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6 poemas de Carlos Orfeu

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Ilustração: Evreniz



escrevo mordendo-me
como o cão morde
o próprio rabo

no sexo vascular 
dos verbos na
pele-página

a linguagem
é meu abismo
onde construo

meu retrato anti-
real e aconteço

*

o poema
germina 
na ferida

resina 

de suor 
e sangue

resoluto 

fala num
rigor de faca

encarnado é

gama de pluma
aberta no outro

*

de gesso
a cruel
beleza

híbrida
estrutura
tátil

pelos
olhos 
nas 
pontas
dos
dedos

o  congênito
grito
do 
gesso

atado
no
vazio
vivo
por
um
fio
de
silêncio 




Ilustração: Evreniz
Vincent
mastiga 

tanto o

poente

da me-

lancolia 

que da

flama 

laranja 


brotam 

atemporais 
girassóis 




abre-se o velho
olho da casa

rangendo tempo
nos alicerces

violados pelo vento
gatuno que salta

para dentro do espaço
dissipando

os ossos ante-

passados

*

essa falta que flagela
o sono 

é sede que se sorve

e nos condena 

ao duro desejo
de sofrer o deserto 

e o inatingível 

tato


Carlos Orfeu: Nasceu em Queimados. É devoto das artes, sobretudo, da literatura e  poesia. Publica em blogs pessoais, revistas e blogs literários. O poeta lançará, em breve,o  seu livro Invisíveis Cotidianos pela editora Literacidade.

4 poemas de Fêre Rocha

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Dos ombros

De atravessar o chão
mergulho sem aviso
sabia de cor as linhas
da calçada e
curvatura dos tombos
os ombros de desdém
das gentes olhando a
contratura do espaço
que abrigaria corações
(ou deveria)
de lamber o meio-fio 
decepções 
em desaviso
a cada abraço 
frio e liso
solto, esquivo
foi largando 
a cada esquina
sacolas de expectativas
meses tantos idos
ainda encarava
linhas de calçada
o meio-fio lambia
ainda vinha abraço frio
(as sacolas menores)
o liso, o liso e
os ombros das gentes
(sacolas findam)
esfrega as mãos, de poeira
ali então
nariz no meio do meio-fio
se encanta por passarinha
que sem ombros
não desdenha
e com penas
só abraça
nunca liso, nem frio.





pé de coelho

o coelho está vestido
de preto
remói em dores
o coelho 
corre de náusea
tritura o tijolo
que o pé prendia 
corre da náusea 
o coelho, o preto,
dores no pé
farelos do tijolo
não assopra
porque é coelho
salto em branco
madrugam dentes imensos
sonha
pato, colibri, pavão 
sonha
gato, bem-te-vi, leão 
desponta sol
estranha os dentes
acorda
em preto 
não voa 
não ruge
nem salta 
morde a língua 
dói o pé
não assopra
ainda é só
o coelho






Reboco

Rachaduras em paredes de casas com falta de tinta
Chuva fina que invade as rachaduras molha os pés do cara com sede
Com fome
Confuso
Os pés frios
Meninas que nunca se viram apertam o passo no beco da rua
Meninas têm medo de caras que nunca viram
Juntas apertam o passo
Aperto solidário, no peito
Franzem a testa, cobrem os peitos com cadernos de doze matérias
Ciclovia interrompida por mais uma faixa
Outra reta de acolher carros que correm
Bicicletas param
O cachorro atravessa só
O cachorro querendo comida e um canto na sombra
Hoje quer comida e lambida na sobra
Hoje ele não quer ser adotado por você
Em casas sem paredes insetos invadem frestas e rachaduras
A dengue dá febre
A gripe, a saudade e o desejo dão febre
A vida tem corrente de vento frio
Nem sempre cobrimos as frestas com cimento
A tempo




Qu4tro

quatro anos antes você jurou que era a última vez
beber seria então só em datas especiais
você deixou todas elas especiais, e tomou todas
aos quatro não se sabe bem
de palavras escritas
que pais são humanos
e os humanos nem todos são pais
ou o que te aguarda lá na frente, ao acordar, crescido
não se percebe se é drama ou quando
ou comum ou complicado
aos quatro se supera, se vive apenas
coragem de criança e resistência
inimitáveis
irreproduzíveis
quatro vezes você jurou aos quatorze
não ter mais medo
depois prometeu parar de jurar
você jura?
quatro para às onze e acabaram
os comprimidos
os soluços
os abraços antes de deitar
e você nem jura mais
aproveita, cresce, tropeça
se diverte de quatro ou
na missa às quatro e quinze
chama seus antigos amigos invisíveis
e saem os quatro a cantar na rua, agora mesmo
faltando quatro linhas pro final
saiam cantar na rua!
vocês, os amigos tortos, os velhos, os invisíveis
até os indizíveis, vão! jura?




*  *  * 



Fêre Rocha é natural de Lages, Santa Catarina. Atualmente mora em Florianópolis. Escreve no blogdafere.com.br há oito anos, espaço criado para publicação de seus escritos e divulgação da música brasileira, principalmente a cena autoral. Fêre tem algumas parcerias musicais com músicos de Floripa e Sampa. É colunista na revista digital Itinerário Imprevisto. Publicou o livro Cotidiano Horizonte. Página: facebook.com/BlogdaFere

INÉDITOS & DESPERTOS: MAIS ALGUNS POEMAS DE LOU ALBERGARIA

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Flower Goddes - Hazel Belvo


I. INÉDITOS


O LABIRINTO ORIDES

Ser louca
o bastante para atirar
os próprios gatos
pela janela –

Nunca pensei
ser possível
doer mais que a dor

Nunca pensei
ser tão impossível
amar com amor.




PORCELANA

                              para Adriane Garcia


A poetisa me apavora.
Não pelo machismo
que é estúpido, mas
pelo sublime, o aerado sublime
que é húmus – Dói
a delicadeza das peças:
tenho medo de tocar, tenho medo
que se quebre alguma asa
dessas xícaras
e ela, a poetisa
nunca mais me chame
para o chá



A MENINA EM PELE DE LOBO


O poema é a minha confusão.
Não pertenço a nenhum deus
Nenhum deus me culpa
Dinheiro chocolates açúcar
Os psicotrópicos também não me toleram
Sou imune! a quase
Tudo que faz
Chorar sangrar ou acender vela.

(Depois eu paro de escrever. E amo!)




NESTES DIAS ANIMAIS


Oscilo entre a
poesia e o noticiário político:

As injustiças de Deus
versus
As injustiças dos homens.

Entre um
e nenhuns
A palavra conspira:
– Até tu, amor!...

(pureza não há)




DÁDIVA


Dizer o poema
como quem diz
bom dia
amor
está frio

                               nada

de pompa ou
circunstância: só,
o homem no beco
escuro
como veio
ao mundo: vagina
bisturi, sina, im-
pacto ou luta: a luz

e todo o seu indizível terror.



Resurrection: Healing Love - Hazel Belvo




II. DESPERTOS

do livro Doida Alquimia, Editora Patuá, 2015


PENÉLOPE OFF ROAD 


Deixei cair os brincos
sobre o assoalho
pélvico –

por horas revirei Evas

em busca de algum feminino
regresso, e
o triste
é que nem sequer
aprendi a tecer uma bela colcha

como as da minha avó.




oVário


uma bolsa guarda o tempo
e os hormônios
que deixam mais loucos os sonhos

os filhos que não tive
(não terei)
hoje são poetas
embrulhados na noite:

n’oVário sentido
tentam me fazer esquecer
que há tempos
eu desapareci
num rio vermelho

ou, ainda menina
dentro de um sonho inventado
no fundo de uma bolsa amarela
ou talvez de alguma
outra bolsa mágica.




ANA PEDRA

(mas poderia ter sido só Ana Cristina)


Especulo a sua morte
com o mesmo rigor
do Ourives. Quero apreender
o ouro, o falso
e encontrar dentro o dia-
mante bruto que resiste
a tudo nessa vida: ditadura
tempo, depressões
o não do Armando, e sobretudo
aquela calçada de concreto
na estante
puro açúcar e sangue.




BICHO AO SOL

nem vítima nem vilã,
talvez uma mulher-mosaico
e a extrema visão da abelha:
um cérebro uma vagina
um coração
e o jeans viajante
que um dia teve a coragem
de atravessar espelhos.




A BIOLOGIA DO SEGREDO


Pensam que a semente feminina é imóvel
contida e imutável, - Ah como se enganam os generais!
Na cozinha e nos porões as fêmeas fremem,
alimentam-se de placenta, lambem a lava
- ainda fumegante e esquizofrênica, expelida
do áureo sincretismo, e lambem-se
nos pelos e nas peles, o recôndito das entrâncias
estâncias sobrenaturais do diáfano no corpo
- Ah o corpo!, o corpo modulado
por uma fina e estreita libélula
acaba de engolir uma nave espacial em chamas:
O óvulo não guia; astuciosamente desorienta
aqueles que o temem.






Lou Albergaria (Ponte Nova / MG) , economista e poeta. Nasceu em 27 de julho de 1969. Autora dos livros Pessoas e Esquinas (edição da autora, 2009), O Cogumelo que nasce na bosta da vaca profana (Vidráguas, 2011), e Doida Alquimia (Patuá, 2015). Está sempre nas redes sociais esparrAmando poesia, arte e alguma transgressão. Mora em Belo Horizonte.
Mais poemas em sTRIPalavras: http://loualbergaria.blogspot.com.br

2 poemas de Luana Muniz

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Não consigo digerir o amor. Ele fica entalado na minha laringe, do tamanho do aspirador de pó da minha mãe: desajeitado e espaçoso.
Eu tenho uma vaga memória e você fica estacionando nela.





Eu sou desbocada mesmo. Pasodoble em cima da frescura alheia. Vocês me odeiam, mas minha mãe me ama. Mimada pelos astros, cada dia mais maldita, danada da peste. O barco furado de Caronte. As rusgas, as chacotas, a urtiga trepadeira. Doida de pedra, chumbinho no chá de hibisco, nenhuma temperança pra contar a história. Titular absoluta no evento Desbunde Cósmico. Crente no karma que tarda, mas sabemos não falhar. Namastê, oxalá, Laroiê. 
Não esperem de mim estardantes, pieguices, seicho-no-ie no parque, catatonia de princesa Disney. Eu vim ao mundo é para DEFLORAR os tabus mesmo. Tirar a embalagem lírica que colocaram neles. Não esperem que eu seja a mocinha do tempo, docinha igual saco de jujuba. 
Como mulher vou roçar as vergonhas nas coisas dessa vida sim e morder o caroço. Quem come a polpa tem que ter coragem de chegar no caroço. Todo mundo sabe que o caroço das mulheres é ruidoso.







* * *





Luana Muniz é mineira-come-quieto, nascida em Belo Horizonte, em 1992. É estudante de Letras da UFMG, onde tem uma preferência hiperclitórica e pouco ortodoxa pelos temas eróticos. Escreve uns saltos quânticos (nunca soube o que é um salto quântico, que perigo!) no blog Cronisias e outros poemas avulsos na internet.

Terra à vista - Fernando Paiva

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Ilustração: Carlos Henrique Reinesch



Foi um sonho que o Dimitri teve. Minto, que eu tive.

É uma sensação comum nas viagens interplanetárias com coma induzido sonhar como se fosse outra pessoa.

É uma sensação comum nas viagens intercerebelos sonhar como se estivesse em coma induzido no corpo de outra pessoa em uma viagem interplanetária.

A Universidade Autônoma da Lua é uma obra icônica do modernismo espacial. Seus prédios foram desenhados tendo como inspiração o que eu chamo, ou o Dimitri chama, de futuro do pretérito, aquele design futurista dos anos 1950 da Terra, com traços curvilíneos, vãos espaçosos, gigantescos painéis de vidro em peça única, variações de branco e de cinza. Tudo meio etéreo, meio Brasília, meio Finlândia, meio Niemeyer, meio açucareiro neoconcreto, meio iglu de papel, com detalhes em aço escovado. Os alojamentos são virados para a Terra, a nossa lua azul, sempre à vista, para que não esqueçamos do nosso passado, da nossa origem, do umbigo de todos os umbigos, se é que vocês me entendem.

Porque não é fácil me entender, especialmente, ou espacialmente, depois que completei o pós-doutorado em arte-tecnologia na UAL. Nós, acadêmicos, passamos tanto tempo falando para o próprio umbigo que acabamos por criar dialetos compreensíveis apenas entre nossos pares, quando não apenas por nós mesmos. Línguas umbiguistas, tantas a perder a conta, todas à beira da extinção, por terem apenas um falante vivo, seu criador e único tradutor. Eu sou a minha língua.

Meus experimentos com expressionismo imaginário em exocerebelos geraram muita controvérsia. Houve quem me acusasse de haver gravado ondas cerebrais sob o efeito de psicotrópicos terrestres contrabandeados por algum desses arqueólogos que insistem em voltar para o nosso planeta em busca de qualquer resto de História que tenhamos deixado para trás. Não poderia ser mais caluniosa tal afirmação. O que sinto quando crio é bem próximo do que sinto quando sonho.

Dimitri veio me visitar na universidade um dia. Acho que tinha marcado um show no campus, num desses festivais independentes que alguma agência de viagens espaciais patrocina trazendo cantores de vários planetas para tentar fingir que o universo é tão pequeno e próximo e aconchegante... como se não tivesse sido necessário viajar sei lá quanto tempo e espaço para chegar ali, alguns cantores mais barbados que outros pelo efeito do longo período em coma induzido.

O que eu lembro bem, se lembro bem, é que Dimitri cantou uma composição nova que falava sobre terrismo, palavra da qual nunca gostei. Deveria querer dizer saudade da Terra, mas para mim sempre vem à mente terrorismo, terrível, não sei. Esse sentimento merecia uma palavra mais bonita. Algo que acalentasse os terráqueos depois da diáspora espacial.

A beleza que um dia foi a Terra os nativos espaciais nunca poderão entender, a não ser pelos livros e pelas memórias de terráqueos transportadas por exocerebelos. Mas não é a mesma coisa. A gente sabe que não é. Bobagem, não devia ser tão bonita assim, disse meu filho uma vez, como se fosse um além-terrestre falando. Camilo nasceu na Terra, mas ficou lá apenas dois anos. Na prática, se sentia mais como além-terrestre do que como terráqueo. Não guardava nenhuma lembrança da vida na Terra. Duvido que fosse mais bonita que Saturno, continuou. Não se trata de ser bonita ou não, respondi, mas era feita pra gente. Não há outro lugar assim no universo. Feita pra gente, ele repetiu em tom insolente. Quem diria que ele, meu filho, viraria mais tarde um arqueólogo terrestre? E que viajaria tantas e tantas vezes, idas e voltas, para a Terra, berço de seus pais, digo, eu e Madalena? Não foi por terrismo que escolheu estudar arqueologia. Foi para ficar mais próximo da mãe, ou da história dela, já que não tem tempo de visitá-la naquele planeta distante que Madalena escolheu como lar. Camilo pesquisa movimentos feministas terrestres, ou o que restou deles, a história fossilizada de um tempo em que as mulheres ainda precisavam lutar pela igualdade de gênero, como ainda fazem em planetas que não seguem a legislação universal de direitos dos entes vivos e presumidamente vivos.

Sempre que volta da Terra, meu filho vem me visitar. Como andam as coisas no antigo planeta azul?, eu pergunto. Não dá nem mais para ver o asfalto na Presidente Vargas, acredita? O Cristo Redentor continua de pé? Continua, firme e forte. Mas perdeu a mão direita. Deve ter sido algum raio. O período de tempestade de raios está mais longo, dois, três meses até. Cada vez temos menos janelas para uma descida segura ao longo do ano terrestre, ele comenta.

Suas aterrorizantes descrições do que sobrou deveriam me fazer sentir medo pela sua profissão de arqueólogo terrestre. Qualquer outro pai pediria para que largasse isso, que escolhesse qualquer outro trabalho, mas, ao contrário, eu o alimento de perguntas e mais perguntas com o objetivo de manter vivas as minhas memórias. Nada mais egoísta, reconheço. E faço pior: digo que preferiria viver setenta anos na Terra do que a eternidade no espaço. Nada mais terrista, ele responde. A verdade é que o tempo perdeu o sentido fora da Terra, filho. A vida não combina com a eternidade. A vida combina com a morte?, ele pergunta. Sim, claro que sim. Vida, tempo e morte são inseparáveis. Ou assim era na Terra, enquanto o homem ainda acreditava em Deus. Camilo não deu prosseguimento àquela conversa. Como sempre, não gostava de falar sobre Deus ou a falta dele no espaço. Mudou de assunto: abriu a mochila e me mostrou um saco cheio de cogumelos trazidos da Terra. Vai experimentar um chá comigo hoje?, ele pergunta. Acho incrível que ele passe pela polícia espacial com cogumelos terrestres, mas evito questioná-lo. É um adulto, quase-eterno, enfim, sabe o que faz. Qual o efeito desse?, pergunto. É um alucinógeno. A sensação é parecida com aquela do coma induzido em viagens interplanetárias, sabe? Como um sonho?, eu pergunto. Às vezes você se sente como se fosse outra pessoa, um amigo próximo, um parente, ele diz. Não quero me sentir como ninguém. Queria era ser mais eu mesmo. Queria explorar as profundezas da minha memória, como um arqueólogo de mim mesmo, e lembrar mais detalhes da minha vida terrestre de dois séculos atrás. Queria me lembrar dos dias em que eu e sua mãe estávamos apaixonados e passeávamos abraçados pela orla do Rio de Janeiro. Para a memória há outra espécie de cogumelo terrestre... Posso tentar buscá-lo da próxima vez, ele comenta, enquanto começa a preparar o chá. Não vai querer mesmo? Enquanto ele ferve a água, eu assovio a melodia da música do Dimitri sobre terrismo, sem conseguir me lembrar da letra. Ele serve duas xícaras. Pai, você devia gravar sua experiência em um exocerebelo. Para quê? Para depois lançar um livro-pensamento. Ninguém vai me entender. Camilo ri. Não tem problema, você se traduz. Não será necessário, respondo. Enquanto o tempo passa, tudo faz sentido.


Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016).



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade (7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.

2 poemas de Well Souza

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um cara solúvel

um cara sem nome
                        endereço fixo 
o eu registros algum
                         em cartório
                                coração

nem rosto tenho nesses dias
embora o espelho molhado e acinzentado
                                 tente me propor o contrário

existo na poesia que leio
                              e nas trêmulas linhas 
que me jorram do pulso à parede branca e descascada
            nas pegadas que deixo no concreto
                                                           abstrato

“isso, um anônimo
nada mais que a fumaça que escapa do cigarro que ela pendura entre as unhas negras no parapeito                                                                  e não toma, nem por segundos                                                                                        seu peito e endurece os mamilos

“isso, um solúvel em vento





assopro 

assopro leve espanto
              a passarinha e rezo 
                                para ela não voltar

deixar a gaiola livre
                          libertar-se e libertar-me, também

hoje não é poeticamente correta
a metáfora gaiola e coração
                    mas o meu é
aberta e de grades espaçadas
                sempre com comida e água
                                                                  nem sempre frescas

poderia ela sair para o samba
comprar cigarros numa esquina que jamais chega
e deixar para trás somente algumas penas gastas
                                                                            de outra estação
e um recado para o meu novo amor
‘aproveite o abrigo
                       apego
                    o intenso
                    mas não te demores



* * *






Wellington Souza estudou economia e é editor na Editora Benfazeja. Publicou o livro de poemas O monstro e seus vazios [2015]. Esqueceu como se anda de bicicleta.


4 poemas de Tito Leite

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Imagem Jerry Uelsmann


FLOWER POWER


Argamassas de improbabilidades
são acordadas do sono da imaginação.  
Atração pelas alturas: ascensão no escuro.

O barco levita com as vísceras ao indigesto.
O céu, uma escada de Jacó:
com a minha ignorância,
subo e no esclarecimento, desço.

Surrar o real: o suspiro da mais
genuína indignação.
 
Desvelar o sol – beber o insólito.
Sonhadores são filhos da liberdade.
O sonho é o entusiasmo do absurdo.

Lógica do irreal: o imaginário
verbaliza a tessitura que veste a vida.
A esperança é a beleza dos fatos.

Um corpo sem vida onírica
jamais acordará. O futuro é uma
chave na senda da eternidade.  




SÍSIFO


Carbonizo a fria
flor dos anos
que se nulificam
sem os pássaros
de Minerva.

Em osso e oficio
meu cálice deforma.
Liberdade comprada
a custo de cicuta.

Transe de beleza e Bob Dylan
existe uma náusea
de mosca na boca.

Quando chega o fim da
esfinge que me devasta 
a existência é dormitório:

escapar de seu enigma
é lançar na lixeira
o ocaso que me explica.

Nessa noite quero provar
um maná do ermo.




TEMERIDADES


A leptospirose
floresce
no húmus
da primavera
sacrificada:
       
o absinto das elites
o aleijamento
das massas.

Chikungunyaem câmaras de gás
sem senha para paraísos fiscais.  

Verde déficit, amarelo pálido.

Temer o golpe de um punhal
contaminado pelo óxido
ocre das empreiteiras.



NOITES ENSOLARADAS


Do poema, romperam-se as romãs.
No coro dos granizos,
fugiram as sibilas.

Íamos habitar a abóbada celeste, 
mas a nave não atravessou
a noite do Hades.

Nossa odisseia era para ser maior
que o mar de Homero.




Tito Leite, nasceu em Aurora, Ceará, 1980. Faz parte da comunidade monástica do Mosteiro São Bento de Olinda/PE. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010), atuou como professor da disciplina. Têm outras coletâneas publicadas nas revistas Mallarmargens, Germina e na portuguesa Triplov.





7 poemas de Carmen Picos

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Os testículos e a borboleta.

Aquilo não era sexo, ela o fagocitava com a vagina. 
Pompoarismo e muito bate-boca.
Brigavam nus entre a cama e a parede,
acurralados faziam o amor em pé para redimir um as dores do outro.
Quando lhe penetrava, sua borboleta bem exhibida à mostra,
farfalhava as pequenas asas agradecida ao preenchimento do oco, 
que lhe chegava até a alma.
Pensava que qualquer mulher seria assim faltosa do pólen.
Devoradora, o castrava enquanto lhe lambia os testículos com a língua em ponta,
depois jogava-os para cima e para baixo como se estivese com duas cereijas na boca
 - uma dor quase imperceptível que apenas ela sabia fazer com exatidão -
Em outras circunstâncias o fazía calar sempre cheia de argumentos,
impertinências em disputas desinteressantes.
Ele para ela era jujuba mastigável, macia para não engasgar.
Ela para ele um mandacarú em flor carregado de espinhos, 
resistente a uma secura que ela julgava ser do parceiro, 
visto que a reconhecía como masculina.
 A secura era toda súa.




Pólen in love ou poliamor.

Para a inveja da trepadeira
Chegou um pé de valsa
E rosa menina virou Maria
Dessas que vão com as outras
- As semvergonha -
Pro "baile" todo o dia.




Obscena 1.

Se você soubesse,
se te convencesse,
se te comesse,
pagava até pernoite.
.
.
.
Se meu dinheiro te comprasse,
seu puto barato
Você saberia o que são estas reticências.







 Obscena 2.

Tá pensando o quê?
Mulher fácil, sou.

Mas de óbvio
.
.
só tenho minha passarinha morena.








Obscena 3.

Enamoramento agudo,
cama de casal,
não passas de uma estátua
pelado num pedestal.
.
.

Tanto faz se de pica dura ou mole.




A histérica clássica.

Ele me come e depois faz da minha cama uma geleira,
me larga de bruços à deriva por um mar de vodka fría comprada na promoção:
"leve duas e embriague uma mulher".
Filho da puta.

Voluntariosa fiquei postrada de quarentena,
porque tu não vieste me colocar de quatro.
Mando en ti, 
Um velho mastim sem pedigree que se deixa montar quando o ordeno.

Te estimo, deixo parecer que sim.
Grito deito agora e te chupo até me afogar com teu suor e sêmen.
Vai me foder quando te mandar,
e parar só se eu quiser.

Tive febre, sabia?
Ardia mais que a ponta do cigarro,
retirei a maquiagem caprichada com o meu lençol de 500 fios,
culpa sua, foi falta de curra.

Tenho doença crônica, me deixa em carne viva,
fiz o tratamento de água fria na virilha recém depilada,
e usei vibradores de todas as cores.
Foi em vão.

Rodelas de cebola nos olhos, chumaços de algodão no nariz, 
pálida cadavérica no meu necrotério particular.
Tudo não passa de chantagem emocional.
Ainda hoje vou te chamar para me ver morta chorar.





A inconsolável Consuelo.

E assim a vida passava para Consuelo,
Vão-se as curras, ficam as rugas.










Imagens: Pinterest; figura 4: Katarzina Widmaska.



Nascí uma Carmen qualquer, imigrei marinheira q sou e aprendí a falar português. Psicóloga de língua e alma bipartida, quebro a cabeça em castelos de areia devidamente traduzidos e mal pagos. Meus pais me gratificaram com um prêmio jabuti de verdade q perdí no meu retorno ao meu país de origem, onde moro atualmente. Escrevo no facebook, colaborei com a Revista virtual Germina arte e literatura, Revista Pausa e agora com gozo na Mallarmargens.

Nunca Aperte o Gatilho

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Minguelanjo, loco de Amor loko por Dora, padece uma fobia que o desloca do que seria um amante perfeito: a espelhe, não tem poder para seduzi-la- “não se esqueça, leitor, que a sedução é o oposto da verdade e do amor, e que o sedutor  é um patético clown”. Evita  sexo por medo de que ela descubra suas mentiras de menino órfão. Descobriu que Dora, sua única mulher formal, é uma striper famosa na Rússia. É um freak, um ilusório, carrega uma GLOCK na mão direita, e isso ficou impresso no quase cadáver da moça agora que ele, ya  loco de amor loco- “o desejo físico não pode sublimar-se”, decidiu  uma ação extrema; não suporta a tal em desnudez explícita. Mediante extorsão, consegue“uma operação fabulosa”, faz com que zombies lhe arranquem miolos do cerebelo. Logo, uma cirurgia sanguessedenta. 





Dora sempre louca e de parabéns. Teve um surto pscigótico supostamente infeliz devido a ingestão de bebidas adulteradas.  Voltou, Dora, a sua cidade natal sem grandes dúvidas. Afinal, há muito tinha descoberto sua lokura, medicada no melhor estilo; entre tarja preta, doses de wine winner e sexo angelicado, se dizia curada: i'm fine. Tudo bem já que sua boceta permanece fresca e aberta, como quem espera. Sabe se maquiar. “In the other hand, ellos son inofensivos, graciosos, golpean por gusto y porque están solos, nunca te lastimarán para siempre, apenas algunos moretones, pequeños cortes que te embellecen, huellas que desaparecen en menos de una semana y vos sabés disimular muy bien con make up.”





 hay la locución que el escritor de Dora, nacido en Buenos profirió: locura es literalidad, al pie de la letra: sin metáfora, ella luego después del goce  recuperará  la soberanía de ese cuerpo femenino, sin considerar  el amor sexual. Fugirá do Ocidente para visitar o Japão,onde todos – não só Dora- são fetichistas – Dora escreve numa pedra com unhas rojas, assim prolifera a queda inevitável e uma ave fabulosa voa sobre a escritora desnudada;  sempre buscou ser outra diferente dos seus heróis, lembra-se  de que a escritura rouba da mão que a anota. Escreve que ao sonhar habita bordéis; que nasceu em uma casa de putas onde só  há mujeres; onde os hombres son paisagens, lê livros que só reflem o brasil, e sua economia e arte inesperadas. 




Também pensa coisas claras: dívidas (agonizantes); viagens a pagar faturadas em um cartão de crédito que não a pertence, outras dívidas (crônicas, menos agonizantes) e durante o instante em que escreve, dentro de um apartamento com cheiro de cigarro, bairro de San Telmo, resolve abandonar uma cachorra velha  e caprichosa a quem dentro de meses lhe extirparão do útero um câncer do tamanho de um punho: -“ahá a veces fist-fucking en el hogar-burdel de las chicas; todo es más previsible que el falo, amigos”. Y cierra la puerta, caminha pela plaza del mayo com vestes luxuosas que também não a pertencem. Nota mental de uma mente decaída: Também agora, leitores, o assunto referido exige um Sherlock e seu Watson enamorado, e todo um caballo que ande solto por las pampas, ou pelas ruas de Belleville e do Gótico.



* trecho extraído da novela: Nunca Aperte o Gatilho (Juliana Frank)
* fotos:  Insua



* * * 



Juliana Frank é colunista da Playboy, pole dancer, roteirista e escritora  Mais aqui: www.julianafrank.com

desglutição e outras línguas - dois poemas de Ricardo Escudeiro

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Imagem: screenshot de "Estamira", dir. Marcos Prado, 2005







desglutição

“escribo
para traducirme.”
(In: Chacharitas & gambuzinos, de Ellen Maria)

que é que é isso
ora em crescendo ora em diminuendo entre a abóbada
palatina e o tapete vermelho
que é que é
isso que nos instantes que nomeiam
alegria
por ela devemos servir
mas é de bom grado no tempo que dominam
as nomenclaturas de tristeza
perguntarmos antes de encher o pote

oh bom senhor
quanto disto deseja

não sei
qual o gosto disso

uma mesma via
de lamber o gosto
de dizer o gosto
materna ou segunda ou

pode ser
carne ou não

mas e lacuna vazia

pode ser também até bifurcada tem
ou uma insônia
tipo um dormir ao contrário
e tem quem fala dormindo

ou traduções

a hora errada no seu relógio de pulso
é a certa de outro braço
em outro lugar de mundo ou pedaço de
adiantamento ou atraso é uma outra
que inventamos para dizer

mapa

me encontra na latitude tal
longitude essa
coordenada é uma outra que inventamos
para dizer

casa

as linhas que seguram e as que traçam
palavra
não são a dita ela mesma
mas dizer isso é já uma outra
falar

que dó

em áfrica ou qualquer outra embaixada
não trava paz entre as minas terrestres
e as pernas amputadas
diplomacia é uma outra que inventamos
para dizer

deserto

fazer o bem sem olhar a quem
mas com data local plateia e parafernália
abutres alimentando pombos
cobrar os créditos é uma outra que inventamos
para dizer

caridade

que pode ou não ser sazonal
que pode ou não ser teoria do benefício

uma lista de expressões estereotipadas
tem a
maior que a boca
mas é uma
ferina
deu com a
nos dentes
é uma outra que inventamos
para dizer

dicotomia
e ou parâmetro do humano
não saber guardar
segredo que todo mundo já sabe

a bola é minha joga quem eu quiser

é uma outra que inventamos
para dizer

lirismo

na foto de nove soterrados contar dez
no texto pensar

será que erramos aqui

é uma outra que inventamos
para dizer

empatia

encostar sem tocar na caixa
perceber a acústica torácica e seu altifalante
indefinidas polegadas
é mais outra que inventamos
para dizer

auscultar

interface de descoisar
aquilo que vai aí e cá dentro
que é que é isso
langue parole ou burburinho

uma língua

é uma língua e
outra coisa é outra cousa



  

estamira por ela mesma



um

quem é deus
que é deus
que deus
eu sou
deus ninguém é
deus
no meio dessa confusão toda
com jesus
não tenho nada
contra o homem
que nasceu

dois

você viu o toró ontem
você sabe o que que é um toró
era eu discutindo
com meu pai
astral

três

olhar o coqueiro
e saber
isso é que é o real
isso é que é o poder

quatro

estamira tá longe estamira
tá em todo lugar
eu podia ser filha
ser irmã
até esposar espaço

podia ser verso humanitário
mas não
na mão de homem
aterro sanitário






Foto: Pierre Nunes
Ricardo Escudeiro nasceu em Santo André-SP, em 1984, onde vive. É autor dos livros de poemas “rachar átomos e depois” (Editora Patuá, 2016) e “tempo espaço re tratos” (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, desenvolve projeto de mestrado com interesse em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos de Gênero. Assina a coluna “desglutição”, no Portal Heráclito. Atua no ensino fundamental II, no ensino médio e como assistente editorial na Patuá. Possui publicações em mídias digitais e impressas: site da Revista CULT, Mallarmargens-revista de poesia e arte contemporânea, Germina-Revista de Literatura & Arte, Jornal RelevO, Revista SAMIZDAT, 7faces caderno-revista de poesia, Revista Pausa, Flanzine (Portugal), Revista Mortal. Publica poemas mensalmente na Revista Soletras, de Moçambique. Participou das antologias “29 de abril: o verso da violência” (Editora Patuá, 2015), Patuscada: antologia inaugural (Editora Patuá, 2016) e “Golpe: antologia-manifesto” (Punks Pôneis, 2016). Foi poeta convidado no Espaço Literatura da 13ª Feira Cultural Preta, em 2014. É vocalista e guitarrista da banda Catastrophear.

3 POEMAS DE RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA

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E se todos fôssemos Muhammad Ali?

Não sou poeta.
Não quero ser poeta.
Se ainda tivesse meus vinte anos,
Escolheria o pugilismo.



Vladimir, vamos mal

Não temos um Maiakovski para entoar
'Que removam as mãos do teclado
E peguem pau, pedra, faca ou bomba';

Nossa testa dá com o monitor —
Da tevê, do computador, do telefone —,
Dá com a parede ou o muro

Sem luta;
Seria melhor se todos puséssemos
Uma bala na cabeça como ponto final.



Sapiens sapiens

Caverna de Chauvet. Preso nessas pinturas de 32 mil anos. Coloco em perspectiva este espaço-tempo dilatado. Evoco mais de um sentido, em uma espiral que joga com a gente — ininterruptamente. Assim, somos todos os homens que viveram e os que ainda viverão, embora 32 mil anos atrás também fôssemos os bichos, as rochas, as árvores, o fogo e as protodeificações a crepitar nas chamas de uma fogueira, latência ainda, turva origem, ou até aquele momento potência. Neste instante estamos aqui, hiperconectados. Digito este texto-rasgo no telefone celular. E reconheço que da mesma forma [AGORA] estamos eles lá, pintando naquelas paredes as artes e as religiões, a sobrevivência da espécie e todas as nossas guerras futuras que ficaram em um passado que nos permitimos sempre reinventar. Quem sabe se algum dia sairemos daquela caverna.


 *   *   *



Rodrigo Novaes de Almeidaé escritor e jornalista. Tem os seguintes livros publicados: 'Rapsódias – Primeiras histórias breves' (contos, Editora Multifoco, 2009), 'Carnebruta' (contos, Editora Oito e Meio e Editora Apicuri, 2012) e 'A construção da paisagem' (crônicas, com Christiane Angelotti, Editora Sapere, 2012). Tem também textos publicados no Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal Rascunho, Observatório da Imprensa, Portal Cronópios, Jornal Opção, entre outros. Site.


3 poemas de Andréia Evangelista

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Chá de Calcinha

Patenteando a revelação!
A avaliação do psiquiatra não conta o conto que virá.
Ninguém precisa saber quem é, nem o que quer, que loucura maior é matar a magia dessa insatisfação aturdida que te levanta de madrugada e te faz vagar pelas vias.
Nem camisa de força, nem cinto de castidade, que meus buracos precisam de vento de verão a verão.
Meu sonho é vender chá de calcinha das mulheres que amam com veemência. Esse chá milagroso, abre caminhos, e arruaça cabeça, que eu trabalho com desorganização, descubro desejos, invento necessidades, dou alívio a quem quer pão, me escondo na boca do cão…
Na noite em que beberes do chá terás uma grande revelação. Para tal use três gotas sublinguais, durma ungida do leite derramado do amor do bem amado, use calcinha de algodão, se for homem, cueca não. O chá de calcinha das mulheres que gozam com encarniçamento tem efeito mais forte, tem também colaterais…
Quem dele bebe acorda as 3:00 da manhã desejando saber mais, as entidades criadoras da mãe Terra te entregaram o caminho do santíssimo sem cobrar percentuais…
Nem tarja preta, nem remédio pra enxaqueca, pois atrapalham os rituais. Dizem que resseca os fluidos do caminho da salvação. Sabendo disso, tomem não.
Para maiores informações chame in box, tenho zap e fixo. Cada conselho são 300,00. Com o chá cobro bem mais.




Fogo sagrado

Vivo pensando ritual
Pedindo licença pra Exú
Pedindo a benção de são Bento
Pois nem Jano trava as minhas portas
Esse desejo de avolumar
Torno a percorrer todas as vontades
Mesmo aquelas que me deixa febril
Vou tentando a reza forte
Banhando com erva o corpo ardente
Quando vejo já fiz escândalo
Dançando enroscada com a serpente
Malditas sejam as horas vazias
Se não houver gozo nem bruxaria
Vou bater perna na noite
Com andar épico e tom estridente
Ser cervejeira na lua minguante
Pois quando cheia nem me atente
Saio de casa tão decidida
Me faço rainha do povo na rua
A sacerdotisa do fogo sagrado
E rio com a boca cheia de dentes




Tretas

Aquelas tretas do estado de apaixonamento, o arrebatamento não deu o tempo de explicar a falsa sanidade que aprendi a interpretar. Todos os louros a quem engana bem.
A franqueza não vende suficiente para o capital alucinado por mais tempo de não pensar. Não tenho muita memória, isso ajuda a continuar, reconto todos os dias a mesma história da puta infeliz que resolve se vingar por amor. Que educa o corpo a uma boa postura, que insere os caras numa boa conduta, sacerdotisa do feminismo brando, cantante provocadora da verdade, infame, construtora de barracos sujos nos buracos da cidade do Rio de Janeiro e adjacências... 
Loucura zero cocaína, viciada em endorfina e falocentristas encarnados de moços educados, com óculos tortos e doutorados.






* * * 




Andréia Evangelista é atriz, bailarina, coreógrafa e dedica-se a construção da performance virtual através dos seus escritos e performances urbanas.
Atualmente comanda um coletivo de dança butoh e aplica curso de performance do inconsciente.

CASSAS EM SAMPA | 17/08 ÀS 18H30 | CASA DAS ROSAS [RELEASE + ENTREVISTA]

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CASSAS LANÇA EM SÃO PAULO
“A POESIA SOU EU”, POESIA REUNIDA,
NA CASA DAS ROSAS, 17 DE AGOSTO ÀS 18H30,
COM RECITAL DE POETAS, ARTISTAS E AMIGOS





A VIDA TORNADA VERSO: UM LIVRO ABERTO

O poeta Luis Augusto Cassas, 63, lança a sua Poesia Reunida, reunindo 20 livros de sua jornada lírica, na Casa das Rosas, na av. Paulista, 37, dia 17 de agosto, entre 18h30 às 21h30.  A noite de autógrafos ocorre durante leitura de poemas por poetas, artistas e amigos.
 Editado pela Imago, em 2 grossos volumes encadernados, ”A Poesia sou Eu”, exibe desde a estreia de “República dos Becos”, em 1981, que lhe deu consagração nacional, passando por títulos conhecidos como  Ópera Barroca: Guia Erótico-Poético & Serpentário Lírico da Cidade de São Luis do Maranhão, A Mulher que Matou Ana Paula Usher, até três livros inéditos mais recentes. Em quase 1400 páginas, traz ainda vasta fortuna crítica sobre o autor, natural de São Luis do Maranhão, usina de poesia de nomes como Gonçalves Dias, Sousândrade e Ferreira Gullar.
A poesia de Cassas habita a convivência entre o popular e o esotérico, o místico e o mítico, o social e o existencial, o cósmico e o sentido da vida, navegando entre cartas de tarôs e iniciações barrocas. Pródiga em códigos, propõe uma espécie de síntese cosmogônica de tudo. É atravessada por dramática compreensão do universo, incorporando o niilismo e o satori, cuja assinatura, portando exacerbada sede de eternidade e ânsia de infinito, revela nuanças cabalísticas, impressionistas, realistas, dadaístas, surrealistas. Cultor do verso bíblico e do verso curto. 
Seu melhor retrato é pintado pelo poeta, crítico e tradutor Marco Lucchesi, no pórtico da Poesia Reunida. Eis alguns trechos do ensaio de Marco Lucchesi sobre Cassas:

“Vejo a obra reunida de Luís Augusto Cassas. E me espanto com a população que habita seus livros. Uma demografia incomum. Toda ecumênica. Cheia de beleza. E frescor. Mais de uma praia. E mais de uma cidade. O mundo e a redescoberta de sua grande poesia. Uma das mais belas que se escreve hoje no Brasil. E das que mais me comove.”
“Algo de Apollinaire. Algo de Blaise Cendrars. Mas tocado pelo tempo atual. E com uma síntese toda sua, uma linguagem toda sua e um acento inconfundível.”
“A poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial. Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto.”
“Para Cassas, o universo é uma teia de correspondências, em que as pedras e as estrelas se comunicam sob os céus do Maranhão ou de qualquer parte do Globo. Como se buscasse a espiral de Deus. O nautilusinvisível.”
“E Cassas é este sobrevivente pós-moderno de Babel, o DJ de Deus, o trapezista luminoso de um circo de palavras, perdido entre alturas e adesões. O universo é como um iPod. E Cassas busca o modo de fazer o download de alguns resíduos de Deus que vagam no ciberespaço. Além da pedra. Do sonho. E da estrela. E o livro do mundo precisa ser lido. Tudo aquilo que diz sem dizer. O espaço entre as palavras. O branco da página.”
“Temos o poeta da cabala do visível, que sai do papel e vai para a vida — nunca saiu da vida este poeta nietzschiano, atrevido, apaixonado às últimas consequências.”
“Um permanente j´accuse como um profeta do antigo testamento no seio da modernidade. O drama da figura do Pai e da piedade do Filho. Uma telemaquia de Cassas à procura de Ulisses. A espera do Pai. E do futuro. E do filho pródigo. E a volta. A transfiguração materna em ampliados afrescos. Dvořák e o banquete de cordeiros físicos e metafóricos. O Alfa e o Ômega de uma dor íntima. Ao cabo, o encontro com Hölderlin, atingindo o ápex de uma vida dedicada de todo à poesia. Alta voltagem de mistérios e revelações.”
“Ele preferiu a escola do abismo. Mais que a de Telêmaco. De quem aprende com as impurezas do Hades. E ao voltar, como Orfeu, buscou Eurídice por todos os quadrantes. Mas seus olhos tinham fogo. Sua boca havia sido marcada pela sarça ardente da poesia. Era demasiado tarde para uma crítica da forma pura. E toda uma língua forte — cheia de frescor — com uma férrea vontade de levar a termo uma nova razão de estado da língua de seu país, em que tudo aparece deslocado e destramado. Sua poesia não tem compromissos. E é livre e compartilha um ecumenismo raro na literatura brasileira. E aqui não falo apenas de uma compreensão mística, mas de uma variedade poética e vocabular cheias de eletricidade. Poeta que canta as belezas do mundo. E suas partes trágicas. Mas com um sorriso de fundo permanente.”
“A Obra Reunida aqui está. Cassas tem agora a imagem do próprio rosto. O itinerarium mentis. As confissões deste Augustinho pós-moderno, maranhense e brasileiro”, concluiu Marco Lucchesi.

*   *   *


A POESIA SOU EU
A Poesia Reunida de
Luís Augusto Cassas

2 volumes encadernados de formato 16 x 23 cm

Volume 1 — 696 páginas
ISBN: 978-85-312-1093-8


 Volume 2 — 672 páginas
ISBN: 978-85-312-1094-5


 IMAGO EDITORA



*   *   *



ENTRE O PNEU E O PNEUMA
LUIS AUGUSTO CASSAS TEM UMA LONGA ESTRADA COMO ESCRITOR COM MAIS DE TRINTA ANOS DE ATIVIDADE POÉTICA. CELEBRADO COM DOIS VOLUMES EM A POESIA SOU EU – POESIA REUNIDA (IMAGO, 2012) DE VALOR INCONTESTÁVEL, CASSAS SE DEFINE COMO “MESTRE EM BECOS”, “PHD EM LADEIRAS” E “OFM DAS ÁGUAS DO MARANHÃO”.
AS VERTENTES EXPLORADAS POR TAIS VERSOS SÃO MUITAS E ORIGINAIS E, PORTANTO, NÃO SE DEIXAM ENGESSAR EM APENAS UMA CATEGORIA ESTÉTICA, UM CORREDOR FILOSÓFICO. SENDO ASSIM, O POETA FISGA O LEITOR, MANTENDO VIVO O SEU INTERESSE PELOS LIVROS DE LUIS AUGUSTO.

 GERANA DAMULAKIS

1-    A poesia é “o caminho da totalidade” a ponto de ser considerada por você como a jornada de sua alma. Conte sobre essa jornada.
CASSAS- A poesia me chegou como um coquetel de água-pesada e água-viva. Meu trabalho foi aceitar o seu jugo, estar com ela,  carregá-la, nutri-la, dialogar com o seu mistério, contemplar e viver a sua beleza transfiguradora, tentando oferecer respostas às minhas perplexidades e suas interrogações. A busca de horizontes e a produção de sentidos  ampliaram o meu caminho.  Habitar poeticamente o mundo,  passou a ser a minha maneira de ser e estar na existência. A partir da juventude, ela, a poesia, foi guia, amante, testemunha, confidente, consoladora, terapeuta  e iniciadora. Através da aprendizagem e  experiência -  linguagem e viagem - fiz  minha pequena  luz no mundo.
 Olho agora a minha Poesia Reunida, em 2 densos volumes, onde descansam vinte livros de poemas e percebo o quanto foi essencial a importância de sua presença em minha vida. E quanto ela sou eu. Em meu olhar interior, somos a  fonte e o deserto na essência e reflexo de um do outro.  E agradeço o longo aprendizado em que a sua cooperação e sabedoria ancestral me permitiu desenvolver, acessando níveis mais profundos da minha alma e do mundo.
 Nos livros de poemas escritos, estão registradas  a minha relação com a espiritualidade e materialidade  do mundo, a convivência com os signos do amor e da paixão, a mitologia do cotidiano e do infinito, as travessias difíceis da alma em seu processo de depuração e expansão, as diminuições e acréscimos do vivido e sonhado, a cidade, a mulher, o erotismo, a ecologia, a solidão, a crítica da cultura e do consumo, as minhas multivivências interiores, o mergulho no inconsciente e seus anjos e demônios,  a descida aos porões da infância para resgatar arquétipos familiares, até temas incomuns como as doenças – que Rilke não conseguia entender que fossem capaz de produzir dimensão poética -  e o poema final que antecipa minha morte e o reencontro com a terra.
 A clínica poética abriu-me os portais da profundidade e altura do mistério de existir. E o poema, foi meu rito individuatório.
 Mas o que poderia se exigir mais  da caminhada de uma alma, para libertar-se de suas cascas e tentar constituir-se em uma unidade?
  
2 - Seu livro inaugural, Republica dos Becos, publicado em 1981, pode ser visto como um guardador de sementes que o poeta fez florescer nas publicações seguintes ou o poeta considera que se distanciou muito dos versos escritos três décadas atrás?
 Cassas – O poeta que eu era em 1981, sabia que sabia onde poderia chegar até aos dias atuais, já que estava gestado em potência, na fundação do prédio, a antevisão lúdica da janela, cujo movimento para dentro e para fora, abriria a possibilidade de serem ampliados e descobertos novos horizontes.
O processo em cooperação com a energia da vida, engendrou  novas variáveis e acrescentou espirais que navegam como ondas, num movimento sistólico-diastólico, criando sucessivas interpretações do pensar e do sentir, diante de novas leituras  que multiplicaram as cores líricas.
Fiel a esse caminho, aceitei também as suas transformações que enriqueceram a minha pequena odisseia verbal.
E por que sabia que sabia? Porque o rio espiritual que fluía subterrâneo em meu ser, aberto aos signos das transformações e renovações, queria refrescar e matar a sede de alguns, embora dentro de mim a sede talvez fosse mais punjante.
  
3 – A fortuna crítica contida nos volumes com a poesia reunida mostra que sua obra foi e vem sendo lida por todos os críticos Brasil afora. Nota-se que há algo em comum nas palavras dos críticos quando observam que sua “cartografia poética” é caleidoscópica, como acentua José Mário da Silva. O mesmo José Mário da Silva intitulou um ensaio sobre sua poesia: “A Síntese Cosmogônica de Tudo”. Ao fim e ao cabo, é a síntese que todo poeta almeja?
 Cassas - Cada um de nós, além da antiga adequação conteúdo-forma – o espírito e a matéria do poema – desenvolve um projeto pessoal diante de suas circunstâncias. Em minha juventude percebia que  os poetas eram classificados dentro de rótulos críticos que privilegiavam a parte – poeta dos escravos, político, social, da compaixão, da paixão, do ser, dos índios, da morte, etc.
 Eu queria ser um poeta do todo e de tudo, e não da parte, já que todas as cores do arco-íris pulsavam em meu sangue e sonhavam um sonho de totalidade.
 Acredito que essa razão poética floresceu com o tempo. Sendo o eu, um outro, e por extensão analógica o todo, a partir da visão de unidade das antigas cosmogonias e a avalização  atual da física quântica, plantei meus pés no chão e enrolei os cabelos em uma estrela, e naveguei guiado pela ideia e palavras, no espaço quântico onde estão as energias do individual e coletivo, do todo e da parte, da energia e da graça, da sabedoria e do amor,  rumo a essa utopia. Mas descobri que assim como à utopia e ao caminho, basta a caminhada e seguir a jornada, aplaquei o meu ímpeto ao constatar que  embora belíssima a integralidade da  viagem, jamais alcançaria esse planeta, a não ser o    que me é permitido alcançar. 

 4 – Formulei recentemente esta pergunta para a poeta Myriam Fraga e agora desejo saber a sua opinião. Os poetas românticos Victor Hugo e, no Brasil, Castro Alves, foram ambos exemplos de pessoas públicas porque atuavam na sociedade mas, com a dispersão da arte, a pessoa do poeta assistiu seu espaço ser diminuído e, assim, o artista se deslocou do diálogo público. O poeta está sem pragmatismo diante dos tempos atuais?
 Cassas -  Poderia desfiar um grande elenco de fatores, entre os quais o surgimento de novos atores, disciplinas e hábitos, incluindo a doutrina da impermanência, que faz com que tudo seja transformado. Mas prefiro introduzir na cena o depoimento de um dos mestres do jazz, o pianista e compositor norte-americano Herbie Hancock, que fala do novo fascínio sobre as massas. E que merece profunda reflexão.
 Ouçamo-lo: “O jazz não morreu, não foi superado e continua tão inventivo quanto antes. O jazz apenas voltou a ser underground, não faz mais parte da cena musical pop. E hoje só ouvimos falar em música pop e na cena pop. Porque não é mais a música que importa. As pessoas não querem mais saber da música em si, mas de quem faz a música. Mudou a maneira como o público se relaciona com a música. Ele não tem mais ligação transcendental com a música e a sua qualidade. Quer apenas o glamour”.
O que ele diz do esvaziamento do jazz, não se aplicaria à poesia?
  
5- A inquietação é característica de todo artista. A causa da inquietude reside no anseio de elaborar outros universos porque a realidade não lhe  é suficiente, ou porque o artista se entende como um ser capaz de mudar o mundo? Enfim, o escritor tem algum poder?
Cassas – Gullar atualizou Pessoa quando afirma que a literatura existe porque a vida não basta. Embora vivamos em múltiplos universos, necessitamos elaborar novos universos para que possamos interar-nos, tentar compreender a realidade e tentar modificá-la. Nós, artistas, somos geradores de utopias, sem os quais a realidade descambaria apenas para os ritos saturnianos da obrigação, materialidade e responsabilidade. Feijão menos sonho. Mas acredito sim, que os escritores e artistas  mudam o mundo, não pelo trabalho objetivo sobre o próprio mundo, mas pela ação que é desenvolvida sobre a sensibilidade dos homens e que interfere nessas transformações. Todas as vezes que um poema, um conto ou um romance, ou ainda uma canção, ou uma tela, deposita um grão de esperança, lucidez, verdade, consciência, no coração de um homem, ele é transformado. E, consequentemente, o mundo.
 No entanto, creio que o verdadeiro artista não está interessado nas questões subalternas do poder, mas na relação de amor que mantém com ela, a sua arte, na qual se esconde, para que ela possa aparecer.
  
6 – Acompanho suas publicações ao longo de muitos anos e tenho meu livro preferido, A Mulher que Matou Ana Paula Usher: História de uma Paixão, um poema que é um romance, ou um romance que é um poema. Conte um pouco aqui sobre a experiência de criar poesia em cima da história de um amor totalizador.
 Cassas -  Bachelard dizia: “é necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz.” No caso em  espécie, ao livro A Mulher que Matou  Ana Usher: História de Uma Paixão, o enunciado bachelardiano cairia como uma luva. Já tinha me ocupado de situação próxima em Titanic-Boulogne: A Canção de Ana e Antônio, em que o poeta Gonçalves Dias sucumbe ao naufrágio amoroso com Ana Amélia Vale, por que não escrever a minha aventura pessoal?
 Minha visão de totalidade não poderia deixar de excluir eventos significativos, como o encontro  vênus - plutão, dentro do céu de minha alma, envolvendo os jogos de luz e sombra, amor e paixão. Ainda que produzissem ferimentos me levariam posteriormente à catarse e libertação.
 O livro foi escrito para compreender o acontecido, aprofundar o conhecimento da ilusão, tarefa que todos os humanos deveriam realizar, exorcizar demônios, e também celebrar a chegada e a partida de alguém, que na época, foi importante. Escrevi-o nas vivências do fogo e ar.
 Enraizado no elemento terra, coletei as experiências vividas e observadas e reuni uma coleção de fragmentos líricos como um mosaico. Depois as normatizei dando forma a um roteiro poético-cinematográfico.
 A vida conspirou a favor da realização desse livro. Foi escrito, editado e lançado em 6 meses. Muitas pessoas, como você, acabo de saber, elegeram-no o melhor livro que escrevi. É um dos que eu mais gosto.  

7- Mais uma vez, gosto de fazer certas perguntas para todos os poetas. Começo com a colocação de Joseph Brodsky, que está no livro Menos que Um, quando se pode ler o seguinte: “As verdadeiras biografias dos poetas são como as dos pássaros, quase idênticas- os dados verdadeiros estão na peculiaridade de seus cantos. A biografia dos poetas está em suas vogais e sibilantes, em sua métrica, em suas rimas e metáforas (...) Com os poetas, a escolha das palavras é mais reveladora do que aquilo que contam”.
 Quando o poeta tende a ser personagem de si mesmo arrisca-se a não diferenciar o que é neurose e o que é literatura?
 Cassas – Concordo com todas as observações de Brodsky. Quanto à sua pergunta, respondo-a através de uma vivência de claridade com o notável escritor maranhense Josué Montello, que me honrou com a sua amizade e distinção literária. Certa tarde abafada, perguntei-lhe, em São Luis, quem era o  escritor com quem mais aprendeu. Josué me afirmou, Dostoievski. Segundo ele, mesmo em Recordação da Casa dos Mortos, de cunho autobiográfico, ele se manteve distanciado, para que o leitor pudesse julgar através da apresentação dos fatos.
 Esse relâmpago iluminou a minha mente todas as vezes em que a matéria prima dos meus livros tornou-se autobiográfica, como em O Filho Pródigo. Neste livro faço a difícil travessia para reconciliação, através do verbo e da memória, superando muitas dificuldades para restaurar a dimensão afetiva  com a figura paterna, principalmente por perceber grande quantidade de material pessoal e arquetípico que estava misturado. Distanciado, mesmo quando a emoção me invade, tento sempre compreender os dois lados, jogando luz  para que a verdade brilhe sobre a cena. 
 Em relação ao risco da empreitada de não perceber a diferença entre neurose e literatura, recordo-lhe que todos os escritores, mesmos os gênios- cobaias de suas experiências no mundo - movem-se em alterados estados de consciência, desregramento,  loucura, dificuldade de convívio social, entre outros, sendo difícil atestar-se-lhes a sanidade, na maioria dos casos. Paradoxalmente, na contramão do questionado, nova palavra irrompeu  nos verbetes da psicologia contemporânea: a expressão “normóide”, que designa a patologia da pessoa que quer ser normal.
  
8 – Sua voz poética vigorosa, intensa, vem da experiência concreta da vida, não apenas experimentada, mas resultado de muita reflexão. São sempre necessários  para o escritor essa vivência e esse entendimento da comédia humana, ora estarrecedora, ora sublime, como fornecedores do instrumental poético?
 Cassas – Mas o que sabe aquele que não foi experimentado? Já perguntavam os antigos homens de todas as tradições. O Eclesiastes, um dos livros da sabedoria judaica, adverte e leciona: “O homem de grande experiência tem grandes ideias. (...)Aquele que não tem experiência, pouca coisa sabe”
 A experiência é uma chave que abre muitas portas interiores e exteriores, quando se lhe sucede o discernimento.  Mas a aplicação ao conhecimento e à sabedoria, o recolhimento, a meditação e a sua alternância no mundo, são essenciais para a nutrição do espírito, organizar a mente e purificar a ferrugem do coração. Temos que crescer para que a nossa poesia cresça e  faça circular a luz. E reconhecer e aceitar que se a vida é beleza e tragédia, também é milagre, e temos de ser corajosos e belos para vivê-la. E escreve-la.

 9 – O que é mais prazeroso para você:  escrever o poema ou contemplar o resultado, a culminância enfim?
 Cassas – Todos os momentos desempenham um estado de abertura e gratificação com a fonte: dos preliminares até o gozo total. Desde aquele que antecede o espetáculo, quando uma fagulha se insinua pelos escaninhos da ideia; ao momento inaugural do big-bang, a explosão do processo criativo (que pode ser longo como os relatos da semana da criação) até à contemplação do que foi construído. Epifania. Missão cumprida. A menina está pronta para seguir a sua estrada. Tchau, baby!

10 – Qual a sua leitura imprescindível, aquela leitura responsável por complementar a sua vida como escritor?
Cassas – Sou um anti especialista num mundo de especializados, portanto, cabe de tudo um pouco.  Livros sagrados, noções de física quântica, ensaios reveladores sobre poesia, como os de Paz, tratados de homeopatia e medicina chinesa, poesia, sempre poesia, de todos os lugares, filosofia oriental, Paracelso, I -  Ching, ecologia, os gregos. E mais uns 2000 que estão a caminho. Embora seja um garimpador, evito os sebos pela dificuldade respiratória com a poeira acumulada.

11 – Outra pergunta que sinto necessidade de fazer aos poetas: há circunstâncias ideais para você escrever, ou seja, é necessário” um teto todo seu”, aquele cantinho silencioso, que Virginia Woolf tanto apregoou?
Cassas – Preciso de silêncio, de certa paz de espírito e algum conforto – apesar de alguma legião infernal estar de plantão. Evidentemente, não preciso de um castelo emprestado como Rilke, embora aceite ofertas do gênero. Posso funcionar em qualquer lugar, nessas condições. Mas hotéis, em percursos de viagem, são moradas etéreas na vasta babel que se tornaram todas as grandes e pequenas cidades.

12- Qual é a sua certeza ou a sua dúvida que lhe serviu como guia na realização do trabalho poético?
Cassas – A certeza – a que desde cedo eu queria ser poeta e pagaria o preço. Passei a escrever logo o meu batismo de fogo nas fichas de hospedagens dos hotéis, sob o olhar contrariado dos atendentes que exigiam adiantamento de diárias. Mas o meu grande mestre foi a dúvida que me estimulou a crises de confiança e serviu de passaporte existencial, pois duvidava se conseguiria realizar um trabalho à altura que a vida me passara em uma folha de papel em branco.

13 - Os dois volumes de A Poesia Sou Eu, se dizem Poesia Reunida. Poesia Reunida não é Poesia Completa. Posso entender, portanto, que você não colocou o ponto final nas suas produções. Existem planos de publicações futuras?
Cassas - Só uma grande personagem chamada Vida, coloca um ponto final na produção de um autor. É o salto cósmico. Até lá, armado de lápis, rímel,  canivete, coquetel molotov, carvão, spray vermelho, sob ritmo intenso ou sutil, combateremos  à sombra!

 Entrevista à jornalista Gerana Damulakis publicada no site Verbo 21 (www.verbo21.com.br)


3 poemas de Natasha Felix

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craquelada 

tenho habitado muitos riscos.
o baiacu inchado na garganta insiste em
me competir o ar. como trepar em montevidéu 
e acordar no jaguaré: genealogia do deslocamento -
me abstenho de maiores explicações.  
li piva como quem toma chá de camomila com canela
assim descobri que o erro é um bacanal lotado de ex
marido. não dá pra ler piva antes do dejejum de uma
segunda-feira do mesmo jeito que não dá pra esperar
o baiacu sair da garganta por vontade divina. tenho 
ficado muito quieta & 
no silêncio a evidência me expõe: 
a memória das sereias do tejo, essa eu invejo; das
prostitutas da Mongólia tenho os mesmos dentes
vermelhos. não sei onde guardei as fotos da
ultima ida ao mercadão de são paulo. onde deixei
o molho de chave, onde foi parar aquele gozo na páscoa de 98, 
o jornal pra embalar os cacos de vidro, não sei onde. o 
baiacu espinha minha glote, me impede a distância. 
mesmo assim eu e o que restou das minhas
lembranças tombadas – nebulosas e uruguaias
como você – 
no ringue,
lutando contra o peixe, eu. 





carta aberta aos homens de passagem

você com certeza vai
você com certeza vai lembrar de mim
quando topar com a salamandra azul 
no orquidário vai com certeza 
você vai com certeza
lembrar de mim.
do anel que foi parar no ralo 
cheio de cabelo e porra, 
você vai lembrar
dos filhos que não fez em mim
eu te disse 
era sério quando
o elevador quebrou no oitavo andar eu te disse
aquele era o nosso momento de glória
eu te disse 
pra botar no formol e você não entendeu
na hora mas acho que agora olhando a 
salamandra azul vai sacar 
eu chego sabendo que vou embora.
você vai lembrar 
a gente
com vinte anos sem vergonha na cara
nem pra comprar um cortador de unha
imediatista 
eu arrancava os excessos com os dentes.
tinha dez reais pra catuaba e um baseado no bolso
eu arrancava os excessos com os dentes. 
você vai lembrar disso
de hoje pra trinta anos isso vai ser uma lenda
você vai lembrar de mim
com certeza vai
encostar a testa no box no segundo banho
do dia 
enquanto tua mulher tira os
pentelhos da virilha e lê sobre o golpe na turquia
e eu vou estar 
em qualquer lugar longe da casa
que nunca tivemos.





possuir o impossível é afundar uma pedra na cara sorrindo 

a cona exposta sob o sol das sete e meia. 
acusam-me pederasta, acusam-me mulher da 
vida, acusam-me comunista. acuso-me 
trilho sem sequer uma partida. 
não levo em conta os desastres ferroviários do ultimo ano - estive
ocupada, muito ocupada. catava conchas distorcidas, nenhuma
concha intacta numa praia deserta do litoral norte.
até os suicidas estão de greve nessa manhã de domingo: não
avançam/ por isso não/ me tocam a coragem esponjosa. 
retaliada mas ainda assim a cona exposta sob o sol das sete e meia 
não me comove o sexo inflado dos homens de boa fé, não me ilustram
o corpo./ os russos / vestem nike nos pés / tiram férias em praga /
bebem corote e dizem o
séc. xxi não é pra todos. 
estive com hilda hilst me lambendo a virilha, estive sim
cansada e abortada dos filhos que
não vingaram. com a cona translucida, cinética, à espera. 






Natasha Felix tem 19 anos. Nascida em Santos, se naturalizando em São Paulo há dois anos. Produziu o zine “Anemonímia” em 2016. Bota seus poemas & outros testículos no facebook e no blog anemoniavulcanica.tumblr.com.



6 poemas de Ray Cruz

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Outro dia no divã

após os cumprimentos desanimados
a terapeuta ajeitou os óculos
pela décima vez antes de largar
seu celular e dizer

muito bem, vamos começar?
ok
o que tem feito para se sentir melhor?

eu comprei uma coca cola
abri a felicidade

hahaha e então?

me engasguei e não consegui morrer.






Me tornei fumante pra trabalhar alguns minutos a menos.


já desempenei paredes demais
lembrando do volume macio
de todos aqueles seios pequenos

enquanto os pedreiros chapavam
já sonhei com muitos túmulos violados
para entrevistar vermes alheios
bebendo vinho barato nos crânios
de finados endinheirados

já empurrei muito carrinho de mão
constatando que não sei dirigir
a direção dos meus dias
já aspirei muito cimento
testando a resistência do 
concreto ao meu suor

já mexi muita massa contando
os segundos pra hora do almoço
já subi alto em muito andaime 
lamentando a ausência de fatalidade
da queda porque sei bem que 
o chão é o limite

já desempenei paredes demais
planejando fugir pra baixo de pontes 
comer lixo, aprender a fabricar
destilado com fruta podre de feira
e fumar pedras brancas

eu só queria assentar versos
mas já acertei dedos demais
com marretas 
maiores que este poema.

coração bomba 
relógio que não
tem hora certa
faz-me sentir igual 
pneu careca de bike
de mercearia meio vazio 
e escorregadio me esfolando
no asfalto meio dia de um
domingo enforcado com
uma granada de pedra nojenta 
nas mãos do velho ermitão 
debaixo do viaduto em que 
os cães compartilham os ratos
com suas pulgas e carrapatos.




Big bang
Teus dedos
Tocando minha
Via láctea

Minha língua
Sugando teu
Buraco negro

Tuas nebulosas
Morrendo entre
Meus braços

Super novas
Entre
Nossas pernas.





Caminhada noturna.
As ruas me atravessam
Eu deveria olhar
A data de validade
Do momento seguinte

Os carros sabem 
Que não tenho motor
Ou combustível

E os transeuntes
Evitam minhas rachaduras
Gotejando cadáveres
Nas calçadas de gelo

O asfalto aspira
O óbito do concreto
Na sola de meus
Versos paraplégicos




A cor do invisível

Raimundo é preto 
Raimundo é pobre 
Por isto nunca foi pra escola pública de carro
Nunca comprou lanche no Mc Donnald

Raimundo não sabe usar o microondas
E muito mal o português

Raimundo olha as pessoas 
Dentro dos carros do ano
E pensa que são naves
Que fazem parte de outro universo
Quando fecha as mãos
E seus calos declaram ódio
A propriedade privada
E a ausência de descanso pras costas

Raimundo comeu muita farofa de arroz de ontem no café da manhã
Raimundo limpou muito
Sua bunda com folha de caderno escolar
Manuscrito de poema
Página de livro didático

Raimundo cresceu 
Com as pessoas falando de sua cor
E lhe chamando de drogado
Raimundo cresceu em torno de olhares de medo e suspeita
Raimundo quase achou normal
Crescer assim

Dizem que Raimundo é preto
Mas Raimundo pensava
que o invisivel 
não tinha cor





A vida é a janela de um busão lotado.

O reflexo 
Me interroga
Quantos porques
Cabem no teu talvez?

Minha vida é 
uma janela embaçada
Hoje a noite 
É mais amarga 
Que dipirona
Na boca de criança

Minha vida é 
Uma janela 
semi-fechada
O frio treme 
Diante do calor
Da pedra queimando

Os calcanhares 
Tripofóbicos racham
Erosão urbana calçando
O soberano da praça
Santo Antônio
Indaga
Quantos banhos dei em
Minha consciência
Antes de engolir meu
Abandono?

Minha vida é
Uma janela trincada
Ela disse NÃO QUERO!
Alguém escutou?

Minha vida 
é uma janela
Quebrada.

Todos os anûs
Aquecendo os bancos
Onde fica a fila pra assinar
Meu certificado de óbito?

A vida é 
uma janela
Dentro de outra
Janela do outro lado
De outro busão lotado


* * * 



Ray Cruz, sobrevive na periferia da periferia de Brasília: Cidade Ocidental.
Em 2006 participou da micro antologia escolar; Veias de poeta.
Filho adotivo da Iluzine, posta seus poemas em sua página no facebook: RayMund&Cia.
Amante de amendoim japonês, abraços súbitos e Paratudo ou café com qualquer coisa.



Imantado - Rollo de Resende

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flores sexos frutos têm a mesma beleza.
mística não possui fórmulas
ainda que me peças rimas.
o momento em que se atrai uma melodia:
a carta de minha mãe que diz:
"ainda hoje, olhei para a minha barriga,
ou melhor, para a cicatriz da operação
cesariana e percebi que ela também
já vai fazer 25 anos!"

a mim,

flores do cosmo!


pode ter saído de um romance de Pasolini
(um dos seus “ragazzi di vita”)
ou de um poema de Konstantinos kavafis

mas não,
veio a mim aqui menino do lado de fora da vida
a mais,
na verdade iria  ao encontro de qualquer um

  

por enquanto não sou o homem das lonjuras

então, rendo graças a esses objetos
que agora me deixam
a colher de pau quebrada ao meio
a panela de barro rachada, vazando sobre
o fogo;
a mochila que devolvo ao tião, esgarçada
tudo isso
transforma-se
no livro
que não é

me livro 


ovento do mar no meu cabelo como algas, 
se estivesses mais perto,
                    o amor do meu flagelo, 
pisca o néon do plâncton, 
você nem sabia que existia.
esta praia no inverno

sei da fosforescência do amor,
                    sua aproximação
agitando as ondas,
letras d'água que estouram.

este inverno na praia  

           


rosa
não usa
zíper
                                                                          

rosa
usa
botão


         


Seleçao de poemas: Bárbara Lia
Fotografia: Chema Madoz
Fotografia do poeta: arquivo familiar (Stella de Resende)



ROLLO DE RESENDE POR ROLLO DE RESENDE




Nasci roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes. Artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada "Recreio" e de catecismos.
Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, O Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Hélio Leites, Adélia Prado.
Algumas antologias que contém poemas meus: Concurso "Helena Kolody", "Grifos" de São José dos Pinhais, a antologia "Poemas Fora da Ordem", prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos e outras.
Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei "Racho de romã" - 21 poemas, que está em sua segunda edição.
Em 1990, alguns poemas intitulados "A sublime deriva" foram publicados em página dupla no jornal "Nicolau".
Sou integrante do grupo "Baú de Signos", oficinas de poesias e afins, com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella, elaboramos o projeto "Homeopoética", poesias em cápsulas.
Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone 200.2021.
Escritores preferidos. Walt Whitmann, Elizabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mário Quintana e outros...

* Rollo apresentou esta biografia em 1.995 - quando do lançamento do seu livro "Água Mineral".Posteriormente sua poesia figurou no livro publicado pela Imprensa Oficial do Paraná - Passagens - Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná, organizada por Ademir Demarchi. Sua poesia "penso obstinadamente" foi musicada por Marcelo Brum Lemos e integra o cd "Res". Em 2.005 Rollo foi homenageado com exposição de seus trabalhos no Espaço Lilituc, anexo ao TUC (Galeria Julio Moreira). E com um Chá Poético na Fundação Sidónio Muralha, evento patrocinado pela Fundação Cultural e Curitiba, com a participação do artista plástico Hélio Leites e integrantes das oficinas do Baú de Signos.

REGINALDO ROLLO POSSETTI DE RESENDE (1965 - 1995)

5 poemas de Micheliny Verunschk

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Imagem Mira Nedyakova

                                                           
do amor e seu osso

III


o amor só entende
o osso
o sacro
o ísquio
o ílio
suas cavidades
e fossos

o amor só atende
ao osso
seus canais
e cristas
suas linhas
e esboços

o amor se distende
em osso
suas ligas
forames
seus
ramos
seus poços

o amor só se rende
ao osso



*
a memória
da tua mão contra a minha
o sol sobre as ruínas
a torre a língua
o cartaz colado no muro
quem amaria
pergunto
quem amaria
a marca da morte
sobre o meu corpo
esse meu rosto
o vago olho da lua
por sobre as águas
o ritmo
o ir e vir
dessa máquina
o homem que passa
e não nos vê
a mínima eletricidade
papel de bala
caído no chão
meu sim meu sim meu não
e sempre a memória
aquela da pele
da tua em minha mão
saber o caminho
do esquecimento
dessa cidade de luz
desse amor
desse invento
o que não podes me dar
o que não devo querer
um santo de gesso
quebrado
largado numa esquina
buzinas
um anjo ou um animal fantástico
atravessando o céu
teu abraço o peito contra o meu
cada dia um novo começo
letra lume o desfecho
a marca da morte
me lambendo o corpo
e eu o seu osso
o vento
e a noite em que fui embora
nessa eterna eterna demora
não faz diferença
o pão o andaime a véspera
a carta fechada nunca enviada
a linha da pipa embaraçada
saber do caminho
meu mar meu labirinto
dessa vereda de luz
chicletes dentes
onde leva essa escada
Jacó sorrindo para o nada
a memória da carne tão escassa
a mão o braço o lábio
esse mundo aos pedaços
o sol alevantado
meu contentamento
teu voo
meu pássaro




propósito


ela se abre
pétala a pétala
e branca é a sua carne
ela se abre
pétala a pétala
e exala a doce abacaxi.
ele duro e brilhante
mal sabe o que o traz aqui
mal sabe do pólen
que traz nas patas
no abdome
ele só sabe do que sente
do que o consome
a noite vem e ela se fecha
de novo
pétala por pétala
ele guardado dentro dela
ele luz e calor
quando ao dia mais uma vez chegar
ela será vermelha
ela será ele
ela será amor




 Imagem Mira Nedyakova
                                            

todo dia
uma coisa sangra em mim
entre o abismo e o voo
entre a asa e o salto

eu nunca me matei
todo dia insisto
nesse nascer continuo 

poema

[para Ana Cristina César]



*
I

retalhar a carne
que a carne é fraca
tanto se lhe bata
chicote ou sálvia
tanto se lhe faça
desenho a faca
pau pedra porra
brava brecha brasa
cantemos aleluias
pele pica pala
retalhar a carne
que a carne é graça
renda e louvor
céu e pássara.

II

se render à carne
que a carne é fraca
tanto se lhe queira
o lume a brasa
tanto se lhe bata
onda ou palma
espinho que penetre
uva vulva gruta
cantemos nossa graça
e a pele mais elástica
se render à carne
que a carne é graça
dobra e redobra
peixe e água.

III

se fartar de carne
que a carne é fraca
tanto se lhe morda
o dente a acha
tanto se lhe busque
a mão  a alma
olho que a desnude
peitopêlo lábios
broto  lua grelo
saudemos nossa caça
se fartar de carne
que a carne é graça
tecido que se esgarça
terra e casa.



Micheliny Verunschké autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publica em 2014 seu primeiro romance Nossa Teresa -vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.




6 poemas de Marcel Fernandes

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Ilustração de Gustave Doré para livro "Uma viagem para a lua", de Júllio Verne, 1868.


fragmento voynich

o próximo amor virá do espaço
precisamente de kic 8120608
curvará o sol em um clique
em dois ressuscitará os mortos
diz a profecia que ele escreverá ficção
trará uma herança nas pernas cruzadas
dará aos pobres de espírito esferográficas
nas pálpebras carregará rolos de kraft
será revolucionário
abolirá o uso de calças legging
substituirá os mágicos por bexigas azuis
dará aos pesadelos bilhetes pornôs
por fim, quando tomar consciência da vida
bordará falsos poemas nas nuvens
e cobrirá o mar de insignificâncias

teoria x

de fato
a cosmologia poderá
nos explicar o nascimento
do universo
do mesmo jeito
que explica o controle da gravidade
sobre nossos corpos
até o ponto de colidirem
a partir da colisão
nada se explica
o fenômeno ainda é
desconhecido pelos cientistas
quando dois corações colidem
propagam verdadeiros
tsunamis gravitacionais
nem beuys
previu em terremoto no palácio
tamanha energia propagada
os padrões vibratórios
são frenéticos
astros se formam
a partir da agitação das partículas
oscilações de luz
ocorrem nos olhares
com muita frequência
e o movimento
dos corpos no espaço
se tornam imprevisíveis

céu

 sinto que este teto
(espaço infinito no qual se movem os astros)
pesa sobre todos

falta-nos: perspicácia
todos os homens são sutis
plantam nuvens e colhem chuva
plantam sonhos e colhem ilusão
a sutileza não é dádiva terrena
ideal seria caminharmos juntos
mãos atadas, peitos estufados
o azul predomina
não sei o motivo da delicadeza da cor
talvez seja a forma que preenche meus olhos
e todos esses castelos lá fora
talvez exagero
um buquê de jardins
suspensos da babilônia
talvez a forma curva do jardim
lembro do trajeto do vento
costeando as folhas
arrancando as casas do chão
talvez seja o chão
ou a substância magnética de um beijo
a curva é uma boa aposta
o leito em que pousa o corpo
sinto que faltam pilares
verbos conjugados em alta tensão
uma xícara de fel
hábitos tão pesados quanto
(espaço infinito no qual se movem os astros)
ou esse abraço que me esmaga

Ilustração para "Da terra à lua", de Júlio Verne, 1865.

hipernova

sorvo as batidas do coração
uma estrela nascente
o peito em despedaços
a procura de uma noite mais escura
as plantas me bebem
carnívoras iluminam-me o sangue
resta-me uma gota de segredo
antes do fim


o voo

um pássaro negro atravessa-me os nervos
eé dia. Já não há o que ensinar aos pássaros
os sonhos amontoados de fome
não explicam os pastos ou a costura das nuvens
um pássaro negro me intimida
converto-me em sal
há muita noite embaixo das águas salgadas
entre os nervos lanço pedras no rio
nos pés de um possível amanhã
os sonhos:
ouro brilhando na imensidão do voo

hippocampus

sempre admirei o caracol
e sua concha de calcário tão leve
imagino que carregue uma linda galáxia nas costas
caracol, mas prefiro cavalo marinho
prefiro a palavra hippocampus
ecoa melhor num poema
gosto deles pois dão flores na primavera
gosto deles pois sabem dançar para atrair seus pares
gosto deles pois a fêmea bota no macho
gosto deles pois o macho libera esperma em si mesmo
gosto deles pois seus filhotes são transparentes quando nascem
gosto mesmo é da palavra hippocampus
hippocampus me lembra
como energizar tripas miúdas e ossos medrosos
como vestir a pele dourada dos dias
como andar igual aos caracóis
como somos feitos de estrelas
como seremos futuras estrelas
penso se antes de ser uma nova estrela
serei um cavalo-marinho ou um caracol?
sempre admirei o caracol
mais prefiro a palavra hippocampus




Marcel Fernandes (1986) nasceu e reside em Antonina/PR. Desenvolve uma pesquisa visual sobre a relação entre realidade e ficção, passeando entre as artes visuais e a literatura. É integrante do Coletivo Vão dos Olhos e já realizou diversas exposições individuais e coletivas, tendo destaque a exposição Poesia Agora no Museu da Língua Portuguesa em SP (2015), 2ª Bienal Internacional de Fotografía y Artes Audiovisuales de Jaén - Fotojaén'11 e Artistas Emergentes de Brasil, no Espacio Menosuno, em Madrid. É graduado em Administração com Habilitação em Gestão Portuária pela Universidade Estadual do Paraná e Especialista em Organizações Públicas pela Universidade Federal do Paraná.

Relatório técnico de poema encontrado morto com três tiros no peito

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Foto de Ben Zank


* porta de entrada com sinais de rimas imperdoáveis e aliterações agressivas
* pedaços de papel seda com rúcula e nervos pendurados no varal
* temas surrados e versões exaustas derramadas em bacias de latão
* acessórios para estados febris / verbos suspeitos / cápsulas da geração 68
* dicionário de palavras com ditongos instáveis e dentes cariados
* enjambements deslocados da cena do crime / versos alexandrinos com sinais de violência
* os tiros foram disparados da direita para a esquerda
* livros concretistas e beats boiando na banheira
* fatias do pão que o diabo amassou na cozinha / farelos de obra-prima no piso
* fotomontagens pornográficas vintage com bilhetes escabrosos
* sardas soltas de rosto desconhecido sobre o sofá verde musgo
* cocaína em folhas arrancadas de livro de poemas de um tal Pasolini
* da cabeça do cadáver escorriam sílabas líquidas enviadas por celular
* membros do morto foram encontrados em todos os cômodos / alguns versos caíram em área do supermercado ao lado onde foram confundidos com  tíquetes de estacionamento
* muito vermelho o poema morto /  anêmicas todas as cesuras / anomalia: falta de rigor mortis
* análise das poucas linhas encontradas permite classificá-lo como “anarcoide poético com desvios líricos” / crítico renomado aventa a hipótese de o poema ter morrido de mediocridade por não retomar Mallarmé, Pound e os mesmos de sempre
* não era pacifista nem violento / na verdade não se sabe qual era a sua serventia
* forte presença de César Vallejo / investigar ligação com o Sendero Luminoso
* foi encontrada mensagem suspeita no computador do poema morto  "a poesia é um atentado celeste"  / forte indício de rede de hackers poéticos dispostos a explodir  a ilha de Manhattan



José Antônio Cavalcanti - Poetc. envolvido atualmente em Movimento Suspeito, a ser lançado ainda este ano pela Editora Urutau. Autor dos livros Anarquipélago (Ibis Libris, 2013), Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst (Annablume, 2014 e Fora de forma & outros contos (Ibis Libris, 2015)). Mantém os blogs Poemas da página que falta e Poemargens. 




Etiquetas: 2016 mallarmago  José Antônio Cavalcanti poemas vol 5 num 4

Realidade Poker-me

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Há três dias sem dormir. Deviam achar que os olhos fatigados indicavam overdose de alguma dose:sexo e/ou drogas e/ou rock and roll. Deixou de dormir e nem quis saber. Os olhos estavam lá marcando algum terreno.O espaço entre quem lera demais; ouvira de menos. Desgastou suas pupilas, íris, globo ocular, córnea!O labirinto estava intacto. Nem sequer sinal de um zumbido qualquer.Orelha vermelha só mesmo da irritação.Os olhos? Nem tocou. Deve ter doído. Irritado. Manteve-se, porém, alerta.
Excessos da cidade ou dessa idade.
Um relógio que não pára. Uma notícia que chega de repente.
Uma hora que você nem imagina como começou.Um celular que não deixa de tocar.Nunca.Nem mesmo quando o jogou do ônibus fora; pela janela.Mandaram entregar em casa. Um conhecido viu. Sempre há um conhecido.Pediu obrigado, deu recompensa. Desejou ter sido roubado.Excessos dessa cidade.
Ruídos. Não. Não o barulho que lá e acolá não cessa. O ruído do excesso. De som, de voz, de tudo e mais nada.
E disso fizeram um tormento.
Deixou de dormir. Há três dias.Passou a madrugada em claro.Volta e meia passava pela sala.Volta e meia se trancafiava no quarto.
Volta e meia. E alguém dizendo que se deve dormir.Porque é preciso e faz bem.Toma lexotan, meu filho.Chá de camomila. Diazepan.Valerianas. Oh, as valerianas. Florais de Bach e Bach. Leite quente…
Pensou em disfarces, é verdade:óculos escuros, colírios. Não se conteve e não comprou coisa alguma. Passada a crise; voltara outra.Três dias, seis dias. Caminhava retilíneo, teso. Em direção a: 1) trabalho; 2)dinheiro; 3)casa. Nem a médico; nem a benzedeiro. Absteve-se da racionalidade. “Deixa que uma dia volta”. Acordou sem saber : “mas ela quem?”




Jogo americano

À medida do meu pensamento me vem: um presente rejeitado no dia de natal. Um beijo de despedida que me foi negado. Uma hora marcada no médico perdida porque quis te esperar. Um dia de folga sem sossego. Um sossego num dia de folga. Um arranhão, dois, três. Uma viagem de caminhão. Uma queda no asfalto. O Beijo no Asfalto. Uma fase comunista; outra anarquista. Sangue em excesso em data comemorativa. A minha mão dada à cigana. O meu corpo colado na parede. Meu vigésimo vestido preto. Minha mão no cabelo. Minha nuca para você. Minha sensualidade arrancada. O ensaio de teatro. O toque de recolher. Pratos quebrados. Aquela volta de carro. O sorriso da minha felicidade. Os livros jogados pela janela. As palavras que até hoje passeiam pelos meus neurotransmissores. Rímel, curvex e uísque.
 O primeiro cigarro à espera do café. O primeiro café à espera da sessão. A primeira sessão à espera da catarse. A primeira catarse à espera da emoção. Da minha emoção. Da minha solidão no mundo. Da minha necessidade de se fazer entender que esse excesso de comunicação é ruído e já não podemos falar nem nada.
 Porque eu não poderia simplesmente jogar fora esse bônus colado na memória e tentar fazer sentido sem a minha linguagem que se diz hermética. Eu simplesmente não poderia jogá-lo a menos que me jogasse também. E eu não tenho talento algum para jogos.




A realidade aumentada sou eu. Cada vez que miro meu autopanopticom para mim mesma descubro que estou desintegrada, atomizada, camuflada tentando me alcançar em algum ponto perdido dessa cidade. Eu rio o tempo todo. Canto na rua sozinha. "HE WALKS AWAY THE SUN GOES BY. E canto errado. Caio, tropeço, quebro coisas o tempo todo. É como se o corpo não me bastasse. Eu sempre me extrapolo. Desse jeito é fácil me classificar como excêntrica, esquisita. Minha vô benê perguntou: carolina, tu tá fumando drogas? Nunca fumei maconha. Pra não dizer que não fumei, fumei uma vez e dancei com um poste. Mas belinha, a vizinha de 3 anos, me viu, deu bom dia e disse: " carol, tu já fumou tua maconha hoje"?. Ontem um amigo ficou intrigado porque nunca cheirei lança. "Nem loló? Nem um doce? Nem pó?". Nãaaao. Eu tomo uns clona quando convêm. E fico pensando em mim tomando LSD e causando um tsunami pelas bandas da zona norte. Ia ser babado e confusão, gritaria e profecia. Não tenho estrutura para abandonar meu superego. Sim, Bebi por um tempo relativo. Eu gostava. Foi na época que geral era moralista e me passava textão e os homens com os quais me relacionava não estavam interessados em acolher os fracos e oprimidos como hoje; muito menos não me julgar e me definir. "TÔ DE OLHO BOY JUSTICEIRO DA CONVERGÊNCIA. Bebi até os 30. De 2006 para cá, só 4 vezes. Numa delas quase fraturo a costela após tentar passar a 4 fase da dança da cordinha. Eu sempre fui assim. Desordenada, desgovernada, descompensada. Às vezes eu saio do ar.  Parece que entro em outra dimensão. Porém, metade de mim é razão, a outra metade é iluminismo. Detesto perder o sentido da realidade mesmo sabendo que vivo muitas vezes numa outra paralela. Vai ser fácil me ver chorar, rir demais, rir de mim, achar engraçado todo o caos no qual me perco, depois me acho. E fazer isso de forma natural. Se eu conseguisse capturar esses instantâneos meus e juntasse tudo e congelasse esses instantes seria um dia de Ulysses numa Dublin cheia de unicórnios e semiótica. Não tem vida que não valha um livro porque toda biografia é uma narrativa encantada. Você escolhe como quer contar a história. O leitor decide se acredita nela permanecendo no final. A gente sempre seleciona uma perspectiva do real que garanta verossimilhança ao enredo que criamos. O problema é capturar pokemons que não existem. Eu existo nessa realidade pornômagiczoom. É tudo real. Mas rir no final não quer dizer que não dói.



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Carol Leão é jornalista e aprendiz de feiticeira, mas assina como Linda Blair Socialista, a que saiu das telas depois de exorcizada e entrou para o comunismo. Publica aqui: https://medium.com/@carolinaleo
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