História universal dos degraus
Com um pé para fora do quadrado do seu quarto ela parecia querer alçar alguma espécie de voo, ou mesmo partir dali para outro lugar qualquer ou para um lugar-nenhum, feito personagem de quadrinhos, ou simplesmente sair um pouco, respirar. Eu tinha a impressão de que o ar daquele ambiente hostil, sinônimo de distância e esquecimento — mesmo pertencendo à mesma casa — era um ar espesso, formado por fumaças negras, densa em acinzentamentos.
Durante todo o tempo, fiquei observando ela daqui do térreo, com uma xícara de café pendurada ao meu indicador esquerdo. De onde estava, se eu a olhasse, enxergá-la-ia perfeitamente através do vão feito pela escada em espiral que, como uma serpente, subia até a andar de cima presa à parede esbranquiçada.
Por um momento, a perdi de vista, mas foi realmente por um curto instante e logo meus olhos de novo a fitavam.
Julian nasceu assim, o que fazer? Era a eterna pergunta que soava por todos aqueles cômodos, durante todos aqueles dias e anos, mais precisamente, trinta e três anos. Na segunda vez que a vi, naquela manhã outonal, ela me surgiu muito rápido e atravessou o pequeno corredor do andar de cima. Só deu para prestar atenção na capa preta com forro em vermelho que, pela velocidade impressa à corrida, balançava feito uma bandeira hasteada no posto mais alto de um mastro.
Desde muito pequena Julian demonstrou apego aos super-heróis e heroínas que via através da televisão. Gostava muito de se fantasiar como eles e sair, mesmo que imaginariamente, lutando contra os inimigos da grande cidade, derrotando os farsantes e impostores, os ladrões de bancos metropolitanos, para depois gozar de seus feitos em paz e num território onde reinassem apenas os seus mandamentos. Com o controle nas mãos, ela descansava, pensava rapidamente numa nova investida, inventava um novo chefe do mal e recomeçava a brincadeira.
A verdade é que jamais soubemos lidar com Julian. Apesar de pequena e dependente, ela sempre nos dominou. Havia ocasião na qual nos botava feito escravos, rendidos servos afeitos apenas para a satisfação de seus prazeres mais particulares. Como da vez em que nos obrigou — a mim e a sua mãe Beatriz — a ficarmos dentro do refrigerador por cinco horas seguidas, sob a sua vigilância.
Julian não era de todo esquisita, nem possuía uma alma ruim. Pelo contrário, tinha um coração humilde, sem grandes orgulhos, que também sabia perdoar. Mas era ressentida, de acessos raivosos imperdoáveis, neuróticos até. O fato de não possuir um rosto lhe era profundamente danoso. Não raro perdia a noção do espaço e tudo a feria. Era mesmo uma besta-fera de ira desmedida, quando a tormenta maior do mundo a atacava e, assim, para que maiores prejuízos fossem evitados, decidimos colocá-la no andar de cima, afastada de tudo e de todos. Ali permaneceria durante seus últimos treze anos de vida.
Tínhamos programado tudo, horário para as refeições, calmantes, conversas junto à porta... Com muito sacrifício, conseguimos mantê-la assim, sem grandes imprevistos, a tirar os baques que dava na porta, quando a solidão excessiva lhe afligia. Por medrarmos de que tal desgraça nos acontecesse novamente, eu e minha esposa resolvemos não tentar ter outro filho.
Desse modo, continuamos a vida. Vivíamos como se não a tivéssemos em nossa casa. Saíamos para trabalhar e nos divertir juntos, como a um casal normal, enquanto Julian ficava presa em casa, completamente trancafiada em seu aposento. Não nos atinava nenhuma espécie de compaixão ou algum resquício de pesar diante daquela situação e, por mais que aquilo pudesse doer em nossos sentimentos, preferíamos evitar qualquer mal maior. E, pensando bem, fazíamos o melhor que podíamos fazer. Era a nossa forma de amá-la, retirando-lhe da mira de quaisquer infortúnios, julgamentos ou retaliações.
Porém, por um motivo maior, resolvemos soltar nossa filha Julian. A casa estava tomada por um odor fortíssimo que vinha impreterivelmente do interior do quarto onde Julian ficava. Um odor realmente intragável que, se não o eliminássemos o quanto antes, logo afetaria as residências vizinhas e, por conseguinte, chamaria a atenção das pessoas para o estranho cheiro. Essa ideia não nos era aprazível e logo maquinamos um plano. Todo o processo fora pensado e discutido com muita calma.
Depois de imaginarmos todas as prováveis consequências de tal liberdade, decidimos apostar na sorte. Treze anos sem vermos o rosto de nossa filha, treze anos de afastamento, treze anos de sujeira acumulada. A curiosidade, sem dúvida, foi um dos maiores combustíveis para a tomada daquela decisão. Amarraríamos uma corda presa à fechadura, com a qual faríamos a força necessária para que a trinca se rompesse definitivamente, porque da chave já não dispúnhamos já há algum bastante tempo, perdida após algumas sessões de dedetização.
Esperamos a manhã, pois era a hora de maior silêncio, no andar de cima. Sempre supúnhamos que essa era a hora preferida de a Julian dormir. E assim se fez. Eu e Beatriz embaixo, no último degrau da escada, imprimimos pressão à corda e a trinca se partiu sem demandar grande esforço. A porta despregou-se do umbral e balançou com o vento que invadia o andar superior. A fedentina espalhou-se ligeiramente, deixando-nos meio tonteados.
Apreensivos, ficamos esperando por longas horas. Logo a casa estava completamente tomada por um forte odor que misturava vários cheiros, depois também nossas roupas, peles e, por fim, nossos cabelos. Misteriosamente, Julian não dava o ar de sua graça e muito menos tínhamos coragem suficiente para subirmos até lá e encará-la de frente.
No primeiro dia, não dormimos, ficamos na sala esperando algum movimento que viesse lá de cima ou um barulho qualquer que despertasse maior atenção. Mas nada aconteceu. Ficávamos preocupados com o que nos poderia acontecer, quando voltássemos de uma festa de família ou após uma reunião de trabalho.
Beatriz não ficava mais sozinha em casa, quando eu saía para comprar pão ou ir ao banco. Se eu fosse lavar o carro, lá ia Beatriz ficar comigo na garagem. Hoje, já nos acostumamos mais com a ideia da porta descerrada, no quarto da nossa filha.
Amanhã fará dois anos que arrombamos a porta. Nesse tempo, vi Julian por duas únicas vezes. Em nenhuma delas pude ver o rosto da minha filha. Na mais recente aparição, a vi numa manhã outonal, muito rapidamente, atravessando o pequeno corredor do andar de cima com a mesma capa da heroína preferida de sua infância presa ao pescoço. Na outra, ela estava com um pé para fora do quadrado do seu quarto e parecia querer alçar alguma espécie de voo, ou mesmo partir dali para outro lugar qualquer ou para um lugar-nenhum, feito personagem em quadrinhos, ou simplesmente sair um pouco para, aliviada, respirar.
André
Existiam dragões no ar. A técnica do sfumato fechava demais o tema. Teimou em continuar o trabalho, cabisbaixando-se. Ele sabia que era preciso mudar. Mudar na luz, mudar na sombra. Pensou em retirar o tom carvão, em parafuso consigo mesmo ficando. Pensou em investir mais no grafite. Diminuiu as mãos do verniz de madeira por sobre a tinta ainda fresca. O pincel entre o polegar e o indicador, apontado para a figura brotando, no escopo a liberdade.
André era um homem cansado da perfeição aos 24 anos de idade. Sem pai, sem mãe, sem irmão, sem casa, sem mulher, sem amor, sem ódio, sem nada e em tudo absoluto.
— Não, perfectione! — rosnou André. — Quero a circunstância que tenha a variedade dos vazios, que tenha espaços incertos, que necessite de borrões.
André sabia que existiam dragões no ar. Tinha a nítida percepção de que ele mesmo os criara, qual um pastor cuida do seu gado, estação por estação, batendo contra o chão o bastão de direcionar caminhos, e que ele arrancara com ira os nós dos cadeados das gaiolas, descerradas agora numa fúria acessada em vinganças. André mataria a si próprio caso não efetuasse uma transformação. Ele tinha consciência disso. Todos tinham.
— Ter um propósito não é estar perto do que é completo. Nenhum trabalho ativo realizar-se-á perante o noturno dos olhos cegos. Nem todos conseguem enxergar a realidade. O que eu vejo neste momento, senão a minha ânsia mais interna? O que representa minha dor, senão a agônica sepultura dos meus arrependimentos?
No ar, os dragões.
Eles e uma fina nuvem de poeira envelhecida pousando sobre os móveis do ateliê. André acocorado, nádegas tocando o azulejo frio, mãos investidas contra o corpo da face, triste, triste. Um artista pensando no progresso e nas unidades promotoras da harmonia, nas potências das tintas avermelhadas e em ideias para um alcance qualquer.
Era André perdido no momento presente, aquele que vive e não tem passado, muito menos futuro. Era um André, o artista, encabeçado numa loucura disposta ao egocentrismo, um jovem orgulhoso, subjetivo, sentimental, um viciado atormentado pelos soltos e revoltos dragões domésticos, e indomados. Um André olhando para si, sem a fiel ilusão dos espelhos.
Observou a luz entrando em feixe na sala escura. A luminosidade tecendo um caminho alimentado pelas minúsculas partículas de pó, um caminho marrom-amarelado, denunciando um apenas pouco de vida naquela tarde desmoronando. Ainda com o quadro não colocado sobre o tripé, André riscou uma linha horizontal com o pincel embebido de um preto fosco. Rápido, nivelou o tom com um cinza-marmóreo, aplicando-lhe uma mão de verniz e agigantando um gradiente imperfeito de sensação angustiante.
Buscou a variação brusca e a evidência na marcação das pinceladas. Queria deixar tudo às vistas. Retirar as vísceras da pintura. Pretendeu não esconder nada. Friccionou o punho sobre a margem azulada, construindo um imenso manto azul que lembrava o mar.
André pensou no dia em que viu o mar pela primeira vez, na primavera dos seus 17 anos. Mas, a lembrança veio-lhe cortante e André se lembrou da última vez que desejou ver o mar. Aprendeu com os olhos os matizes do templo de Netuno e guardou para um sempre hoje as fórmulas que o pai houvera lhe ensinado.
Recostado sobre a mesa antiga, André idealizou um rosto emergindo, o movimento frenético das ondas produzido pela invasão do corpo na liquidez do elemento aquífero. Um semblante acavalado, galopando as vontades mais puras de André, fundamentando toda a profundidade dos abstratos moinhos da imaginação faiscante do artista.
Sem esquecer, pôs a bandeira alvinegra no areal da praia, com um absurdo detalhamento e minúcia. Uma ou outra prova de anunciação e um respeito pelo sonho vencido pelo cansaço das tentativas. Aumentou a dor das rugas porque tinha agora como acreditar na efemeridade do tempo e elevou o quadro, colocando-o sobre o tripé.
Estava pronta a peça e não estava.
André viu os dragões passearem por sua cabeça, num leque de asas arrefecendo suas labaredas. Aquele rosto lindo, velho e forte de um homem feito de água. Uma imagem transbordante digna de enigmas e postulados. E André viu o feixe de luz feito de poeira perder sua força e ir se apagando, pacientemente, como uma velhinha atravessando a avenida movimentada de novidades. E André viu o único espelho do ateliê ser obstruído pela penumbra já quase escuro. E sentiu o fomento no peito de uma lava que descia seus tubos e artérias lhe arrancando míseros e rasteiros ares.
Respirou fraco, sôfrego, pulmões claudicando, órgãos em soluço entre a morte e a vida. Sem suportar-se em pé, André titubeou numa vertigem traiçoeira, segurando-se no quadro. Cambaleou para a esquerda, sem largar o quadro com os punhos em garra, foi para trás e, num volteio, caiu tombado para frente levando o quadro consigo.
Agora, rosto contra rosto, ferido pela fraqueza instantânea, André fitou estupefato o cenho que lhe beijava as bochechas úmidas e azuis, dizendo:
— André, é você?
A doente
Aquela mulher não podia estar bem. Ao menos não aparentava. De maneira alguma aquela mulher poderia estar em condições normais, corpo e alma, corpo ou alma. Parecia estar numa temperatura mais elevada, mais de quarenta graus, uma febre impossível, seu rosto revelava uma vermelhidão quase terrível. Uma mulher ainda nova, coitada. Cinquenta e dois anos é uma idade na qual muito do que nos acontece pode ser apenas uma novidade, uma novidade simplória por se saber ser simples, pois existem aberturas para surpresas várias no decorrer dos anos que ainda podem vingar, e o futuro, todos sabem, é um doce cozido na lenha do tempo. Porque se pensarmos bem, podemos sim contar o tempo. O tempo não é tão senhor assim das horas que são nossas. Mas esse mesmo tempo havia manchado nuances suas antes imaginadas como intocáveis.
Ela era uma mulher dura por natureza, mas o tempo pode sim ser mal, muito mal. Como a pele do rosto, agora flácida, com vincos que mais pareciam vaus secos por onde nem lágrimas poderiam mais escorrer.
Como se acaba assim?,perguntei-me, próximo a ela, depois de tê-la avisado que voltaria outro dia para deixar a encomenda que a mim fora incumbida. Uma das poucas perguntas que lhe fiz durante todos esses anos de convívio.
Acredito que ajudamos muito quando o assunto é autodestruição. Deus também nos deu o direito à precocidade da morte. E quem cuida de tudo isso é o tempo. Ela, a morte, por parecer, ou melhor, por estar óbvia demais no semblante alquebrado da mulher, devia ter feito um boníssimo trabalho junto àquela senhora. Porque podemos continuar, mesmo que o caminho seja de pedra, podemos fenecer se um jardim não for bem regado. Tudo pode aparentar, senão, uma questão de prioridades.
O marido era um sujeito sem escrúpulos, faltava-lhe com o respeito todos os dias, todas as horas, escondia a aliança no porta-luvas do automóvel toda vez que fazia uma de suas viagens misteriosas. Era caixeiro-viajante, vendia de tudo, comprava de tudo e, se possível, negociava até almas. A mulher estocava paciência na despensa do seu coração. Quinze anos de convivência com aquele monstro. Não sei como aguentava tanto sofrimento. Era incrível, mas ali estava ela. Mulher parida na dor, mulher parideira de dor.
Os filhos, dois meninos lindos, eram como se fossem uma espécie de salvação para ela. Depositava neles a esperança por dias mais tranquilos e destituídos de acontecimentos ruins. Mas, nem assim podia ser suportável. Aquela mulher estava doente. O sorriso estava triste, a face abatida, os ombros caídos. No café da manhã, derrubara a xícara de café na frente de todos, agitação. No almoço, percebiam-se os talheres tremerem quando, em suas mãos, grãos de arroz e feijão despencavam do garfo como pequenas pedras em queda livre. Havia certo desespero na cabisbaixeza de seu olhar, um ar de intranquilidade mórbida, doentia. Havia algo dentro dela que estava sem controle, e que permanecia, suspeitável a ser algo muito, muito perigoso.
Talvez um vírus, uma bactéria anômala estranhamente bem desenvolvida, um verme qualquer ainda desconhecido pela ciência, incógnita. Mas, uma coisa havia de estar certa: naquela casa quase monumental da Rua Vieira e Sylva, 234, esquina com a Avenida Comendador Olegário Lopes, onde aquela mulher vivia com seus dois filhos, a empregada e o marido viandante, ninguém percebia, mas eu sabia em mim que existia uma mulher precisando de bastante ajuda.
Sei por que eu a conheço de bons anos. E sei por que depois que fui até aquela suntuosa casa na última quinta-feira, feriado nacional, perturbou-me o seu estado de afetação, mesmo este entrado num silêncio cru e parco. A mulher não tinha vontade. Os filhos andavam de um lado para o outro dentro da casa, brincando com colegas de escola, o marido entrava e saía com certa urgência, resolvendo coisas e aprontando mais novas de suas antigas partidas de destinos impensáveis, e ela simplesmente sentada no sofá largo de veludo, na sala de estar, incólume a tudo e a todos, elaborando um nada absolutamente sufocante do ponto de vista de quem a enxergava pelos ângulos possíveis do aposento.
De sua boca, poucas palavras transbordavam e caíam no mar do ar. Era como se houvesse uma densa floresta impedindo o caminhar harmonioso. Pela voz de algum amigo, fiquei sabendo que ela havia ido a alguns médicos a fim de fazer exames de rotina. Nada havia sido constatado. Nenhuma irregularidade de ordem corpórea. As precauções que lhe foram recomendadas foram as básicas, tais quais as proferidas a qualquer um que se comportasse dentro da esfera de sanidade do ser humano.
Ela visitou parentes no interior, fez passeios por lugares nunca antes desbravados, fez-se mergulhar em águas cristalinas no sul do país, e nenhum de seus próximos conseguia reconhecer nela algum distúrbio de toda sorte.
Pensei em receitar algum chá da próxima vez que à casa dela eu fosse. Ou talvez um calmante para aliviar um pouco do estresse. A última opção seria indicar a clínica psiquiátrica do Dr. Euclides Dória, exímio consertador de mentes destrambelhadas. Porém, uma coisa fez-me escolher o silêncio mortal e achar que, finalmente, não havia doença nenhuma naquela senhora. Foi quando cheguei no outro dia a fim de efetuar a entrega da encomenda.
Estava sentada, com os cabelos molhados como que vinda do banho, seu rosto possuía duas cavidades muito perturbadoras. Ela segurava em uma das mãos, com uma candura indiscutivelmente silenciosa, seu par de olhos verdes da cor dos jardins na primavera.
Ilustrações; Olivier Ramonteu
Germano Xavier é mestrando em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE. Especialista em Ensino da Língua Portuguesa. Possui graduação em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco – UPE. É professor, editor do Jornal de Literatura O EQUADOR DAS COISAS e escritor. Blog O EQUADOR DAS COISAS.