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Ilustração: Evgenija |
Era a hora em que o sol cansa de ficar parado no céu, e o sopro de seus raios deixa de queimar. O professor Cúrcio Godói observava os círculos na areia do jardim zen do mosteiro – obra matutina de um monge paciente – afastar-se como ondas concêntricas das grandes pedras em basalto, como se estas tivessem sido atiradas num lago opaco pela mão de um moleque invisível, e congeladas num fotograma eterno. A tal obra se opunha constantemente o tempo, apagando por meio de chuva e vento aquelas rugas redondas.
- O Universo nunca envelhece - deixou escapulir em voz alta o matemático, antes de lembrar o jejum de palavras que impusera a si mesmo. Pensou no eterno ato da criação que acontecia, em diversas escalas, em todo recanto do planeta. Lembrou a areia colorida dos mandalas, filhos de um budismo tibetano tão barroco, e tão diferente do minimalismo japonês que permeava o mosteiro. Contudo, apesar do requinte cromático, assim que a figura geométrica era traçada em sua integridade, os próprios monges tibetanos se tornavam vento e chuva, e o pequeno simulacro do universo era varrido para poder renascer. Morria jovem... nascia jovem. Incansável. O que seriam os setenta e cinco anos de Godói, cinquenta dos quais gastos estudando o “problema do caixeiro viajante”, no meio daquele eterno parir? Talvez o amplexo de duas muriçocas, o voo de uma pétala, o nada. Coçou a cabeça: será que morreria sem demonstrar a presença ou a ausência de uma solução polinomial para seu problema? Será que mais ninguém conseguiria? Algo em sua mente respondeu com a prontidão de quem anda depressa na rua e, abordado por outro passante, quer retomar logo seu rumo. A gaveta empoeirada de um neurônio se abriu estalando, e devolveu o retrato cor sépia de um jovem. Heitor Morana, melhor estudante do curso de matemática de 1966, talento promissor. Ele teria conseguido.
O toque de gongo flautado de uma tigela de metal, saído da sala de meditação, trouxe-o de volta àquele jardim abstrato, onde as sombras de pedras e árvores se esticavam como elásticos pretos, prestes a quebrar-se, e o vento trazia cheiro de mato. Observou um grupo de jovens de cabeça raspada e trajes escuros entrarem sem pressa no zendo, onde outros toques delicados convidavam à sessão de meditação que precedia o jantar. Levantou, e em passos lentos e leves dirigiu-se à sala, onde ajoelhou-se, sentando em seus próprios calcanhares. Sentia inveja de quem conseguia sentar no zafu na posição de lótus, subjugando todas as juntas, se dando bem com seu próprio corpo. O vulto do amigo sumido há muitos anos não o abandonou nem ao longo da sessão, nem durante o jantar frugal, consumido silenciosamente numa sala ampla, decorada com simplicidade.
No quarto, abriu a pequena mala que ficava ao lado da cama, e apanhou um livro de poemas de Dylan Thomas: nele, dois envelopes marcavam as páginas do poema The force that through the green fuse drives the flower. O poeta e o poema que Heitor preferia, ele que nunca perdia uma ocasião sequer para dizer que todo teorema era também um poema, enquanto fruto de um processo criativo, do “fazer”, assim como todo poema era também um teorema, pelo fato de conter uma teoria, certa forma de especulação. Abriu os dois envelopes. Ambas as cartas foram escritas por Heitor, uma na véspera, outra no próprio dia de seu sumiço. Na primeira, cuja escrita apressada e angulosa lembrava um eletrocardiograma, o amigo afirmava ter tomado uma “decisão inevitável, isenta de qualquer egoismo”, por conta da qual pedia desculpas, esperando ser lembrado por ele e por todo o departamento de matemática. Na segunda carta, a mesma grafia tornava-se undívaga, uma maré de pequenas curvas dramáticas sem começo, nem fim. Mais uma vez ao longo de cinco décadas, a frase “o riu me recusou” que abria a missiva feriu os olhos de Godói, e uma gota salgada regou a palavra “youth” no poema pousado em seu colo. Em seguida, o amigo prometia voltar logo, promessa até então nunca cumprida. Desde aquele dia, Morana encontrava-se num plano ortogonal à vida e à morte, numa vidraça em que todo “sim” ou “não” peremptório deslizava, deslizava… Os olhos de Godói, ainda úmidos, fecharam-se como persianas, – muitas outras vezes sua hybris de ser noturno levara-o a tentar ignorar as sereias do sono – e de repente, os olhos da mente se abriram diante de um mandala multicor, como duas flores de lótus. Este parecia em permanente estase, mas depois de alguns instantes, os grãos de areia que formavam-no puseram-se em movimento, como uma multidão em pânico. O caos aparente não durou muito, e lentamente, o retrato do amigo se compôs na sua frente, desta vez não mais em sépia, mas sim em cores que pareciam ser filhas de Warhol, antes que o formigueiro retomasse sua dança frenética, e um novo mandala tomasse conta do plano fechado. Houve uma explosão cromática final, riachos em todo canto da tela da mente, e logo depois, a imagem de um recém-nascido invadiu a visão.
O sol da manhã filtrava manso através das paredes de papel translúcido e madeira. A sala do mestre João “Jikan” Ferreira, pequena e sóbria, mas aconchegante, era uma extensão do corpo e da mente de seu ocupante. Sobre a mesa baixa, duas pequenas tigelas porosas, cheias de chá, fumavam pacientemente enquanto aguardavam lábios.
- Deixe eu ver se entendi bem, - disse o monge, - você quer ir à procura de seu amigo desaparecido, seja ele vivo ou reencarnado?
- Isso mesmo, - respondeu Cúrcio Godói, - embora você saiba que não acredito nem um pouco nessa questão da reencarnação, e apesar de eu saber que os budistas zen não ligam muito para o que acontece no além.
- Pois é… isso é mais coisa de tibetano, e por sinal, essa sua ideia poderia dar um remake daquele filme de Bertolucci...
O olhar de Godói desviou do olhar do mestre, e pousou na parede, onde dez papéis de arroz, cada um com uma gravura e um poema diferente, queriam e não queriam se mostrar aos presentes. Ferreira colocou uma mão no ombro do amigo – seu jeito habitual de pedir desculpas quando ia direto ao assunto, ou seja, sempre – e vendo que Godói não tirava os olhos das gravuras, perguntou:
- São os Dez Touros: você conhece?
- Conheço: é a versão zen do “problema do caixeiro viajante”. Em ambos os casos, a viagem se conclui onde iniciara, e nenhum dos lugares pode ser visitado duas vezes, mas enquanto na procura do touro a ordem das etapas é o que conta, no caso do caixeiro viajante a verdadeira questão é a de se minimizar o trajeto total, seja qual for a ordem com que se alcança cada etapa.
- Quais seriam as consequências de se descobrir uma solução polinomial para este problema?
- Inúmeros problemas são reconduzíveis ao do caixeiro viajante: se isso acontecesse, o mundo seria um lugar completamente diferente do que costumamos enxergar. Em termos de complexidade, resolver um desses problemas – tarefa que até agora é exponencial – tomaria o mesmo tempo polinomial do que validar a própria solução do problema.
- Isso quer dizer que o processo de escrita, de criação,demoraria exatamente como o processo de leitura?
- Pelo menos em âmbito de teoria da computação - respondeu Godói, sorrindo.
- Como pretende iniciar sua “jornada do herói”? Onde procurará as “pegadas do touro”? - perguntou Ferreira, apontando para o segundo desenho pendurado na parede.
- Ainda não sei: só sei que para procurar minha vaquinha pitanga preciso voltar onde as coisas começaram e acabaram.
- Que frase bonita de filme!Cúrcio, meu querido, volte para cá assim que puder: ainda tenho esperança de vê-lo ordenado monge algum dia, como o Leonard Cohen, após esse seu noivado interminável com nosso mosteiro... caso contrário vamos cuidar disso em nossas próximas vidas!
Godói acenou silenciosamente, sorrindo,depois deixou que o chá sumisse em sua garganta como um rio cársico, e levantou da cadeira.
De volta à cidade onde Morana fora visto pela última vez em 1966, o matemático não quis perder tempo. Saiu do aeroporto o mais rápido que seu corpo cansado lhe permitia, driblando turistas em bermudas e chinelos, e disse ao motorista com olhos de brasa que lhe abria a porta do taxi:
- Rua Dunkelwald, por favor.
- Tome cuidado, doutor: nessa rua tem de tudo já no final da tarde, e no meio deste tudo não tem nada de bom. Há quem nunca volta de lá...
- Houve uma época em que caminhava todo dia naquela rua. De qualquer maneira, agradeço a advertência.
- Disponha.
A cidade parecia-lhe uma parente longínqua daquela que conhecera décadas antes: uma estranha cujos traços eram-lhe familiares – ao mesmo tempo, porém, dotada de uma beleza nova, mais altiva e vulgar. Foi preciso que o motorista de taxi apontasse para o cartaz da rua, para que Godói entendesse que não havia nenhum erro: ali estava a rua Dunkelwald, mais sombria do que nunca, talvez por conta dos novos prédios mais altos, ou dos novos tempos. Uma multidão de olhares apagados, sentados ou deitados na calçada, jazia como espuma do mar prestes a desmanchar-se. O que lembrava da rua de outrora? O que realmente lembrava de Heitor Morana? Seria cada lembrança a superfície tensa de uma bolha de ar, trazida perto de seus pés pelas ondas só para devolver-lhe um pouco de passado, antes de estourar? Mergulhado em si, mal reparou as garotas que acabara de costear em sua navegação sem rumo, até que uma voz delas vinda se perdeu em seu tímpano sem querer sair:
- Quer fazer um programinha, bonitão? Trepo gostoso...
Havia algo naquela voz, certa dissonância pensada com primor por um artista, tanto no que dizia respeito ao convite proferido, como em relação ao corpo e ao rosto oferecidos à noite iminente. Voz, corpo, mensagem... recortes colados. Godói não pôde deixar de pensar em Picasso e em suas Demoiselles. Recuou, puxado pelo laço daquela voz altiva. Cativo.
O apartamento era pequeno, limpo e modesto. A garota apontou para o banheiro sem olhá-lo, enquanto despia-se perto da cama:
- Tem sabão e uma toalha limpa, meu amor: não demore muito, se quiser curtir sua horazinha inteira.
Não foram nem o desejo, nem a água fria que o fizeram tomar banho tão rápido, mas sim um desconforto que nada tinha a ver com pruridos moralistas: aquele corpo, embora tão lindo e jovem, era um invólucro que ele abraçava e afagava principalmente para reter o mel amargo da voz nele contida. No final, a garota sorriu maliciosamente, e disparou uma afirmação disfarçada de pergunta:
- Fazia tempo que você não transava, não é, querido?
Godói ficou calado, e estendeu as notas de cinquenta com uma mão, enquanto recebia um cartão de visita com a outra.
- Me ligue quando estiver a fim de trepar outra vez! - disse a garota, piscando o olho e acompanhando-o à porta. Foi então que Godói, parando no meio do caminho, apontou para algo na parede do corredor, enquanto o dedo e o braço inteiro lhe tremiam: um pequeno quadro. Nele, a demonstração inconclusa de um teorema.
Beatriz – assim se chamava a garota – trouxe uma bandeja com duas xícaras de café.
- Vou lhe avisar logo: não há açúcar em casa, e tenho somente meia hora vaga antes de meu próximo programa. O que mais quer saber de mim? Já lhe disse que estudo na faculdade, e o que mais deveria lhe importar está escrito naquele quadro. Ademais, não costumo compartilhar minha vida com meus clientes: é no meio da sequência previsível dos números naturais que se esconde a esquisitice dos números primos. Lido bem só com esses freaks, esses que moram no quadro e no papel. Os do mundo real me assustam.
- Pois então não tenha medo! Tudo em mim é divisível e dividido, do valor da idade aos sentimentos que me trouxeram de volta a esta cidade – respondeu Godói, ficando calado por alguns instantes, para logo em seguida deglutir e inspirar profundamente, deixando que a pergunta imparável encontrasse seu caminho através do palato e dos dentes:
- Beatriz, você se importaria se a gente se encontrasse para desenvolver seu teorema? Eu continuaria pagando seu cachê – até mais do que isso, se você quisesse. Passei décadas caminhando entre as trilhas fechadas e as árvores daquele labirinto de grafos e fórmulas, e agora chega você com sua ideia atrevida… há décadas não via algo tão brilhante, você me entende?
- Tá bom, eu topo: o dinheiro é seu, você é quem sabe… - respondeu laconicamente a garota, com ar entre o perplexo e o divertido. Passaram o resto do tempo conversando sobre teoria dos grafos e problemas reduzíveis, e combinaram de encontrar-se no outro dia, no mesmo horário.
Meia hora depois, seguindo a recomendação de Beatriz, Godói alugou um quarto na pequena pousada que ficava no outro lado da rua, e passou a primeira noite na cidade recostado contra a cabeceira da cama, comendo sanduíches e vislumbrando equações no linóleo arranhado do piso. O negrume amargo do café e daquela voz ainda invadia-lhe língua e ouvidos, e deixava-o acordado. As cinco horas da tarde do dia seguinte abriram seu caminho através de uma manhã monótona. Beatriz abriu-lhe a porta: vestia uma calça folgada, e uma camisa com a escrita “P=NP” que conseguiu arrancar um sorriso caprichado da boca de Godói.
- Vou deixar minha farda para mais tarde - disse a garota, olhando em direção da cadeira onde uma minissaia e uma camiseta transparente descansavam, aguardando a retomada do expediente.
- Geralmente atendo meus clientes aqui, no apartamento: vou à rua somente quando não há programas marcados.
O matemático pensou naquela luz alva e vermelha de pele, esmalte e batom, no meio da escuridão da rua, na voz d’águas profundas boiando entre o fedor de vômito e urina de um universo hostil, mas as imagens foram logo varridas pelo olhar irônico e clarividente de Beatriz, que, entregando-lhe papel e caneta enquanto sentava ao seu lado, perguntou-lhe a queima-roupa com tom de deboche:
- Tem certeza de que não vai querer transar?
A hora se foi em ponta de pé, deixando suas pegadas em inúmeras folhas de fórmulas, em que o contraponto de duas grafias, – parecidas em seus picos e vales, mas ao mesmo tempo tão diferentes entre elas, – produzia agradáveis dissonâncias. Assim se foram, também, outros quinze dias, nos quais Godói falou muito de si, – inclusive de sua jornada à procura do amigo – obtendo em troca olhares incrédulos e admirados por parte de Beatriz. A garota, que dançava sobre uma corda eternamente esticada entre presente e futuro, nunca falava em passado, como quem não olha o fundo de um barranco para não precipitar. Houve um dia, contudo, em que Godói notou pela primeira vez um pequeno livro, espremido timidamente entre os volumes de Cálculo I e Álgebra Linear como um nerd ficaria numa boate. Beatriz estava se arrumando no banheiro,e o matemático apanhou o livro às pressas, sem ler a capa, e abriu-o onde os marcadores de páginas sugeriam, empalidecendo. Eram, estes, a foto de uma mulher com uma criança no colo, sem datas ou escritas, e uma gravura de cordel na qual um homem segurava um boi pelo pescoço.Impresso nas duas páginas, abertas como folhas de bananeira,o poema The force that through the green fuse drives the flower desafiava Godói mais do que qualquer problema matemático.
O último dia chegou, e com ele, a demonstração completa do teorema, preciso e lubrificado como um relógio mecânico, de uma perfeição tão álgida que fazia até duvidar de sua exatidão, e foi justamente Beatriz, não o velho Godói – já vencedor de um Prêmio Abel e de uma Medalha Fields – quem encontrou primeiro a falha. Beatriz que sempre duvidava do que era bonitinho e perfeito demais. A falha, pelo visto, encontrava-se nas hipóteses, sendo que, como dizia o professor de cálculo da jovem, “com hipóteses falsas pode-se demonstrar qualquer coisa”. Foi sempre Beatriz, brilhante tanto em movimentar-se na selva dos números, como em sobreviver na floresta da vida, quem percebeu o efeito colateral daquela viagem no papel até então decepcionante: a descoberta de uma propriedade invariável, que nenhuma condição inicial falsa invalidaria. Um pequeno detalhe num desenho maior tornava-se a imagem principal, enquanto o que estava ao seu redor ia sendo apagado.
Godói resolveu ficar mais uns dias na cidade. Pretendia explicar a descoberta feita por Beatriz ao professor Hilbert Davi, luminar da Federal e amigo de velha data, que sabia estar à procura de bolsistas talentosos. Foi num desses dias, logo depois do encontro com Davi, que recebeu uma mensagem da garota: estava querendo sair do apartamento por um tempo, mas não sabia para onde ir. Um cliente desenvolvera uma verdadeira obsessão por ela, ao ponto de querer que não frequentasse mais outros homens, coisa que o levara a vigiá-la e persegui-la em qualquer ponto da cidade. Mesmo após a intervenção de um delegado – por sorte cliente dela – Beatriz não se sentia segura. Antes de surpreender a jovem, a resposta de Godói pegou ele mesmo de surpresa:
- Por que você não vem comigo conhecer o mosteiro, e passa um tempo lá? Nada de proselitismo e redenção… você sabe que eu também detesto essas coisas, que por sinal não fazem parte do budismo.
No dia seguinte, Godói aguardava nervoso na estação rodoviária, entre as grandes pétalas coloridas dos quiosques dos ambulantes, e as famílias que se juntavam e se despediam como células na lâmina de um microscópio. A ideia de viajar de ônibus, bebendo cada gota da paisagem, fora dela: será que viria de verdade? A resposta não demorou a chegar: uma voz, doce como o café amargo após um gole d’água, cochichou em seu ouvido com o tom abusado de sempre:
- E aí, meu velhinho gostoso, vamos dar um passeio?
Mal tinham feito meia hora de viagem que Beatriz já dormia, a cabeça recostada contra a cortina da janela. Sem nada para fazer, Godói abriu o jornal, deparando-se com a foto de um vaqueiro que cavalgava um touro já amansado: era a crônica do rodeio de uma pequena cidade dos arredores.Continuando folhar sem pressa, voltou às primeiras páginas, e viu.Viu, debaixo da manchete “MENDIGO ASSASSINADO NA RUA DUNKELWALD”, um rosto deformado de medo e dor que procurava desesperadamente seus olhos. Ninguém conhecia o nome do falecido, dizia o artigo, mas era tido por ser uma alma gentil, e conhecido pelas demais extravagâncias, entre as quais a de dizer aos moradores da rua que tinha “comprovado o teorema mais importante da teoria da computação”. Godói voltou a observar o rosto a ele ignoto, petrificado para sempre numa máscara sofrida e grotesca de tragédia, o corpo jogado no meio de sacos de lixo e papelão. Fechando os olhos, a rua Dunkelwald de outros tempos sobrepunha-se à nova, no silêncio de uma noite sem estrelas. E um buraco, uma boca enorme, abria-se no meio dela, uma boca cuja fome sem fim fazia-lhe engolir prédios e luzes, e números, músicas, cores... Abriu os olhos, pegou às pressas um saco de papel enfiado no assento em sua frente, e começou vomitar.
Beatriz acordou, viu, e como sempre costumava acontecer, entendeu. Segurou a cabeça do amigo velho, do novo amigo, e não a largou até os espasmos terminarem. Godói enxugou os olhos, agradeceu e se recompôs. Pensou no trabalho que aquele furacão daria ao mosteiro, e na cara que Ferreira assumiria ao perceber a novidade: será que por alguns instantes perderia sua expressão imperturbável? Soltou uma gargalhada, e sacudiu os ombros quando Beatriz fitou-o com uma expressão interrogativa desenhada em seus olhos jovens e vivazes. Olhos escuros: lentes emprestadas com que Godói conseguia ver o futuro aproximar-se, e o passado afastar-se para sempre.
Daniel Fonnesu nasceu em San Bonifacio (Itália) em 1976, e formou-se em Engenharia na Università degli Studi di Padova. Mudou-se para o Brasil em 2008, e atualmente é aluno do curso de graduação em Letras da UFBA, onde tem participado de oficinas de escrita criativa.