Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live

6 POEMAS DE JOÃO CAETANO DO NASCIMENTO

$
0
0
David Hockney

CARNAVAL DA EXPIAÇÃO

Do alto de todo o conhecimento
Adquirido através de séculos e séculos
No estudo da movimentação dos ventos
Da rotação dos planetas
E do fluxo e refluxo das águas
Nossos sábios definiram com precisão:
A culpa dos súbitos abalos subterrâneos é das crianças.
Eles transmitiram o diagnóstico
Em detalhado relatório
A ordem, portanto, foi expedida
Matem os culpados
Que escondem o veneno sob a face da inocência.
Só assim poderemos de vez
Estancar a febre desses bárbaros
E mantê-los submissos ao destino
Traçado desde os primórdios
Ainda na aurora da humanidade
Pelas mãos que regem aesfera celeste.

Precisamos deles assim:
Dóceis ao mando
Temerosos do chicote
Resignados ao ferro e fogo
Com que os marcamos
Gerações após gerações
Como nossas  sagradas propriedades.

Agora vamos juntar todos na praça
Promoveremos um gigantesco espetáculo
Inesquecível carnificina
Festa e jubilo pelo sangue derramado.
Vinho barato a escorrer nas calçadas
Cachaça amarga, cerveja choca e comida podre
Distribuídos às fartas
Para toda essa gente.

Soltem fogos de artifício
Enfeitem nossas trevas
Com luzes ameaçadoras
Explodam rojões
Ensurdeçam os cães
E convoquem também os artistas
Joguem-lhes míseros trocados
Para que cantem e dancem
Balancem as bundas
Tragam ainda as putas
Arrastadas pelos cabelos
E as despejem na praça
Para que abram as pernas
Para saciar a horda.
Deem também uma trégua para os afeminados e as fanchonas
Esse é um momento onde tudo pode.
Proclamem em meio à chacina dos miúdos
Um imenso, mas passageiro carnaval.
Após a cerimonia da degola
Empilhem os corpinhos na praça
Preparem mil archotes
Para a noite da grande fogueira redentora.

Digam a todos,
Insistam, proclamem, convençam
- Embriagados e lascivos
Estarão propensos a acreditar em qualquer coisa-
Queo sacrifício dos filhos foi necessário
Para assegurar a vinda da primavera.
Mas onde houver discordâncias ou dúvidas
Não sejam complacentes.

Quando, enfim, o vento noturno
Espalhar o cheiro adocicado das cinzas da infância
Façam com que todos voltem de imediato ao trabalho
Mesmo com os olhos inchados de ressaca
Mesmo com as vestes ainda tingidas de sangue e vinho
Todos devem cumprir a sagrada obrigação
Afinal, a vida continua.

EU E OUTRAS DEFINIÇÕES
Imprecisão na curva do tempo
Desvio
Marca de vida no linho branco
Nódoa
Voz a destoar no velho cântico
Desafino
Revolta cega diante do nada
Demência
Pesca nas profundezas do lago
Garimpo
Avanço do império da barbárie
Agora
Visão da treva que se avizinha
Colapso
Lua que se esconde desta cidade
Exílio
Ilha que acolhe a nós, os sem rumo,
Beco
Quem coleciona causas perdidas
Eu.

GUERRA
Há uma guerra
                       Lá fora
Aqui
Dentro
Há uma guerra
No meu país
Na minha rua
Na minha cara.

Há mortos & feridos
Nas montanhas,
Nas campanhas
Nas entranhas

Há uma guerra
Estranha
E há ordem
De não cessar
Fogo

E essa festa
E essa dança
E esse baile
Trôpego
Tétrico
Da morte
Entre
Corpos

Há uma guerra
Sem testemunhas
Lá fora aqui.

Há uma guerra
Em mim.

LAPIDADOR DE DESASSOSSEGOS
Eu, lapidador de desassossegos,
Construtor impreciso de miragens
Navegante nos mares em degredo
Condenado a errar nessa viagem.

Refém semiliberto das tais métricas
A rimar nas dissonâncias do ritmo
A conjugar o imperfeito dos verbos
E a mancar em versos de pés quebrados.

Nesse circunscrito espaço em branco
Desenho a amplidão de todo voo
Em risco vou buscar a liberdade
Numa febre que beira a agonia.

E o poema nasce da ousadia
De se crer portador de uma mensagem,

PAIXÃO DE VIDA E MORTE
Eu pensei talvez fosse alvorada
Luz cintilante a guiar minha vida
Prenúncio dessa primavera, em versos decantada
Algo maior do que o horizonte cinza dos meus dias.

Acreditei que fosse o brotar de um novo tempo
Língua líquida de rio a correr ao encontro
Dos meus lábios sedentos de palavras vivas

Ou quem sabe talvez fosse brisa travessa
A despentear brincalhona a engomada seriedade
Dos meus então profundos fundamentos juvenis

Eu desejei fosse mais do que a esperança
Algo encantado, limiar do reino do alumbramento,
Na forma de paixão redentora, a revolver o peito iludido

Pensei, ingênuo, que seguia pelo caminho certo
A tatear em meio à tempestade de areia do deserto
Rumo ao inexistente oásis de paz, neste tempo de guerra
Mal sabia que aquele que tanto procura, outro tanto erra.

E assim foi trançado o desacerto de minha sina
Ironias desse amor zombeteiro,profano e vasto
Em que, casto, me perdi a desenhar auroras e imagens distorcidas
E a garimpar no ar sons e símbolos como um mágico primitivo.

Eu achei que fosse tarefa tão fácil
Cair vibrando a lança nessa profissão de fé
A tecer, com fios invisíveis, sonhosnessas trilhas de liberdade

E assim fui escrevendo toda a minha sorte
Refém da livre escolha louca, mas humana e comprometida
De viver entregue a essa paixão de vida, que às vezes se assemelha à morte.


QUÂNTICA QUIMERA
Você
Esse distúrbio em minha
                                                     Métrica
A subversão da ordem
                                                      Poética
Fulcro de rebelião
                                                    Estética
Ah, dolorida paixão
                                                     Patética

Você
Separação de nossas
                                                   Sílabas
Transgressão de todas as
                                                     Rimas
Ferocidade de
                                                    Chacina
Morte lenta, veneno,
                                                    Pílula.

Você
Enigmática face de              
                                                  Esfinge
Angustiante obstrução na
                                                  Laringe
Meu engano
Foco
De guerrilha
Suburbana
Sísifo mito
Cósmica mágica
Esfera
Imprecisa
Aquática ilusão
 Terra

Você
Paz
Rompida
Guerra
Dor
Que não cicatriza
Desterra
Torto passo
De quem só
Erra

Você
Toda
Todas
As feras
Atlântica
Ilha
Perdida
Era.

Você
Quântica
Quimera.



João Caetano do Nascimentocomeçou a escrever muito jovem, na década de 1970. Participou do Movimento Popular de Arte, (MPA), grupo de artistas que surgiu em 1978, no bairro de São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, com a proposta de levar a arte para praças, ruas, favelas e dialogar com os movimentos sociais que explodiam no Brasil naquele período.  Escreveu alguns romances e muitos poemas.  Ficou entre os classificados do Prêmio SESC de Literatura de 2011 com o romance “Náufrago Noturno”, que não chegou a publicar. 

4 poemas de Gaveta de Cedro - Eleazar Venancio Carrias

$
0
0
Ilustração: Marie/deviantART


A confissão de Davi


Amo-te como se me perfurassem os olhos
Amo-te cercado de olhos.

Amo-te entre a escada e o abismo
Amo-te com essa dúvida antiga.

Amo-te com medo e compromisso
Amo-te assim e além disso.




Teoria da presença


Tua presença crava-me na parede
onde fico vergonhosamente exposto
ao teu olhar sem escrúpulo.

Tua presença arrebata-me o senso
e duplica os sentidos mais básicos.

Prenunciado sob o mapa tátil
teu sangue liquida meu sangue
e o ar que teus músculos deslocam
se me perfura os pulmões
deixa-me em total metástase.

Tua presença me xinga e me louva.
Tua presença me salva de mim mesmo.
Tua presença é impiedosa jarretada.




A separação insuspeitável


Eu sei que amanhã
teu sangue estará longe.
Tão longe na iminência de novos prazeres.

Eu sei que de lá
me olharás e me sorrirás
transparecendo a mesma personalidade amiga.

Mas teu afável sangue não será meu.
Não mais meu.

Eu sei que amanhã
teu respirar e aspirar
estará longe. Não mais meu.

Eu sei também
que continuarás
saltitante dentro de meus olhos.

Tuas mãos
(ainda que menos assíduas)
continuarão a viajar em mim.

Mas estarás longe infinitamente.
Longe não mais meu.




Teoria da ausência


A saudade que sinto de você
é uma saudade tão curta e tão concentrada
que não chega a ser saudade.
É uma saudade espremida entre um dia e outro.
É uma saudade encolhida, sufocada
numa geografia mínima,
tão mínima que não pode ser saudade
o tecido suspenso, estendido entre mim e você.

Se fosse saudade
eu até me gabaria de senti-la, porque de você.
Mas não. É antes uma presença residual. Definitiva.
Como dor que me quer abraçar
Como ausência que não se despede.
A saudade que sinto de você não tem razão de ser.
É uma necessidade de sofrer hoje
o que não terei jamais: sua ausência.




Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, no coração da Amazônia. Reside em Tucuruí, no sudeste do Pará. Publicou Quatro Gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008, de onde foram selecionados os poemas aqui publicados. Regras de Fugaé seu segundo volume de poemas e será lançado em breve pela E-Galáxia.


CLAUDIO WILLER

$
0
0
             




  INÉDITO + 7 POEMAS DE CLAUDIO WILLER

                            (seleção do autor)






INÉDITO






DIÁRIO INACABADO


Às vezes nem fui eu o fotógrafo
daquele mundo que se abria em praias ao pôr do sol, oceanos à contraluz,
                                                        naturezas de braços abertos
(eu vi todos os rostos do mar)
(o que me dizia o perfil de árvores diante da água?)
fotografia, obra do acaso – sempre – a verdadeira fotografia
quando o belo é terrível
e as fotos nos atraem
                   por sua tristeza
os registros do que foi – do que fomos? – nunca mais poderei olhá-las sem um nó na garganta ou, se for falar, com a voz embargada
fotos que são notas da solidão, isso sim
o tempo – poderia ser em 1930
                            no país parado no tempo
                   (o tempo sempre é outro, sempre é um outro)
                                               sempre
                                                         é
                                                     assim
e meu vínculo é com a palavra – só
  





A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20

(2015)






MENSAGENS, 1: ENQUANTO RELEIO ALLEN GINSBERG


porque o mundo é mágico
         eu escrevo instalado em um canto tranquilo da cidade
                   onde servem café
e sei-me parceiro das leis secretas que regem o real
                   você enxerga / eu enxergo               à frente / atrás
                            o que foi e o que será
poesia é isto: saber olhar
                            atentamente, distraidamente
e contar
                   tudo o que ninguém precisa saber





POESIA PICTÓRICA, VISUAL: SIMBOLOGIA DA ÁGUA


Quando a praia onde você está é sentida como real unicamente por trazer a lembrança viva dos cheiros, claridade e ruídos da outra praia onde você já esteve, tanto tempo atrás,
quando nada mais resta, a não ser a impressão de que viver foi inútil e de que morrer é algo totalmente idiota,
filtrada por uma sensação do sublime, de estar com os pés no chão.
ou então
quando, ao retornar já madrugada, deu-me a impressão de que se abria um abismo, passagem para outro plano, no encontro das ruas Pernambuco, Rio de Janeiro, Praça Vilaboim, e isso foi igual a perceber que em toda a minha vida nada mais fiz exceto seguir os rastros da minha própria morte.
quando a vida é apenas um pretexto: então, selecionar para publicação o que for mais estranho, anguloso, geométrico, fora de esquadro, que possa ser recitado em um tom de voz bem inocente, de quase surpresa, simulando alguém que mal acredita no que está a dizer





A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO XX


contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente – lavanda
e também sombra de árvore
montanha inteiramente nossa
intimidade sorridente no calor da tarde
Íris, o nome da flor, o seio ao sol

 - quanta coisa que você fez que eu visse

gnose do redemoinho, foi o que soubemos
o acaso nos transportava e podíamos ir a qualquer lugar
(que vontade de grafitar as paredes do quarto)






ESTRANHAS EXPERIÊNCIAS

(2004)

  



POEMAS PARA LER EM VOZ ALTA



4

nossos hábitos delicados e perversos
nossas diversões meio delinquenciais, meio filosóficas
nossos prazeres íntimos e raros
nossas conversas irisadas de memória
gestos aos poucos se entretecendo
na plenitude da nudez familiar
enquanto íamos nos transformando
nos pulsantes personagens crepusculares
de nossas narrativas
rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante
da noite percorrida
para não chegar a lugar algum

durante o dia
éramos simples mortais 




5

Os lençóis brilhavam como se eu tivesse tomado veneno
Herberto Helder


é hora de dizer claramente como são as coisas:
você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo
você se escancara
eu embarco em você
eu me engajo me prendo me agarro navego em você
plano em um jogo de arriscado equilíbrio
atiro-me em seus abismos
singro suavemente sua brisa
enfrento seus maremotos
viajo por sua velocidade
eu me perco no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia, de água do mar e de água doce
–  nós somos o pântano e somos o labirinto
eu me cego em sua brancura
e me alço em sua ondulação
você é o planeta onde pouso
a nuvem em que me envolvo
aura estelar, dissipação de caudas de cometas
leva-me e me conduz
nessa dança desarticulada
para mais longe                       para o alto            para o profundo
arrasta-me
amor oxímoro
amor, palavra de paradoxos





ANOTAÇÕES DE VIAGEM 



1

meio-dia


a Terra respira
formigas transitam por suas nervuras
arabescos de pássaros
pontuam o pausado discurso das nuvens
só existe o espaço
a paisagem lacustre
que agora cobre uma cidade submersa
e sem saber por que vim parar aqui
o que me trouxe a esta fronteira de lugares e sensações
entro n'água
a claridade me leva à deriva
flutuo no amplo
embebido no dia mais que morno
sei-me hóspede de quem tenho sido
(a superfície do lago
se desmancha no movimento dos círculos concêntricos)





2

praia na ilha


é assim que eu gosto: ninguém por perto
só o acolchoado de areia macia
estendido entre as dunas
onde o esforço de andar
transforma os passos em gestos voltados para baixo
na direção do caldeirão
onde se debate a fumegante cordoalha
labirinto de convulsões
vazio atravessado por espasmos
novelo de tentáculos de espuma, de correnteza polar
e as mãos de gelo
que apertam a garganta e deslizam pelo ventre
são as labaredas de mar, ganchos fincados nas costas
para nos arrastar ao fundo
– penetrar nesse abismo
é navegar o dorso da morte, transformar a consciência
em pátio de ventanias -
mas, no entanto
não somos daqui
viemos de muito longe
para descobrir a derradeira praia deserta
no costão oceânico da ilha
cercada por muralhas de vento e claridade
onde cobertores de maresia
são estendidos sobre nossos corpos
mansamente reclinados
sobre a pele dourada do Tempo


Praia Mole, Florianópolis, 1981


______________________________­______________________________


CLAUDIO WILLER (São Paulo, 1940) é poeta, ensaísta e tradutor. Publicações recentes: A verdadeira história do século 20, poesia; Manifestos (1964-2010); Os rebeldes: Geração Beat e místicas da transgressão, ensaio; Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio; Geração Beat, ensaio; Estranhas Experiências,poesia. Traduziu Lautréamont, Ginsberg, Kerouac e Artaud, entre outros. 

Mais em:

Fortuna Crítica:

Para adquirir (em oferta) a obra “Estranhas Experiências”:

_________________________________________________________­___



Então não havia fogo ainda, frio/So there was no fire yet, cold

$
0
0

Então não havia fogo ainda, frio
quem te deu permissão para mudar, assim, de lugar?
por acaso não estavas acostumado à ausência
(dos que te queriam, morto, todavia?
Quando te acercavam cães, vestidos de preto como padres)
e à ventania, empurrando os casebres contra o precipício
e à chuva, desfazendo os olhos em água
e ao desejo, cego, explodindo em miríadas






So there was no fire yet, cold
who allowed you changing, like this, of place?
by chance weren't you accustomed to the absence
(of those which wanted you, dead, however?
when dogs surrounded you, dressed in black like priests)
and to the wind, pushing huts against the cliff
and to the rain, dissolving eyes in water
and to the wish, blind, exploding into myriads

6 poemas de amor de Emily Dickinson: tradução de José Lira

$
0
0




Dentre todas as Almas já criadas –
Uma – foi minha escolha –
Quando Alma e Essência – se esvaírem –
E a Mentira – se for –

Quando o que é – e o que já foi – ao lado –
Intrínseco – ficarem –
E o Drama efêmero do corpo –
Como Areia – escoar –

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem –
E a Neblina – fundir-se –
Eis – entre as lápides de Barro –
O Átomo que eu quis!   


                *

Que o Amor é tudo que existe
É tudo que sei do Amor.
Isto é bastante – o peso deve
Adequar-se ao andor.


                *

Se eu puder evitar que um Coração padeça
Não viverei em vão.
Se eu fizer que na Vida alguém esqueça
A dor ou a Aflição

Ou se ajudar um Pássaro caído
A retornar ao Ninho 
Não viverei em vão. 


              *

Tão plausível se torna
Um Sonho acalentado
Que o Real para mim já é fictícios –
A Ficção – é real –

Que Visão suntuosa –
Que Riqueza – seria –
Tivesse minha Vida sido um Erro
Corrigido – por Ti


             *

Se viesses no Outono eu varreria
O Verão de uma vez –

Como a Dona de Casa faz à Mosca –
Com prazer e desdém.

Se eu pudesse te ver dentro de um ano
Os meses – como lãs –
Guardaria em novelos na Gaveta
Para não misturar.

Mesmo por Séculos te esperaria
Até que nos confins
Da Tasmânia a contá-los os meus dedos
Me viessem cair –

Mas essa imensurável incerteza
Que entre nós se interpôs –
É uma abelha Maligna que me fere
Sem mostrar os ferrões.


               *

Acharemos o Cubo do Arco-Íris
Disso ninguém vai duvidar
Mas o Arco das Ideias de quem ama
Ninguém há de encontrar.



José Lira dedica-se à tradução poética (Emily Dickinson: Alguns Poemas, A Branca Voz da Solidão), além de cultivar o conto (Velhas Histórias do Brazil), e tem ensaios é críticas literárias e estudos de tradução publicados em livros e periódicos especializados. Devem sair em breve as suas traduções derivadas da obra poética de Kobayashi Issa e Matsuo Bashō.





CAMISEIRO - JANDIRA ZANCHI

$
0
0
Ilustração: MarcelCaram


petrolinea essa madrugada petrificada
         colorida e calorosa
remete a um céu de muitas pontas
pagável com vento e verbos vorazes

audaz como capataz camiseiro
curtido dessa noite que não é fronteira
                                                    ou esquecimento
antes porto e pasto de nervosos
e nervantes lumes (chegada)

o barco é vela e veleiro vaga-lume
vestígio da vasta e vagabunda colorida
terra conquistada

alheia em um alambrado de sol e solvente
modificada na lua clara de um outubro vindouro
(uniforme e tolhido por ares artificiais)

mas,amplo e ampliado em moldes de corte e retalhos
fruídos frascos de negras(nostálgicas) nebrascas


quase cetim em suadas margens – marginais -  do cais.


JANDIRA ZANCHI

re/en/canto - Janet Zimmermann

$
0
0




flores de vapor

E quando os corpos se demoram
nas ondas que vão que vêm
o lá fora infindo [cúmplice de fato]
é puro brilho
espremido no quarto.

E as essências fundidas
na matéria do amor
são única primavera
brotando flores de vapor.

O resto é sal e sol
nas deformidades do lençol.




minhas pedrinhas de joão e maria

Telhas d’água cobrem casas
copas, vagas, matas.
Dos poucos vãos que restam,
réstias beijam testas.

E, no palheiro da imensidade,
continuo a procura do pássaro perdido.
Perco-me como já perdi o chão tantas vezes.
Mas ouso adiante ir, porque é busca
de uma vida...

As margaridas silvestres da beira da esteira,
semeei-as para marcar o caminho da volta.
Talvez eu retorne pelo cheiro do ouro vivo,

talvez pelo brilho das estrelas rasteiras.




casa vazia

bem distante da epiderme lanhada
muito além das frestas surradas pelo sal do tempo
um coração antigo volita na futura morada.

raras vezes volta.
voa baixo.
beija-flora.
sorve o sumo.

e cansado
e criança
e perfumado
e saciado
e
novela-se ao sonho
:
levemente sorridente.
fartamente vingado.


a esperança é uma flor amarela no topo de uma montanha

no topo
de uma montanha,

f l o r e s !

amarelas!

elas, sim,
estão acima do mal e do bem
[e bem merecem,
pois que são filhas bem-amadas
do sol maravilha.

ah, quanto sal
inda hei de derramar
para aprender a conjugar o verbo amar do verbo do Amor,
e receber a insígnia de ouro vivo!

por isso vivo revivendo
reacendendo a interna flor
reacendendo a interna flor
reacendendo
a
interna
flor
...

quando eu me for, creia,
ela acender-me-á.

lá,

onde a esperança
é uma flor amarela
no topo de uma montanha.




re/en/canto

passa
passa
rinho

repassa
repassa
rinho

trans
passa
trans
passa
rinho

re
principia
pia
pia
pia



dos galhos que me agasalham

Cercada de lados
por todos os galhos
uma sombra companheira
cerca as beiras do poema
sem nome ou codinome
e o ampara e lhe empresta
novo lindo e leve olhar
e se depara com o meu
me sorri me abraça me beija na testa
me adula e, madura,
sopra meu sonho caçula
com seu passaraio ruidoso
pras bandas do horizonte
manga-rosa-quase-podre
aliviando minha pulsação... ... ...

Cercada de galhos por todos os lados
cerco o cerco da que me cerca de liberdade por eras.
Na verdade a árvore da minha vida e eu somamos solidões.



fragmento

Amanhecia colada na quentura.
Era preciso um esforço descomunal
pra pular da cama e recomeçar a peleja.
Ir ao trabalho pisando na grama dura era moleza.
O pior era voltar da escola, 22 e 40, encarangada de frio.
Nem olhava se alguma estrela caía: cortava caminhos a trote.
A mãe esperava o último ‘fio’ chegar. Pra servir alguma coisa,
pra saber se estava tudo bem, pra aliviar o coração dividido em oito.
Colocava garrafas d’água quente enroladas em lãs nos nossos pés,
mais nos da Ieda que era a mais friorenta.
Eu me aninhava do meio dela e da Nice. Chegava a suar!
Porque a mãe nos cobria com cobertores de doer os ossos.
Costurados por ela, à mão calejada, camada por camada.
A gente morria na quentura do amor.


Ilustrações: Maja Vuckovic



Janet Zimmermann é natural de Catuípe (RS) e mora em Campo Grande (MS) desde 1980; é calígrafa, artesã, poeta e colunista;participou do 1º sarau literário brasileiro pelo Twitter e fez parte dos 61 escritores participantes da primeira mostra interativa de tuítes literários de autores consagrados e novos talentos da literatura contemporânea de língua portuguesa (SESC Santo Amaro/SP); publica em vários  jornais, blogues, portais e revistas;em novembro de 2013 publicou “Asas de JIZ” (Life Editora), seu primeiro livro (com 220 poemas), prefaciado por Rubenio Marcelo;está em “As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira”, projeto de Rubens Jardim, e nas listas dos “Poetas do Rio Grande do Sul” e “Poetas do Mato Grosso do Sul” do portal de Poesia Ibero-Americana Antonio Miranda; em 2015 participou da Antologia Poética “Sobre Lagartas e Borboletas”em prol da ONG Mano Down (livro e e-book);em 1º de novembro de 2016 publicou “Pétalas Secretas” (Editora Patuá - 100 poemas), prefaciado por Raquel Naveira. é filiada à União Brasileira de Escritores de Mato Grosso do Sul – UBE/MS.

THIAGO PONCE DE MORAES

$
0
0




TRÊS POEMAS 

(PORTUGUÊS - INGLÊS)




ANTES DE VER a grande beleza
Dos teus olhos mal abrindo –
Qual infância despertou daquele sonho?
Qual saudade se afogou feito criança?

Qual um sono só errância: chega aos dentes – qual um soco?
Aos mares da memória – qual socorro?
Às raízesdainfânciaqualfissuraareabriraterra
Qual cesura a discernir em sopro o soluço desta estança?

Antes de ver fechas teus olhos
À grande beleza, ao cio das lembranças,
Ao fogo-fátuo do visível, estes fogos de artifício –
Chamas.

BEFORE I SAW the great beauty
Of your eyes barely opening –
What childhood had awoken from dreaming?
What longing was drowned in its infancy?

As wandering in sleep: as a punch – in the teeth?
In the waters of memory – as comfort?
Down to childhood’s roots – as a fissure reopening the ground –
As a caesura sets apart this stanza’s murmured lament?

Before looking your eyes enclose
Such beauty, memory’s desire,
The will-o’-the-wisp of sight, these fireworks –
Your words ignite.



ESTRELAS

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
– ÁLVARO DE CAMPOS

Com a palavra longe te aproximas deste nome,
E de teu nome, arrancado pela Raiz,
Procuras os sais.

Confundes a hora da aurora se alvoreces
E tornas originais os que amanhecem
Na palavra dia.

Abissais tuas sílabas soam a melancolia
Natural da melodia que se oculta
Entre a palavra escuta e a palavra escrita.

Adias os nomes, de vozes te acercas em portos
Infinitos. E na palavra abismo
Cais.


STARS

Always this or always the other or neither this one nor the other.
– ÁLVARO DE CAMPOS

With the far-off word you approach this name,
And in your name, torn out by the Root,
You search for its salts.

You confuse the break of day if you are dawning
And make authentic all who find morning
In the word day.

Your fathomless syllables sound the melancholy
Ingrained in the melody that hides
Between the word listen and the word, written.

You adjourn names, in infinite ports you draw near
To voices. In the word abyss
You fall.



SOBRE A SUPERFÍCIE

Assim principia: esculpes areia, é escuro. Sem rugas darias fisionomia às datas – incólume paisagem no entulho.
De passagem, prestes também ao inefável, emudeces, mudas de figura: Abbild und Nachbild perdes; tudo perdes, é escuro.

Ausência fia restos de sombra, vaga ressonância, vultos: o não-dito, rente ao alcance que então significa, esculpes.


ON THE SURFACE

So it begins: you sculpt sand, it is dark. Without furrows you would give physiognomy to dates – unscathed landscape in the debris.
In passing, and near to the ineffable, you fall silent, change shape: you lose Abbild und Nachbild; you lose everything, it is dark.

Absence weaves the remnants of shadow, vague resonance, silhouettes: the unsaid, near to the reach that now signifies, you sculpt.






Thiago Ponce de Moraes (Rio de Janeiro, 1986)é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006), De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010) e dobres sobre a luz (Lumme Editor, 2016), além dos livros de ensaios Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém: específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Atualmente, termina tese de doutorado em Literatura Comparada sobre a obra de Paul Celan. As peças aqui publicadas fazem parte da plaquete Glory Box, publicada este ano pela Carnaval Press (Londres).



Rob Packeré poeta e tradutor. Nasceu em Londres, cursou Línguas Modernas e Medievais na Universidade de Cambridge e mora no Brasil desde 2011. Seus poemas foram publicados em revistas no Reino Unido e na Irlanda, como Lighthouse, The Moth, Orbis e The Honest Ulsterman. Escreve um blog que inclui traduções e resenhas de poesia contemporânea. As suas traduções de Tróiades, de Guilherme Gontijo Flores, foram publicadas online e as de Thiago Ponce de Moraes na plaquete Glory Box.





MARIANA IANELLI - INÉDITOS

$
0
0







DIÁRIO DE IMAGENS










Horas da alma nua


Essas horas sem refúgio, da alma nua, que somos chamados a viver sozinhos: a hora da concentração antes do salto artístico, a da espera envelopada em avental na sala de anestesia, a hora contra o muro ou de joelhos em frente a uma boca de abismo, a do banco de tribunal enquanto tarda o veredicto, as horas enquanto tardam todos os veredictos.



IANELLI, Mariana – Foto




Novo amor


Meu novo amor ainda não sabe balbuciar palavra. Exige-me tempo, quer meu pensamento. Pode se quebrar num tropeço, é assustadoramente frágil. Impede-me os vícios, disciplina-me à força, esgarça-me. Remaneja todas as minhas prioridades. Ancora em vigilância minhas deambulações mentais. Transmuda-me alma e corpo. Apaixona-me. Não tem piedade.



IANELLI, Mariana – Foto




Lorca


Seu nome aparece em canções de poetas do mundo inteiro. Por ele continuam a se abrir flores de sangue em canteiros onde ainda é amável a lua, um serafim, uma oliveira. Lorca é um nome contra o qual nada pode a fome das valas e dos fuzis. Lorca é um céu sobre as ossadas, uma ideia de resistência apaixonada, um poder de pássaro nas palavras, uma louca fé de algemas rompidas. Lorca é uma vida de mil estrelas de fogo, bandolins, cigarras e veredas, girassóis, laranjas e auroras em olhos de mil novecentos e trinta e seis. Lorca é o uivo de um cão que não sabe nem nunca aprende a morrer.



GARCIA LORCA, Federico – Lemons




Cerimonial do banho


Pierre Bonnard, que circunscrevia em suas telas a nudez da mulher Marthe, que pintava Marthe numa banheira, vista de cima e através da água, Marthe de costas, nua contra a luz, refletida num espelho, Marthe de frente, agachada numa bacia, Pierre Bonnard propositalmente deixou faltando a essas pinturas o rosto do corpo de sua mulher. Como se sempre algo num banho se negasse a ser revelado. Como se sempre algo num banho fosse assunto apenas entre uma alma e a água.





BONNARD, Pierre – Nu a contre jour




Giacometti


Houve uma vez esse artista, cujos retratosjamais terminavam. Faltava ao desenho de umrostoseurostodefinitivo, porisso o artista sempre recomeçava, maisderreadopelopeso da modéstia do que por cansaço, e se martirizava de imprimir na tela o vago rastro de um amadurecimento queapenas seria perfeito se umdia a tela se convertesse num sudário. A interrupção da obra dava ao mestre a guarda do segredo da humildade.



GIACOMETTI, Alberto – Caroline, 1961




Eugène Boudin


Alegria de espetar um guarda-sol na areia e, com olhos azuis, correr o céu. As cores do momento eram o mais importante, a efemeridade do aspecto das nuvens, a luz através delas. Boudin usava materiais diversos, carvão, guache, pastel, aquarela, óleo sobre papel. Aprendia com a natureza a espontaneidade do esboço, a motivação da hora, a luz da aurora, a luz do crepúsculo, coisas que um ateliê não podia dar com o mesmo vigor nem a mesma verdade de um trabalho ao ar livre. Anotava a data, a hora e o vento do instante do seu esboço. Instalava-se entre o poema e a narrativa de um dia.



BOUDIN, Eugène – Ciel strié gris




Onde estão?


Continuam juntos noivo e noiva que posavam para uma fotografia em Ouro Preto, sob o arco de passagem entre duas ruas? E o menino no colo da mãe, que lhe gritava em plena feira de domingo que não deixaria de amá-la nunca? Será que ainda sente assim? Será que ainda diz seu amor à mãe em alto som? E o homem de rosto em pergaminho, com seus olhos sagrados sobre as águas através do janelão do velho bar? Será que ainda conta para os visitantes de Laguna sobre o dia em que uma baleia veio encalhar ali, onde seus olhos ainda vogam? Onde batem hoje esses corações? Ou será que já não batem? Onde estão?





IANELLI, Mariana – Foto




Outubro


Outubro, outubro, quantas coisas em seu azul já se passaram. Um beijo adolescente enlouquecendo o tempo ao pé da escada de um pátio, azul marinho, um piano velho tocado com paixão, uma piscina cheia de velas flutuantes, azul marinho, um filho se desenhando no escuro, o cheiro nauseante de uns lírios, uma notícia de traumatizar o ouvido sempre que soa o telefone, outubro, outubro, azul marinho, o fulminante nascimento de um anjo.



IANELLI, Mariana – Foto




Mosaico de sonhos


Um caminho estreito até um lago imenso com pensamento lento de pântano. Corredores de um hospital abandonado. O verde musgo de um cemitério mínimo, escarpado e úmido. Um templo japonês no alto de uma rocha. O corpo encaixado numa cova. Numa tarde nítida a nítida voz da bisavó. Um labirinto de escadas de madeira velha até um sótão e no sótão um orgasmo. Um passeio à noite na neve, a neve iluminada na noite. Um voo sem asas, só de bater os braços, sobre telhados. Um voo baixo sobre um jardim de esculturas.





IANELLI, Mariana – Foto




Família vende tudo

Um relógio de pêndulo e sua sombra, um piano com candelabros, uma edição autografada da primeira parte de O tempo e o vento, um cristo sem braços, um bandolim, tudo à venda por um pouco de vazio, por um respiro na arquitetura externa, para despistar a guarda dos fantasmas e suas viciadas exigências, para dar espaço à lembrança de outras coisas, outros livros, outros pêndulos, como se abrissem a barriga de uma baleia, sem pensar mais no que trouxe essa baleia à praia, arpão de caçador, corrente do mar, ou só uma tristeza profunda, ou só a velhice, sem pensar mais se essa baleia já desembocou morta ou se foi morrendo aos poucos, querendo voltar, relutando, uma vitrola do tempo das netas ainda meninas, mais uma coleção de discos raros, aldravas de leão dos portões da casa, azulejos portugueses, tudo à venda, zerando indícios de uma agonia lenta, passando uma rasteira no tempo, um quadro de Bonadei, uma gravura de Charoux, uma santa em madeira entalhada, um pássaro branco de mármore, um dente da baleia.



CHAROUX, Lothar - Linhas








Mariana Ianelli, nascida em São Paulo, é autora dos livros de poesia “Trajetória de antes” (1999), “Duas chagas” (2001), “Passagens” (2003), “Fazer silêncio(2005), “Almádena” (2007), “Treva alvorada” (2010) e “O amor e depois(2012), todos pela editora Iluminuras. No ensaio, é autora de “Alberto Pucheu por Mariana Ianelli” (2013), da coleção Ciranda da Poesia, pela editora UERJ. Estreou na crônica com o livro “Breves anotações sobre um tigre(2013),pela editoraardotempo, que também publicou seu mais novo livro de poesia, “Tempo de voltar” (2016).  Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude, menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba) pelo livro “Treva alvorada” e foi três vezes finalista do Jabuti, com os livros “Fazer silêncio”, “Almádena” e “O amor e depois”. Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, França, Hungria, Cuba e Argentina.








Article 2

$
0
0

janela lateral, Roberta Tostes Daniel


determinada a muitas circunstâncias
pesa o grau de violação do corpo
falar em direitos e fundamentos
é romper em parte a casca dos tributos
que tenho prestado a contribuir com a doença social
não me sinto de todo doente
tendo em vista que desvio da norma há anos
há nisso a propagação de uma inocência
e do fim da enfermidade
do centro, imposta
sabendo me reinventar na solidão
desisto das imagens da chuva
recorro amiúde ao horizonte
de onde o salitre procede
sei dos arrastos, da invocação da pesca
tudo continua como se nada houvesse
mudado, mas dos arenques
concebo novas formas novas fomes
a envergadura de minha incerteza
circunstancia outras margens
na planura dos toques
na carnavalha dos olhares
e no consenso possível
a compreensão de um achado –
repousar a cabeça no ventre
repousar o ventre
descansar as formas


5 POEMAS DE CAMILA PASSATUTO

$
0
0

No discurso

Durante os afrouxes de sua voz
Vi rascante tantas almas.

Observei as lábias comerciantes
E os joelhos russos,

Eram amantes que fugiam
Sem notas delicadas 
Em peles vermelhas

Vide as meninas
Mal amadas.

Devoto de tudo que ali
Eu aqui anotava

Pois, depois, quem iria
A mim
Macular a história.

Testa 
Minha
Por tua mão
Rachada.

Vi homens mortos
Sem leitos
Sem pálpebras.

Ruinoso foi
Cada montante
De cada palavra

Hoje acanho meu corpo
Na cadeira nova
Que doaram à poeta

Não leve de mim
Nem traga

A imortalidade 
Eu ouvi
Naquela praça.

Dia comum
De ar seco
Bocas abertas,

De mentes
(Vazias)
Um tanto 
Fechadas. 



Anistia

(Avisem os anjos)

O povo deleita do poder
De facilitar as injúrias
Pecaminosas do poder.

Ensinaram o perdão
da culpa, o juízo.

Deitem na estrada
Pois os caminhões
Irão romper
Seus músculos.

O sorriso fácil
Na sacola plástica
Basta.

Salve seu rei
Limpe sua honra.

E o mundo 
Será uma velha transa,
Um sorriso pouco

(A nossa mentira boa)

Que irá prestar
Para preencher
O vazio dos dentes.



Canção de Guerra

Sou
O que boca
Escapa

Espada
De quem tem medo.

Urro
Murro
Me abafo
Te bato.

Somos
Teu suspiro.
Medo e sacrifício.

Vem.
Nua
Que me cobre
O corpo torto.

Sou teu pertence
Em campos
Aos prantos
Sem balas alojadas.

Foice,
Quem falou
Tomou.

Sou um frio
O que te espera
Na pressa de um assobio bobo.

Calafrios
São teus seios
A tocar meus lábios.

Abram as portas
Fugitivo
Adentra sua família
Deslumbra teus motivos.

Sou
O que do sangue chora
Bom de beber
Ruim de lembrar
Lá 
Na boa aurora.



Querer Mundo

A alma sofre de cimeiro, 
Embora tão baixo fique

Assombra o planar,
Fausto das noites,
Dos olhos em vertigem.

Por tudo mais alto
Tão em cima,
A cruciar meus ares,
Luar em menina.

Cala teus preceitos
Afoba sua senectude 

És ainda
Jovem 
Em pecado.

E a alma pretérita
Assume o corpo novo.

"Minha alma sofre de cimeiro
Cá embaixo desse céu."

Pula que quer estrelas,
Revel que tanto é!



Ode à vergonha (Brazil)

Depois daquela tarde – espiei melhor os olhares -
Alertavam, em si, moedas em louvor.

Depois dos tons (dos tombos);
Muita alma,
Pouco amor.

Permitamos.
Oh, virgens, permitais.
(Sexo Arcanjo)

Adentrou os documentos
Restou um país (calçolas e liras)
Terra sem cais, sem mais...

Leis absurdas
Que devorastes os versos miúdos,
Filhos da ponte: devolvam minha honra de anti-herói.  

E penso
Ao lado
Esquerdo.

E lento
Direito.

Sigo moderno,
Cinza do que foi,
Paramos parâmetros cotidianos.

Choro como risos em ti,
Fácil de esquecer
Aquilo que mata
O bom de nós...
A alegria dos filhos de milênio.

E depois daquela tarde – entendi melhor os alardes –
Destronaram o certo,
Corruptos de tudo
Mancharam nossa boa juventude...

Depois do tom
Cinza
Do que foi o bom de nós.




Camila Passatuto, 28 anos, escritora. Desde 2007 participa de diversas antologias poéticas e revistas culturais com seus poemas e prosas, além de divulgar seus textos em blogs e redes sociais. Em breve lançará seu primeiro livro de prosa poética pela Editora Penalux.












Ímpar - Guido Viaro

$
0
0

Ilustração: Rezo/deviantART




O calor de agosto retarda o relógio “faz um tempo eram três e quinze, agora três e dez”. O zumbido da batedeira abafa o ruído do motor da geladeira, mas um leve contato com o dorso da mão é suficiente para provar que o calor externo continua gerando frio. A massa do bolo esconde vida que suspira através de bolhas, mas que depois de dois instantes volta a ser igual ao mármore da    bancada.        
                                                   
       Susan esvazia os pulmões. Faltam dois minutos para as três e quinze. No alto da testa seus cabelos colados pelo calor desenham uma  franja que não existe.

       “Agora adiciono o açúcar e levo o bolo ao forno. Será que já não deveria tê-lo colocado antes de bater?   
                           
        - Não vai fazer diferença. Abre o armário de condimentos e no instante em que iria derramar o pó branco percebe que aquilo era sal. Suspira aliviada. Localiza o açúcar, antes de despejá-lo percebe o barulho constante do motor da geladeira. Pendurado em sua porta está o calendário de 1963, as sete primeiras folhas foram arrancadas e no mês de agosto os onze primeiros dias estão riscados. No final do mês, há um dia envolvido por um círculo.

       Desvia o rosto até encontrar a janela por onde enxerga alguns prédios de três andares construídos em tijolo a vista e uma ponta prateada do rio Ness. A janela não permite que enxergue o resto da paisagem, os prédios maiores e o centro da cidade de Inverness. 

        Caminha pela cozinha, mas desiste de sair dela. Abre a geladeira buscando enxergar a paz na lâmpada que se acende automaticamente. O ar gelado seca seus suores,junto com eles, apenas por alguns instantes, desaparece seu desconforto:tranquila como um cubo de gelo.

      Os cheiros derretem seu refúgio, mostarda e carne assada misturam-se com salada de tomates. Em qualquer odor oriundo de uma geladeira há duas realidades conflitantes: a vitalidade dos alimentos e um princípio de apodrecimento. 

         O número circulado no calendário é o 28, o que fatalmente lembra-lhe de outro: 48. Abre novamente a geladeira, agora o vapor gelado não tem qualquer efeito sobre seu humor. Os cheiros parecem mais corpulentos, constroem com seus pesos sanguíneos caminhos pegajosos percorridos por animais feridos.

         No próximo mês haverá mais um número para ser lembrado. Dia vinte e oito de agosto completa quarenta e oito anos e alguns dias depois é a vez de celebrar vinte anos de casada com John. O bolo é para ele, já que não tiveram filhos.

       Quatro da tarde, é a partir de agora que a luz que entra pela janela começa a pintar de amarelo os móveis de fórmica. É quando normalmente Susan sai da cozinha e vai assistir televisão e esperar John, que pontualmente as seis e vinte, abre a porta da casa.

         Hoje ela decidiu permanecer na cozinha, lembrou-se do bolo que ainda não havia colocado no forno. Olhando para as manchas de sol arrastando-se pelo chão, percebe que de alguma forma elas a incomodam, mas sente que precisa suportá-las, encará-las até que desapareçam. Elas parecem animais com o ventre perfurado cujos passos tropêgos não possuem qualquer  perspectiva.  

           Espalha grande quantidade de sal pelo bolo e o coloca no forno. Através do vidro opaco assiste ao crescimento da massa. Aos poucos o dourado avança sobre uma tonalidade de branco que descobre muito parecida com a parte interna de seus braços. Mas há nessa transformação, influenciada pela distorção de imagem ocasionada pelas ondas de calor e pelo fundo negro do forno, que parece fazer com que a forma do bolo flutue sobre nada, uma daquelas perguntas sem respostas. Aqueles eventos corriqueiros que demonstram que o mundo é ímpar e que cada uma e todas as coisas nunca poderão ser arranjadas em pares complementares.  

         Em 1928, aos treze anos de idade, quando passeava com seus pais pelo centro de Inverness, por um instante ela olhou para o rio Ness. Durante esse segundo os lábios de sua mãe continuaram se movendo, seu pai olhou para um avião que sobrevoava a cidade, os carros e os pássaros prosseguiram suas rotinas, os prédios de tijolo a vista e o céu permaneceram ocre e azul bordejado por gotas brancas. Mas Susan, ela mesma, deixou de existir, nesse segundo sem fundo ela foi um pequeno peixe prateado que nadava nas águas turvas do Ness. Criatura cega, que enquanto não terminava esse instante, só fazia rumar na direção do fundo.

         Nadava porque isso era inevitável.  A escuridão fez desaparecer o espaço, sua momentânea condição de peixe ressecou qualquer noção de tempo. Impulsionada por uma força que em alguns dicionários poderia ser chamada destino e em outros era palavra ausente escondida entre dois significados, ela nadou até o fundo do rio cravando a cabeça prateada na lama e desaparecendo. Junto com ela sumiram a momentânea consciência de peixe e qualquer memória relativa àquele acontecimento.       
                 
       O termostato indica que o bolo está pronto. A casca dourada rachou-se, sob as rugas da massa encontram-se ainda alguns pontos esbranquiçados. Os calores e as consistências pareciam indicar que havia vida naquele bolo, fato que primeiro constrangeu-a, depois a incentivou a enfiar a faca com mais vontade.

         Os vapores subiram até o teto da cozinha. A luz alaranjada arrastando-se perto dos pés da mesa lembrou-lhe que não está longe a hora de John chegar do trabalho.

        O bolo esfria. O motor da geladeira desliga-se automaticamente. Ela repara em algumas manchas de gordura sobre os azulejos: nuvens estáticas. Um instante de perfeito silêncio. Enxerga o dorso de suas mãos, as veias nunca pareceram tão salientes. Fecha os olhos. Dentro do odor do bolo descobre raspas queimadas. Retira-o da forma e com a ponta de uma faca corta os cantos escurecidos.

        Pela janela avançam os primeiros sinais da noite. O chão da cozinha, varrido de todos os amarelos é engolido por uma penumbra que parece originar-se no motor da geladeira. Susan olha para o calendário no exato instante em que o telefone toca. Depois do terceiro toque ainda está sentada. É quando escuta o barulho da porta da frente sendo aberta. Levanta-se e vai para a sala.          
                                          
        Sobre a mesa, agora escura, jaz um bolo gelado.    



Guido Viaro é um escritor e cineasta brasileiro nascido em Curitiba em 1968. É autor de doze romances, entre eles No zoológico De Berlim, Confissões da Condessa Beatriz de Dia e A mulher que cai, esse último adaptado para o teatro e recebedor de cinco prêmios Gralha Azul. Guido dirige o Museu Guido Viaro, que homenageia o pintor ítalo-brasileiro (seu avô), que foi um dos introdutores da arte moderna no Brasil, e o pioneiro no ensino de arte para crianças no país. Nesse museu acontecem uma série de atividades culturais, peças de teatro, concertos de música, cineclube, além de abrigar o acervo de pinturas e esculturas de Guido Viaro e exposições temporárias de jovens artistas.

3 POEMAS DE NATHAN SOUSA

$
0
0






prataria
(a concavidade milenar das ostras)




pedaços de pão sobre o prato, ou repastos de palavra e língua
quando se lambe o lábio, enfastiando-se de restos.

sobras sobre a louça cálida: seu leite farto,
seculorum, feito mármore ou silêncio de boa fibra.

do outro lado da vidraça, uma abelha circunda
a fruta como se dalí dormisse de bruços
sobre a tela.

e as costas de gala éluard, incólumes, ante a saliva e o
naufrágio do oxigênio – na funda horizontal
                   que dos glóbulos escapa – 

reacendem e acalma-se
na memória, como se a tinta e o desejo
fossem hemisfério e asa.

porque são cegos seus olhos brancos.



agudos





é no espaldar da noite que eu deposito minha asas
entrançadas de viagem e véspera; nas espáduas da pedra
descalça que o pé suaviza e afasta.
regresso a esmo sem que o coração alcance
um cogitar de agudos (este suplício de louça branca,
esta cascata de água fria na penumbra).

um deus-dará rege este vento a que me atenho.
dele, desnudo o que a caliça esconde de sua fome sem hora.

entre nós há silêncio e lástima reprimida
(um tropel de abalos pisoteando o chão do abismo).
não há quimera que me ofusque o desespero.

só o acaso saberá domesticar esta vaga certeza
que me fareja como se a memória e o aço
fossem desejo e língua.
ou sêmen
e pólvora.


rapinas
(dorso escuro, ventre prateado)




vejo uma fêmea entre um feto e uma lata de detritos.
estou também na lástima desta deusa de sepultos.
e enquanto as esfinges conspiram nas esquinas,
voa uma sanha frívola de rapinas, acossando os répteis
das línguas tingidas ao sobejo e ao catchup.

sangra o amor, aquele que arrisca o afago com os dentes.
canta no freio da pressa o estribilho que o ferro grita.

vaza (intacto), o olho cravado na dura pele de piche,
que mina de suas entranhas repastos de esperandança
recheios de sanduíche.


*    *    *


Nathan Sousa (Teresina, 1973). É Tecnólogo em Marketing, escritor, acadêmico, professor, poeta e letrista.  Venceu vários prêmios literários, dentre eles o Prêmio Machado de Assis 2015 (Confraria Brasil-Portugal) e o Prêmio José de Alencar 2015 (UBE). Foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 na categoria poesia e finalista do Prêmio OFF FLIP Bibliomundi de Literatura 2016. É autor dos livros O Percurso das Horas (Edições do Autor, 2012), No Limiar do Absurdo (LiteraCidade, 2013), Sobre a Transcendência do Silêncio (Prêmio LiteraCidade 2013), Um Esboço de Nudez (Penalux, 2014), Mosteiros (Penalux, 2015) e Nenhum Aceno Será Esquecido (Penalux, 2015). É membro da Academia de Letras do Médio Parnaíba.  Dois Olhos Sobre a Louça Branca (Penalux, 2016) é o seu mais novo livro. Tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e italiano.



Dois Poemas de Caio Cardoso Tardelli

$
0
0



No parque sonolento, onde os sonhos se vão
Qual uma delicada vida que se encerra,
O sol adormece como a lenta ilusão
De um amor que se evade pela terra...

Tudo é doçura nas alamedas saudosas…
Parecem perpassar, pela alma das rosas,
Os suspiros de um adeus nunca ouvido...
A sombra de uma esperança sem fim…

O luar, surgindo entre as folhas, sentido
Pela alma como uma alma irmã, sugere
Formas desoladas ao parque sonolento…

Formas de um passado que ainda fere
A pupila ansiosa do azulado jardim…
Formas da alegria de um só momento

Refletido no abraço dos ramos tristonhos
No banco envelhecido, entre o luar marfim,
Onde beijos outrora comungaram sonhos…

--

DESPEDIDAS

Só, incessante, um som de flauta chora…
Camilo Pessanha

Ao eternal som da despedida,
No céu que fulgia a cor dum sonho,
Eram tantas nuances que suponho
Que tudo não se sucedia em vida.

O pranto, o morrente entressonho,
E a rubra ventura desmedida,
Ao eternal som da despedida,
No céu que fulgia a cor dum sonho.

Ó meu coração, luz entardecida
De um entardecer tão tristonho,
Aonde foste, medroso e risonho,
Como numa aguardada partida?

Ao eternal som da despedida,
Pelo céu que fulgia a cor dum sonho...




(Pintura: "Sunset at Etretat", por George Inness)





como uma mão abstrata que dividisse com as minhas - quatro poemas de Giselle Vianna

$
0
0
Taras Kuščynsky-Venuse-1971




exercício espiritual nº 1


ter nas mãos
a vida de uma
cerâmica
o torno-artesão é que molda
mãos
- matéria bruta




flagrante


segurava a manga como um coração quente, passando os dentes por entre as fibras pra escavar a petulante doçura da carne fresca, esse odor misterioso de mênstruo sob as cascas

segurava o coração como manga madura, chupando seu sumo arredio de fruto, afundando o desejo na maciez da polpa até fazer brotar a gota rendida do suco

então mirou suas mãos criminosas e enojou-se do visco natural dos vivos, da textura pegajosa do irreversível, enquanto o líquido escorria por seus braços, formando – nem amareliça nem sanguínea – a espuma alaranjada do escândalo




aborto


antes que profiras o arroto da alma
antes que assimiles o fonema do gozo
antes que apontes os dentes do trauma
antes que esfoles a garganta do léxico
antes que articules a palavra

quisera penetrar-me com as próprias mãos
               para tapar-te a boca




Arranha-céus


Fosse a solidão uma cama nua
violada pelo nada-sopro
de um ventilador de teto
– não arranha-céus à distância
de uma braçada; não,
não chafarizes lado a lado
lançando-se aos ares e recolhendo
sobre si suas gotas. Fosse
o amor um abrir de braços.
Mas eis sobre meu leito a carne
e o osso de teu corpo-memória; eis –
no vão entre tábuas de madeira – o calibre
do tempo
arranhando, exasperado, o assoalho.






Foto: André Gomes de Melo


Giselle Vianna nasceu em Campinas-SP em 1981. Morou 8 anos em Cuiabá-MT e hoje reside em São Paulo-SP. Formada em Direito pela USP, é mestre e doutoranda em Sociologia pela Unicamp.


É autora do livro Interpeles (Ed. Komedi, 2008) e organizadora do livro Tempo de Jabuticabas (2016). Idealizou o Coletivo Ocupecompoesia, que promove ações político-poéticas na cidade de São Paulo. Atualmente trabalha em seu próximo livro de poesia, Pau-rodado, que será lançado em dezembro de 2016 pela Editora Patuá.

ADEMIR ASSUNÇÃO - INÉDITOS

$
0
0

7 POEMAS DA SÉRIE

LIVRO DE RETRATOS







ARTHUR RIMBAUD

sumir aos poucos
estrela decadente

no céu da rússia
no inferno de dante

no deserto da abissínia
ou no sertão do crato

que droga que saco
lento destino triste sina

melhor sumir de vez
sem deixar rastro





  




BASHÔ

algo
tão pequeno

quase
nem notado

(um grilo
esmagado

o salto
de um gato)

menos
que um lago

menos
que um vulcão

em erupção

muito menos
que o olhar

descansado
de um cão




     





BLIND WILLIE JOHNSON

estradas cheias
de pessoas

riscos no asfalto
no ar, nos trilhos

trens lotados
carros, aeroplanos

lenços, lágrimas
acenos de adeus –

quantas histórias
bruscamente interrompidas?

quantos gestos
apenas esboçados?

quantas palavras
dissolvidas

antes
de lançadas ao ar?

quantas músicas
que ninguém ouviu?

sons macios
fogueiras apagadas

a voz rascante
de um negro cego e pobre

soando
no lado de fora

de uma pequena igreja
em beaumont

i want somebody
to tell me

answer
if you can

i want somebody
to tell me

what is
the soul of a man

– onde, em que espelunca,
este alguém?

pouco importa
agora

a noite estrelada
expõe

em sua galeria
de arte

berçários de galáxias
buracos negros

planetas girando
sóis dissolvidos

nebulosas, asteroides
mundos abissais

e todo o movimento reduz
a quase nada

o vai-e-vem
das estradas cheias

e este nada,
querida

é tudo
o que temos





  




CARAVAGGIO

foge caravaggio foge antes
que cortem sua cabeça
antes que queimem seus pecados

e você junto na fogueira da
insanidade foge caravaggio
foge e cuida dessa ferida essa

febre que queima o sono dos
pirados essa febre que faz
arder a lenha das noites insones

— a vida você sempre soube a vida
é muito mais perigosa que a morte

foge caravaggio foge antes
que os cafetões esfolem sua carne
e moam seus ossos pra farinha

e sirvam aos abutres e aos biltres
e aos que rastejam na lama e aos
que fodem as putas como porcos

foge caravaggio foge antes
que te matem antes e não tenha dúvida
a loucura é teu último refúgio








  
CHET BAKER

na bruma do bar
noite alta  

disse o mestre
ao discípulo:

repara

a música
não está

na flauta

a música está
em quem toca

a música
da vida

com dedos
de astronauta





  




ITAMAR ASSUMPÇÃO

chega de conversa mole
no me gustan abobrinhas

não suporto lero-lero
não me sirvam rocambole

me chamam de nego dito
dizem que sou um bandido

mentira, injúria, calúnia
meu nome não é maldito

medito quando me deito
me meço, me viro, me esqueço,

piso no calo e zum me despeço
por linhas tortas rumo infinito

e ao mal entendido de tudo
fica o dito pelo Benedito









MANOEL DE BARROS

por vezes cem vezes
tão pequeno

mais pequeno
que uma taturana

mais pequeno
que um rola-bosta

mais pequeno
que um tatu-bola

mais pequeno
que uma formiga

mais pequeno
que um grão de pó

tão pequeno pequeno
que sequer é visto

tão pequeno pequeno
que se pode guardar

(misteriosamente
vivo)

no dobra do paletó
na gola do vestido









Ademir Assunção (Araraquara/SP, 1961) é poeta e jornalista. Publicou livros de poesia, contos, romance e jornalismo, entre eles A Voz do Ventríloquo (Prêmio Jabuti), Pig Brother, Até Nenhum Lugar (ambos pela Patuá), Adorável Criatura Frankenstein, Zona Branca, A Máquina Peluda, LSD Nô e Faróis no Caos. Gravou os cds de poesia Rebelião na Zona Fantasma e Viralatas de Córdoba, com sua banda Fracasso da Raça, formada por Marcelo Watanabe (guitarra), Caio Góes (contrabaixo) e Caio Dohogne (bateria). Integrou diversas antologias internacionais como New Brazilian & American Poetry (New York), Perfectos Extraños – Seis Poetas de Brasil (Cidade do México), Pindorama: 30 Poetas de Brasil (Buenos Aires) e 90-00 - Cuentos Brasileños Contemporáneos (Lima). Letrista de música, tem parcerias gravadas por Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan, Nei Matogrosso, Patrícia Amaral, Titane, Mona Gadelha e banda Nhocuné Soul. É um dos editores da revista Coyote, junto com os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak. Site: www.zonabranca.com.br.
Foto: Juvenal Pereira.






"Navegar é preciso; viver não é preciso": Um bote salva-vidas no naufrágio entre amigos

$
0
0


por Adriane Garcia


   Foi com grata surpresa que li os contos de Naufrágio entre amigos (ed. Patuá, 2016), de Eduardo Sabino. Não porque imaginava que não fosse um livro bom, mas porque constatei que era ainda melhor. Gosto dos livros que além de bem escritos – E Sabino é ótimo leitor – , emocionam-me, para o riso e para o choro. Gosto ainda mais quando um livro, realmente, faz com que eu saia do lugar, mude-me de cidade, de tempo, de conhecidos. Adicione-se a isso frases memoráveis, deixadas aqui e ali, como quem largasse displicentente um tesouro... ah, então a leitura torna-se um luxo.
   Assim, estive em Nova Lima (MG) com os personagens deste autor e fui, num jogo paulatino, entre as páginas, percebendo um naufrágio, dois, três, tantos. O naufrágio, esse ato universal.
   Sabino, em sua ficção, dá-nos um tanto de memória, mas, escritor ingênuo que não é, entrega-nos ele próprio sua suspeita, a de que a lembrança seleciona, elege, destrói, omite, refaz: "o inusitado é o rei no trono de ferro da memória".
   Na forma, o autor escolhe arejar os contos, dividindo os blocos de parágrafos pela passagem do tempo ou da circunstância, de maneira que a leitura fluida é privilegiada, com muita clareza, sem malabarismos, sem ostentações, sem tentar inventar a roda. É contemporâneo sem negar a tradição, inclusive de grandes ficcionistas mineiros, que reconhecemos, souberam nos dar um mundo, narrando-o com simplicidade. É o contador de histórias que consegue, perfeitamente, oferecer-nos uma arquitetura sem que fiquemos nos lembrando de sua engenharia. Sabino não quer se mostrar, quer comunicar. Uma literatura para encontrar o outro, irmanada na consciência do naufrágio coletivo.
   Do menino que é obrigado a ir à missa “Não existe nada tão ruim para uma criança quanto a obrigação de fazer silêncio na idade do barulho” ao avô amante de literatura “Aprendi com ele que a dúvida é uma condição da alma livre, não um pecado”, Naufrágio entre amigos nos apresenta um Deus que, se existe, vai, por gozo, desfazendo as coisas, recriando-as, como se gostasse da forma impiedosa de contar as nossas histórias, como se fosse divertido que encontrássemos, décadas mais tarde, nosso grande amigo de infância assassinado por homofobia.
   A leitura de Naufrágio é séria, mas encontra clarões de humor todo o tempo, porque os narradores de Sabino sabem que é preciso rir da própria tragédia, que é preciso trocá-la por palavras para que faça algum sentido. Mais, que as grandes tragédias, muitas vezes, são as pequenas: o desvalor que professores nos atribuem na escola, a conversão do músico ao dogma cego, o nosso afastamento voluntário e inexplicável das pessoas que amamos, a solidão da internet, a troca das relações reais pelas relações virtuais, hoje que pensamos que "navegar é preciso" e que "viver não é preciso", o engodo a que somos submetidos e submetemos.
   A maioria dos contos traz personagens adolescentes – crianças e adultos, por vezes – ensaiando a vida, dando os primeiros passos do fracasso para entrar no navio sem volta. O bote salva-vidas: a amizade. Não fosse isso, como no último conto, já teríamos sucumbido em buracos que se abrem na terra, em Nova Lima, em qualquer cidade do mundo.

Ela deu meia volta e ergueu a arma. O boteco silenciou-se e Afonso se transformou. Levantou as mãos e se pôs a tremer. “O que foi que você disse?”. Tia Nice puxou a trava do revólver e seu Jorge soltou um grito atrás do balcão. “Não faz isso, Nice, pelo-amor-de-deus”. Ela começou a alternar os alvos, dançando com o revólver na mão, enquanto eu gritava para irmos embora. Voltou a encarar Afonso. “Você não tem ideia de quantos bostas iguais a você eu já mandei pro outro mundo. Respeito é bom e eu gosto”.Depois mandou Afonso ajoelhar no chão do boteco e me pedir desculpas. “Não precisa, tia”, eu disse. “Precisa sim. Anda.”Afonso se ajoelhou e a obedeceu. A fala gaguejada, o bigode tremendo. Depois eu apertei sua mão, Tia Nice guardou a arma e descemos a rampa do boteco abraçados e com um silêncio profundo às nossas costas.” (do conto Estouros, p. 27)

   Leitura recomendadíssima.


5 micro-contos de Matheus Arcaro

$
0
0
Ilustração: Ade/deviantART



Era a primeira viagem do menino. Pouco depois que o avião começou a planar acima das nuvens, ele sussurrou:
- Papai, acho que Deus nunca vai precisar de guarda-chuva!

***

Ao reler a carta, os olhos emudeceram. Tentou amá-lo, mas estava aprisionada pela liberdade.

***

Não viu jogarem a última pá de terra sobre o pai. Às pressas, precisou levar a esposa à maternidade.

***

Assim que avistou Capitu, Jesus não se conteve:
- A senhora acha que Maria Madalena me traiu?

***


Olhou para a Bíblia no criado-mudo e tentou esconder o gemido derradeiro. Em vão: Ricardo a tocara onde grito algum é capaz de se manter.



Matheus Arcaro nasceu em 1984 em Ribeirão Preto, onde vive atualmente. Graduado em Comunicação Social e também em Filosofia. Pós-graduado em História da Arte. Atua como professor de Filosofia e Sociologia, artista plástico e palestrante. Desde 2006 tem artigos, crônicas, contos e poemas publicados em veículos regionais e nacionais. Seu livro de contos Violeta velha e outras flores, publicado em 2014 pela Patuá, vem recebendo ótima crítica em âmbito nacional. Seu romance O lado imóvel do tempo também saiu pela Patuá em abril de 2016.

e disse a realidade não muda - oito poemas de Hélio Neri

$
0
0
scrennshot de uma rua




Frankenstein-Monstro

"há quem diga, que eu
não sou de nada
que eu não sei de nada
e não peço desculpas"
(Sérgio Sampaio)

transfigurações
da face, deslocamentos
recolocações, ora uma
aparência, ora outra,
torto, esquisito,
sem qualquer formato
padrão - adequado -
pernas, braços
e membros (extensões
atrofiadas)
raciocínio questionável
sonhos restritos
a vida vivida apenas na
antiplenitude da vida
sem sóis, sem
céus maravilhosos
desprovida de ações
memoráveis
sem grandes feitos
realizações
desde sempre
refeito, remendado
recosturado
não é o sonho de ninguém
de nada
"o coração era grande;
vivia quando nasceu"




HOMEM-MÁQUINA

para Donizete Galvão

um sono que pudesse
recuperar todos os
sonos atrasados
um cérebro capaz
de se concentrar em
ene coisas a um só tempo
uma energia capaz de
durar dias meses e anos
um corpo que continuasse
vivo jovem intacto
sem sofrer qualquer
ação do tempo
um coração que pudesse
suportar toda dor
tristeza ódio
e amor do universo
uma razão que pudesse
pôr fim a todos
os conflitos do mundo
um homem capaz
de superar toda
e qualquer máquina




nº. 118


eu sou
uma imagem
aqui
parado neste
ambiente
pessoas vão e vêm,
uma ou outra talvez
olhe para mim,
tal qual eu também,
mais adiante
(não muito), há os
das ruas (possivelmente
moradores), (ou conchas)
refletindo sempre
sobre algo
qualquer coisa
não importa –
nada é tão drástico
que já não se tenha visto
às vezes consterna
porém não muito
pode ser que estejamos
empedernidos (ou
então, apenas eu)
e tudo continua
de uma maneira
ou de outra:
embora nem tudo
faça sentido
eu continuo – também




I04 – Las Vegas / Capuava


o real
é sempre o real
: enfrentar todos
os dias, este sol a pino
- às sete da manhã –
ou as tempestades
que (vez por outra) desabam
estraçalhando tudo
nestas épocas,
as horas sempre suprimidas
e o tempo ultralongo
daqui até lá
e vice-versa
passar por quatro
ou cinco mundos diferentes
- como já disse
o poeta –
deparar, logo cedo, com os sonhos
e anseios de cada um
incrustrados em seus rostos,
o cotidiano e o peso
do mundo, redesenhando
(a cada instante) o semblante,
notar um pouco disso
também em você,
não que irá se sentir resignado
ou mais feliz por isso
ou porque são assim
as coisas –
mas porque é vida




PROPAGANDA


além da fachada
placas cartazes
o entorno
tudo muito bem
cuidado e puído
o que mais se
destacava: expressão
/ famoso prato de pedreiro




...


os carros de churros
os de pamonhas, suas
cantilenas, som estrídulo
e forte ocupando
implacável toda atmosfera
desobedecendo a lei
do tempo (como se
ele ainda não houvesse
passado), que os outros meios:
de comércio, de comunicação
que a rapidez, a eficiência,
ainda não se fizessem tão
necessárias, tão urgentes,
que estes eram como se
ainda não fizessem falta
nem sentido, que nada disso
impedisse a proliferação
de tantos outros,
os dos carros de peixes,
os de pães doces, os caminhões
e suas variedades de frutas,
variedades de queijos, outros
tornando tudo numa
imensa feira itinerante
que a tecnologia, informatização,
conforto dos shoppings,
o absoluto mundo das
modernidades, mordomias
tão imprescindíveis
e sonhadas, ainda não
fossem capazes de alterar
alguns típicos hábitos, que
toda transformação e
evolução do mundo lá fora,
não são ainda suficientes
para evitar que o mundo
aqui dentro continue
o mesmo




PRIMAVERA


não há mudança nas flores
no campo
comportamento
o céu continua assim
não há sombra
água fresca
não importa o que se tem feito
o coração não muda




13.


às vezes imagino
que somos todos Sísifo








Hélio Nerinasceu em Santo André (SP), em 1973, onde reside. Publicou os livros “Anomalia” (2007), “PalavraInsubordinada” (2011), Alpharrabio Edições. “Bandido” (2014), Oitava Rima Editora, “Anestesia” (2016), Editora Córrego. Integra o Sarau na Quebrada desde 2011.

Lentes - Daniel Fonnesu

$
0
0
Ilustração: Evgenija



            Era  a hora em que o sol cansa de ficar parado no céu, e o sopro de seus raios deixa de queimar. O professor Cúrcio Godói observava os círculos na areia do jardim zen do mosteiro – obra matutina de um monge paciente – afastar-se como ondas concêntricas das grandes pedras em basalto, como se estas tivessem sido atiradas num lago opaco pela mão de um moleque invisível, e congeladas num fotograma eterno. A tal obra se opunha constantemente o tempo, apagando por meio de chuva e vento aquelas rugas redondas.

- O Universo nunca envelhece - deixou escapulir em voz alta o matemático, antes de lembrar o jejum de palavras que impusera a si mesmo. Pensou no eterno ato da criação que acontecia, em diversas escalas, em todo recanto do planeta. Lembrou a areia colorida dos mandalas, filhos de um budismo tibetano tão barroco, e tão diferente do minimalismo japonês que permeava o mosteiro. Contudo, apesar do requinte cromático, assim que a figura geométrica era traçada em sua integridade, os próprios monges tibetanos se tornavam vento e chuva, e o pequeno simulacro do universo era varrido para poder renascer. Morria jovem... nascia jovem. Incansável. O que seriam os setenta e cinco anos de Godói, cinquenta dos quais gastos estudando o “problema do caixeiro viajante”, no meio daquele eterno parir? Talvez o amplexo de duas muriçocas, o voo de uma pétala, o nada. Coçou a cabeça: será que morreria sem demonstrar a presença ou a ausência de uma solução polinomial para seu problema? Será que mais ninguém conseguiria? Algo em sua mente respondeu com a prontidão de quem anda depressa na rua e, abordado por outro passante, quer retomar logo seu rumo. A gaveta empoeirada de um neurônio se abriu estalando, e devolveu  o retrato cor sépia de um jovem. Heitor Morana, melhor estudante do curso de matemática de 1966, talento promissor. Ele teria conseguido.

            O toque de gongo flautado de uma tigela de metal, saído da sala de meditação, trouxe-o de volta àquele jardim abstrato, onde as sombras de pedras e árvores se esticavam como elásticos pretos, prestes a quebrar-se, e o vento trazia cheiro de mato. Observou um grupo de jovens de cabeça raspada e trajes escuros entrarem sem pressa no zendo,  onde outros toques delicados convidavam à sessão de meditação que precedia o jantar. Levantou, e em passos lentos e leves dirigiu-se à sala, onde ajoelhou-se, sentando em seus próprios calcanhares. Sentia inveja de quem conseguia sentar no zafu na posição de lótus, subjugando todas as juntas, se dando bem com seu próprio corpo. O vulto do amigo sumido há muitos anos não o abandonou nem ao longo da sessão, nem durante o jantar frugal, consumido silenciosamente numa sala ampla, decorada com simplicidade.

            No quarto, abriu a pequena mala que ficava ao lado da cama, e apanhou um livro de poemas de Dylan Thomas: nele, dois envelopes marcavam as páginas do poema The force that through the green fuse drives the flower. O poeta e o poema que Heitor preferia, ele que nunca perdia uma ocasião sequer para dizer que todo teorema era também um poema, enquanto fruto de um processo criativo, do “fazer”, assim como todo poema era também um teorema, pelo fato de conter uma teoria, certa forma de especulação. Abriu os dois envelopes. Ambas as cartas foram escritas por Heitor, uma na véspera, outra no próprio dia de seu sumiço. Na primeira, cuja escrita apressada e angulosa lembrava um eletrocardiograma, o amigo afirmava ter tomado uma “decisão inevitável, isenta de qualquer egoismo”, por conta da qual pedia desculpas, esperando ser lembrado por ele e por todo o departamento de matemática. Na segunda carta, a mesma grafia tornava-se undívaga, uma maré de pequenas curvas dramáticas sem começo, nem fim. Mais uma vez ao longo de cinco décadas, a frase “o riu me recusou” que abria a missiva feriu os olhos de Godói, e uma gota salgada regou a palavra “youth” no poema pousado em seu colo. Em seguida, o amigo prometia voltar logo, promessa até então nunca cumprida. Desde aquele dia, Morana encontrava-se num plano ortogonal à vida e à morte, numa vidraça em que todo “sim” ou “não” peremptório deslizava, deslizava… Os olhos de Godói, ainda úmidos, fecharam-se como persianas, – muitas outras vezes sua hybris de ser noturno levara-o a tentar ignorar as sereias do sono – e de repente, os olhos da mente se abriram diante de um mandala multicor, como duas flores de lótus. Este parecia em permanente estase, mas depois de alguns instantes, os grãos de areia que formavam-no puseram-se em movimento, como uma multidão em pânico. O caos aparente não durou muito, e lentamente, o retrato do amigo se compôs na sua frente, desta vez não mais em sépia, mas sim em cores que  pareciam ser filhas de Warhol, antes que o formigueiro retomasse sua dança frenética, e um novo mandala tomasse conta do plano fechado. Houve uma explosão cromática final, riachos em todo canto da tela da mente, e logo depois, a imagem de um recém-nascido invadiu a visão.


            O sol da manhã filtrava manso através das paredes de papel translúcido e madeira. A sala do mestre João “Jikan” Ferreira, pequena e sóbria, mas aconchegante, era uma extensão do corpo e da mente de seu ocupante. Sobre a mesa baixa, duas pequenas tigelas porosas, cheias de chá, fumavam pacientemente enquanto aguardavam lábios.

- Deixe eu ver se entendi bem, - disse o monge, - você quer ir à procura de seu amigo desaparecido, seja ele vivo ou reencarnado?
- Isso mesmo, - respondeu Cúrcio Godói, - embora você saiba que não acredito nem um pouco nessa questão da reencarnação, e apesar de eu saber que os budistas zen não ligam muito para o que acontece no além.
- Pois é… isso é mais coisa de tibetano, e por sinal, essa sua ideia poderia dar um remake daquele filme de Bertolucci...

            O olhar de Godói desviou do olhar do mestre, e pousou na parede, onde dez papéis de arroz, cada um com uma gravura e um poema diferente, queriam e não queriam se mostrar aos presentes. Ferreira colocou uma mão no ombro do amigo – seu jeito habitual de pedir desculpas quando ia direto ao assunto, ou seja, sempre – e vendo que Godói não tirava os olhos das gravuras, perguntou:

- São os Dez Touros: você conhece?
- Conheço: é a versão zen do “problema do caixeiro viajante”. Em ambos os casos, a viagem se conclui onde iniciara, e nenhum dos lugares pode ser visitado duas vezes, mas enquanto na procura do touro a ordem das etapas é o que conta, no caso do caixeiro viajante a verdadeira questão é a de se minimizar o trajeto total, seja qual for a ordem com que se alcança cada etapa. 
- Quais seriam as consequências de se descobrir uma solução polinomial para este problema?
- Inúmeros problemas são reconduzíveis ao do caixeiro viajante: se isso acontecesse, o mundo seria um lugar completamente diferente do que costumamos enxergar. Em termos de complexidade, resolver um desses problemas – tarefa que até agora é exponencial –  tomaria o mesmo tempo polinomial do que validar a própria solução do problema.
- Isso quer dizer que o processo de escrita, de criação,demoraria exatamente como o processo de leitura?
- Pelo menos em âmbito de teoria da computação - respondeu Godói, sorrindo.
- Como pretende iniciar sua “jornada do herói”? Onde procurará as “pegadas do touro”? - perguntou Ferreira, apontando para o segundo desenho pendurado na parede.
- Ainda não sei: só sei que para procurar minha vaquinha pitanga preciso voltar onde as coisas começaram e acabaram.
- Que frase bonita de filme!Cúrcio, meu querido, volte para cá assim que puder: ainda tenho esperança de vê-lo ordenado monge algum dia, como o Leonard Cohen, após esse seu noivado interminável com nosso mosteiro... caso contrário vamos cuidar disso em nossas próximas vidas!

            Godói acenou silenciosamente, sorrindo,depois deixou que o chá sumisse em sua garganta como um rio cársico, e levantou da cadeira.

            De volta à cidade onde Morana fora visto pela última vez em 1966, o matemático não quis perder tempo. Saiu do aeroporto o mais rápido que seu corpo cansado lhe permitia, driblando turistas em bermudas e chinelos, e disse ao motorista com olhos de brasa que lhe abria a porta do taxi:

- Rua Dunkelwald, por favor.
- Tome cuidado, doutor: nessa rua tem de tudo já no final da tarde, e no meio deste tudo não tem nada de bom. Há quem nunca volta de lá...
- Houve uma época em que caminhava todo dia naquela rua. De qualquer maneira, agradeço a advertência.
- Disponha.

            A cidade parecia-lhe uma parente longínqua daquela que conhecera décadas antes: uma estranha cujos traços eram-lhe familiares – ao mesmo tempo, porém, dotada de uma beleza nova, mais altiva e vulgar. Foi preciso que o motorista de taxi apontasse para o cartaz da rua, para que Godói entendesse que não havia nenhum erro: ali estava a rua Dunkelwald, mais sombria do que nunca, talvez por conta dos novos prédios mais altos, ou dos novos tempos. Uma multidão de olhares apagados, sentados ou deitados na calçada, jazia como espuma do mar prestes a desmanchar-se. O que lembrava da rua de outrora? O que realmente lembrava de Heitor Morana? Seria cada lembrança a superfície tensa de uma bolha de ar, trazida perto de seus pés pelas ondas só para devolver-lhe um pouco de passado, antes de estourar? Mergulhado em si, mal reparou as garotas que acabara de costear em sua navegação sem rumo, até que uma voz delas vinda se perdeu em seu tímpano sem querer sair:

- Quer fazer um programinha, bonitão? Trepo gostoso...

            Havia algo naquela voz, certa dissonância pensada com primor por um artista, tanto no que dizia respeito ao convite proferido, como em relação ao corpo e ao rosto oferecidos à noite iminente. Voz, corpo, mensagem... recortes colados. Godói não pôde deixar de pensar em Picasso e em suas Demoiselles. Recuou, puxado pelo laço daquela voz altiva. Cativo.


            O apartamento era pequeno, limpo e modesto. A garota apontou para o banheiro sem olhá-lo, enquanto despia-se perto da cama:

- Tem sabão e uma toalha limpa, meu amor: não demore muito, se quiser curtir sua horazinha inteira.

            Não foram nem o desejo, nem a água fria que o fizeram tomar banho tão rápido, mas sim um desconforto que nada tinha a ver com pruridos moralistas: aquele corpo, embora tão lindo e jovem, era um invólucro que ele abraçava e afagava principalmente para reter o mel amargo da voz nele contida. No final, a garota sorriu maliciosamente, e disparou uma afirmação disfarçada de pergunta:

- Fazia tempo que você não transava, não é, querido?

            Godói ficou calado, e estendeu as notas de cinquenta com uma mão, enquanto recebia um cartão de visita com a outra.

- Me ligue quando estiver a fim de trepar outra vez! - disse a garota, piscando o olho e acompanhando-o à porta. Foi então que Godói, parando no meio do caminho, apontou para algo na parede do corredor, enquanto o dedo e o braço inteiro lhe tremiam: um pequeno quadro. Nele, a demonstração inconclusa de um teorema.
           

            Beatriz – assim se chamava a garota – trouxe uma bandeja com duas xícaras de café.
- Vou lhe avisar logo: não há açúcar em casa, e tenho somente meia hora vaga antes de meu próximo programa. O que mais quer saber de mim? Já lhe disse que estudo na faculdade, e o que mais deveria lhe importar está escrito naquele quadro. Ademais, não costumo compartilhar minha vida com meus clientes: é no meio da sequência previsível dos números naturais que se esconde a esquisitice dos números primos. Lido bem só com esses freaks, esses que moram no quadro e no papel. Os do mundo real me assustam.
- Pois então não tenha medo! Tudo em mim é divisível e dividido, do valor da idade aos sentimentos que me trouxeram de volta a esta cidade – respondeu         Godói, ficando calado por alguns instantes, para logo em seguida deglutir e inspirar profundamente, deixando que a pergunta imparável encontrasse seu caminho através do palato e dos dentes:

- Beatriz, você se importaria se a gente se encontrasse para desenvolver seu teorema? Eu continuaria pagando seu cachê – até mais do que isso, se você quisesse. Passei décadas caminhando entre as trilhas fechadas e as árvores daquele labirinto de grafos e fórmulas, e agora chega você com sua ideia atrevida… há décadas não via algo tão brilhante, você me entende?
- Tá bom, eu topo: o dinheiro é seu, você é quem sabe… - respondeu laconicamente a garota, com ar entre o perplexo e o divertido. Passaram o resto do tempo conversando sobre teoria dos grafos e problemas reduzíveis, e combinaram de encontrar-se no outro dia, no mesmo horário.

            Meia hora depois, seguindo a recomendação de Beatriz, Godói alugou um quarto na pequena pousada que ficava no outro lado da rua, e passou a primeira noite na cidade recostado contra a cabeceira da cama, comendo sanduíches e vislumbrando equações no linóleo arranhado do piso. O negrume amargo do café e daquela voz ainda invadia-lhe língua e ouvidos, e deixava-o acordado. As cinco horas da tarde do dia seguinte abriram seu caminho através de uma manhã monótona. Beatriz abriu-lhe a porta: vestia  uma calça folgada, e uma camisa com a escrita “P=NP” que conseguiu arrancar um sorriso caprichado da boca de Godói.

- Vou deixar minha farda para mais tarde - disse a garota, olhando em direção da cadeira onde uma minissaia e uma camiseta transparente descansavam, aguardando a retomada do expediente.
- Geralmente atendo meus clientes aqui, no apartamento: vou à rua somente quando não há programas marcados.

            O matemático pensou naquela luz alva e vermelha de pele, esmalte e batom, no meio da escuridão da rua, na voz d’águas profundas boiando entre o fedor de vômito e urina de um universo hostil, mas as imagens foram logo varridas pelo olhar irônico e clarividente de Beatriz, que,  entregando-lhe papel e caneta enquanto sentava ao seu lado, perguntou-lhe a queima-roupa com tom de deboche:

- Tem certeza de que não vai querer transar?

            A hora se foi em ponta de pé, deixando suas pegadas em inúmeras folhas de fórmulas, em que o contraponto de duas grafias, – parecidas em seus picos e vales, mas ao mesmo tempo tão diferentes entre elas, – produzia agradáveis dissonâncias. Assim se foram, também, outros quinze dias, nos quais Godói falou muito de si, – inclusive de sua jornada à procura do amigo – obtendo em troca olhares incrédulos e admirados por parte de Beatriz. A garota, que dançava sobre uma corda eternamente esticada entre presente e futuro, nunca falava em passado, como quem não olha o fundo de um barranco para não precipitar. Houve um dia, contudo, em que Godói notou pela primeira vez um pequeno livro, espremido timidamente entre os volumes de Cálculo I e Álgebra Linear como um nerd ficaria numa boate. Beatriz estava se arrumando no banheiro,e o matemático apanhou o livro às pressas, sem ler a capa, e abriu-o onde os marcadores de páginas sugeriam, empalidecendo. Eram, estes, a foto de uma mulher com uma criança no colo, sem datas ou escritas, e uma gravura de cordel na qual um homem segurava um boi pelo pescoço.Impresso nas duas páginas, abertas como folhas de bananeira,o poema The force that through the green fuse drives the flower desafiava Godói mais do que qualquer problema matemático.

           
            O último dia chegou, e com ele, a demonstração completa do teorema, preciso e lubrificado como um relógio mecânico, de uma perfeição tão álgida que fazia até duvidar de sua exatidão, e foi justamente Beatriz, não o velho Godói – já vencedor de um Prêmio Abel e de uma Medalha Fields – quem encontrou primeiro a falha. Beatriz que sempre duvidava do que era bonitinho e perfeito demais. A falha, pelo visto, encontrava-se nas hipóteses, sendo que, como dizia o professor de cálculo da jovem, “com hipóteses falsas pode-se demonstrar qualquer coisa”. Foi sempre Beatriz,  brilhante tanto em movimentar-se na selva dos números, como em sobreviver na floresta da vida, quem percebeu o efeito colateral daquela viagem no papel até então decepcionante: a descoberta de uma propriedade invariável, que nenhuma condição inicial falsa invalidaria. Um pequeno detalhe num desenho maior tornava-se a imagem principal, enquanto o que estava ao seu redor ia sendo apagado.

            Godói resolveu ficar mais uns dias na cidade. Pretendia explicar a descoberta feita por Beatriz ao professor Hilbert Davi, luminar da Federal e amigo de velha data, que sabia estar à procura de bolsistas talentosos. Foi num desses dias, logo depois do encontro com Davi, que recebeu uma mensagem da garota: estava querendo sair do apartamento por um tempo, mas não sabia para onde ir. Um cliente desenvolvera uma verdadeira obsessão por ela, ao ponto de querer que não frequentasse mais outros homens, coisa que o levara a vigiá-la e persegui-la em qualquer ponto da cidade. Mesmo após a intervenção de um delegado – por sorte cliente dela – Beatriz não se sentia segura. Antes de surpreender a jovem, a resposta de Godói pegou ele mesmo de surpresa:

- Por que você não vem comigo conhecer o mosteiro, e passa um tempo lá? Nada de proselitismo e redenção… você sabe que eu também detesto essas coisas, que por sinal não fazem parte do budismo.

            No dia seguinte, Godói aguardava nervoso na estação rodoviária, entre as grandes pétalas coloridas dos quiosques dos ambulantes, e as famílias que se juntavam e se despediam como células na lâmina de um microscópio. A ideia de viajar de ônibus, bebendo cada gota da paisagem, fora dela: será que  viria de verdade? A resposta não demorou a chegar: uma voz, doce como o café amargo após um gole d’água, cochichou em seu ouvido com o tom abusado de sempre:

- E aí, meu velhinho gostoso, vamos dar um passeio?

            Mal tinham feito meia hora de viagem que Beatriz já dormia, a cabeça recostada contra a cortina da janela. Sem nada para fazer, Godói abriu o jornal, deparando-se com a foto de um vaqueiro que cavalgava um touro já amansado: era a crônica do rodeio de uma pequena cidade dos arredores.Continuando folhar sem pressa, voltou às primeiras páginas, e viu.Viu, debaixo da manchete “MENDIGO ASSASSINADO NA RUA DUNKELWALD”, um rosto deformado de medo e dor que procurava desesperadamente seus olhos. Ninguém conhecia o nome do falecido, dizia o artigo, mas era tido por ser uma alma gentil, e conhecido pelas demais extravagâncias, entre as quais a de dizer aos moradores da rua que tinha “comprovado o teorema mais importante da teoria da computação”. Godói voltou a observar o rosto a ele ignoto, petrificado para sempre numa máscara sofrida e grotesca de tragédia, o corpo jogado no meio de sacos de lixo e papelão. Fechando os olhos, a rua Dunkelwald de outros tempos sobrepunha-se à nova, no silêncio de uma noite sem estrelas. E um buraco, uma boca enorme, abria-se no meio dela, uma boca cuja fome sem fim fazia-lhe engolir prédios e luzes, e números, músicas, cores... Abriu os olhos, pegou às pressas um saco de papel enfiado no assento em sua frente, e começou vomitar.


            Beatriz acordou, viu, e como sempre costumava acontecer, entendeu. Segurou a cabeça do amigo velho, do novo amigo, e não a largou até os espasmos terminarem. Godói enxugou os olhos, agradeceu e se recompôs. Pensou no trabalho que aquele furacão daria ao mosteiro, e na cara que Ferreira assumiria ao perceber a novidade: será que por alguns instantes perderia sua expressão imperturbável? Soltou uma gargalhada, e sacudiu os ombros quando Beatriz fitou-o com uma expressão interrogativa desenhada em seus olhos jovens e vivazes. Olhos escuros: lentes emprestadas com que Godói conseguia ver o futuro aproximar-se, e o passado afastar-se para sempre.



Daniel Fonnesu nasceu em San Bonifacio (Itália) em 1976, e formou-se em Engenharia na Università degli Studi di Padova. Mudou-se para o Brasil em 2008, e atualmente é aluno do curso de graduação em Letras da UFBA, onde tem participado de oficinas de escrita criativa.
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live