thiago Sogayar Bechara

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 "O vestido de laise: contos e prosas poéticas", de Thiago Sogayar Bechara. (Editora Patuá, 2016).
Dia 10/12, sábado, das 18h às 23h.
 Bar e Livraria Patuscada (Rua Luís Murat, 40, Vila Madalena, São Paulo).

     

         Composto por 26 contos e prosas poéticas, e uma novela, “O vestido de laise” (Editora Patuá, 2016) é o nono livro de Thiago Sogayar Bechara (www.thiagobechara.com.br), e primeiro no gênero de histórias curtas e vem coroar os 15 anos de carreira editorial do poeta, biógrafo e dramaturgo nascido na capital paulista. Marcado por estéticas inconfundíveis – e tão distintas entre si - como as de Clarice Lispector e Fernando Pessoa, o resultado poético dos contos apresentados neste livro revelam painéis psicológicos de indivíduos atormentados pela aguda consciência que os tira de uma zona de angústia sombria para uma iluminação não menos aflitiva, porém mais lúcida e, portanto, hábil na busca de uma compreensão da vida.  Isto não quer dizer, contudo, que as elaborações ficcionais das humanidades retratadas aqui tenham a esperança de alcançar alguma compreensão efetiva sobre o sentido de existirem (ainda mais na condição em que existem). Antes o contrário. Buscam em roda, como os ciclos tediosos de Tchékhov, num absurdo realista (ou realismo absurdo), como as peças de Ionesco.
Porém, dar essas ou outras referências autorais não é suficiente para revelar por inteiro o universo afetivo e quase idílico que esses retratos de pouca ação exterior - mas com grandiosos movimentos internos - apresenta ao leitor. Em sua etimologia, a palavra “drama” relaciona-se com a ideia de ação. Pois as personagens de “O vestido de laise”, estejam elas ou não envolvidas num enredo propriamente, vivem indiscutivelmente dramas mais ou menos profundos, mas todos eles vividos em sua plena intensidade. Mesmo quando imersos em profunda beleza – ou por isso mesmo. Ou obrigando -se a proteger-se do mundo buscando a beleza na tragédia que acomete a cada indivíduo, pobre ou rico, na sua igualdade quando veem-se de idêntico modo sujeitos à fatalidade e a ausência de liberdade de escolha para uma vida que acaba não sendo totalmente delas. E que termina do mesmo modo para todos, em seu momento crucial de desfecho rumo ao esquecimento.
Vestidos de cenas cotidianas, os personagens que bailam por estas páginas são como cada um de nós. Frágeis e fortes. Lúcidos e cegos. Sãos e loucos. Têm nas descobertas dos seus avessos, os lados certos da vida. O avesso de um vestido, o avesso de um céu precipitado ao chão, o avesso de uma grade enferrujada, o crime como remissão, a morte como renascimento, a dor como alegria e as vísceras como a única possibilidade de mostrar o exterior de que somos revestidos. O avesso do sexo, o terror que há na paz, a secura da chuva, a liberdade que há numa cela de penitenciária e a umidade de um deserto. São alguns dos pequenos símbolos que colorem a penumbra destes fados literários. Um livro costurado em seu paradoxo. Vidas que só são bem cerzidas quando descosidas. Almas atadas às suas sombras e iluminadas pela percepção do contraste como gérmen do novo. O vestido de laise enfim sai de seu ateliê paupérrimo para rodar num salão ornado sabe-se lá por quais imaginações. Trata-se de um livro em aberto. Um livro em co-autoria com cada um dos leitores que se deixarem levar pela turbulência contundente e ao mesmo tempo serena de suas ondas. Ondas de rio e mar. Um livro para ser mais sentido e absorvido pela pele, via sonoridade de seus longos silêncios, do que propriamente entendido.



THIAGO SOGAYAR BECHARA:paulistano de 1987, Thiago publicou nove livros, desde que estreou aos quinze anos de idade; dentre eles os perfis “Imara Reis: Van Filosofia”(2010) e “Cida Moreira: A Dona das Canções”(2012), da Coleção Aplauso, editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, além da biografia “Luiz Carlos Paraná: O Boêmio do Leite”(2012) e da coletânea de poesias “Literatura de quintal” (Ed. Patuá, 2013). Jornalista de forma&cced il;ão, especializou-se em jornalismo cultural e é mestrando em Estudos de Teatro pela Universidade de Lisboa. Após dedicar-se brevemente à assessoria de imprensa, idealizou, produziu e apresentou o programa “Memória Brasil” de 11/2012 a 05/2013 pela TV Geração Z (UOL). Músico diletante, sua primeira canção “Minhas janelas” estreou no disco “Santa ignorância”, de 2011, na voz do parceiro, o veterano José Domingos. Em Portugal, foi em 2015 que estreou num portal de notícias. Como jornalista, Thiago guarda depoimentos inéditos e entrevistas de personalidades emblemáticas como Dercy Gonçalves, Antonio Candido, Paulo Vanzolini, Inezita Barroso, Chico Buarque, Sábato Magaldi, Chico Anysio, Elba Ramalho - material que vem sendo reunido para futura edição, assim como uma ainda inédita produção poética e dramatúrgica.


6 poemas de Vinicius Mahier

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Ilustração: Gilad Benari


GOLPE

essa é a língua. pior: essa é a linguagem
                                        fabiano calixto


quando a força não se justifica
– e não se justifica
por motivo
de força maior –
a palavra é a casca de noz
da democracia

(as armas pairam sobre nós
mas é de dentro que se ouve o tiro:
não aceitaremos a palavra golpe)





QUANDO CHEGAMOS AOS PORTÕES


quando chegamos aos portões
o trauma já estava encrustado na pele
metamorfoseada.

fomos banidos do vão
entre nossos corpos e aquilo a que chamamos
memória
e que não é senão a máscara
da nossa condição
de eternos cadáveres sobreviventes

sobreviventes
sobreviventes
sobreviventes
sobreviventes

e mesmo assim
cadáveres

                                   "cadáveres adiados que procriam"
                                                               ricardo reis




I WANNA HOLD YOUR HAND


quando olhei para o corpo estirado no chão
olhei primeiro para o poema

foi a carne do poema que eu vi espancada
foi o sangue do poema que eu senti na boca
a nudez do poema que entrevi anônima
i can't hide i can't hide i can't hide!
foi a mão do poema que eu quis segurar

estendi o braço em direção ao corpo
e na mão concentrada eu pus de pé a palavra

depois
foi com o corpo do poema que eu corri
temendo esquecê-lo

oh please, say to me
can the dead subaltern speak?

a) o corpo era preto.
b) o poema é branco

a) o corpo não tinha mais sexo.
b) o poema é hétero

a) o corpo era osso miséria.
b) o poema talvez tenha peso pra ser publicado em alguma revista
literária voltada às minorias (a alguma pelo menos, não importa)
um mês para o e-mail de resposta aceitando ou não publicá-lo
será que o poema resiste tem fôlego dura a comoção estará
assimilada esquecida automática e o corpo

and please, say to me

responda no chute, no soco, à paulada:

b) o poema tá vivo




É PRECISO ODIAR AS MULHERES


é preciso odiar as mulheres
é preciso bem mais que odiar as mulheres
deve-se ver nelas apenas a imitação
no mínimo ridícula de nós, homens desta terra.

é preciso odiar as mulheres
de preferência não nascermos delas
tirar-lhes a única função
       que acumulam no mundo.

é mister é mister é mister
(se eu fosse mulher, isso seria uma rima
não seria uma resolução)

é preciso odiar os homens
é preciso bem mais que odiar os homens
deve-se ver neles apenas o espectro
no mínimo antiquado de nós, mulheres de punho.

é preciso odiar os homens
de preferência não os parirmos
e assim lhes tirar a única
     razão de haver no mundo.

é mister é mister é mister
(se eu fosse um varão, isso seria uma rima
sem ironia
de uma outra pretensão)

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido
como madame satã.



Ilustração: Gilad Benari


SOBREVIVÊNCIA


fuzilaram a trégua contra um muro de corpos.
agora dormimos em pé
                                qual
                                estacas
           cravados na pedra onde nada se firma.

é o medo — de que nos roubem até isso,
a pedra maciça onde nada se firma.

porém a cadeira resiste
                              qual
                            pedra
         cravada na estaca onde nada se deita.

cadeira

não pode narrar. não silencia.




ARQUEOLOGIA


é preciso escavar com os ossos
o corpo onde os ossos estão enterrados.




MISÉRIA


como dizer a palavra agonia
se a palavra agonia é gengiva estragada
na boca sem osso e saliva
da tua fisionomia

como dizer a palavra espera
se a palavra espera é o rim repartido
que eu furto e me implanto
depois de furar a fila

como dizer a palavra frio
se a palavra frio é a quase coberta
que eu puxo de noite, deixando invisível
teu lado da cama

como dizer esta palavra abismo
se a palavra abismo é o pé que te empurra
e instala o meu equilíbrio / à beira
                                            da tua cova

como dizer a palavra miséria
se a palavra miséria é o que eu te tiro da boca
e estreito na minha (debaixo da língua)
e te aumento a miséria

como dizer a palavra insistir
se a palavra insistir são os vãos dos teus dedos
e o punho cerrado desta caligrafia
nunca se abriu pro contato

como dizer a palavra e como dizer
a palavra e como dizer
se no fundo eu já disse, na falta de fundo,
cada palavra, mais de uma vez.





Vinícius Mahier, 22, é graduando em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Publica seus poemas no blog No Passeio Íntimo(nopasseiointimo.blogspot.com). E-mail: viniciusmahier@hotmail.com





5 poemas de Rubenio Marcelo

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Ilustração: Marc Chagall


INFINITO VOO

Era mais uma noite de espetáculo.
E lá no alto – a voar – o trapezista...
Quase cego, lembrando a equilibrista,
Fazia evoluções ante o cenáculo...

Gravidade jamais fora obstáculo
Pra aquele jovem, diligente artista,
Rebento do proscênio ilusionista
E que tinha um amor por sustentáculo.

Mas sua equilibrista, em desencanto,
Numa tarde partiu, contendo o pranto,
Deixando o circo pra não mais voltar...

Ah... Um meneio em falso, e o ás do ar
Mergulhou no infinito, a delirar...
Para, enfim, descansar do seu quebranto.
         


GLOBO DA MORTE

No ziguezaguear estrepitante
de suas colossais motocicletas,
em alta adrenalina, os cinco estetas
vão imortalizando aquele instante...

Num habitáculo esférico, eletrizante,
marchetado de luzes insurretas,
roncam máquinas, em loucas roletas,
aos olhos da plateia vigilante.

Alfim, de súbito, cessam os fragores:
os alazões de ferro e seus senhores
voltam às posições iniciais.

Do globo, abre-se uma portinhola...
Os acrobatas saem da gaiola
e novamente são meros mortais...



CIRCO INDOMÁVEL

Na vetusta jaula, que já foi vitrina
Das obediências de um leão cansado,
Espargiu-se a esmo o licor encarnado
De uma domadora bela e pequenina.

Filha do palhaço com a bailarina,
Desde cedo herdara grande aprendizado:
A feérica arena era o seu chão sagrado,
Ainda que a morte espreitasse a rotina.

... No mundo encantado deste picadeiro,
Segue o espetáculo no mesmo roteiro...
O palhaço autêntico não pode chorar.

E a bailarina, inda que esteja triste,
Tem que simular que aflição não existe,
Pois o show da vida há de continuar... 


Ilustração:  Henri de Toulouse-Lautrec

DANÇARINA

Num certo dia um jovem viu ternura
nos gestos de uma dançarina ousada,
que já nascera herdando esta aventura
num desses circos de lona rasgada.

Nesse afã, na primeira arquibancada,
arrebatado  pela  formosura
daquela dançarina (etérea fada),
o moço não conteve a sua agrura:

Entrou no picadeiro e, com ardor,
pra ela fez mil juras de amor.
Porém o circo estava de partida...

E dando cumprimento à sua sina,
aquela  solitária  bailarina
inda segue dançando pela vida...



GLOBO DA VIDA

o mundO é um glObo...
ou um jogO Online.
nele, estamOs  tOdOs
- ao vivo - em vAiVéNs...

e hoje tem espetáculo?
‒ tem, sim senhor! é preciso girar.
e amanhã?  ‒ o trem já passou...
e depois de amanhã?
‒ não tem mais roda para se brincar.

script e a vida
hão de continuar;
não se pode cessar
de buscar a saída...

o real pode disparar
e rOdar... abrir o jOgO...
ou abrir fogo
                num abrir e fechar
           de OlhOs...

o mundO não vai reparar a espera
e a terra é uma esfera,
o tempo não tem jogo
de cintura.
faz jogo de empurra
em pura aventura
às vezes se esturra
e joga à vera.


o vento do mundo
quer tudo assanhar...
entretanto o show
não pode parar
nem por um segundo.


e o sonho
ah, o sonho há de continuar...

a Sonhar... a Sonhar... a Sonhar!...

RUBENIO MARCELO é poeta escritor, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (Cadeira nº 35). É autor de dez livros publicados e dois CDs, e sua obra mais recente é o livro de poemas ‘Veleiros da Essência’. Destacam-se também em sua produção os livros “Estigmas do Tempo”, “Reticências”, “Graal das Metáforas”, “Horizontes d’Versos”, e “Voo de Polens”. Encontra-se com dois livros inéditos no prelo.  Também revisor, palestrante e advogado, reside em Campo Grande/MS.
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