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8 poemas de Líria Porto

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Ilustração: Claire



rebanho

há almas
que marcam nosso corpo
com ferro e fogo

há corpos
que fincam em nossa alma
a eternidade



das cicatrizes seculares

um dia pequeno partiste eu fiquei
restou-se-me a culpa estrago sem jeito
saí pelas ruas de olhos sem ver
prendessem-me matassem-me
arrancassem-me os seios

(chorei como a chuva do mês de dezembro)

virei enxurrada poça d’água represa
secou-se-me o leite a vida ruiu
um raio partiu minha alma o espelho
morri reencarnei e ainda padeço
são mil estilhaços com teus olhos dentro



andarilha

minha casa é onde durmo
um colchão um travesseiro
fecho os olhos nem pergunto
se o chão é estrangeiro


Ilustração: Claire



orfandade

as lágrimas secaram
chorei sal
perder-te foi um mal irreparável
tal como se o mar se evaporasse
e eu tivesse que remar
tocar o barco












na seca

arvorar-se poeta é tão audacioso
quanto o ipê florir na serra
no mês de agosto



cataratas

aos cinco aprendeu a ler
aos sete fazia tricô
a escrita veio com anita
a bonita professora
laçava pontos com oneida
a moça feia

para romper o absurdo
passou a ouvir os surdos
foi porta-voz

já velha
na foz do iguaçu
saltou na espuma

e só



avô

quando vem a brisa toca-me de leve
e o amor desliza pela minha pele
a paz é tão grande tem bigodes brancos
chega no sorriso de um homem brando
eu não sei se sonho ou se imagino
volto a ser menina boca de morango
pés de bailarina olhos de avelã

suas mãos macias roçam-me os cabelos
levam-me à trilha do gostar ameno
surgem as lembranças lá de outras terras
onde as oliveiras entre as coisas belas
compõem nosso berço



panfleto

palavras no papel
não determinam
o papel das palavras

melhor seria
uma folha branca
cuja dobradura
fizesse um menino
sair para a rua




liria porto– professora, poeta, dois livros editados em portugal - borboleta desfolhada e de lua - e dois no brasil - asa de passarinho e garimpo (finalista do prêmio jabuti 2015), publicados pela editora lê. autora do blogue tanto mar, participa de vários sites e revistas na internet, entre eles escritoras suicidas, germina literatura, zunái, blocos online, raimundo, considerações do poema, poesia perfeita, mallarmargens. mora em araxá, interior de minas gerais.

Gaveta de Poeta - Bárbara Lia

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Assombra o calcinado coração de Shelley imune ao fogo
Entristece a morte da tartaruga que atingiu Ésquilo
Ouço vozes uníssonas a amaldiçoar a echarpe de Isadora
A morte dos ícones é sagração - dia após dia - vida afora
E o choro dos anjos arrependidos por não chegar a tempo
Meu neto diz que, após a morte, caímos na Terra outra vez
Antes ficamos a brincar no alto, entre as estrelas
Esta hipótese amainou seu medo das perdas, incluso a minha
Vamos cair juntos na terra, vovó...
Vamos estudar juntos na mesma escola
Tanto amor cessa minha voz e este tipo de amor é tudo
Existe outro amor
Não conheci ainda a morte, mas conheci o – outro amor -
Ele é pedra, ele é bicho, echarpe que enforca
E ele mata, ele mata, ele mata...





medo dessa tua dor tapa de luva
medo de não estar no patamar do salto
na banheira fria
na gilete ácida
no cálix de Sócrates
chegar atrasada para tirar-te
do trem clandestino - Fim
medo dos pequenos ácidos
das pedras brancas
da faca
do salto no vazio
medo de que o amor não vença

esta dor que rasga
tua alma de primavera






mãe de Mia Couto rezava 
para ele não se tornar poeta.
Nada altera a gênese desta raça,
nem mesmo a reza.





há uma rosa em alguma aldeia
que sabe deste amor em mim
há uma rosa extasiada, alheia
que captou - no ar - a vibração
batuque do alucinado coração
há uma rosa anônima a valsar
ao som da agonia silenciada
e este fio que ata – nosotros –
faz com que eu saiba e sinta
que sabes o que a rosa sabe





Sopro do túrgido verão
E o pesado – Rattapallax – do trovão
Wallace Stevens



Melhor que ele nunca saiba
(ela pensou)
O Amor concordou com ela
(em algum lugar)
Tão alto a estrondar no infinito anil
Qual o poeta Wallace Stevens
Pensou o som do trovão:
Rattapallax



medo de ressuscitar o desejo
de morder o vidro do teu coração
e passar outro maldito inverno
de sangue pisado na alma
e dor e dor e dor





Fotografias: Ilse Bing (1899 – 1998) fotógrafa e poeta alemã.




 
Bárbara Lia (Assai, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa - 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas - Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.

3 contos de Germano Xavier

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História universal dos degraus 

Com um pé para fora do quadrado do seu quarto ela parecia querer alçar alguma espécie de voo, ou mesmo partir dali para outro lugar qualquer ou para um lugar-nenhum, feito personagem de quadrinhos, ou simplesmente sair um pouco, respirar. Eu tinha a impressão de que o ar daquele ambiente hostil, sinônimo de distância e esquecimento — mesmo pertencendo à mesma casa — era um ar espesso, formado por fumaças negras, densa em acinzentamentos.
Durante todo o tempo, fiquei observando ela daqui do térreo, com uma xícara de café pendurada ao meu indicador esquerdo. De onde estava, se eu a olhasse, enxergá-la-ia perfeitamente através do vão feito pela escada em espiral que, como uma serpente, subia até a andar de cima presa à parede esbranquiçada.
Por um momento, a perdi de vista, mas foi realmente por um curto instante e logo meus olhos de novo a fitavam.
Julian nasceu assim, o que fazer? Era a eterna pergunta que soava por todos aqueles cômodos, durante todos aqueles dias e anos, mais precisamente, trinta e três anos. Na segunda vez que a vi, naquela manhã outonal, ela me surgiu muito rápido e atravessou o pequeno corredor do andar de cima. Só deu para prestar atenção na capa preta com forro em vermelho que, pela velocidade impressa à corrida, balançava feito uma bandeira hasteada no posto mais alto de um mastro.
Desde muito pequena Julian demonstrou apego aos super-heróis e heroínas que via através da televisão. Gostava muito de se fantasiar como eles e sair, mesmo que imaginariamente, lutando contra os inimigos da grande cidade, derrotando os farsantes e impostores, os ladrões de bancos metropolitanos, para depois gozar de seus feitos em paz e num território onde reinassem apenas os seus mandamentos. Com o controle nas mãos, ela descansava, pensava rapidamente numa nova investida, inventava um novo chefe do mal e recomeçava a brincadeira.
A verdade é que jamais soubemos lidar com Julian. Apesar de pequena e dependente, ela sempre nos dominou. Havia ocasião na qual nos botava feito escravos, rendidos servos afeitos apenas para a satisfação de seus prazeres mais particulares. Como da vez em que nos obrigou — a mim e a sua mãe Beatriz — a ficarmos dentro do refrigerador por cinco horas seguidas, sob a sua vigilância.
Julian não era de todo esquisita, nem possuía uma alma ruim. Pelo contrário, tinha um coração humilde, sem grandes orgulhos, que também sabia perdoar. Mas era ressentida, de acessos raivosos imperdoáveis, neuróticos até. O fato de não possuir um rosto lhe era profundamente danoso. Não raro perdia a noção do espaço e tudo a feria. Era mesmo uma besta-fera de ira desmedida, quando a tormenta maior do mundo a atacava e, assim, para que maiores prejuízos fossem evitados, decidimos colocá-la no andar de cima, afastada de tudo e de todos. Ali permaneceria durante seus últimos treze anos de vida.
Tínhamos programado tudo, horário para as refeições, calmantes, conversas junto à porta... Com muito sacrifício, conseguimos mantê-la assim, sem grandes imprevistos, a tirar os baques que dava na porta, quando a solidão excessiva lhe afligia. Por medrarmos de que tal desgraça nos acontecesse novamente, eu e minha esposa resolvemos não tentar ter outro filho.
Desse modo, continuamos a vida. Vivíamos como se não a tivéssemos em nossa casa. Saíamos para trabalhar e nos divertir juntos, como a um casal normal, enquanto Julian ficava presa em casa, completamente trancafiada em seu aposento. Não nos atinava nenhuma espécie de compaixão ou algum resquício de pesar diante daquela situação e, por mais que aquilo pudesse doer em nossos sentimentos, preferíamos evitar qualquer mal maior. E, pensando bem, fazíamos o melhor que podíamos fazer. Era a nossa forma de amá-la, retirando-lhe da mira de quaisquer infortúnios, julgamentos ou retaliações.
Porém, por um motivo maior, resolvemos soltar nossa filha Julian. A casa estava tomada por um odor fortíssimo que vinha impreterivelmente do interior do quarto onde Julian ficava. Um odor realmente intragável que, se não o eliminássemos o quanto antes, logo afetaria as residências vizinhas e, por conseguinte, chamaria a atenção das pessoas para o estranho cheiro. Essa ideia não nos era aprazível e logo maquinamos um plano. Todo o processo fora pensado e discutido com muita calma.
Depois de imaginarmos todas as prováveis consequências de tal liberdade, decidimos apostar na sorte. Treze anos sem vermos o rosto de nossa filha, treze anos de afastamento, treze anos de sujeira acumulada. A curiosidade, sem dúvida, foi um dos maiores combustíveis para a tomada daquela decisão. Amarraríamos uma corda presa à fechadura, com a qual faríamos a força necessária para que a trinca se rompesse definitivamente, porque da chave já não dispúnhamos já há algum bastante tempo, perdida após algumas sessões de dedetização.
Esperamos a manhã, pois era a hora de maior silêncio, no andar de cima. Sempre supúnhamos que essa era a hora preferida de a Julian dormir. E assim se fez. Eu e Beatriz embaixo, no último degrau da escada, imprimimos pressão à corda e a trinca se partiu sem demandar grande esforço. A porta despregou-se do umbral e balançou com o vento que invadia o andar superior. A fedentina espalhou-se ligeiramente, deixando-nos meio tonteados.
Apreensivos, ficamos esperando por longas horas. Logo a casa estava completamente tomada por um forte odor que misturava vários cheiros, depois também nossas roupas, peles e, por fim, nossos cabelos. Misteriosamente, Julian não dava o ar de sua graça e muito menos tínhamos coragem suficiente para subirmos até lá e encará-la de frente.
No primeiro dia, não dormimos, ficamos na sala esperando algum movimento que viesse lá de cima ou um barulho qualquer que despertasse maior atenção. Mas nada aconteceu. Ficávamos preocupados com o que nos poderia acontecer, quando voltássemos de uma festa de família ou após uma reunião de trabalho.
Beatriz não ficava mais sozinha em casa, quando eu saía para comprar pão ou ir ao banco. Se eu fosse lavar o carro, lá ia Beatriz ficar comigo na garagem. Hoje, já nos acostumamos mais com a ideia da porta descerrada, no quarto da nossa filha.
Amanhã fará dois anos que arrombamos a porta. Nesse tempo, vi Julian por duas únicas vezes. Em nenhuma delas pude ver o rosto da minha filha. Na mais recente aparição, a vi numa manhã outonal, muito rapidamente, atravessando o pequeno corredor do andar de cima com a mesma capa da heroína preferida de sua infância presa ao pescoço. Na outra, ela estava com um pé para fora do quadrado do seu quarto e parecia querer alçar alguma espécie de voo, ou mesmo partir dali para outro lugar qualquer ou para um lugar-nenhum, feito personagem em quadrinhos, ou simplesmente sair um pouco para, aliviada, respirar.



  André 

Existiam dragões no ar. A técnica do sfumato fechava demais o tema. Teimou em continuar o trabalho, cabisbaixando-se. Ele sabia que era preciso mudar. Mudar na luz, mudar na sombra. Pensou em retirar o tom carvão, em parafuso consigo mesmo ficando. Pensou em investir mais no grafite. Diminuiu as mãos do verniz de madeira por sobre a tinta ainda fresca. O pincel entre o polegar e o indicador, apontado para a figura brotando, no escopo a liberdade.
André era um homem cansado da perfeição aos 24 anos de idade. Sem pai, sem mãe, sem irmão, sem casa, sem mulher, sem amor, sem ódio, sem nada e em tudo absoluto.
— Não, perfectione! — rosnou André. — Quero a circunstância que tenha a variedade dos vazios, que tenha espaços incertos, que necessite de borrões.




André sabia que existiam dragões no ar. Tinha a nítida percepção de que ele mesmo os criara, qual um pastor cuida do seu gado, estação por estação, batendo contra o chão o bastão de direcionar caminhos, e que ele arrancara com ira os nós dos cadeados das gaiolas, descerradas agora numa fúria acessada em vinganças. André mataria a si próprio caso não efetuasse uma transformação. Ele tinha consciência disso. Todos tinham.
— Ter um propósito não é estar perto do que é completo. Nenhum trabalho ativo realizar-se-á perante o noturno dos olhos cegos. Nem todos conseguem enxergar a realidade. O que eu vejo neste momento, senão a minha ânsia mais interna? O que representa minha dor, senão a agônica sepultura dos meus arrependimentos?
No ar, os dragões.
Eles e uma fina nuvem de poeira envelhecida pousando sobre os móveis do ateliê. André acocorado, nádegas tocando o azulejo frio, mãos investidas contra o corpo da face, triste, triste. Um artista pensando no progresso e nas unidades promotoras da harmonia, nas potências das tintas avermelhadas e em ideias para um alcance qualquer.
Era André perdido no momento presente, aquele que vive e não tem passado, muito menos futuro. Era um André, o artista, encabeçado numa loucura disposta ao egocentrismo, um jovem orgulhoso, subjetivo, sentimental, um viciado atormentado pelos soltos e revoltos dragões domésticos, e indomados. Um André olhando para si, sem a fiel ilusão dos espelhos.
Observou a luz entrando em feixe na sala escura. A luminosidade tecendo um caminho alimentado pelas minúsculas partículas de pó, um caminho marrom-amarelado, denunciando um apenas pouco de vida naquela tarde desmoronando. Ainda com o quadro não colocado sobre o tripé, André riscou uma linha horizontal com o pincel embebido de um preto fosco. Rápido, nivelou o tom com um cinza-marmóreo, aplicando-lhe uma mão de verniz e agigantando um gradiente imperfeito de sensação angustiante.
Buscou a variação brusca e a evidência na marcação das pinceladas. Queria deixar tudo às vistas. Retirar as vísceras da pintura. Pretendeu não esconder nada. Friccionou o punho sobre a margem azulada, construindo um imenso manto azul que lembrava o mar.
André pensou no dia em que viu o mar pela primeira vez, na primavera dos seus 17 anos. Mas, a lembrança veio-lhe cortante e André se lembrou da última vez que desejou ver o mar. Aprendeu com os olhos os matizes do templo de Netuno e guardou para um sempre hoje as fórmulas que o pai houvera lhe ensinado.
Recostado sobre a mesa antiga, André idealizou um rosto emergindo, o movimento frenético das ondas produzido pela invasão do corpo na liquidez do elemento aquífero. Um semblante acavalado, galopando as vontades mais puras de André, fundamentando toda a profundidade dos abstratos moinhos da imaginação faiscante do artista.
Sem esquecer, pôs a bandeira alvinegra no areal da praia, com um absurdo detalhamento e minúcia. Uma ou outra prova de anunciação e um respeito pelo sonho vencido pelo cansaço das tentativas. Aumentou a dor das rugas porque tinha agora como acreditar na efemeridade do tempo e elevou o quadro, colocando-o sobre o tripé.
Estava pronta a peça e não estava.
André viu os dragões passearem por sua cabeça, num leque de asas arrefecendo suas labaredas. Aquele rosto lindo, velho e forte de um homem feito de água. Uma imagem transbordante digna de enigmas e postulados. E André viu o feixe de luz feito de poeira perder sua força e ir se apagando, pacientemente, como uma velhinha atravessando a avenida movimentada de novidades. E André viu o único espelho do ateliê ser obstruído pela penumbra já quase escuro. E sentiu o fomento no peito de uma lava que descia seus tubos e artérias lhe arrancando míseros e rasteiros ares.
Respirou fraco, sôfrego, pulmões claudicando, órgãos em soluço entre a morte e a vida. Sem suportar-se em pé, André titubeou numa vertigem traiçoeira, segurando-se no quadro. Cambaleou para a esquerda, sem largar o quadro com os punhos em garra, foi para trás e, num volteio, caiu tombado para frente levando o quadro consigo.
Agora, rosto contra rosto, ferido pela fraqueza instantânea, André fitou estupefato o cenho que lhe beijava as bochechas úmidas e azuis, dizendo:
— André, é você?





A doente  

Aquela mulher não podia estar bem. Ao menos não aparentava. De maneira alguma aquela mulher poderia estar em condições normais, corpo e alma, corpo ou alma. Parecia estar numa temperatura mais elevada, mais de quarenta graus, uma febre impossível, seu rosto revelava uma vermelhidão quase terrível. Uma mulher ainda nova, coitada. Cinquenta e dois anos é uma idade na qual muito do que nos acontece pode ser apenas uma novidade, uma novidade simplória por se saber ser simples, pois existem aberturas para surpresas várias no decorrer dos anos que ainda podem vingar, e o futuro, todos sabem, é um doce cozido na lenha do tempo. Porque se pensarmos bem, podemos sim contar o tempo. O tempo não é tão senhor assim das horas que são nossas. Mas esse mesmo tempo havia manchado nuances suas antes imaginadas como intocáveis.
Ela era uma mulher dura por natureza, mas o tempo pode sim ser mal, muito mal. Como a pele do rosto, agora flácida, com vincos que mais pareciam vaus secos por onde nem lágrimas poderiam mais escorrer.
Como se acaba assim?,perguntei-me, próximo a ela, depois de tê-la avisado que voltaria outro dia para deixar a encomenda que a mim fora incumbida. Uma das poucas perguntas que lhe fiz durante todos esses anos de convívio.
Acredito que ajudamos muito quando o assunto é autodestruição. Deus também nos deu o direito à precocidade da morte. E quem cuida de tudo isso é o tempo. Ela, a morte, por parecer, ou melhor, por estar óbvia demais no semblante alquebrado da mulher, devia ter feito um boníssimo trabalho junto àquela senhora. Porque podemos continuar, mesmo que o caminho seja de pedra, podemos fenecer se um jardim não for bem regado. Tudo pode aparentar, senão, uma questão de prioridades.
O marido era um sujeito sem escrúpulos, faltava-lhe com o respeito todos os dias, todas as horas, escondia a aliança no porta-luvas do automóvel toda vez que fazia uma de suas viagens misteriosas. Era caixeiro-viajante, vendia de tudo, comprava de tudo e, se possível, negociava até almas. A mulher estocava paciência na despensa do seu coração. Quinze anos de convivência com aquele monstro. Não sei como aguentava tanto sofrimento. Era incrível, mas ali estava ela. Mulher parida na dor, mulher parideira de dor.
Os filhos, dois meninos lindos, eram como se fossem uma espécie de salvação para ela. Depositava neles a esperança por dias mais tranquilos e destituídos de acontecimentos ruins. Mas, nem assim podia ser suportável. Aquela mulher estava doente. O sorriso estava triste, a face abatida, os ombros caídos. No café da manhã, derrubara a xícara de café na frente de todos, agitação. No almoço, percebiam-se os talheres tremerem quando, em suas mãos, grãos de arroz e feijão despencavam do garfo como pequenas pedras em queda livre. Havia certo desespero na cabisbaixeza de seu olhar, um ar de intranquilidade mórbida, doentia. Havia algo dentro dela que estava sem controle, e que permanecia, suspeitável a ser algo muito, muito perigoso.
Talvez um vírus, uma bactéria anômala estranhamente bem desenvolvida, um verme qualquer ainda desconhecido pela ciência, incógnita. Mas, uma coisa havia de estar certa: naquela casa quase monumental da Rua Vieira e Sylva, 234, esquina com a Avenida Comendador Olegário Lopes, onde aquela mulher vivia com seus dois filhos, a empregada e o marido viandante, ninguém percebia, mas eu sabia em mim que existia uma mulher precisando de bastante ajuda.
Sei por que eu a conheço de bons anos. E sei por que depois que fui até aquela suntuosa casa na última quinta-feira, feriado nacional, perturbou-me o seu estado de afetação, mesmo este entrado num silêncio cru e parco. A mulher não tinha vontade. Os filhos andavam de um lado para o outro dentro da casa, brincando com colegas de escola, o marido entrava e saía com certa urgência, resolvendo coisas e aprontando mais novas de suas antigas partidas de destinos impensáveis, e ela simplesmente sentada no sofá largo de veludo, na sala de estar, incólume a tudo e a todos, elaborando um nada absolutamente sufocante do ponto de vista de quem a enxergava pelos ângulos possíveis do aposento.
De sua boca, poucas palavras transbordavam e caíam no mar do ar. Era como se houvesse uma densa floresta impedindo o caminhar harmonioso. Pela voz de algum amigo, fiquei sabendo que ela havia ido a alguns médicos a fim de fazer exames de rotina. Nada havia sido constatado. Nenhuma irregularidade de ordem corpórea. As precauções que lhe foram recomendadas foram as básicas, tais quais as proferidas a qualquer um que se comportasse dentro da esfera de sanidade do ser humano.
Ela visitou parentes no interior, fez passeios por lugares nunca antes desbravados, fez-se mergulhar em águas cristalinas no sul do país, e nenhum de seus próximos conseguia reconhecer nela algum distúrbio de toda sorte.
Pensei em receitar algum chá da próxima vez que à casa dela eu fosse. Ou talvez um calmante para aliviar um pouco do estresse. A última opção seria indicar a clínica psiquiátrica do Dr. Euclides Dória, exímio consertador de mentes destrambelhadas. Porém, uma coisa fez-me escolher o silêncio mortal e achar que, finalmente, não havia doença nenhuma naquela senhora. Foi quando cheguei no outro dia a fim de efetuar a entrega da encomenda.
Estava sentada, com os cabelos molhados como que vinda do banho, seu rosto possuía duas cavidades muito perturbadoras. Ela segurava em uma das mãos, com uma candura indiscutivelmente silenciosa, seu par de olhos verdes da cor dos jardins na primavera.

Ilustrações;  Olivier Ramonteu




Germano Xavier é mestrando em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE. Especialista em Ensino da Língua Portuguesa. Possui graduação em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco – UPE. É professor, editor do Jornal de Literatura O EQUADOR DAS COISAS e escritor. Blog O EQUADOR DAS COISAS.

A origem do expressionismo imaginário - Fernando Paiva

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Ilustração: David Park


Na taxidermia do mundo das artes, Farbento Silva era da família dos formalistas. Isto posto, tudo o que nomeiam como pós-moderno lhe parecia uma espécie de outro reino que não o das artes. Chamem de entretenimento, de filosofia, de ciência, do que quiserem, mas não chamem de arte algo que não se pode reconhecer como tal (silva, Farbento. “O mal da arte contemporânea”, artigo publicado em O Diário). Arte é cor e forma, costumava dizer na aula inaugural a cada novo semestre como professor na faculdade de Belas-Artes. Qualquer outra definição é um exercício inútil de retórica, complementava.

Na sua opinião, a pintura atingiu o ápice no modernismo, com a fusão entre cor e forma de Malevich, as dimensões cubistas de Picasso, a ordem e a harmonia nas composições de Mondrian e o vigor das pinceladas de Munch. Sua preferência pessoal era por este último e pelo expressionismo em geral, desde aquele presente de forma sutil em pintores como El Greco e Goya até o mais explícito, como no movimento alemão do século 20. Tinha também um apreço particular pelo figurativismo da baía de São Francisco, que foi tema da sua tese de pós-doutorado. Estudou a fundo nomes como David Park e Joan Brown. Publicou o livro O expressionismo figurativista californiano no pós-guerra, que virou referência sobre o tema. Naquelas páginas, incluiu a sua definição apaixonada sobre essa maneira de pintar:

O expressionismo figurativista leva para as telas o que sente o artista. É o mundo visto através da lente do seu coração, com todas as distorções decorrentes disso. Assim, forma, conteúdo e sentimento são a mesma coisa. É como se o espectador fosse transportado para dentro da mente do artista, tendo acesso não apenas ao que ele vê, mas como vê. (silva, Farbento. O expressionismo figurativista californiano no pós-guerra.)

Por outro lado, desqualificava quase toda a produção contemporânea, por entender que o conteúdo de suas obras não está na composição plástica, mas fora dela. São experimentos intelectuais, não plásticos. No pós-modernismo, a arte está na explicação sobre a obra, não na obra em si. Os artistas estão mais preocupados em justificar sua bizarrices do que se expressar plasticamente (silva, Farbento. “A morte da arte”, artigo publicado em O Diário).

Em artigos semanais, falou mal de inúmeros novos talentos da arte do seu tempo. Muitos deles se sentiram ofendidos e acusaram Farbento Silva de ter um prazer sádico em esculhambar novos artistas. A verdade é que seus textos, embora duros, eram coerentes com a sua definição formalista de arte e focavam exclusivamente na análise plástica das obras, ou seja, na sua relação entre cor e forma. Não poupou nem mesmo ícones como Andy Warhol. Os quadros de A. Warhol parecem reproduções de páginas de revistas de celebridades pintadas por um pintor de paredes (silva, Farbento. “Pop arte: um semanário de fofocas transposto para as telas”, artigo publicado em O Diário). Sobre a aceitação de performances dentro de museus, escreveu: Chegamos ao ponto em que o museu de arte moderna virou um circo... de horror! Daqui a pouco vai virar um bordel (silva, Farbento. “Em respeito à verdadeira arte circense”, artigo publicado em O Diário). Em relação à body art, sugeriu aos artistas uma visita ao psiquiatra. O que chamam de body art são sintomas de sérios distúrbios mentais, que, infelizmente, alguns críticos irresponsáveis abraçam como expressão artística. Em vez disso, deveriam recomendar ajuda médica a esses perturbados jovens (silva, Farbento. “Uma doença chamada body art”, artigo publicado em O Diário).

Nada o irritava mais que a chamada arte conceitual, que pregava a desmaterialização da obra, o que Farberto Silva definiu como um embuste sem precedentes, o cúmulo do pós-modernismo, a morte da arte. Estão se aproximando perigosamente do ponto em que vão chamar o vazio de arte. Quando tudo é arte, nada é arte (silva, Farbento. “A morte da arte”, artigo publicado em O Diário).

Sua verborragia o isolou gradativamente do meio artístico, conforme os conceitos do pós-modernismo se fortaleceram entre artistas, teóricos, críticos, curadores, museólogos e colecionadores. Virou uma figura folclórica. Receber suas críticas ferrenhas no jornal era quase um certificado de qualidade para os novos artistas, algo como um selo de aprovação ao contrário. Quando seu prestígio não era mais tão grande quanto aquele dos que reclamavam de suas palavras, foi demitido do jornal O Diário.

Sobrou-lhe a cadeira de professor de teoria da arte, cujas aulas se tornaram o último palco livre para a exposição de suas ideias, embora cada vez com menos reverberação. Ano após ano, um número menor de estudantes o procurava como orientador. Sua agressividade não tinha mais a mesma audiência, nem mesmo como piada. Por determinação da diretoria do departamento de história da arte, Farbento Silva foi remanejado e passou a lecionar uma matéria eletiva sobre o expressionismo figurativista californiano no pós-guerra, que atraía meia dúzia de gatos pingados por semestre.

Temeu estar fadado ao ostracismo para o resto dos seus dias. De crítico mordaz, temido por dez em cada dez novos artistas e respeitado entre seus pares, passou a ser ignorado. Foi então que teve uma ideia que mudaria sua biografia, se um dia alguém se prestasse a escrevê-la. Já que sua defesa do formalismo não encontrava mais eco, decidiu fazer o contrário: inventar, ele mesmo, uma nova tendência de arte pós-moderna. Era a sua resposta sarcástica à derrota da sua corrente teórica. Uma última e bem-humorada cartada. Nasceu assim o manifesto da arte-pensamento, a evolução natural da arte conceitual, diria.

Abram as suas mentes para a arte-pensamento, o primeiro movimento pós-pós-modernista. Tudo o que veio antes é passado e velho. Arte-pensamento não se expressa com tinta. Nem com bronze. Nem com palavras. Nem com dança. Nem com forma, nem com cor, nem com nada. Arte-pensamento não se expressa porque é imaterial em sua essência. É a ideia de uma obra antes da sua execução. É a verdadeira arte conceitual, já que a existente hoje insiste em se expressar por palavras. É o pensamento enquanto suporte. Existe apenas na mente do artista. É a arte em forma de ideia, literalmente. Ou arte em estado bruto. A arte mais pura, mais perfeita, é aquela em pensamento. Por mais talentoso e perfeccionista que seja um artista, na execução de uma obra sempre se perde algo em relação à ideia original. Uma obra de arte-pensamento nunca poderá ser conhecida pelo mundo em seu estado natural, à exceção do artista que a tem na mente – ou que a teve um dia, se já não a tiver esquecido. Uma obra de arte-pensamento é a intenção do fazer, é a inspiração, é a vontade inicial, antes da realização propriamente dita. É a pré-arte. Se foi pensado, logo existe: este é o lema da arte-pensamento.

Conseguiu que o manifesto da arte-pensamento fosse publicado no mesmo suplemento cultural que lhe conferira espaço no passado. Era para ser uma piada, mas foi levado a sério. Muita gente acreditou que Farbento Silva havia mudado de lado, deixando o formalismo para trás e se transformando em um relativista, um pós-modernista, ou um pós-pós-modernista, como ele mesmo definiu. O manifesto gerou intensa discussão na comunidade artística. Afinal, pensamento pode ou não ser suporte para arte? Por dentro, Farbento Silva ria: toda aquela reflexão não podia ser séria.

Alguns meses mais tarde, ficou sabendo que uma galeria especializada em arte pós-moderna estava organizando a primeira exposição coletiva de arte-pensamento do mundo. Ele próprio, Farbento Silva, foi convidado para redigir o texto explicativo. Viu-se confrontado com um dilema: manter a postura sarcástica e escrever um texto elogioso sobre arte-pensamento ou escrever uma crítica destruidora, ao melhor estilo do velho Farbento Silva, na qual revelaria toda a farsa? O melhor que poderia ter feito seria simplesmente ignorar o convite, mas nem cogitou essa hipótese, sedento que estava pela atenção que não tinha mais. Optou por escrever a verdade. O texto foi exposto com destaque em uma enorme parede na entrada da galeria:


Ilustração: Yves Klein

Arte-pensamento na
̃
o existe. Seu manifesto original, por mim assinado, se trata de uma irônica crítica ao relativismo pós-moderno, lamento informar. Logo, tudo o que veem nesta exposição, seja lá de que forma for apresentado, não é arte, nem sequer um arremedo disso. É uma funesta farsa que envolve galeristas, críticos, teóricos da arte, artistas, colecionadores, mecenas, jornalistas e também o público, todos coniventes com um processo de idiotização das artes plásticas iniciado há algumas décadas pelo chamado pós- modernismo e seu indefensável relativismo. Esta exposição está calcada em uma teoria impossível, a de que o pensamento pode servir como suporte da arte. E pior: que pode ser comercializado desta maneira. É uma afronta à inteligência de qualquer pessoa detentora de suas faculdades mentais. Espero, sinceramente, que este texto constranja a todos que entrarem nesta sala.

Não constrangeu. Pelo contrário, gerou ainda mais entusiasmo em todos os visitantes. Ao lado, na mesma parede, havia outro texto, este do curador e organizador da exposição, um antigo desafeto de Farbento Silva, no qual era feita uma apaixonada defesa do relativismo, ou seja: tudo pode ser arte, inclusive um falso movimento artístico como a arte-pensamento. 

Farbento Silva não se furtou de comparecer ao vernissage. Queria ver aquela palhaçada com seus próprios olhos. Mal sabia que a sua presença era parte do espetáculo. As tais obras expostas eram certificados em papel, todos numerados e assinados pelos respectivos autores, assim como pelo galerista, como avalista. Eram documentos que representariam, cada um deles, uma diferente obra de arte-pensamento. Além da exibição dos certificados, foi feita uma performance, que consistiu nos artistas perfilados de pé, com os olhos fechados, por dez minutos, “pensando” as obras representadas por aqueles pedaços de papel. Enquanto isso, o galerista leu em voz alta, repetidas vezes, o manifesto original da arte-pensamento, de Farbento Silva, que assistia à cena incrédulo. Deu-se conta de que já havia escrito críticas sobre todos aqueles artistas no passado, sempre negativas. Subitamente, lembrou-se de cada um daqueles nomes e das obras terríveis que produziram no início de suas carreiras, tão ruins ou ridículas quanto os certificados de arte-pensamento. Seria aquele espetáculo um tardio ato de desagravo? Uma vingança contra seus artigos? Se fosse uma brincadeira, por que então havia gente comprando os certificados? Sim, todos foram vendidos, por 50 mil dólares cada, naquela mesma noite da inauguração. Seu texto na parede não serviu de alerta. Talvez, ao reverso, tenha referendado aquela porcaria. Pensando bem, nada poderia irritá-lo mais que descobrir que colecionadores levariam a sério a arte-pensamento e pagariam por certificados, enchendo de dinheiro os bolsos de um galerista pilantra com a cumplicidade de alguns dos piores artistas das últimas décadas. Quando entendeu que fora usado contra si próprio, virou as costas e se retirou da galeria enfurecido, não sem antes bradar impropérios contra os presentes.

As reações de Farbento Silva foram registradas por um fotógrafo. Suas expressões de espanto, incredulidade e indignação renderam um ensaio fotográfico que virou uma nova exposição, chamada “O criador repele a criatura”. Outro desdobramento do fatídico vernissage foi uma obra de videoarte batizada de Obras pensadas, que nada mais era que o registro em vídeo da performance dos “artistas pensadores”, como foram chamados pela mídia os participantes da primeira exposição coletiva de arte-pensamento. O vídeo ganhou espaço na Bienal de Veneza.

A exposição de arte-pensamento e as obras que dela se originaram foram descritas por um jornalista como o primeiro ato de bullying como arte. As pessoas que compraram os certificados não eram assim tão idiotas quanto Farbento Silva imaginou.

Não haviam adquirido comprovantes de arte-pensamento, mas, no fundo, recordações daquele evento em si. Lendo as resenhas publicadas sobre o vernissage, Farbento Silva entendeu que fora alvo de uma ação vexatória, um sofisticado ato de vingança que, por si só, para aquela gente, era considerado também uma obra de arte e que simbolizou a pá de cal sobre o formalismo e o triunfo do relativismo. Ninguém caiu na sua história de arte-pensamento – embora todos entendessem como relevante a discussão sobre a necessidade ou não de um suporte material para a arte. Enfim, Farbento Silva não enganou ninguém. Em vez disso, foi ele o maior enganado nesse episódio, que ainda suscitou um intenso e profundo debate dentro da corrente relativista, justamente aquela que tanto criticara.

Depois disso, Farbento Silva decidiu se aposentar da academia e nunca mais escrever sobre arte. Mudou-se para a sua casa de campo, suspendeu a assinatura dos jornais e passou os últimos anos da sua vida fazendo palavras-cruzadas, cuidando de uma horta e admirando a natureza, ao lado de sua esposa. O único vestígio do seu passado eram alguns pôsteres com reproduções de Munch pregados nas paredes. Morreu amargurado e desiludido com a arte, certo de que a genialidade encontrada nos ícones do modernismo não se repetiria.

Trinta anos mais tarde, cientistas descobriram um método de decodificar, armazenar e transmitir pensamentos. Transmissor e receptor vestem capacetes especiais, batizados de exocerebelos. As primeiras utilizações serviram a fins militares e de inteligência. Depois a tecnologia foi adotada nas mais diversas aplicações, como no setor da educação, com alunos acompanhando o raciocínio dos professores de dentro de suas mentes. Psicólogos recomendaram a adoção para a análise de sonhos. Na indústria do entretenimento, surgiram os imaginary shows, considerados a evolução dos reality shows: pessoas concordavam em vestir exocerebelos e transmitir todos os seus pensamentos em tempo real, via internet, para quem pagasse por isso. Máquinas passaram a usar a leitura do pensamento para atender a comandos, substituindo botões em geral e decretando o fim de controles remotos e teclados. Surgiram as editoras de livros-pensamento, que proporcionam uma nova experiência literária, no lugar dos antigos livros escritos. Museus instalaram cápsulas da fruição, nas quais os visitantes se deitam e vestem exocerebelos para visualizar em suas mentes obras de Expressionismo Imaginário, o primeiro movimento artístico a usar o pensamento como suporte. Algumas das mais belas obras expressionistas foram criadas com o pensamento, em uma encantadora fusão de conteúdo, forma e sentimento. À época, ninguém relacionou o expressionismo imaginário ao manifesto da arte-pensamento e seu falecido autor, Farbento Silva.

Dois séculos mais tarde, quando a humanidade já havia se mudado para além-Terra, coube a Madalena Silva reclamar o crédito de seu tatataravô. Ela era uma das mais renomadas arqueólogas interplanetárias, especializada na primeira era digital terrestre. Em uma viagem de campo ao velho planeta azul, então praticamente inabitável, resgatou discos rígidos da antiga universidade e do jornal onde Farbento Silva trabalhara. Conseguiu recuperar o conteúdo por meio de avançadas técnicas de escavação de dados, com leitores atômicos. O resultado de sua pesquisa foi publicado em um livro-pensamento pela editora da Universidade Autônoma da Lua.

O pensamento como suporte foi imaginado, pela primeira vez, pelo teórico de arte Farbento Silva, autor do manifesto da arte-pensamento, publicado no ano terrestre de 1997 pelo jornal impresso O Diário. Embora se tratasse de uma provocação contra o pós-modernismo, movimento que dominava o cenário artístico da época, o manifesto deu a partida para a reflexão sobre o pensamento como suporte, iniciando profundas reflexões de ordem artístico-filosóficas entre teóricos daquele tempo, o que serviu de semente para a aceitação futura do que viria a ser o expressionismo imaginário dos dias de hoje. Silva, aliás, era ele próprio um especialista em expressionismo modernista. Se vivo fosse, esse visionário decerto teria se encantado com a reconciliação entre conteúdo e forma proporcionada por artistas e seus exocerebelos. (silva, Madalena. Trecho de artigo publicado na revista-pensamento Arqueologia Terrestre, no ano espacial 13.)



Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016).



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade (7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.

Antônio Barreto - Poema, romance e bula

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IMPOEMA
(romance & bula)


(I) Descapítulo

o amor de uma princesa
talvez possa dissolvê-lo

[e há que o amor dessa princesa
também possa possuí-lo]

desde que – ao corroê-lo – esse amor
seja em sigilo
e também possa de seu peso
retirar-lhe um meio quilo


(II) Preâmbula

a dieta da lua nova
talvez possa emagrecê-lo

[e há que o amor dessa princesa
também possa convertê-lo]

desde que – ao remoê-lo – esse amor
seja tranquilo
e também possa – embora aceso –
apagá-lo de seu brilho

] ... ou mesmo – pois – em tal calada
embaraçar seu estribilho e pelos pés
– embora presos – indecisos
afastá-lo de algum trilho...[


(III) Tramatema

o novelo de ariadne
talvez possa desfiá-lo

[e há que o amor dessa princesa
também tenha que amarrá-lo]

já que o halo de uma lua
também possa escurecê-lo
muito embora (lua e grilo,
sapo, estrela e crocodilo)
também possam reouvi-lo

... ] ou reavê-lo
em seu asilo [ ...


(IV) Complicação

e se o amor dessa princesa
for apenas pesadelo?
nesse caso – ao ressonhá-lo –
a solidão de uma princesa
talvez possa amargurá-lo
na cilada de existi-lo

[há que o amor de outra princesa
também possa corrompê-lo
e talvez possa consumi-lo 
e talvez possa 
autoajudá-lo 
– em seu estilo –
ao exibi-lo]

o amor não tem lugar
onde morá-lo? 
onde guardá-lo?
o amor é nada mais
que o sem-lugar
dos que já amaram?


(V) Clímax

mas o amor de uma princesa
talvez possa abandoná-lo
e ir embora
num cavalo

e você possa – sem sabê-lo –
estar pastando num castelo


(VI) Epígolo

o amor de uma princesa
talvez possa – enfim –
salvá-lo
(que esse amor
seja mais forte
que essa fome
de matá-lo)

]...ou mesmo...[

que 
essa 
sede
de 
criá-lo


Antônio Barreto nasceu em Passos há 62 anos. Rodou meio mundo. Trabalhou de projetista de engenharia civil. Abandonou tudo pra aprender a ser poeta. E vive, milagrosa e fransciscanamente, das coisas que escreve. Tem mais de 40 livros publicados (poesia, romance, conto, crônica e literatura infanto-juvenil). É coordenador de material didático de língua portuguesa para a atual Editora LeYa/Escala.

Ilustração:   Zitatenschatz der Weltliteratur de Richard Zoozmann

5 POETAS 5 POEMAS 1 BONECA INFLÁVEL

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1 tema votado
5 poetas
5 minutos para escrever
5 poemas





baby doll made in japan
ser alimentada com sushi
presenteada com quimonos
convidada a morar
numa casa minimalista
apresentada como esposa
de um futuro imperador


(Yassu Noguchi)




testada anatomicamente
de plástico
muda/ fria
ganhei de aniversário
Adoro
não enche meu saco


(U.H.Lautert)






Boneca inflável


aéreo prazer
nesse corpo
               - contido
carrega em si
meu suor
ou
um grito
                 - vazio


(Roberto Dutra Jr.)





confesso que te enchi
com a minha vontade
de te preencher: você,
tão fofa e lisa como a
borracha da roupa
do escafandrista;

ainda assim
meu vício
é te ver no cio
até que o birro
te esvazie;

na vitrine da sexshop:

amor à primeira vista


(Alexandre Guarnieri)






Boneca inflável

O vento que sopro
ali dentro - hálito de fogo -
é o mesmo que em breve
me retirará o fôlego

E o ar que repasso
em transfusão será pago
pelo que me inspira
- seria eu um trago? -

e plastifica em minha cara
o sorriso embevecido
do que não será escondido:

a tara


(Marcos Bassini)



Pupilas - Homero Gomes

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Ilustração: Dennis


"A seus olhos, sua obra nunca está feita, está sempre em andamento, de modo que ninguém pode valer-se dela contra o mundo."
(Maurice Merleau-Ponty, Signos)


Suas pupilas estão dilatadas. Deve ser essa escuridão; ela nos acompanha. Não, é só impressão. Às vezes, vejo pequenas luzes. É a pressão dos olhos; você não deve estar bem. Me avisaram que poderia acontecer. Pensei que demorasse mais. Por que será que você não está com os sintomas? Quando a gente sai eu nunca abro os olhos... fico com eles bem fechados; vejo tudo através dessa pele vermelha – só abro em casa; só quando deito na cama pra dormir. É, acho que essa experiência não tem dado bons resultados. Talvez. Vejo pequenas bolhas azuis, agora. Interessante. Eu já te falei que a claridade das velas aquece meus olhos?...é estranho. Interessante. Durmo à luz de velas e aí, de manhã, já posso abri-los; sinto que nasci. O olho se acostuma devagar; não abuse. Não sei, eu ando estranha; ando vendo coisas... faz seis meses que não menstruo. E? Faz seis meses que vivemos nessa bolha. Quem? Nós. Você está sozinha aqui. Pare com isso. Eu nunca estive aqui; você é que me vê nas sombras de seus olhos cegos.




Homero Gomes nasceu em Curitiba, em 1978. Publicou Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição 2007 – em 2014 e Solidão de Caronte (poesia) – Prêmio Poetizar o Mundo – em 2013. Foi colaborador de Rascunho, Cronópios, Vaia, Cult, Germina Literatura, Palpitar, Ficções, Escritoras Suicidas, Samizdat e Mallarmargens. Foi colunista nos portais Página Cultural – com ensaios, críticas e crônicas –, Mundo Mundano e também foi um dos correspondentes do Musa Rara: literatura e adjacências.facebook.com/sisifodesatento.

por ruas desertas

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imagem alexandra levasseur



Há uma tristeza indefinível na bela mulher que volta sozinha pra casa de madrugada com seu vestido de noite, descalça e segurando os sapatos de salto. Obviamente me falta coragem para sequer abordá-la e perguntar cavalheirescamente se ela precisa de algo. Mas acima de tudo me sobra respeito. Com minha cabeça fantasiosa de homem também solitário e apaixonado por ruas desertas, sigo irresponsavelmente acreditando que não há com o que se preocupar. Assim como eu, ela também só precisa ficar sozinha essa noite.






Mário Bortolotto– ator, diretor, escritor, dramaturgo.

A loja de presentes do rio Estige - Bruno Marafigo

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Ilustração: Bruno Marafio


–Espero que você tenha gostado, porque o show acabou– diz um velho se decompondo lentamente dentro de um roupão preto, não é uma visão agradável.Mas de certa maneira não estamos todos nos decompondo lentamente? Uns mais que os outros.–Sinto muito, mas é hora de ir– diz ele estendendo aquela mão decrépita e cheia de ossos, ossos demais se você quer saber...Dou um passo pra fora da cama e pra dentro da escuridão que é o meu quarto, minha cama flutua através do espaço vazio.
–Não se esqueça de passar pelo caixa, prefiro dinheiro vivo...–pego a mão dele e olho dentro daqueles olhos negros, terrivelmente familiares.
Flutuo por alguns segundos antes de sentir meus pés tocando o carpete velho do chão. O vazio negro é lentamente preenchido, meu abajur quebrado, um beta nadando em círculos em sua prisão de vidro, a luz da manhã entrando pela janela, vou me lembrando de todos esses pequenos detalhes, lembro-me de onde parei no dia anterior.
A nevoa na minha cabeça se dissipa limpando minha vista, tudo volta a parecer comum novamente, tingido de um cinza mundano.Menos o maldito peixe.Alguma coisa nele me deixa agitado. O velho continua a se decompor.
Encontro meu caminho até o banheiro, puxo o espelho pra pegar a pasta de dente e tenho um momento de lucidez.
O peixe vive em uma realidade simulada, meio balde de água é tudo o que ele conhecerá do mundo durante toda a vida dele, mas se ele tentar sair, ele morre. O velho continua atrás de mim e continua a se decompor. A carne de seus ossos se desprende, cai no chão e some.Sua pele tem uma textura estranha como se descascasse em mil flocos de neve suja. Ainda assim só consigo pensar no peixe.
Se ele pulasse pra fora em direção à liberdade sufocaria lentamente, se debatendo em um tapete fora de moda, é meio depressivo.
Lá fora só existe o barulho do transito, milhares de executivos cavalgando bombas atômicas até seus arranha-céus, canhões do tamanho de casas disparam os executivos em alta velocidade, escuto uma bomba modelo Peter-Sellers de 2008 passar zunindo pela minha janela.
Bato o espelho com as costas da mão e lá está ele, o maldito peixe!
– Como diabos você foi parar ai? – digo em voz alta, o velho se decompondo sorri.–Não tenho o dia todo filho...– diz ele. O peixe olha pra mim de dentro do espelho com aquela cara de idiota.
Jogo água na minha cara e esfrego meus olhos com força, o peixe ainda está lá com o mesmo olhar estúpido. O velho também, mas por algum motivo eu nem ligo, é como se ele estivesse ali minha vida toda.
Enfio a cabeça pra dentro do quarto e o aquário está vazio, a água ainda agitada pelas guelras dele.
–Como você fez isso?Como?– ele não responde, fica lá dentro nadando em círculos com cara de idiota. Afinal é o que os peixes fazem, não sei o que eu estava esperando que acontecesse.
– Maravilha, mais um que vai levar meses até a ficha cair. Não é só porque sou obrigado a estar em todos os lugares ao mesmo tempo, que eu tenha que gostar de fazer isso – ignoro o velho só consigo pensar em como o peixe foi parar dentro do espelho.
Tateio pelo vidro procurando uma abertura, o peixe acha que eu estou brincando com ele, tenta tocar a ponta dos meus dedos. Sinto uma irregularidade no vidro e passo a unha em cima de um pedacinho que descasca.Uma gotinha de água escorre da rachadura.''Meu Deus eu tenho que ligar pra alguém!''penso.Corro pelo corredor e coloco a mão no telefone.''Ninguém vai acreditar se eu contar pelo telefone, preciso chamar alguém até aqui!'' uma gota escorre pelo espelho e outra se forma logo atrás dela.''É, é isso! Vou ligar para o lugar que fabrica o espelho!Não, isso seriaburrice...''
Água escorre da rachadura. ''E se o peixe voltar para o aquário enquanto eu chamo alguém pra ver? E se eu sou o único que consegue enxergar o peixe? E se não tiver peixe nenhum?''água escorre da rachadura e pinga na pia.
''Certo se eu estiver alucinando o peixe ainda está no aquário, o que significa que se eu colocar a mão no aquário eu vou conseguir senti-lo!Sim, isso pode dar certo!''
Tiro meu anel e mergulho a mão no aquário, nada, nem sinal, só migalhas de comida do dia anterior.
– Estranho não? Como algo desse tipo pode acontecer? Eu me pergunto... hum... – diz o velho, dessa vez ignoro-o completamente. ''Puta que pariu, eu tenho que chamar alguém aqui'' dou mais uma olhada no espelho do banheiro e lá está ele como se nada estivesse acontecendo, a água escorrendo da rachadura, pingando na pia e formando uma poça. O velho me segue pela casa, parece impaciente, mas não fala mais nada.
De repente a campainha toca, é minha carona para o trabalho. “Mas é claro vou pedir para que ele entre e não vou falar nada.Vou fazê-lo entrar no banheiro com uma desculpa qualquer e esperar para ver se ele nota. Se ele não comentar nada é porque estou imaginando tudo.”
Olho pela janela lá está Marcio tocando a campainha novamente. A ogiva nuclear estacionada em lugar ilegal. Aperto o interfone.
–Escute... Márcio? Eu sinto muito, mas me atrasei. Entra pra tomar um café que eu vou levar ainda uns vinte minutos– um chiado de estática que parece durar uma eternidade é interrompido pela voz impaciente de Márcio.
–Porra... cara... eu não posso me atrasar de novo! O chefe vai me dar uma mijada e quer saber? Não aguento mais lavar as roupas todo dia, o pênis daquele homem parece estar ligado a um hidrante!–ele tem razão, depois que revogaram algumas leis trabalhistas essa coisa toda saiu do controle...
–Olha Márcio eu sinto muito mesmo, mas preciso que você suba aqui um instante é muito importante juro que te pago todas as minhas horas extras pra compensar– ele reluta mais uns instantes, ameaça ir embora sem mim e então finalmente concorda.
–Ok, mas só quinze minutos!
Ando em círculos pelo tapete velho, o aquário continua vazio, e a pele do velho parece ter ganho um brilho dourado de um instante para o outro. Talvez eu só não tenha notado. Uma parte da bochecha dele cai no chão e desaparece. “Pelo menos ele tem modos o suficiente para não sujar meu tapete” penso eu. Batidas na porta. Finalmente ele esta aqui. Abro a porta como uma garotinha adolescente esperando o namorado. Márcio está com a cara de alguém que teve um peixe podre costurado ao nariz cirurgicamente, nunca se torna agradável, mas você se acostuma. Espero um instante por uma reação e nada.
– Você está vendo ele? – digo apontando para o velho.
– Claro, é o Χάρων– diz Márcio.
– Como você pode saber meu nome e ainda estar aqui? Humanos de merda... – o velho começa a resmungar tão baixo que eu paro de ouvir.
– Você me chamou aqui só pra ver o Χάρων? Acabei de deixa-lo esperando no banco de trás do carro... – o velho continua a resmungar.
– Mas ele estava aqui o tempo todo...– Marcio me interrompe impaciente.
– Ele esta pela cidade inteira... enfim podemos ir embora agora, porra?– diz ele já caminhando em direção à porta.
– Não, não era isso que eu queria te mostrar.
– Mostra logo então!
– Certo... certo... você entende de elétrica né? – Márcio está batendo os pés freneticamente. – Para de enrolar e fala logo! – diz ele.
– Ok, a lâmpada do meu espelho do banheiro está soltando umas faíscas mesmo desligada, estou com medo de começar um incêndio enquanto estou fora. Pode dar uma olhada pra mim? – Márcio solta um suspiro irritado e saixingando. Só agora noto uma poça d’agua se esgueirando por baixo da porta do banheiro. Márcio abre a porta e meio metro de agua vaza para fora como uma barragem estourada.
– Caralho! Porra! Meus sapatos! Você é um filho da... – quando os olhos de Márcio tocam o espelho ele congela, fica pálido como um cadáver e se joga de joelhos no chão, chorando. O velho diz a ele: – Infelizmente esse não é para você moleque, as pessoas se enrolam demais aqui e o lugar acabou criando uma economia própria... você emprestou dinheiro e não pode sair até pagar a dívida! – Márcio está soluçando e rezando ao mesmo tempo. A agua cai com força sobre sua cabeça, como um batismo. Sinto que ele poderia se afogar. O peixe dourado nada com todas as suas forças contra a corrente. Idiota demais para perceber o perigo.
– Vamos levante-se seu inútil! – diz o velho. O buraco no espelho aumenta, o peixe é lançado para fora passando a centímetros da ponta afiada do vidro, ele cai no ralo da pia e é engolido pelo cano. Reaparece no aquário. Márcio está caído de cara na agua sem se mover. – Justo o que eu precisava, vão descontar do meu pagamento... sempre descontam. Era tão simples antigamente... uma moeda aqui outra lá... daí eu comprei um roupão novo... quando eu me dou conta aqui é tudo fábricas e lojas... e neon... e bombas nucleares... e gravatas... e ternos... – o velho levanta Márcio pelos ombros e arrasta-o para trás da porta onde não posso vê-lo. A agua ainda escorre do espelho quebrado como uma cascata.
Entro no banheiro em meio à agua olho atrás da porta, nada além de ladrilhos e mofo. Eles desapareceram.
– Sinto muito por isso – diz a voz do velho nas minhas costas. Viro-me e vejo a agua do aquário escorrendo pra dentro do próprio vidro, como se houvesse um cano escondido por baixo do aquário. O peixe é engolido de novo e sai no espelho. Passa pelo buraco do espelho, é engolido pelo cano e sai novamente no aquário. Como se estes estivessem interligados.
– Para onde ele foi?
–Isso não é da minha alçada eu só deixo as pessoas na estação – diz o velho. A agua está na altura dos meus joelhos agora. Noto a pele do velho mais uma vez. São escamas, seus olhos são os olhos negros de um peixe, o nariz do velho descola do rosto e cai na agua.
– Estou morto não estou? – o velho sorri.
– Acho que te subestimei moleque, alguns ficam aqui por anos – diz o velho com um sorriso que se forma quando seus lábios caem e os dentes ficam a mostra, ele agora tem guelras no pescoço.
– O pior são os diretores gerais e gerentes de empresas. Nunca aceitam que estão mortos vem para o limbo e abrem empresas. E são contagiosos também. Agora os deuses insistem em ser chamados de gerentes e supervisores. A gerência fez um monte de mudanças você vai ver... – o peixe é jogado pelo espelho novamente, mas agora com a pressão da agua ele vai parar no chão e nada livremente pela casa toda. A agua esta na minha cintura agora.
– Certo, venha comigo moleque – o velho para no meio da sala, então começa a se elevar acima da agua. Um barco surge a seus pés, ele me puxa para cima. À distância escuto a explosão de uma bomba atômica, um empresário chegando ao trabalho. Durante o clarão vejo a silhueta de crianças indianas na parede, costurando. Então o clarão termina e elas desaparecem. Subo no barco com o cogumelo da explosão ainda brilhando na janela.
– Isso quer dizer que eu vou ter que continuar trabalhando até depois de morto?
– Bom... sim e não. Você não morre mais então se estiver sem dinheiro só vai parar na rua e ficar sem comida, mas fome dói garoto. Você vai querer ter algum dinheiro. Sem falar que no inferno te cobram a conta do gás, tridentes custam dinheiro também alguém tem que pagar a conta...
– Eu vou para o inferno?
– Receio que sim – diz o velho com uma cara despreocupada. O barco faz uma curva e entra no meu corredor, mas agora ele se estende por uns cem metros antes de fazer uma curva.
– Mas você falou que não sabia pra onde as pessoas iam... – falo sentindo-me traído. Colunas jônicas aparecem no corredor, meio antiquado para o meu gosto... Mas hey, quem sou eu pra julgar? O barco segue.
– É eu menti, não queria alongar a conversa, mas você percebeu, a gente começou a conversar... e bem... aqui estamos – em algum ponto as paredes de reboco se transformaram em pedras, eu nem vi quando.
– Márcio está no inferno também?
– Não, foi para o céu, pobre filho da puta. Na verdade você deu sorte...
– Porque diz isso?
– Tem noção de quanto é o aluguel de uma nuvem? No céu todas as nuvens são por imobiliária e ninguém tem fiador... Para ser fiador no céu você precisa ser pelo menos um semideus – chegamos à curva, o velho manobra o barco e eu avisto uma cancela mais a frente.
– Ah, o pedágio... esqueci de te fazer parar em um caixa eletrônico, bom não tem tempo para isso agora. – o barco para logo antes da barreira e o velho me cutuca. – E ai? Não vai fazer nada? Está esperando um convite formal?
– Eu tenho que pagar?
– Lógico? Morreu com alguma grana no bolso... – um braço se estica para fora da cancela, é o velho de novo – ...tem que morrer uma grana na minha mão! – continua ele do outro corpo. Entrego o dinheiro com certa mágoa.
– Desculpe garoto, tenho que ganhar o pós vida de alguma maneira. – a cancela se levanta e continuamos pelo rio.
– Alias, me faz um favor. Se por acaso reencarnar avisa a galera para parar de por moedas nos olhos dos mortos. Odeio moedas. Manda colocar dinheiro vivo, notas, cédulas, ou cartões de crédito mesmo. Tem cobertura aqui agora, menos Elo. Elo não pega – o velho continua a remar já posso ver o porto no horizonte.
– Pedi para Jesus passar o recado, mas o garoto tem contatos. Sabe como é, filho do chefe e tal... Arranjou um emprego de subgerente e falou que não põem os pés na terra nunca mais... Chegamos!
– O que eu faço agora?
– Segue reto, a saída é pela loja de presentes, tem que comprar alguma coisa se não o Cérbero não libera a porta. Cuidado com a cabeça! – não adianta nada bato a cabeça na pedra assim mesmo, entro na loja de madeira não tem outra porta.
Lá dentro tem pequenos diabinhos de pelúcia, um bonequinho articulado de Hades na pilha de promoções, Lúcifer vem com mais acessórios e custa mais caro. Deve ter mais saída. Agarro um cachorrinho de pelúcia com três cabeças, talvez agrade o balconista.– HEY, tira as mãos da mercadoria! Quebrou levou! – pelo jeito não.
– Tudo bem, vou leva-lo – Cérbero sorri com as três cabeças ao mesmo tempo.
– Hum, tem bom gosto garoto. Pode passar. Se precisar de emprego fala que eu te mandei.
As portas se abrem alguém me dá um cartão ponto feito de carne humana.
– Coloca ali pra marcar a hora de entrada – diz um demônio apontando uma cabeça de vampiro decapitada.
– Você não vai me espetar com esse negócio? – digo apontando para o tridente.
– Há e gastar a ponta? Eles me cobram o tridente quando tem que trocar. Estou guardando o meu para quando o Celso Portioli morrer.
– Boa escolha.
– Agora ao trabalho! A rainha do inferno está te esperando, ela não tolera vagabundo.
– Por onde?
– Bem ali.
O demônio me aponta para uma sala com portas maciças de madeira e três metro de altura. Na porta tem um busto da AynRand. Comecei a entender o desprezo do barqueiro...

Humanos de merda! Nem morrer é de graça.




Bruno Marafigo é um artista plástico e escritor curitibano, publica quadrinhos na internet desde 2011.

Tara e outros otimismos, de Linaldo Guedes

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Por Adriane Garcia


Ler Tara, de Linaldo Guedes, é uma grata surpresa. Não é sempre que nos deparamos com um livro temático sobre sexo, e que não aflua para o puramente vulgar ou para uma antilírica tão exarcebada que faça perder toda força póetica ou ainda, perder aquela fronteira controversa entre o erótico e pornográfico; mas que ela existe, existe.

Tara é erótico, sem medo de sê-lo, e é também um livro de poesia, com tanto que há de bom no gênero: rico, ritmado, diverso em referências, leve, mas sem negar a dor, mesmo das relações onde o que está envolvido é também o prazer sexual.

Em tempos de liberdade total da palavra (como vocábulo), mas de uma vigilância acirrada da palavra (como ideia), Linaldo Guedes vem construir um livro onde o sexo é heterossexual, onde o desejo é do homem pela mulher e onde a mulher é o lugar onde vai morar este desejo. É esta variante sexual que Guedes vivencia em seus versos, é sobre sua existência real que fala, é sobre o sexo como matéria, é sobre o eu-lírico que experiencia o encantamento pelo sexo feminino, o prazer pelo gozo que o sexo oferece e os sentimentos que podem acompanhá-lo.

Em alguns poemas, Tara traz como conflito a tentação, sexo como força possuidora que desordena os sentidos, que nem sempre é confortável e bom. Tentação, consequentemente, faz-nos pensar na ideia de castigo. Quantas gerações não foram “formadas” associando o sexo ao pecado?

Por vezes, estará ligado à violência, ao sangue, ao vermelho; não por acaso, a cor do líquido menstrual que, consciente ou inconscientemente, remete à dor do fruto perdido, do fruto não amadurecido nem concebido. A frustração última da natureza no ato sexual. Sexo também na forma de instinto, espécie de escravidão e de música.

Chama a atenção uma força sensual que alguns versos destacam nos músicos. Um músico, e seu instrumento, ganha sempre uma estatura maior do que aquela que o homem simples (sem o instrumento musical) teria. Mais de uma vez esta ideia que une potência de vida, de sexo, ao corpo tocado como instrumento que emite sons, resposta, será contemplada. A intuição de que o corpo toca e ressona. O que Linaldo Guedes faz é perceber esta sugestão, transmutar essa força bruta em construções belíssimas, com esta:

O anjo e o sax

na madrugada melancólica
um anjo distraído
absorve a vida
no toque beat de seu sax

do outro lado da noite
alguém bebe aflito
o singelo sonho
de sangrar
com prazer
os seios
satânicos
do anjo
saxsolitário.

Tara é uma viagem aos elementos deste universo, ao fetichismo, à felação, à cunilíngua, à masturbação, uma celebração deste bicho cultural, que reinventa o sexo, que amplia mesmo sua essência e que, por fim, não consegue aceitá-lo apenas mecanicamente, como os outros bichos; que faz do sexo algo maior, a resolução, equivocada ou não, para carências outras, muitas vezes com “fúria e urgência”:

a dor
fazendo versos
nos caracóis de teu sexo

Privilegiar a cama, como lugar do humano, lugar de mistérios e de metamorfoses, lugar do encontro com o outro corpo:

em frenesi
você respira deitada
com um estranho
sorriso ácido no olhar.

Nada de ilibado: libido; um discurso feito de beleza, para o reino de Eros e seu domínio:

ainda seco meus olhos
nos cabelos de tua boceta

A poesia de Linaldo Guedes, em Tara, refaz, reorganiza este caminho que vai do tesão, da conquista ao ato. Que leva à angústia da dúvida sobre a aceitação e à alegria do recebimento e da reciprocidade.

O que eu não falei ainda é que Tara também é um livro de amor e devoção, onde o sexo é um rito de adorar e não de poder.

***


Tara e outros otimismos
Linaldo Guedes
Editora Patuá
2016

Adriane Garcia é poeta, com formação em História, Arte-educação e Teatro.




5 poemas inéditos de Luiz Walter Furtado

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Ilustração: Guilermo Male


Eu

Acordo,
o sonho ainda
a impregnar
a manhã

Na mesa,
uma linguagem perdida:
de quando sons, corpo
e desejo
falavam juntos
e se acreditavam

Bebo o café
e a matéria rígida
do mundo
me desce
pela
garganta

Já não sou eu
quem ganha as ruas.




Memórias das raízes

Comer plantas:

Recolher, na própria carne,
o traje verde
das folhas

Mastigar segredos
enterrados
no silêncio dos tubérculos

Redescobrir
sons futivos
dos passos leves
das feras,
o debater inútil
e desesperado das presas,
nos confins da memória vegetal,
nas raízes
das florestas.




Aprendizado

Há muitas palavras
que perdi

No afã de afinar
a voz
e me fazer compreender,
elas não dizem
mais nada
de mim

Minhas palavras
me deserdaram.




O lado frágil

Na minha mão esquerda,
a pena
de mulher
solitária

Na outra mão, correta:
a clava
e a espada

Às vezes
tento usar esta mão firme,
orgulhoso
de pertencer ao clã
dos mais fortes

Mas,
todo poema me brota
canhoto e frágil
da mão errada.




Pulsar

O falo,
rijo e ereto,
membro-ferro cravado
na fluidez tenra
da carne

Os rios dos corpos:
vermelhos, congestos
Se tudo é um cordis-pulsar,
o mundo
revela seu pulso
e sentido

Enfim,
o infinito
lateja
em cada fração
dos segundos

Imenso, fugaz.





Luiz Walter Furtado Sousa nasceu em Belo Horizonte em 1957. Médico pediatra na cidade de Ouro Preto, foi descoberto pela poesia há cerca de dois anos. Tem poemas publicados no número 12 do Caderno-revista 7faces, na revista Mallarmargens, na Germina- Revista de Literatura e Arte (Suplemento Literário) e na Revista Virtual Cultural Carlos Zemek. Seus livros ainda estão inéditos.
Contato: E-mail: lwfsousa@gmail.com

Girassóis maduros - Léo Prudêncio

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Ilustração: Keith Parks


Retrato do artista enquanto palavra
            (à memória de Manoel de Barros)

I

só sei escavar o poema partindo de palavras
fora isso sou tão comum quanto qualquer outra pedra
e sou tão incomum quanto qualquer ser humano

II

corromper a imagem das coisas é papel da poesia
            [o poeta é um mero transcritor de códigos]
não nos cabe partir do universal
escavamos de nosso próprio abismo o particular de cada poema
cada palavra desenhada aqui é uma parte de mim que se vai

III

a palavra é o desenho verbal das coisas

IV

do poeta?
já não se sabe mais
se é gente coisa animal ou árvore
talvez ele tenha se camuflado em uma palavra qualquer



Girassóis maduros

excertos:

8

manhã de sol -
pássaros me procuram
para árvore

11

folhas secas
sobre o chão vermelho.
outono outra vez -

17

me cheio de lua
me desconcerto de chão
me arvoro de si

60

uma árvore me
adotou para seu silêncio.
o haicai é meu fruto

80

de volta pra casa:
ao casulo que me protege
da solidão das chuvas

96

o pequeno pássaro
aprecia seu reflexo no
lago. com folhas




Léo Prudêncioé graduado em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UEVA. Publicou os seguintes livros pela editora Penalux: Baladas para violão de cinco cordas e Aquarelas: haicais.

5 poemas inéditos de Amélia Loureiro

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Observa:
mesmo tendo uma invisibilidade se instalado
ao longo – conjunto/atitudes –

(longe no tempo o início),
a presença imprime o gesto necessário.

Risca a vista.

Agora mesmo não se transporta ao corpo
do poema.
Empreende com o campo/
invisibilidade/massa
(escuro de grandes escalas).

Recusa a se declarar. Método.

Guia ordinário – dura o ato mínimo. 
Caminha na rota estreita.

Não vêm junto
as mulheres,
os homens,
os bichos domesticados.

A visão, presente, não exige
estrito traço entre o ar e a luz.
Observa-se.

  







Uma gaiola

Muito pouco

Muito tempo

Azul e Preto

Sujeira dentro

ENCAVALADOS

Várzea    E

Condomínio periférico

Sólido

A morrer

Varanda


Bugio









GEOMETRIA SAGRADA


Um fio cheio de franjas preso ao teto e solto até o chão no centro de uma arena em arco.

Um semicírculo em suas imediações. Um semicírculo de ritmistas.

Duas plateias, uma de frente para outra, tendo o fio equidistante a ambas.

Um pequeno agrupamento de participantes de frente para o fio e para os ritmistas em semicírculo. Um a um eles realizarão um ritual singelo:

dançando em giro ao som da música vão enrolando em seu corpo o fio
da fantasia. Quando tiver o fio todo enrolado em seu corpo, a música para. Para todo o movimento. O corpo atado também paralisa

– em forma de tensão (como quando o trapezista tem o fio bobinado em seu corpo e nós não sabemos o que virá depois). Em seguida, o corpo recomeça num ritmo vigoroso a sua dança reversa. O fio vai se desenovelando.

Quando o fio estiver solto e o dançarino assim tendo terminado a sua performance, batem palmas entusiastas os outros participantes, e os ritmistas tremulam seus instrumentos unidos em ovação.

Feliz, o dançarino agradece gestualmente e se coloca como o último na espera de entrar em cena. Tudo se repete com o próximo a ingressar na arena.




  






égua                                            trégua

névoa   cerração                         formula o ilógico

vagas                                          um risco

neblina                                        o riso

rio                                                infuso

treme                                           treme

infuso                                           rio

o riso                                            neblina

um risco                                       vagas

formula o ilógico                           névoas      cerração

trégua                                            égua









O mundo super populoso

Mais mistério haverá
para explicar como alguém
se distingue da multidão
sem ser avistado






Amélia Loureiro nasceu em Minas Gerais. Mora atualmente em São Paulo. Com formação em Psicologia, mas sem interesse em exercer uma profissão definida, atua em criação e produção em arte e cultura – teatro, performance, literatura, música, rádio, vídeo, e nos campos da moda e design. Como performance designer, faz proposições ético-estéticas com foco em novos modos de vida, exercendo atividades de curadoria e direção de espetáculos. É autora do livro Meninínima, publicado pela Editora Córrego, SP, 2016.


3 poemas de Isabel Furini

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Ilustração:  Stephane P.


A EPIFANIA DOS ESPELHOS

o que posso fazer? – além de envelhecer
e sonhar eternidades?

olho pela janela a suave chuva
e enxergo o vento nás arvores coníferas
estou em Seattle
em esta solidão de bosques e de prédios
e de ruas desertas
e de lagos serenos
por diversão desmembro o tempo
imagens e fatos
emoções e pensamentos
navegam no rio do ontem
e tentam fazer uma ponte
com o amanhã desconhecido

Se eu tivesse uma jaula para encerrar o tempo
viajaria por mundos paralelos

e faria um inventário quixotesco
dividiria o tempo dos homens
e o tempo de Deus – inalterado
e o tempo da formiga e o tempo do amado Mestre
e o tempo de tristeza e solidão
e o tempo do reencontro e do amor verdadeiro.

porque poucos conhecem a verdade
:
os deuses gregos criaram um labirinto de espelhos
para o amor
por isso os homens só enxergam seus reflexos

o amor verdadeiro tentou fugir do labirinto
do mundo dos espelhos
e foi condenado pelos deuses do Olimpo
e ainda está em um universe paralelo
encerrado na caixa de Pandora
e transformado em um ser inaudível
o amor não foi transformado em palavra – mas em profundo silêncio.



MAGNUM OPUS 2

A pedra filosofal está escondida
nos interstícios das emoções
e acorda as sombras
que murmuram diante dos espelhos
e as incita a construir versos
com a argila de palavras e silêncios

nas águas do lago das emoções
(em círculos concêntricos)
o vento agita sombras e recordações

a luz das velas sombreia o passado
e os pesadelos
sitiam a alma do poeta

poligonais sentimentos
espreitam o lado escuro do universo paralelo
onde dormem os versos

e os fantasmas murmuram poemas
perto dos ouvidos de um poeta
e fazem tremer
o coração em sombras

na retorta alquímica
a mente do homem é dissecada
sonhos e pesadelos se confundem
na caverna ardilosa da memória

como um barco entre ondas de água
de mercúrio e enxofre
aproximam-se as recordações
e as emoções
de todos os poetas alquimistas que tentaram
recriar a pedra filosofal

a aldrava dos sonhos
abre-se diante dos olhos amedrontados
do poeta
e a vida com suas ululantes verdades
apresenta antigas filosofias

as chaves do outro mundo estão guardadas
no cofre do inconsciente
e o pé de romã guardado pela serpente da solidão
invade o território do silencio.

foi com uma romã que o deus Hades
enfeitiçou a bela Perséfone
chorou Demeter
e suas lágrimas convertidas em flores
iluminaram a Terra.

ancora nos olhos do poeta o mercúrio do amor
a enfeitiçada humanidade corre procurando o ouro falso
e deixa o ouro da alquimia esquecido no porão

nas noites de insônia
enferrujados conceitos são renovados
ecoam nas retinas
as verdades dormidas de outras vidas
e o poeta pensa
:
sempre há espaço para flores e serpentes
no deserto inóspito da mente
e na dimensão infinita da Poesia.



MAGNUM OPUS III

o ouro alquímico
permanece refletido nas sombras dos espelhos quebrados
e dos sonhos irrealizáveis
nesses espelhos os fantasmas falam  perto dos ouvidos
fazem tremer o coração em sombras
e as imagens do ouro alquímico serpenteiam
no espaço-tempo
e atraídas pelo horizonte de eventos
sonham com a possibilidade de voltar ao caos primordial

a linha do horizonte
esconde-se nas retinas e no oceano de enxofre ou de mercúrio
enquanto o Sol ilumina rústicas máscaras
e permite sonhar caminhos de ausência

o mundo é percorridos em exílios voluntários
e em viagens imaginárias
que iniciam em portos de fantasias
e em labirintos de espelhos
onde mora o Minotauro dos sonhos
entre linhas paralelas de tristeza e esperanças

alquímicos sonhos avançam
para atingir as almas dos poetas
essas almas transitam por caminhos esquecidos
desabrocham em outra realidade
pois muito além deste mundo
existem símbolos abstratos
percebidos pela subjetividade

o milimétrico arquitetar da linguagem simbólica
faz do poeta um ser capaz de realizar a leitura do mundo espiritual
as vezes a leitura é resumida em uma caricatura de palavras
ou em construções precárias

o ouro alquímico-poético
revela-se na linguagem dos sonhos
e modifica
as imagens gravadas nas bussolas dos navios
nos relicários antigos
nos leques imaginários
no crocitar dos corvos
e nos moinhos do tempo movidos pelos risos e as lágrimas de cristal

esse piar de pássaros noturnos
marca os contornos da alma e da poesia
o poeta compreende o mundo das ideias de Platão
as águas do rio de Heráclito
e a metamorfose kafkiana

nada foge da percepção aguçada  do poeta
nada
nem a água de batismo nem a noite infinita
nem enxofre do ocaso
nem mecúrio da vida
nada
exceto a realidade cotidiana




Isabel Florinda Furini é poeta e escritora.  Sua paixão é a poesia. Seus poemas foram premiado no Brasil, Espanha e Portugal. Em 2015, participou com poemas de exposições em Lisboa (Portugal) e Buenos Aires (Argentina).  Publicou 30 livros, entre eles, o livro de poemas Os corvos de Van Gogh. Foi nomeada Embajadora de la Palabra pela Fundação Cesar Egido Serrano (Espanha), em 2014; e Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, em 2015. É membro da Academia de Letras do Brasil/ Araraquara; coeditora da Revista Carlos Zemek de Arte de Cultura e organizadora do Concurso Internacional Poetizar o Mundo.

5 poemas de Geruza Zelnys

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1/4 canto

ácida eu era sua
viagem
cosmogônica
um zepelin
entalado na garganta
e você
sonhando irrigação eólica
no meu mangue
seco

caranguejos espadachins
deixam seus túmulos
em andada
pelas minhas coxas
e se espantam dos joelhos esfolados
'pede perdão e reza
o credo' ele dizia depois de gozar
da minha cara
e até hoje tenho medo de gente
destemida

mas não era o caso de me casar
com você
apenas desenterrarmos juntos
a carcaça de um tubarão-rei
xamã dos mares
naufragado nas dunas escorregadias
de suas ancas e omoplata
e eu queria dizer que
sou a pomba-gira do absolut
mas é só o piva assombrando
minhas próprias alucinações

a língua amortecida
o maracatu obstruindo a cantata
sarabanda de natal

e o que importa agora é que também eu
[aqui]
com o catimbó todo
pulsando no peito
exus, ebós& tambores
silenciosos
você
com o lampião à frente
acendendo os quatro cantos
onde chegamos juntos
e solitários

vindos de lugar nenhum



folia

folião apressado:
se o tempo s'esticasse pra além da fantasia
descobriria no meu corpo
a nascente
de toda poesia




concertina

eu te dei o meu buquê de margaridas negras
e você cheirou
duas carreiras brancas sempararprarespirar
eu te contei em segredo o meu nome
gardênia de ascendência escorpião
e você injetou até a última gota do teu veneno
na minha garganta
e eu engoli
suas palavras ácidas
e me roubou três orgasmos porque eu não
queria dar
e então fodemos o amor feito
dois ouriços mexicanos
concêntricos
& alucinados
dezesseis mil picos no skypedia
e o risco
roleta russa na rodovia, ruiva
você rugia
as orelhas roídas
de serpentinas e concertina
um carnaval-de-olinda
em blocos de pêlos
fantasiados nós 2 dedos
suados e metidos
na febre funda da poesia
fodíamos
e era o amor ou quase
riso de pierrô
dentes ensimesmados
fodendo
fodendo
fodendo

ourissos



Miséria 

se me chamasses cabra
sombria
ou emplumada

iluminura
e sacrifício

se me chamasses Miséria
e glória

mojubá ou pomba-
gira


se me chamasses

eu iria



súcubo

nas pontas dos dedos
pequenos tambores

relincham


Ilustrações: Lauren E. Simonutti





Geruza Zelnysé escafandrista com doutorado em literatura líquida. Defendeu a tese de que só os peixes morrem afogados. Fez um pós-doutoradoem filosofia da educação pesquisando a autopoiesis e as potencialidades provocativas,educativas e terapêuticas dasoficinas de escrita literária. Criou o cursode Escrita Curativa. Publicou ‘esse livronão é pra você’ (Ed. Patuá, 2015); ‘9 janelas paralelas & outros incômodos (Ed. Dobradura, 2016), finalista PrêmioSesc de Literatura 2015; ‘tatuagem: mínimo romance’ (Ed. Patuá, 2016), contemplado com o PROAC 2015. Tem poemas plantados em diversas revistas impressas e virtuais. É professora, pesquisadora, tradutora, poeta, rezadeira e equilibrista. Nasceu em Laranjal Paulista. Mora em São Paulo, mas vive no interior. Escreveno blog geruzazelnys.blogspot.com.br

TARDE - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Arte abstrata na Nebulosa de Orion - NASA



no horizonte percebo fronteiras e mendicâncias
cores escusas, sem muita valentia, balançam , em mau agouro, águas
insalubres de fel e ferocidade

amenidades que desprezo, pois, enfim, eufórica canção sem estribilho
movimenta os pecados, quase insanos, dos muitos que se desorganizam

para nova fraude... parece que metálica e atávica é a senda – primaveril –
de dias descobertos, velados de pão e água, marejados de alma e limbo

aturdidos da sina – essa ave de pouca empatia -  afundada em sua remelenta rede
de poucos peixes e muitos indultos.... crescemos em torno dessas bandagens
frias frívolas que nos atém ao palco sem protagonistas quase limpo de histerias
magro e ralado dos desperdícios envolvidos em cremes e delícias e dourados...

amargos - entre cada toada menina medusa melíflua misericordiosa....
nossos entretantos, nossas divagadas palavras,
os entes que se desesperam e perdem a deixa, a mesura, o enfeite
de se saber esculpido de algum sentido...

objetos e artes e faces.. tão vazios
onipresentes e oriundos de um antigo feixe de linhas luz e liberdade

se acomodam em suas olheiras de muito pó e rímel até o alarde
de todas as substâncias amarfanhadas, descaradas
prontas e límpidas para o horizonte vértice de um novo hino

que tarde, que tarde....


JANDIRA ZANCHI

CONCURSO LITERÁRIO PARA JOVENS POETAS LUSÓFONOS

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Após o sucesso do primeiro volume da antologia “Emergente – Novos Poetas Lusófonos”, destinada a autores dos 18 aos 30 anos, o escritor Samuel F. Pimenta lança a convocatória para a participação no segundo volume, em parceria com a editora Livros de Ontem. O prazo para o envio de trabalhos termina a 31 de Outubro.

“Quando instituímos o concurso, em 2014, já prevíamos o segundo volume da Emergente, é natural que surja esta convocatória. Para nós, é importante garantir a continuidade do projecto, com tantos volumes quanto nos for possível publicar. É vital manter tudo o que seja incentivo à escrita e publicação de poesia”, explica Samuel F. Pimenta, criador do projecto.

Na primeira edição do concurso, participaram mais de 100 autores, oriundos de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde e Galiza. O primeiro volume da antologia, publicado em Maio, integrou 12 jovens poetas, seleccionados por Samuel F. Pimenta, João Batista, CEO e editor da Livros de Ontem, e a escritora angolana Ana Paula Tavares.

“Independentemente do local onde residam os poetas, a única condição é expressarem-se em Português, qualquer que seja a sua variante. Estão incluídos, também, todos os poetas que vivem na diáspora, assim como os que não têm o Português como língua materna, mas que optam por escrever em Português”, acrescenta Samuel F. Pimenta.

Recém-galardoado com o Prémio Literário Glória de Sant’Anna 2016, para o melhor livro de poesia de países e regiões lusófonas, Samuel F. Pimenta considera que a Emergente é uma forma de “promoção da escrita de poesia em português e procura esbater as dificuldades que muitos autores estreantes encontram no processo de publicação dos primeiros textos”.


Para saber mais sobre a antologia

e o regulamento,

consulte clique AQUI



Mais informações, pedidos de imagens, entrevistas:






SARAU DAS GERAES | OURO PRETO | 28/07

ALEX HAMBURGER LANÇA LIVRO NO RJ | 26/07 | 18H | OI FUTURO DO FLAMENGO

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Caros amigos,

Tenho o prazer e a honra de convidá-los para o lançamento do meu livro de (anti) poesia Doctypes
e projeção de Visopós na próxima terça-feira, 26 de julho, no Oi Futuro do Flamengo, entre 18 e 20h, conforme convite e release anexos.

Contando com a sua inestimável presença, aceitem o meu afetuoso abraço,

Alex von Hamböerguer


*   *   *





Doctypes é uma antiobra, um antilivro, e se situa como proposta para despertar ou disparar movimentos de pesquisa no campo da poesiaconceitual. Modalidade que ainda não teve o seu lugar no país, este livro é uma transcrição em linguagem HTML de um dia do diário eletrônico do autor na rede social Facebook

Desde as "parole in liberta" futuristas, os "caligramas" de Apollinaire, a "tipoesia" Dada e o "zaum" cubo-futurista, passando pelo "concretismo", "letrismo" até o "poema-processo", a literatura experimental tem acompanhado discretamente a chamada grande literatura.

A vocação da poesia conceitual aponta no sentido de explorar o terreno do experimentalismo em poesia por meio de estratégias como a apropriação e  reciclagem de textos preexistentes de diferentes formatos, devidamente processados por meio de um dinâmico sistema de mapeamento dos códigos históricos experimentais, onde os signos são organizados conceitualmente ao invés de gramatical e sintaticamente, isto é, a ideia prevalecendo em relação ao conteúdo, revelando novos mecanismos de geração do poema, uma prática com ênfase nos componentes constitutivos da invenção, da surpresa e do afrontamento.

A presente coletânea é uma tentativa de sairmos desse estado de semiclandestinidade em que se encontra o experimentalismo em poesia, afirmar a sua legitimidade, constituir seus métodos no âmbito de uma civilização telemática.

Alex Hamburger

Maio de 2016


LEIA TRABALHOS DO POETA






Outra taça - Marcos Samuel Costa

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Outra taça

E não vos embriagueis com vinho, no qual há devassidão (...)
Efésios 5: 18p.A

Diga a parede emudecida verbos
luzidos de traumas, e vá em cima de um gato
contar formas geométricas dos olhos lúcidos
daqueles mortos que repousam sobre outra taça
de devassidão. Outra taça – já contei muitas formas,
porem, encontrei uma que não tivera nem nove ou doze
lados, era incontável.
A forma que levanta pela manhã em cima de
meu cabelo lembra ondas de um mar morto,
outras funções da física desequilibram e caem
do chão rumo ao obliquo – mantenha direção
dos gestos, erga as pernas e siga as linhas
contornadas em meio ao movimento.

É necessário que se mantenha longe do vinho da devassidão,
antes
por onde              ele entre em meu corpo
faça
devassidão
ruinas

outra taça agora seca, outra taça agora seca, out
rataç
a agora se
ca, outras e outras taças e taças

agora seca.



Sumptuosamente moluscos luxuosos

Sumptuosamente moluscos luxuosos desenrolam-se de dentro
dos moveis – conto entre os dedos – alguns decolam
entre as cores já cansadas de lagrimejar begônias,
fome do sopro divino, capim outrora
nascerá entre o coração e as águas movimentadas
da crina de um mamífero quadruple,
eles estão sumindo, criaram entorno das cascas asas
 – possibilidade de evacuação.

Houve cartas trocadas, uma luz no campo nostálgico,
poemas escritos na face dos ácidos olhares
ilustrados de terra e formulações químicas,
outro – campo de energia positiva e lascívia,
acompanha o círio de tortuosas lágrimas tão minhas,
sumptuosamente indícios de grama
pairam no ar.





Rosa negra

Rogo diante da rosa negra – pétalas imortais,
uma abelha negra aproxima-se do quadro negro estável
sobre o fio que me liga a maturnidade,
cínico cilindro observável aos olhares – pois tudo
é o nosso tempo, de abrir e fechar páginas,
nos bicos dos anos fotografias
                                 é minha vez
abro ilhas
                    naufrágios
tempo todo ainda não é tempo de colher flores negras neste dia escuro
verei veremos diante deste céu oculto  





Lição de imigrantes

Contra o sol balanço um pano amarelo
que lembra sentimentos estrangeiros e vidas antigas
diante desta minha de hoje,
sigo alguns passos a frente,
vacas loucas fazem voos longos 
e ratos caminham no fio
entre lucidez & loucura

a casa
foi derrubada, livros queimados, parentes esquecidos,
uma vida que se formula
diante das mudanças todas
sigo alguns passos a frente, nada vejo
a morte muito próxima dita
poemas


Ilustrações: Esther/deviantART


Marcos Samuel Costa é natural de Ponta de Pedras, Marajó, Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social (FMN), e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. É membro correspondente da Academia de letras do sul e sudeste paraense e da ASPEELPP-DJ (Associação literária Dalcídio Jurandir). Autor dos livros: Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), e Titulado amor (editora Literacidade, 2014), e um em co-autoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux). Participou de mais de 20 antologias literá­rias, entre elas I Anuário de Poesia Paraense e publicou na revista Mallarmargens.
e-mail: samuelcostaspds@hotmail.com.br   ou Samuel_pontadepedras@hotmail.com .
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