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Um poema de John Ashbery - O progresso (fragmento)

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Desperto-me, meu rosto pressionado
na bagunça orvalhada de um sonho. Era importante,
por causa do sonho, e porque os sonhos são por natureza tristes
mesmo quando há um monte de algazarra e pancadaria
como havia neste caso. Eu quero a abertura
do sonho virado do avesso, explodido
em pedaços de significado por suas próprias questões não formuladas,
para além dos cálculos do céu. Então a esporeira
poderia assumir seu próprio peso desproporcional,
e as árvores retornarem à porta de partida.
Veja, nossos lábios se dobram.


Trad. Lauro Marques

5 poemas de Eleazar Venancio Carrias

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Ilustração: Ismael Nery


Partir

1
Todos os dias penso em partir.
Mas sinto o lodo das pedras,
o deslizar dos peixes e
o calor molhado do ar
de minha terra / minha terra é vermelha /
arrastando-me as raízes,
e sou obrigado a ficar.

2
Todos os dias penso em partir.
Compro o bilhete,
dobro camisas,
separo a escova de dente.
Mas uma chamada interrompe a noite,
rasga o inverno sobre mim,
afastando suas bordas:
diz que quer me ver.
Deixo-me iludir / fui lembrado /
e decido ficar.



Tenho-me desgastado

Tenho-me desgastado mais do que poderia
dar de minhas dores, de minha fé oscilante,
de minha tímida alegria.

Os dias passam sem que eu lhes perceba a carne criativa,
tenho-me desgastado em horas tão vazias!

Não lhes pedirei socorro ou rezas, todavia
nem esse orgulho me livra de saber que me
tenho desgastado mais do que pretendia.

Tenho-me desgastado, senhores, e não lhes diria,
se este copo cheio, se este cigarro aceso
não fossem meu coração oco, não fossem minha alma fria.



Um violão folk

e o limiar da madrugada.
Todo o prédio diz que dorme,
e esse copo é tua estrada.

Não tens raiva, movimento,
não tens vontade de nada,
nenhuma crise se abriu.

Não tens nem identidade.
És esse uísque de Glasgow
envasado no Brasil.



Sobre os instantes solares

Você deve ter percebido,
se já foi dos que acordam cedo:
cada manhã tem seu ritmo.

O que quero dizer com isso
é que gosto muito das séries:
equilibram, não existindo.

O que se não há concebido
assim se explica nos dedos:
fora, razão; tato, no íntimo.

O que quero dizer com isso
diria melhor quem planta milho:
cadência lunar: promessa e medo.

Como, diante de mim, o círculo
grávido de sangue, subindo:
sem tirar do lugar, movê-lo.

O que quero dizer com isso
você já deve ter percebido:
se ali te vejo, aqui me excedo.




Louvado seja Deus que me deu
esta ignorância acadêmica das artes plásticas
sem a qual eu não teria descoberto o poeta Ismael Nery.
Louvado seja Deus por esta inveja grata e quase rancorosa
que sinto de Ismael Nery –
usurpador, com a conivência divina,
sim, profeta usurpador dos versos que eu jamais escreveria
sob outro nome, em outra época.
Louvado seja Deus que me sabendo impossível pintor
também me privou de ser poeta.
Sim, com alguma inveja mas sem nenhum rancor,
louvado seja Deus.




Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, num sítio no interior da Amazônia. Divide residência entre Breu Branco e Tucuruí, sudeste do Pará. Publicou Quatro Gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2008 na categoria poesia. Publica, esporadicamente, no blog Coração Pervasivo e no Facebook. Em 2016 deverá lançar seu segundo livro, Regras de Fuga.

"EX-VOTO", POEMA DE MYRIAN NAVES

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Permiti, disse-lhe:
venha, habite-me. Mas, saiba
quero apenas as inconfidências
não meras reminiscências.
A Musa!

Agora usa confidências
trai, hostiliza.
Então, voz desfraldada
exijo: quero imposto!
O quinto dos infernos.

Contesto em delação
por decadente nobreza d'alma
pelo mais absoluto desejo material
que venha a devassa
o despejo

Eu o esconjuro
e o narro em versos.
Anseio punições
maquiavélicos contratadores.

Decreto, sentença retirada à algibeira:
entregue o ouro! Condena-te à morte
: o tempo.

Faça-se, pois, do pregão a sentença
em pleno olho da rua
que lhe seja cortada a cabeça
deixada em plena praça,
à sanha de quem desejar possa
à desgraça
até que o tempo a consuma
e pássaros
urubus de sãofranciscoportinari
em falta do fígado
que lhe biquem os miolos.

Salguem-lhe as terras,
calcinem-lhe a produção
eu o quero sem nome, sobrenome
herdeiros __ completa a devastação.

Fiz o herói, quero que fraqueje
e tenha restos mortais expostos
não em panteão, em altares-mor
mas em cadafalsos
em cada município
frontispício hospício
cadeia escola hospital
clube social.

Restos mortais degredados
ao desterro! Adapte-se
e só volte com el rei
quer venha ele ou não
espere por seu dom sebastião
ou quem o homem
por trás das ambiguidades.

Após tudo
cumprida a sentença
ordeno, dêem-lhe
pretensa liberdade
deixem-no a putrefar
junto aos restos
em ciclos de ouro
decadente, sempre.

Quero-o livre, que governe a si
arque com as consequências.
Tenha decadente a produção
expropriado, governe-se 
a exibir riqueza vã
falseada, toda poderio
parco, extemporâneo
provinciano. Gaste
louve a deus
os restos.

Arquitete, ser colonial
de gosto estético chinfrim,
em expropriadas artes
mate a própria fome
a sede imensa. Dependa
de bateados metais
em pleno deserto
sem meus rios, veios.

Mantenha as aparências
em centro de ofício
em propícias exéquias oficiais
em desdouro. Matrizes
em louvor à morte.

Em seus casarios
vai subindo por minhas montanhas
sem meu esteio, em minhas terras
sem minha permissão.

Vai
demarcando território
mercado
praças, jardins
chafarizes
solar e fortaleza
centro de poder.

Meus vários tempos
em seu traçado urbano
barroquismo, resplendor
documento à reificação.

Ignore artes & ofícios
os seres da terra
torne-os dependentes
crédulos de vil metal
ouro de tolo.
Cale os sinos
vivencie o inevitável
afinal.

Convença-os
metal vale mais
mais que a orquestra
a banda e santa cecília
a poesia, historia e geografia
mais que a capelinha
plantada nua ao alto
no morro da cruz
única a não receber em visita
o lamaçal podre
o odor.

Governe-se para sempre
preserve nome, empresa
esgotadas as minas
após
louve a pobreza que produz
redija os documentos nulos
e entregue os restos.

Esteja onde sempre esteve
sem saída, sem mar
agora, sem os rios
amanhã, que lhe falte o ar.

Vingança
nunca não deixou de ser bandeira
palavra para sempre 
feminina, prazerosa
vã.

Eu sou a terra, decreto
: tudo passa
o tempo.

Cumpra-se.


*    *    *



Myrian Naves é poeta, publicará Própria Lavra este ano. Professora de Literatura Brasileira, premiada pela UBE com o Adolfo Aizen para inéditos, literatura para a infância e juventude. Gestora da Cantaria, artes & ofícios. Publica em antologias, no Museu da Poesia, na Germina, em BLOCOS ONLINE, como convidada das Escritoras Suicidas, na INCOMUNIDADE.





3 poemas de Gigio Ferreira

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Ilustração: Christian Münzberg


BLOQUEIO

Mas  o que faz  o silêncio  ali...
Infernizando a  paisagem
ou
partindo  a lenda  com suas frases?!
Não se importou  com as curvas  da memória
ao
extrair
das
frutas 
topográficas
as
festas
bizarras
da

ORATÓRIA.



PUNHAL  DE  PRATA

Com pausa
psicológica
não  é  sincero  o  atrito   só  de  ida... 
Entre
os
vãos
persiste a   fração  cósmica
apunhalando
a
exatidão
da
POESIA.



OS  NERVOS  DA  FACA

Diferente da  borracha
se você esticar
a
imaginação   pelo  rabo dos  conceitos
uma
guerra
será
declarada...
Fuja para  um campo de centeio
anunciando
mentalmente
os
sentimentos
das
granadas
matemáticas. 




Gigio Ferreira nasceu em 22 de junho de 1967 no Bairro da Pedreira em Belém do Pará. Estudou Letras na UFPª. Participou do Movimento Cultural Dadalúvio da UFPª.  
Do  Projeto  Cultural  Poetas  Paraenses Versos  no  Ar, da   Rádio  Cultura  do  Pará (FUNTELPA, 2005-6 e 2015 ); Prefaciou o  livro Infância Retorcida do poeta paraense Airton Souza (Giostri, 2012); Colaborou  com a Revista PI 2 do editor e agitador cultural  Luiz Carlos Barata Cichetto (2012-3).  Participou das antologias Vinagre: uma antologia de poetas neo-barrocos (2ª ed; 2013), organizado  pelo poeta Fabiano Calixto;.Em 2013, Gigio Ferreira lança O gringo da Matinta, livro de dramaturgia infanto-juvenil em parceria com a escritora  paraense Miriam Hanna Daher;   A-Massa Barata,  livro de poesia em parceria com a ativista cultural  Joanna Franko, publicado pela  Barata Artesanal,  2014. E ainda,  o livro de contos Chibé de Cobra & Multicabaré (Giostri, 2014). Gigio Ferreira é também poeta performático, e participou em 2014 do show Nuit do cantor e compositor Sérgio Leite; da 7ª ed. do Programa Cultural A Noite é uma Palavra, promovido pela Fundação Cultural do Pará Trancredo Neves, 2015. E do Show Iluminuras do cantor e compositor Heraldo Goez (2016).            Participou da Revista Pausa on line (São Paulo). Em 2015 lança o seu 2º  livro de contos Conversas com Mulheres Nuas  pela Giostri., em 2016  o livro de poesia O Palhaço de Arame Farpado, pela editora Penalux, São Paulo.
 Contato com o autor : gigioferreir@hotmail.com

Entrevista com Luciana Fátima, autora de "Delírio, Poesia e Morte: A Solidão de Álvares de Azevedo"

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Luciana Fátima, professora universitária e agitadora cultural (coordenadora da "Tarde Epicureia", realizada na Casa das Rosas (SP), entre outros eventos), lançou, em 2015, a obra Delírio, Poesia e Morte: A Solidão de Álvares de Azevedo (Editora Estronho). O livro, embora seja um relato da vida de Maneco (como o poeta era conhecido), trata profundamente dos contextos históricos-sociais da São Paulo do século XIX, em seu início de desenvolvimento causado pela chegada da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (fundada em 1827). Esta entrevista foi realizada em junho de 2016 por e-mail.


Luciana, como surgiu a ideia de Delírio, Poesia e Morte: A Solidão de Álvares de Azevedo? Houve alguma resistência por parte da editora sobre o estilo do livro, já que é uma obra ficcional biográfica, sem teor acadêmico, sobre um poeta brasileiro do século XIX?

O livro em si começou muito antes, na verdade. Começou com uma pesquisa acadêmica que, por sua vez, virou meu primeiro livro sobre o escritor: Álvares de Azevedo, o poeta que não conheceu o amor foi noivo da morte. Isso foi por volta de 2005. Eu ansiava – já há alguns anos – fazer uma pesquisa mais estruturada sobre Álvares de Azevedo e também sobre o Romantismo; a partir dali, mesmo tendo concluído o curso de pós-graduação, continuei estudando a vida e a obra do poeta. Fiz um mestrado em outra área (fotografia urbana em São Paulo), mas nunca parei minhas leituras sobre Álvares. Após quase dez anos dos estudos iniciais, eu possuía muito material acumulado e tinha uma ideia bem nítida do que eu queria fazer com este novo livro. Só faltava mesmo encontrar o formato do texto, e a forma de “diário” em primeira pessoa veio quase naturalmente, depois de tantas investigações sobre tudo e todos que cercavam Álvares de Azevedo e sua vida em São Paulo.
Com relação à Editora, eu conhecia o Marcelo Amado, da Estronho, há tempos. Quando eu disse que estava escrevendo um livro sobre Álvares de Azevedo, ele ficou bastante entusiasmado e sempre perguntava sobre o andamento do texto. Até que um dia, durante uma conversa, ele se propôs – oficialmente – a publicar o livro, e passamos a discutir os detalhes. Como também sou fotógrafa, eu queria incluir imagens, então, fui procurar o mausoléu da família Álvares de Azevedo no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, e fiz um ensaio de arte tumular que acabou ficando enorme, pois também sou grande entusiasta desse assunto. Quando o Marcelo viu as fotos, ele gostou tanto que decidiu fazer um “casamento” entre o texto e as imagens. A Estronho – como o próprio nome indica – é uma editora repleta de projetos alternativos, que talvez não tivessem espaço em editoras mais comerciais. Portanto, em nenhum momento, houve qualquer tipo de interferência no meu trabalho. Sou muito grata ao Marcelo por isso e também, especialmente, por ele ter dado uma forma física tão sensacional ao que estava no meu imaginário.



Muito tem se discutido sobre a diminuição da presença da poesia nos dias contemporâneos. Sabemos que os Românticos fizeram parte de uma época em que escritores eram intelectuais respeitados e tomados como referência - embora a geração “mal-do-século”, da qual Álvares fez parte, tenha sido considerada simplesmente um desvio moral juvenil, causando preocupação inclusive em Dom Pedro II. Na sua opinião, como fazer com que a literatura se torne, novamente, referência intelectual no Brasil?

Não sei se acredito nisso. Não acho que a poesia ou a literatura, em geral, volte a ser referência no Brasil. Posso soar um tanto pessimista, mas, infelizmente, é assim que vejo. Os próprios escritores contemporâneos não almejam mais ser esta referência. Não há espaço ou mesmo interesse. Vivemos em uma época em que os autores lutam para serem lidos. No Brasil, os leitores estão cada vez mais escassos e isso inclui os próprios escritores. Hoje em dia, a grande maioria dos que escrevem quer ser lida, mas não quer ler. Ou, pelo menos, não quer ler a nova literatura produzida no país. E esse círculo vicioso acaba por trazer sérios problemas: não é possível ser um bom autor sem ler; e ler somente clássicos pode não ser suficiente. Consequentemente, nos deparamos com diversos textos imaturos publicados por editoras sob demanda (uma vez que as grandes não dão espaço para autores desconhecidos e, principalmente, para os poetas) ou em sites e blogs.
Acredito firmemente que há muita coisa boa sendo produzida por aí. Eu tento ler o que chega até mim e sempre sou surpreendida por ótimos textos de novos autores; mas, com a crescente diminuição no número de leitores brasileiros, não sei se nosso mercado editorial conseguirá absorver e disseminar essa produção que cresce de maneira inversamente proporcional ao número de leitores.
Ainda sobre a presença dos escritores intelectuais, cito também os redutos de escritores que existiam em São Paulo (lugares como a antiga Livraria Teixeira ou a Casa Garraux). Esses encontros de mentes brilhantes não existem mais. Um amigo diz que tenho saudade de um tempo que não vivi, mas, nossos autores do século XIX e do começo do século XX aprendiam não só com os mestres, mas também com a discussão entre pares. Havia uma rica troca de experiências, basta pegar um livro de cartas do Drummond ou do Mário de Andrade para entender do que estou falando. Hoje, paradoxalmente, temos mais acesso do que em qualquer outra época, no entanto, não vejo a troca sincera de ideias literárias. Mesmo alguns saraus literários seguiram os passos da tão polêmica pós-modernidade: todos querem mais ser vistos do que ver, mais serem curtidos do que curtir, mais serem seguidos do que seguir. Não é um mundo fácil para se viver (e escrever) atualmente!

Álvares de Azevedo é um dos poucos poetas Românticos – ao lado de Castro Alves e Gonçalves Dias – a ser estudado com um pouco mais de profundidade nos colégios, talvez pela incrível presença do mito acerca do poeta ainda hoje. Em que sentido se pode dar um direcionamento melhor aos estudos da literatura do Século XIX? Qual é a influência do vestibular nessa distorção das leituras?

O problema do ensino de Literatura na escola é que, infelizmente, ela é dada em uma fase da vida em que nem todos estamos preparados para recebê-la de maneira apropriada. Nem entro na discussão de como ela é ensinada ou do resultado da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que apurou que mais de 50% dos professores afirmam não ter lido um único livro no último ano. A grande questão é que, quando da preparação para o vestibular, o jovem ainda não tem maturidade para compreender a importância daquela base literária na vida dele. Passar no vestibular é a única preocupação. Depois da prova, ele não se lembra – ou não quer se lembrar – daquilo, até porque não há utilidade prática para ele.
O gosto pela leitura é algo que deve ser conquistado lentamente, com assuntos de interesse do jovem, e que falam a língua dele. Basta olhar para o tamanho de alguns livros que são devorados por eles ou pela quantidade de páginas que algumas séries perfazem. Os livros formadores de caráter e capazes de mudar vidas devem aparecer no momento certo (e isso pode variar de pessoa para pessoa, não há regra). O jovem não deve ser “forçado” a ler algo apenas por causa do vestibular; isso o traumatiza. A melhor maneira, em minha opinião, de se apresentar a Literatura para um adolescente é introduzir essa vertente literária na realidade dele, de alguma forma. Seja por meio de comparações com coisas que ele aprecia, como filmes, seriados, quadrinhos, ou outros. Vi, certa vez, uma questão de vestibular que comparava um poema de Álvares de Azevedo com um trecho de um dos livros da saga Crepúsculo e achei muito interessante essa aproximação, porque ela pode despertar o interesse de alguém que nunca tenha se interessado por poesia, mas que se identifica – inconscientemente – com os elementos do ultrarromantismo, que estão todos contidos ali. Enfim, tudo é válido para a criação de um leitor sólido e consciente de como um livro, no momento certo, pode ajudá-lo a romper as tantas barreiras que a vida adulta prepara. E torná-lo um leitor ávido que quer ler mais e cada vez mais.


Muitos críticos e historiadores do século XX, entre os quais Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda e Richard Morse, consideram que a obra de Álvares de Azevedo é uma das mais completas em fidelidade à cidade de São Paulo da metade dos anos 1800. Alguns, inclusive, consideram a obra Macário reveladora do cotidiano paulistano da época. Sabendo-se que, em Delíro, Poesia e Morte..., trata-se de forma muito interessante a ambientação de São Paulo, qual influência concreta da cidade você enxerga na obra de Maneco?

Essa é uma abordagem muito interessante, porque sabemos que Álvares de Azevedo produziu sua obra enquanto estava morando em São Paulo, um lugar de que ele não gostava e que foi duramente criticado por ele em suas cartas e, especialmente, em Macário. Nesta obra, em particular, eu considero a Cidade como uma personagem em si, sendo quase personificada por Satã. Antonio Candido tem um trecho belíssimo no qual fala que Azevedo instaurou São Paulo como espaço ficcional, inventando literariamente a cidade. Isso foi algo extremamente inovador, pois na época, São Paulo era quase uma vila, se comparada à capital imperial no Rio de Janeiro; nada de interessante acontecia aqui, os estudantes da Academia de Direito, mais tarde, trariam agitação, revolucionando o local. E é neste ambiente inóspito que Azevedo desenvolve toda a sua melancolia, sendo ampliada por esse ambiente cheio de spleen. Essa sensação é bastante nítida não somente na obra dele, mas também nas cartas. Muito do que sabemos hoje do que acontecia em São Paulo, naquela época, vem de Azevedo. Um exemplo é sobre um dos primeiros registros da fotografia na cidade. O poeta faz seu retrato para enviar à família e comenta sobre a “mania de daguerreotipar-se” que havia se tornado moda entre os estudantes.
Agora, falando mais concretamente sobre a influência da cidade na obra de Azevedo, acredito que a solidão é o elemento mais presente em todos seus textos. Falei um pouco sobre isso no Post-Scriptum do meu livro. São Paulo tem essa característica de cultivar indivíduos solitários; olhe ao redor e perceberá. É um estranho paradoxo. Mas, creio que talvez seja exatamente essa característica de seus livros que o tenha feito sobreviver até os dias atuais. Não há como não ler aqueles versos cheios de angustiada solitude e não se sentir atraído para o buraco negro da alma do eu lírico. É impressionante como, mais de 160 anos após sua morte, Álvares de Azevedo continua tocando a lira que encanta a todos nós.


Quais eventos ocorrerão nos próximos meses para a divulgação de seu livro? Onde os leitores poderão obtê-lo?

O livro está completando um ano e, durante esse tempo, eu fiz inúmeras ações ligadas a ele. Busquei fazer coisas bem distintas, não apenas na intenção de divulgar meu trabalho, mas também para resgatar a memória de Álvares de Azevedo, atraindo a atenção de diferentes pessoas. Além dos lançamentos em livrarias, organizei – em parceria com a Turismo na História – uma caminhada histórico-literária, seguindo os passos do poeta pelas ruas da cidade; alguns saraus, sendo a nossa Tarde Epicureia na Casa das Rosas, bastante prestigiada, com música celta, leitura de poesias e exposição fotográfica; e dois eventos para rememorar a data de morte de Álvares – em parceria com a Biblioteca Mário de Andrade e o Cemitério da Consolação –, unindo arte-tumular e literatura. Seguindo essa linha, há uma exposição de arte tumular na Cinemateca de Curitiba, até o início de julho.
Para celebrar o aniversário do poeta, em 12 de setembro, talvez façamos algo na Biblioteca Álvares de Azevedo, mas ainda não temos nada certo; são planos apenas. Estou torcendo para que dê certo! Eu tenho muitos projetos sobre Álvares de Azevedo, mas não acho que consiga realizar tudo, bem como todas as ideias artístico-literárias que tenho na gaveta. Vou fazendo o que é possível e estou muito feliz com o que fiz até o momento. O retorno dos leitores tem sido fabuloso!

Sobre o livro, é possível encontrá-lo em várias lojas virtuais (Amazon, Submarino, etc.) e algumas físicas, bem como diretamente no site da Editora Estronho. O Marcelo manda card e marcador de livro de presente! O site é: http://estronho.com.br/editora/delirio-poesia


Beijo, boa sorte – de Ana Elisa Ribeiro, por Adriane Garcia

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Por Adriane Garcia


O título é uma despedida. Já nas epígrafes, um casamento e um divórcio. “Escrevo para me casar” e “por que você não para de escrever/ E passa a dizer tchau?” de Adília Lopes.

A capa, um pano branco de bolinhas vermelhas, sinaliza um vestido, uma saia, sinaliza a delicadeza e sugere alguma dor. Viro o livro, a contracapa é uma grande mancha de sangue sobre o pano do vestido. Respiro. Entro. Abro o livro.

A prosa vem entrecortada de poesia, de forma sutil, segue junto a uma frieza. Fica por conta do leitor certa compaixão pelos personagens. É um livro sobre mulheres, sobre a ótica das mulheres nas relações e de dentro delas. Ana Elisa Ribeiro tem o cinismo dos bons escritores, que dizem isso para dizer aquilo e dizem aquilo para dizer aquilo mesmo.

À fantasia de que mulheres portam-se ou portavam-se apenas passivamente num território patriarcal, Ana responde com donas de casa que colocam na balança homens, filhos e a si mesmas. Mulheres cujas escolhas só podem ser entendidas no terreno da falta delas, mas por isso mesmo, num universo reinventado onde cabe tanto o holocausto para proteger os filhos, quanto o assassinato do opressor. Sua denúncia ultrapassa os lares e vai às ruas, de dentro de um conto, do nada, de repente, Ana está denunciando a violência policial. Neste conto em que fala das prostitutas da rua Guaicurus, famosa zona de prostituição de Belo Horizonte, a autora faz isso como quem nada quer, inverte. E ao inverter, mostra-nos que a realidade é que se encontra com os valores trocados:

(…) Elas estão ali rezando, com as mãos em concha, pedindo que reabram os quartinhos em que atendem os clientes. E elas dizem que não, que não têm nada a ver com o tráfico de drogas. Quem trafica são os policiais militares. E ainda lhes arrancam parte do soldo recebido com sal na testa e cheiro de látex. E ainda xingam-nas. E ainda solicitam serviços de graça. Beijinho, beicinho, chupadinha grátis.”

Seus narradores variam, algumas vezes é o homem quem fala, e quando fala, é de sua boca que sai a confissão da violência ou da redenção que uma mulher lhe causara. Não raro, é de sua boca – como na mais dura e repetida realidade – que sai a acusação de culpa atribuída à vítima. Com recursos da melhor ironia literária, Ana Elisa Ribeiro cava os feminicídios, escancara-os, faz com que este bizarro apareça na obra de arte.

Ontem, saí do primeiro; saí do segundo; o terceiro soco pegou.”

O conto acima se chama “explicação na delegacia de ccm” e, prosseguindo, vamos notando, que onde existe opressão violenta, a violência pode mudar de lado.

A mulher idealizada de outrora é agora Maria da Purificação, a puta. A mulher insatisfeita no casamento fomenta sonhos de adultério – e realiza. A viúva dá uma festa, porque não suportava mais o marido. Outra se submete terrivelmente, e perde a vida para proteger a vida, única coisa que lhe resta, sabe-se lá para qual finalidade. A narrativa é perversa e com requintes de crueldade, mas há sutileza, muita e um humor ácido:

Desde que nos conhecemos me policio para não chamá-la pelo nome da falecida, mas não sei de onde vêm essas desgraças. A boca diz o que nem é sincero.”

Seu humor ácido, quer corroer o que é dado como natural:

Às vésperas do casamento, mandou-me um bilhete, representante máximo de sua franqueza presente e futura: não lavo, não passo, não sei cozer nem desejo aprender, não limpo, não seco, não espano. Baixei os olhos, verti uns pequenos arrependimentos antecipados e me casei.”

Neste universo, majoritariamente de histórias de quem não é feliz para sempre, sobra muito espaço para filhos infelizes, que continuarão a roda sem fim da infelicidade conjugal, do aprendizado do poder violento, do machismo, da humilhação pela subserviência e anulação de seres humanos.

Todo um universo frequentado por mulheres aparece nesta literatura, não podendo faltar a maternidade, que, obviamente, tratando-se de Ana Elisa Ribeiro, não seria decorada com o manto da Virgem Maria. A maternidade que ela nos dá, e que algumas mulheres escritoras começam – felizmente – a nos dar, é a maternidade real, cheia de cuidados difíceis, de resignações e sacrifícios, na maioria das vezes sem qualquer colaboração masculina; é a maternidade repleta de dúvidas e culpa por não se encaixar no que homens discursaram sobre a maternidade que sequer conhecem.

Creio que não seja necessário argumentar sobre a importância de livros como este no mundo que vivemos, especificamente nesta atualidade e no país em que ele foi publicado. Sabemos que nossa formação literária vem com mais lacunas do que simplesmente a dos livros que não lemos por falta de tempo. Há algo novo e complementar que esta literatura abordando o universo e o ponto de vista feminino traz. Este algo pode ser claramente reconhecido neste Beijo, boa sorte.

A literatura sempre foi o campo de se falar o que o mundo é e a melhor literatura sempre registrou o seu tempo.

No final do livro, Ana nos relata que escreveu estes contos curtos no blog A estante, entre 2001 e 2003. É. Ela mora na contemporaneidade desde sempre.

Beijo, Boa sorte
Ana Elisa Ribeiro
Editora Jovens Escribas
2015
72 páginas












Balada (com outro nome)

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Naquelas partes se dormia a sesta com outro nome,
e Carmem com outro nome me fez lembrar de um dia
em que seguia no lado com outro nome da rua da Praia
Tropecei numa nuvem com outro nome bem dura

Tirei do dedal com outro nome
um transatlântico com outro nome


Encontrei em seguida o primeiro e único Zé da Silva
com outro nome, não aquele, e foi quando soube:
Alguém com outro nome disse que eu era ele.

AVELUDADA SINA – JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Rafal Olbinski


se amo
             almejo alforrias
de alfazemas líquidas
e lancinantes
leitosas eletricidades
vãos versículos
             vertidos ao longe

nenhuma sombra
(um grito)
estendido tapete
aveludada sina

pompéias de frutos
guirlandas de sonhos
chão de estrelas estremecidas
(recolhido gozo de algumas fronteiras)
mestiços macerados e sem vantagens)

mirabolantes medidas
entressafra no pórtico
– azul – do deus (seus vinténs e vestíbulos, suas mágoas,
suas fáceis medidas sem religião).


JANDIRA ZANCHI

POÉTICA NA INCORPORAÇÃO - IGOR FAGUNDES ENTREVISTADO + TEASER

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A POSSESSÃO DO PENSAMENTO
EM IGOR FAGUNDES:

ENTREVISTA COM O TEÓRICO-POETA
DAS ENCRUZILHADAS




Com lançamento marcado no Rio de Janeiro para 20 de julho de 2016, no Centro Cultural Justiça Federal, e relançamento em São Paulo dia 27 de julho, na Casa Guilherme de Almeida, o livro Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu(Editora Penalux, 2016) é o oitavo de Igor Fagundes – poeta, crítico e ensaísta carioca, professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o curso de Bacharelado em Teoria da Dança. Fruto de sua tese de Doutorado em Poética na UFRJ, a obra confunde os gêneros ensaístico, narrativo e dramático, misturando música, poesia, filosofia, biografia, ficção e mito para desconstruir os esquemas ocidentais de compreensão do sagrado, os quais resistem, de acordo com o autor, mesmo nos cultos afro-brasileiros. Igor Fagundes mostra que a Umbanda e o Candomblé, para ficar em dois exemplos, vêm marcados pela tradição metafísica, de fundo platônico-aristotélica, na experiência e pensamento dos mitos de matriz africana no Brasil. Para abordar de modo não viciado o fenômeno da incorporação, Igor Fagundes vai ao pensamento grego para desmontar os paradigmas que condicionaram as interpretações cristalizadas do Ocidente, de maneira que mesmo Cristo ganhe nova leitura, liberta do Cristianismo. Redimensionando as questões de deus, diabo, espírito, matéria, tempo, espaço, orixá, identidade, diferença, linguagem e poesia, o livro parte da obra do poeta José Inácio Vieira de Melo, cujo sertão – tornado aí espelho do terreiro – aparecerá tomado miticamente pelas águas que Maria Bethânia canta em dois álbuns de música: Mar deSophia e Pirata, de 2006. Na encruzilhada de José Inácio Vieira de Melo e Maria Bethânia, não apenas o sertão e as águas se encontram, mas sobretudo mitos, deuses, poetas e poéticas de línguas diversas se enredam no silêncio da linguagem: Sophia de Melo Breyner Andresen, Guimarães Rosa, Drummond, Fernando Pessoa, Tom Jobim, Dorival Caymmi, João Cabral de Melo Neto, Antonio Vieira, Homero, entre santos católicos, centauros, musas, erês, exus e orixás.


Em entrevista a Leonardo Davino, professor de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e a Antônio Máximo Ferraz, professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Pará (UFPA), Igor Fagundes fala sobre as dimensões poéticas e políticas de seu pensamento em torno da arte e do sagrado:

LEONARDO DAVINO– Igor, você me ouve? Antes das perguntas, agradeço e abraço. Agradeço pela tese, por eu ter ouvido a defesa da tese, por ela ter encorajado as formas e os sentidos que dei à minha tese. Abraço por devolver a ciência à poesia. E por sanar minhas dúvidas: é possível teorizar poeticamente? É possível transgredir epistemologias, antropologias, teologias em um contexto reacionário, tal como o da academia e também o do país? Abraço por também ser Ulisses na vida, meu irmão na terra-mar. Um“ulissessereia” na incorporação, quando já ouvidor, ouvindo, de tal maneira perfazendo uma audição, desaprendendo: atrevendo-se a uma raspagem.

IGOR FAGUNDES– Obrigado, Leonardo. Fico sinceramente comovido ao saber que o encorajei a manifestar, na academia, as suas próprias forças. A tese é a hora em que cada um deve conquistar e mostrar um dizer próprio. Todos nós somos uma procura concreta e diuturna pela nossa tese, voz: pelo nosso incorporado. Aí não me refiro à tricotomia proposicional e epistêmica “tese-antítese-síntese”, mas ao sentido mesmo dialético e dialogal em que sempre somos e não somos. Tese aí é tudo o que, incorporando, juntando-se e concentrando-se em nós, crescendo e intensificando-se, nos diz sempre como um entre-ser: encruzilhada. Um mundo! E o que diz respeito ao mundo de cada um, não cabe em fôrmas, nas fórmulas pelas quais a academia idealiza o que venha a ser a diferença e o que venha ser o pensamento (ainda que Platão, o fundador da Academia como o lugar da ideia, de uma suposta idealização da existência, tenha curiosamente pensado poeticamente e ao modo do diálogo, de um teatro do questionamento). Não à toa, o último do capítulo de meu livro, ou não capítulo, porque o texto é não linear, é um labirinto, constitui um diálogo socrático, uma consulta no terreiro com o saber e não saber de Pombagira. Um diálogo na verdade dionisíaco por tratar-se de uma dramaturgia em que o questionar culmina embriagante.

LEONARDO DAVINO - Você escreve: “O milagre da possessão: possuir o que me possui, vir a ser o que já sou”. Quanto de acaso e quanto de destino há nesse movimento em direção ao janeiro do rio encruzilhante (entre Maria e José)?

IGOR FAGUNDES - Em um terreiro de Umbanda, recebi de um erê a notícia de que Oxum me guardava um presente, uma missão: um livro a escrever a unidade das experiências aparentemente estanques em minha vida: poesia, música, teatro, dança, mito, religião, filosofia, pensamento?!... Devemos lembrar que o erê é a criança, a revelação plena e primigênia do sagrado, dos orixás. Na medida em que “errância” nomeia o desvelo contínuo do errar, e “andança”, o continuum do andar, “criança” é a instância e estância da criação, em que devemos sempre nos manter para encontrarmos, em tal momento extra-ordinário, a infância da existência agora-aqui, como nosso acontecimento criativo, poético, divino. Mas o que nomeio aí divino? Um ente, uma substância original, um sujeito fundamental? De que maneira o divino e a poesia se referem mutuamente? Destino tem mesmo que compreender uma prescrição existencial? E, se falamos em poesia, podemos supor prescrições?
Há certa tendência acadêmica, digamos, “pós-moderna” (apesar do sucesso desse termo, já defasado por outro, o “pós-pós-moderno”, prefiro me entender como pré-antigo, isto é, fora de toda progressiva cronologia), de negar os conceitos totalizantes que se fizeram dominantes no Ocidente: essência, identidade, destino... Numa espécie de revanche conceitual, passa-se a dar adeus às essências: tudo é aparência, simulacro, existência. No lugar da identidade, o elogio da diferença, da contingência. Dogmático e anacrônico é o intelectual que porventura insista em palavras como “destino”: o humano é construção histórica, (des)construção ilógica. Não há lógica, viva o acaso!
Os conceitos são mesmo ultrapassáveis, mas as questões permanecem. As conceituações de essência, de identidade e de destino que tentaram dar conta das questões que estas palavras nomeiam, anulando outras (como existência, liberdade, diferença, história), são de fato problemáticas. Mas, em cada palavra, o que está em coisa, em cousa, em causa, em questão, é uma saudação do humano a um gesto da vida sobre ele. Em cada palavra é uma questão o que se cumpre e se cumprimenta, o que se mostra e se salvaguarda, e não um conceito: daí, o silêncio de todas as palavras como o silêncio de que todas as coisas participam. A palavra cumpre/cumprimenta as coisas quando, retirando-se enquanto as evoca, deixa vazar e cumprir-se o em-aberto, a própria retirada delas. A palavra apanhaa coisa justamente por e para deixá-la propriamente escapar no seu fugidio acontecimento. Toda palavra é um deixar-se apanhar pelo entre (ser e não ser) das coisas. O novo das questões, das palavras, é tal abertura, tal escape que ao revés nos captura: não equivale à novidade de um conceito, que nasce para tornar-se velho, ultrapassado, a mercê de alguma moda. E a academia adora modas!
Destino virou sinônimo de predestinação, mas destinar não se reduz a pré-destinar. O verbo aí “destinar” já nem se pensa mais, porque, com a inserção do prefixo, só se afirma e só se nega alguma previsto sujeito, agente, fundamento, causa: o gene da ciência, o Deus da religião... Quando, negando o destino, passamos a elogiar o acaso, queremos dizer que os acontecimentos não têm razão, significado, lei. Mas isso é diferente de dizer que não têm sentido. Para afirmarmos que não possuem razão, já terão feito sentido. Este se tornou tardiamente sinônimo de significado, de significação, de ressignificação e, no entanto, sentido não só é anterior a significado, como a condição da própria possibilidade de significar e de ver tudo como significante.
Não possuir um fundamento, significado, é diferente de não possuir motivo, motivação – palavra irmã de emotividade, emoção, comoção, movimento, corpo, presença. Alberto Caeiro escreve: “As coisas não têm significação, têm existência”. Ter sentido é ter presença, força, peso, gravidade em nós, ainda que para revelar a todo tempo uma ausência e, por isso, persistir questão; ainda que seja, então, o silêncio, a ausência, o que na verdade pesa sobre a gente! “Leonardo”, por exemplo, é isto que já precisa ser, fazer sentido, fazer-se presente, até para eu poder, no flagrante de seu retraimento, escape, perguntar “O que é Leonardo?” e compreendê-lo questão porque nunca está dado, terminado e, sim, por dar-se, por principiar sempre no ainda-não e no já-não-mais – tudo isso que o põe na fuga aos significados, conceitos, prescrições.
Você me pergunta o que há de destino e de acaso na encruzilhada! Encontramos a questão do destino nisto que já se pôs no caminho, a caminho, diante de nós, em nós, como sentido-e-silêncio, presença-e-ausente, até para exercemos a possibilidade de escolher, de perguntar, de responder e de dizer que isto não tem qualquer razão, prescrição e, assim, é por acaso! Não somos nós que escolhemos escolher: ser livre já é o nosso destino! Daí, a encruzilhada, lembrando a angústia em Kierkegaard, a dizer “a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”. 
A “morte de Deus” na modernidade antropocêntrica incitou o sujeito humano a crer-se senhor definitivo do real, mediante o livre-arbítrio como superação de todo fatalismo, determinismo. Mas destinar é o encaminhar-se de alguma possibilidade de ser, no sentido de justamente o homem ser possibilidade. Não é o que está previamente escrito, mas o que já recebemos, já somos, sem termos deliberado. Liberdade requer o encontro com o que nos encontra. A escuta de um já incorporado, um já encruzilhado.
Oxum não fez nenhuma prescrição; por isso, suas palavras, como questões, permanecem constituindo o enigma da procura pelo sentido, ou seja, pelo que é e age em mim, esperando tão-só por atenção, diálogo, enfim, pela hora da plena manifestação. Da libertação das possibilidades de ser que incorporo e, consequentemente, sou. Não necessariamente tenho de prever algo ou alguém causandoa possibilidade. Concreta mesmo é a possibilidade que se deu, se dá e que está se dando. Fundamentos – quem ou o quê dá, o porquê e para quê dá – são crenças ou tentativas de capturar, pela lógica, tal gratuidade. Tanto o discurso de que Deus está no comando quanto o de que o Eu está no comando são coisas de crentes. O homem precisa ser muito crente na subjetividade, apostar muito nas razões, nas representações e na consciência como sua religião para prever piamente que a existência está sob seu controle. O vale-tudo do eu sem limite joga o mesmo jogo de onipotência do Deus metafísico.
Em um mês de janeiro, ouvi pela primeira vez o álbum de música Mar de Sophia e imediatamente me veio todo um projeto de pesquisa de doutorado. Maria Bethânia abria este CD com a faixa “Canto de Oxum”. Ela era a Oxum se fazendo presente, entregando-me – em seu espelho – o meu presente. Uma das provocações de meu livro é pensar a essência do agir, do presente, fora da noção de fundamento – seja genético, seja divino; seja material, seja espiritual; seja objetivo, seja subjetivo. No genético, podemos assumir que o átomo é energeticamente sem fundo. O divino – e, neste sentido, Oxum – também não precisa, como energia, equivaler a um ente fundamental. O material é o materialismo? O espírito é o espiritualismo? É impossível pensar de maneira não viciada o destino sem questionar os mais diversos conceitos, sobretudo o de Deus. Como determinar que destino é determinismo, se Deus – o quê ou o quem determina – não necessariamente é um quê ou um quem?! E, sim, arcaicamente, a própria abertura, a própria indeterminabilidade – os gregos diriam: a própria poesia– que move o real, agindo em nós. Quando digo que Oxum me convocou a um presente, estou necessariamente reduzindo Oxum a um sujeito, a uma substância? Ou, antes, Oxum é um verbo de vida, uma força – uma energia, uma poíesis – na qual vida incorpora e se faz presente? Com a gramática herdeira da Lógica que nos rege, falamos em voz ativa e passiva, sujeito e objeto, causa e efeito. Precisamos pensar o divino, o orixá, o destino, nesta dimensão? Os gregos antigos previam uma voz média, sem agente nem paciente, para dizer o Ser enquanto (o) Nada agindo. O mito iorubá tem de estar predestinado à Lógica? Ao teológico, antropológico, sociológico, epistemológico?
Oxum me pede que a escute, ou seja, que escute em mim o que é vida sendo força de presença, para encontrar – dentre todas – a força mais presente. Escrever?! Divino no corpo é justamente o que o lança na criação: na vida da vida. Não qualquer força, verbo. Mas o afeto que mais nos põe à altura da vida em sua radicalidade criadora. É nesta hora propícia, apropriada, autêntica, que a verdade é corpo. E que a verdade-corpo é um deus.
Ao escutar-me, o que deve ou não se mostrar é a irremediável necessidade de escrever. O que significa que ela, mostrando-se sempre nesse caminho como o que sempre a mim se encaminha, encaminhando-me, coincidirá com o que concretamente sou. Na medida em que demasiadamente acionado, inspirado, feito pelo escrever, será este o meu mais intrometido, mais incorporado verbo. Será escrevendo que tomarei, a cada vez, posse de mim: disso que já se impôs como destino, e não cessa de nele se pôr; de me pôr a caminho dele. Quer dizer: todos nós somos o que precisamos ser ou tornar-nos.somos o que precisamos fazer vir a ser, porque, do contrário, não poderíamos vir a ser isto! Só podemos vir a cumprir o que é, ou seja, o que em nós já acenou como possibilidade, sentido: um isto. Em alguma possibilidade, sempre atual, nos detemos. Escrever é o verbo, a força, o presente que preciso ser para poder precisar vir a escrever! “Vem ser o que tu és” (o que sempre já és!). Quer dizer: Vem te apropriares do que te é próprio! Vem tomar posse do que te possui! Tomar posse de teu presente: ser todo livro!
As obras de Maria Bethânia e José Inácio Vieira de Melo foram duas forças, dois afetos, duas provocações para pensar o destino e o ser-presente como um ser-com. Não dava para medir qual a mais forte, a mais necessária, porque era eu justamente a mistura de ambas, as quais, por sua vez, se entrecruzam com outras e outras. Sequer decidi escrever a partir desses artistas. Eu estava, sim, decidido por este encontro, pela encruzilhada das vozes. Perfazendo-se ao modo do afeto, o humano é este sempre tocado por um verbo de vida (um sentido, uma força) que o atravessa e a partir do qual incorpora.Sobre istoque o afeta e lhe é força, não tem nenhum arbítrio.

LEONARDO DAVINO–  Sendo a musa a fonte da mensagem poética, porque guarda o canto absoluto da história a ser transmitido apenas ao poeta, e a sereia a portadora do canto audível para ouvidos humanos, o que é musa e o que já é sereia nesse carrefour de referências, interferências, inferências? Ou seja, é possível e/ou necessário distinguir uma da outra? Ou seja, é tudo entre?

IGOR FAGUNDES– Maria e José (Bethânia e Inácio), com suas poéticas, tornam presentes outras poéticas. Maria e José, presentificando mitos e deuses, acabam se fazendo, em minha poética, mitos, deuses. Tornam presente, enfim, a odisseia do humano em busca de sua casa, de sua diferença na identidade do Ser como a potência desta teia da vida no vazio, no silêncio. Se por “presente da Oxum” eu entendia justamente a minha morada ou pátria ontológica, José Inácio vira nesta saga meu alter-ego: o deslocamento de seus portos seguros para o sertão coincide com o deslocamento de meu Rio de Janeiro para o Janeiro do Rio, para a Fonte do Rio, para o milagre de Oxum, testemunhado no Ser-Tao.
Somos todos Ulisses e precisamos nos perder para nos encontrar. José Inácio, Ulisses no sertão, ouve o canto das sereias, da perdição. Elas são as vozes que põem em delírio e perigo a viagem de cada um por dentro de si. Bethânia, com seus álbuns hídricos, baianos, comparece como sereia de José Inácio – feitiço que o rouba de seus territórios reconhecíveis (a herança ocidental, grega, cristã) para o desconhecido que o extravia das prescrições. Não concernia aos caminhos de José Inácio uma relação mítica com a cultura afro. Mas, no sertão, no Tao do ser, cabe tudo: José Inácio, ao encontrar-se comigo nessa viagem, vê que o milagre da água – a chuva, o rio, o mar feito miragem no sertão – pode ser nomeado Iansã, Oxum, Iemanjá e demais forças que Bethânia canta. As deusas africanas são sereias que desnorteiam o ocidente de Inácio. Mas também o meu. Trata-se, afinal, no livro, da história de um branco, de olhos verdes, descendente de europeu, de repente abismado pelo que há de sagrado e humano nos terreiros.
Enquanto Hermes é o intérprete do mistério, o deus da linguagem entre os gregos, e Jesus é o hermeneuta de Jerusalém, Exu é na cultura iorubá o mito da linguagem manifesta como encruzilhada, diálogo no sertão, com o sertão. A Exu, à palavra que interpreta e presentifica os deuses, José Inácio evoca, mesmo que não se valha do nome. Da mesma maneira que, no terreiro, Pombagira foi o canto da sereia que me pôs perdido para que eu me encontrasse mediante o trânsito, o transe. Desse modo, sereias e pombagiras cantam a qualquer homem em odisseia. Mas, conforme você diz, Leonardo, as musas cantam só ao poeta, ao cantor, ao escolhido para manifestar plenamente a divindade, o extraordinário do que está sendo e se fazendo história. Neste sentido, José Inácio precisa, mais que escutar Exu, deixar-se possuir por ele, para fazer-se um possuído, um vate, um ígneo inspirado, um ignácio incorporado, um poeta: alguém que canta a memória das forças a que pertencem todas as pátrias, culturas, histórias. A que pertencem Drummond, João Cabral, Guimarães Rosa e demais possuídos que aparecem nos CDs e em meu livro.
Diante de José Inácio, Bethânia aparece, então, não só como sereia que fala à sua humanidade. Ela é também a musa que o permite elevar sua existência à arte, à palavra, ao canto da Memória. Todo ser humano é poético, mas nem todo ser humano se apropria do que lhe é próprio, frequentando com a poesia que o frequenta diuturnamente, para colocá-la e colocar-se em obra. Em livro. É neste sentido que Bethânia vira a arte das musas, a música de José Inácio. E a música de mim. Porque é em Bethânia que a busca por minha casa, meu presente, se torna uma obra de arte e pensamento: uma poética. Também fui eu um chamado a ser poeta, um chamado à musa. Bethânia é tanto a sereia que desconstrói as rotas e alarma as procuras quanto a musa que comemora o que se encontra e se proclama como poética. Mas não é só: Maria Bethânia é igualmente uma intérprete dos deuses, uma possuída: precisa deixar-se tomar por Pombagira (Exu feminino) para incorporar a força de Oxum, Iansã e Iemanjá. Nesse horizonte, encruzilhada é sertão. E sertão é terreiro.


ANTÔNIO MÁXIMO FERRAZIgor, tem nome a voz velada que se desvela na sua fala? À falta de um nome, como evocá-la? Ao nomeá-la, ela silencia? Nesse silêncio, o desvelo? Faço-me essas indagações ao ler Poética na incorporação, já entrecruzadas com as palavras do Fernando Pessoa de Mensagem: “Que voz vem no som das ondas / Que não é a voz do mar? / É a voz de alguém que nos fala, / Mas que, se escutamos, cala / Por ter havido escutar”.

IGOR FAGUNDES– É a voz do Ser, Antônio. Mas não do conceito de Ser difundido pelo ocidente. Não de uma ideia de Ser, de um Ser místico, esotérico, sobrenatural, suprassensível... A voz do Ser é a do silêncio agindo agora-aqui, por entre o corpo, no entre do movimento: é a voz do movimento. O real como força manifesta, ou seja, o vidar da vida na e como linguagem. A partir de certa interpretação da obra de Platão, Ser passou a designar um fundamento fora do mundo sensível; uma verdade pura, perfeita, ideal, livre e acima da experiência fugidia, falsa, da carne. Da leitura da filosofia de Aristóteles disseminou-se a prerrogativa lógica do Ser como verdade subjacente, substância, substantivo, sujeito, daí decorrendo não apenas a noção medieval de Deus, mas a noção moderna de subjetividade humana como um euautônomo, capaz de conhecer, julgar e responsabilizar-se por seus atos mediante relações de causa e efeito. Isso condicionou as interpretações bíblicas e, mais tarde, os cultos afro-brasileiros. É preciso rememorar que o ser como ser não é um ente, um fundamento, mas a vida como energia poética, dinâmica abissal. A vida não cessa de se fazer presente. Tal presentificação não se dá sem uma ausência (um “ainda não” e um “já não mais”): tudo o que é ainda não é e já nãoé. Tudo o que énão é. Ser, assim, compreende o vigor do que aparece e ganha delimitação (corpo), desaparecendo, repousando no aberto, no nada, no ilimitado. Escutar a voz do Ser é escutar o que sempre se vela para o desvelo de cada ente, de cada um de nós, que estamos sendo. Enquanto silêncio pulsando, vigorando, Olorum nomeia, na cultura iorubá, o originário de todos os orixás, entidades, sem com isso, ser um ente, um incorporável. Sobre o Ser, sobre Olorum, não há discurso. Não há sequer culto para Olorum. Resta-nos cultuar e cultivar suas muitas revelações: testemunhá-lo no véu das ondas, como o véu dos orixás. Enquanto se ausenta, é a possibilidade mais possível, que tudo possibilita. Porque é a possibilidade das possibilidades, acontece como a mais vigorosa presença e a mais vigorosa ausência. Ocorre que o mito iorubá, ocidentalizado no Brasil, recebe o teísmo (seja ele mono- ou poli-) como condicionante da experiência do sagrado. Neste, não se compreende mais o que, no theos grego, jamais dizia a luz à parte da escuridão, mas o divino como escuridão luminosa, o nada criativo, irradiante. Olorum comparece, em terras brasileiras, ocidentalizadas, como ente-fundamento de todos os orixás. Assim, não só a Umbanda, mas o Candomblé está também sobrecarregado pela metafísica ocidental.

ANTONIO MÁXIMO FERRAZ– Nossa época costuma enxergar a arte, a ciência e a religião como dimensões separadas e até mesmo antagônicas. À arte, competiria o estético, o sensível, o ficcional. À ciência, o conhecimento, o verdadeiro, o real. À religião, a religação espiritual do homem com o fundamento da realidade, com aquela dimensão que a ciência ainda (muitos creem) não pode desvendar (com um maior avanço da ciência – há quem nisso acredite –, o mundo resplandeceria sem mistérios à luz da razão). Em Poética na incorporação, assiste-se à completa subversão desses paradigmas, pois a arte se mostra, a um só tempo, como verdade, conhecimento e o acontecer do sagrado. Esses paradigmas contra os quais você investe, nós o sabemos, legitimam os poderes discursivos dentro das sociedades. Os poderes e deveres são, de alto a baixo, distribuídos em função desses discursos. Os valores são por eles condicionados. É por isso que vejo em sua obra uma dimensão tanto poética quanto política, revolucionária e subversiva, mas em um diverso e muito mais essencial sentido do que o apregoado pelas ideologias. Não se trata apenas de uma subversão do discurso acadêmico. Este é só um lado das coisas (se bem que, para fugir do engessamento do discurso acadêmico, tão tributário de uma cientificidade que não passa de representação de teorias prévias ao manifestar das questões, seria necessário refundar uma linguagem, como você o fez). A maior subversão está, no meu entender, na maneira de pensar a arte, o conhecimento e o sagrado. Desfazem-se as representações do homem investido na condição de sujeito, reduzindo as coisas a objetos, e abre-se uma relação mais essencial dele com o mundo, regida pelo acontecer das questões. Elas convidam o homem a conhecer e a se conhecer como travessia poética, no vigor do sagrado, uma vez que o humano é, delas, doação. As questões nos excedem, não somos nós que as temos, elas nos têm. Somos delas oriundos, por isso não cabem em nossas representações. O fato de jamais se resumirem a uma objetivação representacional é o sentido da sacralidade, que nunca se resume a esta ou aquela religião institucionalizada e é, inclusive, a fonte primeira de toda e qualquer experiência religiosa.
Tendo em vista estas considerações, pergunto-lhe, Igor: em que medida e com que proveito seus escritos, cujo pensamento me parece caminhar pela não-medida de onde provêm todas as possíveis medidas, ofereceriam um caminho de renovação para uma era, como é a nossa, tão dominada pelo poder da tecnociência e pelas religiões institucionalizadas? Você está propondo, ao menos nas dimensões implícitas de seu livro, para quem souber escutá-las, uma revolução? Em caso positivo, de que espécie? Seu discurso é político? Se isto for verdade, o que pretende dizer à pólis, ou fazer que ela escute com a obra que agora publica?

IGOR FAGUNDES– Por força da filosofia que se fez hegemônica, a arte acabou dizendo respeito ao fora-da-realidade, ao mundo da fantasia, a nada que tenha a ver com pensamento, por exemplo, mas com sentimento. A arte, assim, uma dimensão não essencial do humano, mas facultativa e não raro “fabricada” e “consumida” como mero entretenimento cultural ou ornamento estético. Veja-se aí já um certo conceito ou pré-conceito não só de arte, mas de realidade, sem o qual não podemos prever a fantasia ou a irrealidade como o seu contrário. O irreal não é o contrário do real, mas da realização, do fato. Assim posto, o real não se reduz aos fatos, vez que provém e devém da realidade como possibilidade de e para a possibilidade. Veja-se, ainda, também uma pré-posta dicotomia entre pensar e sentir, culturalmente construída por um paradigma metafísico que fundou tanto as religiões quanto as ciências. Veja-se, inclusive, a arte dessacralizada no chamado “pós-modernismo” ou mesmo no “contemporâneo”, que não raro acabam tornando o profano como o seu próprio e novo Deus, reiterando a oposição “sagrado x profano” (na verdade, inexistente, porque o verbo “profanar” – antes de ardilosamente aproximado do sacrílego, do pecaminoso – nomeia o estar em nome dos deuses, o estar de passagem pela abertura da vida; de passagem pelo não limite da vida no limite do corpo, concomitante à ultrapassagem do limite do corpo no e para o não limite da vida).
Enquanto os discursos religiosos e científicos nascem para fechar, concluir, delimitar, restringir as possibilidades de vida mediante a afirmação de uma lei, de um sistema, de uma moral, a arte sabe a vida não na medida em que a fundamenta ou a determina, mas porque a mantém no seu aberto prodigioso. Se o sagrado é a não medida de todos as medidas, só pode ser sabido quando este imensurável, esta imensidão, se mostra. A arte é a hora e o lugar pró-fano por excelência, mas porque justamente diz o imenso (o sagrado) da vida na e como existência, possessão, ou seja, deixa o não dito e não dizível do silêncio se dizer, ganhar mundo, diferenças.
Lembrar que vida é possibilidade significa lembrar que os sistemas são rompíveis e nunca irreversíveis; que há caos em todo cosmo e, portanto, abertura em todas as relações para o novo: um gesto tão poético quanto político. A pólis, que é a cidade como o lugar consumador possibilidades de vivência e convivência, permanece por isso sempre em questão no gesto do poeta. Nisso, política não tem a ver circunstancialmente com político-partidarismo: esquerda, direita, centro... Política é a condição humana de ser-no-mundo, lançada sempre na pergunta pelo sentido do agir, pelo ético, pelo ethos (morada). O lançado na encruzilhada e – por que não dizer – no diabo, no demônio, no satã e outros nomes que originariamente não dizem respeito ao mal. Os gregos nomearam poíesisa essência do agir e, a um só tempo compreenderam nela não só a sophía (a sabedoria), mas a procura e encontro com o ethos, com o ético (nada ainda confundido com a práxisde alguma moral). O problema é que a tradição metafísica pressupôs – e assim ficou difundido – que, no agir, a essência é um fundamento, uma substância original, um sujeito ditador de leis, seja divino, seja humano, quando o humano tomado pelo sem fundo da vida –  pelo sagrado, pelo daimon– diria arcaica e divinamente o próprio demônio (daemoneon).
            Chamando-nos ao terreiro de cada dia e de todo lugar, aqueles que incorporam nos cultos, nos transpõem para o aberto, de modo que o atravessemos. Eis uma travessia em que o corpo ordinário se põe em sintonia e sincronia com o extra-ordinário fazer-se de tudo. Aí, religião não remeterá mais a nenhuma religação do corpo a um distante Deus que o redima, mas à religação do corpo à sua força de proveniência, ao seu daemoneon, que nele e por ele vigora. À retomada, pois, do seu movimento de tornar-se, que é quando a vida se transporta para si mesma, instaurando um nível radical de diálogo consigo.
A vida não está em diálogo radical consigo mesma quando – tentando a todo custo impor o verdadeiro Deus – matam-se os homens uns aos outros, conforme os fundamentalismos religiosos persistentes no século XXI, em escala mundial. Deus, como sujeito, não está morto. Mas, diferentemente do que ocorreu no passado, sua sobrevivência e exaltação não significam o ocaso dos egos, pois o homem, como sujeito, também está vivo. Não se trocando um fundamento por outro, mas os permitindo coexistir e até se confundir, assistimos atualmente no Brasil, por exemplo, a uma preocupante tentativa de justaposição entre lei divina e lei dos homens. O Estado – em tese, laico – tem absorvido numerosos representantes de Igrejas dispostas a inscrever na Constituição seus irredutíveis juízos bíblicos, de maneira que a moral religiosa tome o Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), cerceando o agir do humano. O critério político-religioso não é aí o político-poético. Não é o desabrochar de cada um segundo o que lhe for próprio, segundo a sua diferença. Não é o deixar-ser-humano na mulher, no negro, no homossexual. No cristão, no candomblecista. Sobretudo, não é deixar que cada um seja a diferença enquanto um não ajuizável, um não predicável, um não classificável. Porque a concretude de cada um resta sempre como um acontecimento por vir, inacabado e intransferível, à revelia dos juízos e ideias que venham a acomodar o diferente, tornando-o paradoxalmente – na medida da generalização, da síntese – um indiferenciado.
É por isso que necessitei deste livro; para viver nele a diferença, o meu presente, a minha tese fora das proposições. Meu diálogo com a questão do sagrado antecede e ultrapassa qualquer prova de múltipla escolha, em que eu teria de ser: a) católico; b) protestante; c) espírita-kardecista; d) umbandista; c) candomblecista; d) ateu; e) agnóstico etc. Sou nenhuma das respostas acima porque ninguém deve caber em genéricas representações ou predicados, para coincidir com o seu próprio. Daí, esta “prova discursiva” – o livro – para evitar as “provas objetivas”.
Não estão meramente misturadas e mim representações de doutrinas distintas, acatando ao mesmo tempo dogmas católicos e candomblecistas, por exemplo. Tendemos a pensar os mitos a partir dos ritos; o divino a partir dos cultos e dos sistemas religiosos. Mas não há rito sem o mito; não há o culto sem o oculto, o sistema religioso sem a questão. Meu diálogo é com o mito, com divino posto como questão e resistindo, portanto, a qualquer dogma. Considerar o orixá como questão é bem diferente de acatar o juízo de orixá que a Umbanda e o Candomblé cometeram. Escutar Jesus como questão não significa concordar com as interpretações bíblicas que culminaram no Cristianismo. Os sistemas religiosos tendem a matar o sagrado – o que significa: também não proponho nenhuma nova sistemática. A minha tese não se quer modelo, mais uma teoria ou seita, revolucionária, a que os outros devam aderir. Ela é tão-só o meu rito, próprio; a minha liturgia, a minha comunhão, a minha diferença nascente e concrescente no diálogo com o me arrebata, me fascina, me vivifica. O arrebatador, o fascinante das questões é a sua poesia: meu livro constitui enfim um rito poético, onde o que se cultua é o pensar enquanto agradecimento. É a gratidão do pensamento.
            A ânsia do julgamento, do diagnóstico é tão dominante, que não se restringe ao âmbito religioso. No meio científico, também tentarão classificar meu livro em algum gênero. Trata-se mesmo de escrever e escrever-me a partir de um gênero, de um genérico, de um modelo? Se subverto as normas acadêmicas, bradarão que sou pós-moderno ou vanguarda... Meu foco é, para além do que nego, um afirmar do arcaico, não na nostalgia de um momento anterior da linha do tempo, porque estou pensando fora da temporalidade linear, do Chronos. Retomo um tempo que os gregos chamariam Aion e, nesta dimensão, o arcaico, a arché, o princípio, diz respeito não a um passado localizável, mas ao presentear imponderável do presente: ao aqui-agora em seu movimento de ir e vir, à instância ou pré-instância em que o instante é. Então, se há alguma revolução nisso tudo, reside no tentar revolver o sentido do ser, subvertendo, sim, modernidades, mas também pós-modernidades. Resultará no contemporâneo, mas não como um indicativo historiográfico ou estético, porque me interessa, afinal, tornar-me tão-só contemporâneo de mim mesmo. Se alguém se dispuser a tomar distância de seu espaço-tempo secular para alcançar e manifestar a sua espácio-temporalidade própria, fazendo-se contemporâneo de si, terá já realizado a revolução que interessa. 



*    *    *




Igor Fagundes é poeta, ator, jornalista, ensaísta e professor. Doutor em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Filosofia e Estética nos cursos de Graduação em Dança da UFRJ. Escreveu crítica para o Jornal do Brasil, Rascunho, Panorama da Palavra e em periódicos de arte, filosofia e literatura. Foi colaborador da Academia Brasileira de Letras. Publicou em poesiaTransversais (Prêmio Estudantes do Brasil, 2000), Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004), por uma gênese do horizonte (Prêmio Literário Livraria Asabeça, 2006) ezero ponto zero (2010). No gênero ensaio, publicou Os poetas estão vivos – pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (Prêmio Literário Cidade de Manaus, 2008 – Melhor Livro de Ensaio de Literatura), 33 motivos para um crítico amar a poesia hoje (2011) e permanecer silêncio – Manuel Antônio de Castro e o humano como obra (2011). É organizador de outros quatro livros e coautor de mais de 30. Possui cerca de 60 premiações em concursos literários. Membro do PEN Clube do Brasil. No ano 2016, publica Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu.

7 POETAS HOJE, por Mario Alex Rosa

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7 POETAS HOJE
Literatura brasileira contemporânea tem lançamentos de obras de fôlego no campo da poesia. O poeta e professor Mario Alex Rosa fez uma seleção de trabalhos escritos por mulheres
A poesia brasileira contemporânea vai bem, obrigado. Essa afirmativa assim, tão sem ajustes, pode dar a entender que tudo é sinal de qualidade. O que se pode notar hoje é que existem muitas publicações, inclusive com o crescimento de pequenas editoras. Fazer a varredura dessa enorme quantidade de livros é tarefa difícil, complexa e um tanto perigosa, pois qualquer reparo que um crítico possa fazer a um livro de um poeta contemporâneo pode condenar este a um dos círculos infernais de Dante. Ou mesmo quando cita apenas alguns, omitindo outros, como é o caso aqui, a cabeça do crítico pode ir a prêmio. No entanto, é preciso assumir riscos, pois assim, quem sabe, possamos comentar abertamente a poesia contemporânea em suas diversas manifestações.
Para começar, lembro aqui uma passagem do ótimo poeta Cacaso – um dos mais importantes pensadores de sua geração, que assim inicia uma resenha sobre a poesia da Olga Savary: “Uma atitude que se generaliza entre as mulheres poetas é evitar serem confundidas com a tradicional 'delicadeza feminina', para a qual os críticos sempre apelam quando querem reconhecer algumas peculiaridades em nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa” (revista Veja, 13.out., 1982). A propósito disso, passaremos em revista sete livros de poetas contemporâneas que publicaram obras em 2015. Adiantamos que, por limite de espaço, não há como detalhar certos procedimentos formais de cada autora. Todas as poetas têm mais de um livro editado, tendo Simone de Andrade o maior intervalo de publicação entre um livro e outro, cerca de 20 anos. Já a poeta Denise Emmer é a que mais lançou livros, mesmo porque é de outra geração. Enquanto Ana Elisa Ribeiro, Adriane Garcia, Ana Martins, Tatiana Pequeno, Leila Guenther e Simone de Andrade são todas da mesma geração. Das sete poetas, Emmer, Guenther e Ana Elisa atuam também em outros gêneros, como o romance e o conto.
Se Cacaso estava certo, é possível então sair do clichê “delicadeza feminina” e pensar a poesia das sete poetas como um lugar de autoras que escrevem independentemente dos vestígios que possam haver de delicado e feminino em cada escrito. O que importa dizer é que o poeta deve ficar alheio a esses adjetivos e deixar a palavra poética se impor como processo de transformação, tanto estético como ideológico.
Pensando assim, Aceno, infelizmente de pequena circulação, é o segundo livro de Tatiana Pequeno, uma poeta que acena para um lugar onde a linguagem de extrema depuração comove porque desola, comove porque não inibe o feminino, ainda que às vezes atue de forma hermética. A poesia de Tatiana Pequeno, ao contrário do seu sobrenome, tem na sua estrutura poemas narrativos, com versos longos entrecortados com grande habilidade no uso dos enjambements. Aceno, mesmo com seu intimismo, talvez seja o único livro das sete poetas que evoca momentos recentes dos protestos que se espalharam no Brasil nos últimos anos. Na forma de uma carta aberta (Carta para Mariana, depois dos protestos) embora íntima, temos um dos belos poemas desse livro grandioso.
Corpos em marcha, de Simone Andrade Neves, é quase a estreia da poeta mineira. Mas um começo muito promissor, pois traz uma poesia que, muito trabalhada na sua linguagem, consegue se esquivar da suposta delicadeza feminina. A sua delicadeza é conquista diária, por isso seus corpos (linguagem) se impõem numa perícia demorada na escolha de cada palavra, cada verso, e tudo isso sem perda do lirismo que, camuflado, se abre sutilmente para a descoberta do prazer, como no admirável poema Ovo. Simone de Andrade, sem dúvida, é uma das ótimas revelações na cena da nossa jovem poesia contemporânea.
Se na poeta mineira acima o delicado se esquiva, o mesmo não ocorre com a poesia da belo-horizontina Ana Martins Marques. Em seu terceiro livro (Livro das semelhanças), a poeta acentua o uso da metalinguagem, porém recoloca esse exercício numa visada amorosa, como na última parte do livro, onde o tema amoroso, um dos mais buscados pela poesia desde sempre, ganha delicadeza sem frivolidade. Ana Martins é daquelas poetas que pensa muito o que sente e, sentindo, recolhe-se para embaralhar os sentimentos. Talvez por isso a ironia seja tramada de maneira discreta, mas que está lá para dizer que o amor, às vezes, pode ficar ancorado num porto de alguma cidade, onde uma vez esquecido é lembrado. Que o digam as “cartografias”, um dos pontos fortes do livro. Portanto, as semelhanças aqui são apenas um espelho, digamos fosco, que nos adverte ser preciso desconfiar das doações.
Desconfiar é o que Ana Elisa faz no seu Xadrez. Mudando as peças do tabuleiro, a poeta não mede palavras para derrubar os reis. A sua delicadeza é dar xeque-mate com humor, mas um humor irônico, pois a aparente simplicidade da linguagem é na verdade algo sempre refletido, como no jogo que dá título à coletânea, que exige sensibilidade concentrada. Xadrez tem entre seus melhores resultados o deboche desses amores em tempo de muita mercadoria. A poeta sabe que o melhor antídoto para a poesia é a própria poesia e disso resulta um livro cuja qualidade é justamente não amenizar o sentimento amoroso. O ótimo poema Aqueles ciúmes da Playboy é uma das peças em que Ana Elisa não poupa críticas ao que poderia ser “fácil” dentro do tema do erotismo. Em Xadrez, mais uma vez a poeta mineira não joga na defensiva.
Adriane Garcia ganhou em 2013 um importante prêmio de poesia com seu livro Fábulas para adulto perder o sono. Nesse livro, a poeta brinca ironicamente com as fábulas, mas é no seu terceiro livro Só, com peixes que ela, num mergulho mais marítimo, ao modo dos escafandristas, embora ainda temático, vasculha os mundos abaixo de nós, sem esquecer a superfície. Um livro cujo feminino na sua liquidez nos faz lembrar a bela definição que o escritor americano Carl Sandburg escreveu: “A poesia é o diário de um animal marinho que vive na terra e que gostaria de voar”. Só, com peixes, em seus melhores momentos, essa máxima pode definir os caminhos que Adriane Garcia descobriu ao abrir e fechar seu livro com dois poemas que inundam de beleza essa poesia.
Saindo do círculo de Minas Gerais, Leila Guenther, nascida em Santa Catarina, é uma poeta mais vinculada à prosa. No entanto, publicou um livro cuja “delicadeza feminina” se dá justamente no equilíbrio dessa Viagem a um deserto interior, título da coletânea de seus poemas. Na ótima orelha, o poeta e crítico Alcides Villaça pergunta: “Poesia feminina? Se a arte não parece ter gênero, as experiências o têm: chegam aos poemas de nossos dias vozes marcadas por um espanto de vida a um tempo estoico e dilacerado, ressurgido de incêndios, vingando um calor histórico”. Poeta que cultiva os silêncios, tem nessa escuta os melhores momentos nos poemas mais longos, nos quais podemos ouvir melhor os seus desertos interiores. Já os haicais, que ocupam uma parte do livro e que poderiam ser o lugar desses silêncios, talvez sejam mais exercícios do que propriamente novas formas de descobrir o vazio da arte do zen.
Denise Emmer, como dissemos, é a poeta mais experimentada, com uma obra vasta e que tem nesta nova reunião Poema cenário e outros silêncios um momento, digamos, sublime, com uma poética mais ao gosto elegíaco, porém sem se prender apenas à melancolia, pois a poeta bem sabe que é preciso olhar o mundo com suas durezas, como o belo Poema cenário, dedicado ao pai. Em tempo de muita euforia e pressa, a poesia de Emmer nos propõe um recolhimento para dentro de seus poemas, cuja voz baixa e grave pode recuperar um pouco da falta de delicadeza que afeta o mundo hoje.
Enfim, são apenas sete poetas, sabemos de outras, mas 2016 está aí e, quem sabe, a poesia possa ainda nos surpreender.


  (Estado de Minas, “Caderno Pensar”, 8/1/2016)

4 poemas inéditos de Renato Suttana

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Ilustração; Mike/deviantART

NA TARDE

Ícaro — seu imenso
estender sua sombra
na tarde sem sossego,
que no tédio se alonga
(que se desdobra em vão
pensamento de altura,
onde não cabe o sol
e onde o mundo é paisagem
deixada para trás):

seu imenso lograr-se
entre distâncias de erro,
que em silêncio se apagam
e em nada e sol se gastam,
(depois da asa ferida,
depois do erro que existe
em saltar para o vasto
azul das distrações
e das coisas melhores);

com o seu ouro mesquinho
e sua erma estrutura,
já agora toda impasse
e tão sem serventia
na tarde inaceitável,
que no tédio se alonga
(depois da asa e do jogo
e das saturações)
e em confusões de nuvem

progride para o sono —
lá tombou, sem função,
num nicho ainda intangido
do insuspeito verão.



 A MINHA CASA

Sobre um emaranhado de distâncias
que só o vento pudesse entender
eu construiria a minha casa.

Sobre uma asa de pássaro
indiferente à floração dos apelos
eu construiria a minha casa.

Sobre o mais frágil argumento,
sobre a mais franzina das justificativas
com sua rosa de vidro e seu trapo

(com o seu cabedal de matizes
que se desgastam à luz do sol)
eu construiria a minha casa.

Sobre uma fantasia de rumor
que de repente nos surpreende no escuro
eu construiria a minha casa

e sobre o ombro de um fantasma no deserto
vagando entre as dunas sem um mapa,
à procura de uma pátria de engano.

Sobre uma névoa à beira da ruína
que oculta léguas de paisagem em agosto
eu construiria a minha casa.

Sobre o devaneio de um menino
que abre um livro de lugares,
sobre um roçar de folha na brisa,

sobre a cor do teu cabelo
ou mesmo à superfície do teu lábio que fere
eu construiria a minha casa.



TERCEIRA LUFADA

A primeira lufada
derrubou a minha casa,
arrancou as árvores
e destroçou as minhas lembranças:
rasgou a fotografia dos meus pais.

A segunda lufada
devastou os meus pensamentos,
destruiu as minhas ideias:
varreu para longe
a minha pretensão
de decifrar o segredo do ermos.

A terceira lufada
apagou todos os rastros,
confundiu todos os caminhos
e me deixou sozinho
no deserto.



ELEGIA COM O ARCO PARTIDO

 Mais calmo agora que a derrota
se confirmou no nosso dia
e desviou a nossa rota.

Mais calmo agora que a fadiga
nos diz que chegar não importa
ou é inútil que se consiga.

Agora. Calmo, porque o dia
com seus caminhos, seus achados,
sua impossível pedraria,

é uma porta que já não se abre
ou lembrança do primogênito
abatido por sombra e sabre.

Calmo. E tão menos resoluto
ou surpreso e só resignado
ao deserto e seu olho enxuto,

como no centro de um deserto,
como no centro da aridez
que atravessa o caminho certo;

como no alto de uma montanha,
de algum ápice, a cavaleiro
da paisagem agora estranha.

Mais calmo, como entre estrangeiros,
sofrendo na pele a vergasta
dos mais inclementes janeiros.

(Como quem veio de outra terra,
tangido por não sei que fúria,
por não sei que improvável guerra:

batido por não sei que vento
cuja lâmina o sol aguça
e faz durar mais que um momento.)

……………………………………….

Mais calmo agora que vencer
é um distante fogo, sonhado,
que já não se pode acender.




RENATO SUTTANA (n. 1966) é poeta, escritor, tradutor e professor universitário. É autor de diversos livros de poesia, publicados ao longo dos últimos treze anos. Sua produção mais recente é o livro de poemas Rapinário, lançado em 2015 pela editora Mondrongo. Tem traduzido para o português obras de poetas e prosadores de língua inglesa, espanhola e italiana.


Alforrias II - Rita Santana

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Ilustração: Gustavo Martins

Embate de víboras

O meu corpo toma o teu,
Trama carnes novas dentro do teu,
E te alinhava na minha pele.
Fere velhas feridas tuas
E não mais regressa,
Deixando ao relento o teu ciúme.

O teu corpo vinha de sangue
O esmalte dos meus dentes.
Morde a maçã e diz malsã
Minha sandice de anemias.

Tu e Eu:
Adultério, torpezas e vilanias.


Herdade

Adio os búzios ante a vastidão dos tempos
A fim de ocultar o que em mim
Será o nascer inadiável do sol,
Ou a cicatrização paulatina dos ferimentos.

És, em mim, a Herdade.
O feudo imensurável dos meus quilombos.
O abandono mais desatinado de mim mesma
E dos projetos de Ser que armazenei nos ponteiros.

Enquanto aguardava o despotismo
Do teu aferro à inércia,
E dizia dos teus erros apenas Pacatez
E dissonância,
Fincava no Desejo o meu deus de obstinações!

Adiava a Exaustão!
Afugentava abstinências!



Inclemências

A pedra seca abriga resíduos
Fósseis da saudade extinta.
O tempo roga inclemências Ermas
Nas fibras do meu desespero.
E pinta dor de espátulas
No desconsolo das vésperas.

Diante destes navios,
Minha janela se cansa.
E eu, fruta peca,
Flor sem pétalas,
Coração de máculas,
Mergulho muda
Num mundo-mar de vastidões.

Cansei de ser triste
Cansei desta matéria
Que alimenta e devora
A Poeta,
A Porta da minha casa,
A Puta da avenida Sete.

Aos demônios o cacete
Dos homens demasiadamente
Homens!

Infensos à demência réptil
Da minha esperança Yerma.



Mortes Cotidianas

Chove na promessa remissa do feriado
E a migração não cessa.
Entristeci há dias
E o espelho, somente ele,
Revelou o embranquecer dos pelos,
O cansaço da voz,
E a desidratação da esperança.

Chove nos confins da minha alegria.
Virei moça triste sem vontade de sorrir.
Não tenho nada!
E nada resta do ser, senão, securas.
Artroses na atriz, reumatismos no feminino
E uma alergia de afetos.

Há anos não gozo, por puro desgosto!
Há anos não canto, por desencanto!
Há anos não vivo, só tenho banzo!
Por pura preguiça
De subir tantas ladeiras,
E descer tanto Morro,
Morro, morro, morro, morro...



Muda Nudez

Nem saberás da minha oferta de nudez muda
Nem que andei vestida de teus dedos no espelho
Nem que foi tua minha vulva absoluta
E o meu olhar mais caro de desejos.

Ando querendo horas com o teu silêncio
Sem que a cidade saiba do meu mutismo
Nem das páginas do meu calendário
Doadas ao tempo da tua confissão.

Sofro a secura dos dias sem as pedras
Do teu quintal de inventários,
E as Fedras que nascem em meus olhos
Jazem mortes tão tristes, tão tristes.

Vivem tão tristes nos subterrâneos
De um amor que mais se arrefece,
Quanto mais se ama em arrecifes.

Tudo por ti!
Por ti, tirânico espadachim dos meus tormentos.

Amor que nem Veneno mata.



Selva

Banho teu corpo de Deus
Nos cuidados dos meus caldos quentes.
Banho-te de Nardo, óleo das Olivas,
Aroma do Lótus.
Acendo-te incensos de mirra,
Cozo alecrim nas carnes para teu regaço.

Adianto os anos para perecer
Mais rápido de velhice
E encontrar teus dias
No crepusculário dos desejos.

Adejar de banjos e tulipas
Sobre nossa cama de incêndios.
Vivo à espera de dezembros que não chegam.
À espera de janeiros,
À espera de abris cheios de março,
À espera de maios nunca tidos
À espera de uns raios da Sicília.

E volto a rendar tua pele gasta
Com meus dedos de menina, Selva.



 

Rita Santana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.

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imagem jelena marcovic




tropeça em belezas raras, fardas de lamas em sorteios de caminhos.
são sorteios alheios,
sorteios convexos, sorteios em ecos
de gritos de alegria perdida em algum canto australo piteco.
alienado de uma conversa, anelando a batida entre o prego e o martelo. ali estava ela. sem presença de espírito, comendo figos e trazendo um manto sobre o peso de ávidas mentiras de seu livre arbítrio. cavalgadura e amálgama de instante itinerante, de brinco de princesa. olhando pelas alas niveladas de antúrios turquesas:
os seus urros eram camuflados entre os morcegos. morcegos em blood mary, morcegos em nirvana, morcego envolto em marmelo e doces abaulados em ariranhas 
e um marzipã 
de sex shop, saudades
de body stocking sexy,
 plug em silicone... 

eram imagens lineares entre chicotes e sandálias.
era poli dance entre ventiladores de teto 

e era ela em teta:
uma tulipa disfarçada para um garoto de programa...









Epifania - Homero Gomes

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Ilustração: Kerrath


À Ana Damm,
que teve essa epifania aos 7 anos de idade.


Ela caminhou lentamente em direção àquele volume de luz clara que se expandia. A areia era fofa nos seus pés. Sentou no escorregador apenas para ver.
Crianças corriam, caíam, davam risadas. Viviam sem perceber a possibilidade de virarem sombras nos brinquedos retorcidos.
Mas ela percebeu.
A menina viu o fim brotar com esplendor; feito o amanhecer de pequenas nulidades.
Ela percebeu que os ossos das crianças correriam os ventos gemendo futuros. Viu os seus ossos pequenos virando poeira de infância.
E sentiu medo de deixar de ser.
O pequeno corpo da menina estancou no meio do parque. Sem querer brincar, anulou o grito e esperou a primeira fagulha.






Homero Gomes nasceu em Curitiba, em 1978. Publicou Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição 2007 – em 2014 e Solidão de Caronte (poesia) – Prêmio Poetizar o Mundo – em 2013. Foi colaborador de Rascunho, Cronópios, Vaia, Cult, Germina Literatura, Palpitar, Ficções, Escritoras Suicidas, Samizdat e Mallarmargens. Foi colunista nos portais Página Cultural – com ensaios, críticas e crônicas –, Mundo Mundano e também foi um dos correspondentes do Musa Rara: literatura e adjacências.facebook.com/sisifodesatento

"O Tempo não o deixará" - 3 Poemas de Ney Ferraz Paiva

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a Max Martins






LEGADO


Quando jovem só gostava da fotografia
Pelas bordas
Antes dos cinquenta quase não aparecia
Em lugar algum
Longos e permanentes dias incandescentes
Às vezes álacres
Turvos pela guerra máquina ditadura
Quando te conheci já eras um cão de rua
Bar do Parque 3x4 Marahu
Levavas todos ao inferno com tua presença
A poesia o cigarro a bebida vinham mudando teu corpo
Os livros que falavas eu os roubava na Livraria Jinkings





NO CORAÇÃO DESCONCERTANTE DA CABANA


Onde farei a minha cabana
E esperarei o apocalipse?
Antes essa palavra soava
Com perplexidade calafrio
Trombetas designavam a manhã
Traziam mensagens dos céus
Labaredas à cabeça de Orfeu
A cabana que vou construir
Barco para vagar na limpidez
Ou pelo interior de grutas
Certa curvatura de enseada
Para chegar perto de você
Pela porta secreta do esconderijo
Em Paris Inglaterra Berlim
Cabana com paredes falsas
Prorrogada aberta ao mar
Alçapão quarto emboscada
Seis passeios pelos bosques da ficção
Ou pelo Rodrigues Alves
A passante vem à deriva
Insone desce as escadas
Farto café fumo amizade
Escassa bagagem dinheiro
Levarei minha biblioteca
O cativo tigre da Coréia
A vitrola a música a cor
Penetro adentro a cabana
Espaço imprevisto do gozo




NA IMPOSSIBILIDADE DE UM RETRATO DE MAX MARTINS
COMO FARIA FRANCIS BACON OU PAULO PONTE SOUZA


Usaste todas as tuas sete faces depressa demais
Aos noventa anos o que resta?
Esperamos que estejas bem na Tartária longínqua
Ou em Marahu ou em Michigan
Murilo te enviou um telegrama
Não sabe que não subiste nem
Para onde desceste e te propõe uma visita a Roma
Deixaste os caminhos abertos
Desempacotados manuscritos
Diários         notas         cartas      
Voltas da tua própria mudez
Aos saberes que não se sabe
A escrita pode incluir a vida
Deslinguada não vetar nada
Ferver a beleza encová-la
Em seu próprio esplendor
Na impossibilidade de um retrato como
Faria Francis Bacon ou Paulo Ponte Souza
Recorro a certos closes que
Não te refletem ou variações
Cortes bruscos algum vestígio
Traços de assíduas feridas
Enraizadas abertas tua sina
Tantas vezes tentaste cortar a garganta do poema
Evitando fazer muita sujeira
E mostravas transfixado o que não se extingue







 Ney Ferraz Paiva, poeta e artista visual. Autor dos livros: Não era suicídio sobre a relva(Prêmio Literário Cidade do Recife, 2000), Nave do nada (Prêmio Literário Cidade do Recife, 2004), Arrastar um landau debaixo d'água (São Paulo, Editora Patuá, 2015), e das plaquetes: Eu queria estar com vocês hoje (Belém, Editora Escriba, 2012), Poemas para Max Martins (para ler depois da chuva) (Belém, Editora Cão-Guia, 2014). Edita o blog www.hospiciomoinhodosventos.blogspot.com.br.

Felicidade, Vida e Iluminação - Julia Raiz

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 até onde eu sei essa velha de sobrancelha a lápis
pode ser a próxima profeta do milênio e eu estou prestes a descobrir
tudo o que ela pode me ensinar a respeito do Shunyata
a meditação sobre o                                                da página
mas meu ponto é o próximo eu salto aqui

antes de escrever eu arranco meus dois olhos e os equilibro na ponta do nariz
para que a visão embaçada me conecte diretamente ao Espírito Santo
só em conexão pode a escrita correr como um filete de catarro que alcança
salgado o lugar de predestinação

hoje eu me sentei ao lado da décima quinta
reencarnação do Buda da Compaixão
uma criança ranhenta e bem bonitinha de mochila da prefeitura
vinte e dois dentes de leite um com certeza ele engole

meu corpo doía quando eu fazia abdominais no colchonete
mas
desde que a lancheira do ben-10 me tocou não preciso nem levantar a cabeça sem ajuda divina
o abdômen serve como sustentação da coluna vertebral por onde entra, nos seres humanos e nas mulheres, a Divindade da Criação
se encontramos uma gota de sangue ou sêmen no chão, sentimos instantânea repulsa
mas
continuamos a adorar nossos corpos

o moleque de boné pra trás e muleta entra e se senta no preferencial de frente pro meu altar
ignorante dos 66% de trindade que se pronuncia à frente
eles realmente não sabem o que fazem mas eu não perdoo
enquanto Sua Santidade amarra os cadarços eu discretamente chuto o joelho fodido do herege que aguenta com dignidade
afinal eles sempre sabem porque apanham

quero deixar bem claro que o sarcasmo vibra tão baixo que não é possível trabalhar com ele
impossível escrever qualquer coisa de proveito utilizando o sarcasmo que isso fique bem claro

uma tarde, em pé como era de costume, a velha e a criança preparam-se para sair exprimidas entre o gordo de quepe e o aleijado
quando da mochila azul marinho de zíper estourado
cai aberto o caderno de lições do menino Baba Amte
duas galáxias em glitter cintilantes giram como a se livrar
de um cronometrado passo de dança rumo à expansão uma setinha
e dois erres ao contrário davam nome ao planeta




Julia Raiz é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora de Produção Textual. Em parceria com Clarissa Comin, criou o blog de escrita Totem & Pagu, projeto que já rendeu sarau, exposição e oficina. Tem textos publicados no jornal curitibano RelevO e nas revistas Mallarmargens e Zunái. Também participa de projetos de incentivo à escrita e leitura, como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.

PÓS CÂNTICO - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Andrew Pearce



luminescências  derrubadas no pós cântico
são meras e esmeradas folhas
de algodão e cetim manuseadas

cálida corrente crucificada
ainda, menina benevolente, aterra em lua lubrificada
essa manhã... de pouco vento, breve instante
sussurros quase audíveis do silêncio

permanecimento das hastes violetas/violáceas/varridas
de cânforas  e carmesim, em torno auréolas de santos
mugidos dos entes
esculpido de ouro e barro esse além

medida metrificada mentolada de anis e amianto

lago diversificado ... é solene no esperanto espetáculo
de augustos templos
templários tenazes esculpidos de ideia e ar
ventilam, sem massa, astúcia e alforjes
o tempo de seda e semáforos que me prosseguem

na rua ainda o espanto de passantes por avenidas que se alongam e debatem
atravessadores sinalizadores circunspectos e graves facínoras
famintos, nesse céu de chumbo e vigor, da prece pedinte de algum deus

que já não hesita castiga ou perdoa
entoa entoadas almadas
sem trevas e trafego

condizente momento ao porvir da eternidade.

Jandira Zanchi

Cabeça pesada - Fernando Rocha

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Ilustração: deviantART


Cabeça pesada, olhos se abrindo lentamente, o lugar é estranho, não está em seu quarto, teme, treme. O corpo volta e com seu retorno, ela o sente seu de novo, com dores, está sem roupa, toca a genitália, um odor que não é seu, sente dor, vai ao espelho, vê marcas em seu pescoço, em seus seios... Como quem tenta dispersar a ideia para contrariar os fatos, desvia o olhar dos olhos de seu reflexo. 
Não há ninguém na estranha casa, veste-se e sai devagar para a rua, a cada passo surgem flashes do dia anterior, o sorriso malicioso do crushque estava acompanhado por cinco amigos, copos coloridos com drinks. Música alta, graves que atordoavam a consciência e visão turva.
Passa a mão pelo bolso do casaco, encontra o celular, há uma nova mensagem no facebook, é de um perfil que não está entre os seus contatos, parece fake. O click no link faz surgir o vídeo na tela, nele ela está adormecida sendo violentada pelo crush e seus amigos. O título é festinha com uma amiga.
Procura uma professora na escola. Escuta atenta e sensível. É preciso levar o caso para direção, enquanto relata é atrapalhada por outra colega que ouve e diz:- Vai saber! Essas meninas andam com um fogo! Se eu fosse você, ficaria longe deste B.O.
A família é informada, os irmãos e o pai dizem que a culpa é da garota, um deles vai para cima dela, é detido pela mãe. A jovem pensa: Eu não devia ter contado para ninguém, devia ter ficado na minha!
Depois de um mês, retorna à escola, ainda aguarda a vaga no psicólogo, sente algo estranho no olhar de todos, talvez seja coisa de sua cabeça, um mantra para tentar se convencer de que não há nada errado. Um rapaz do terceiro ano sorri para ela, se aproxima, mostra o vídeo que foi compartilhado no grupo dewhatsapp da escola e a convida para uma festa.



Fernando Rochaé paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo. Fotógrafo amador, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento) e da novela Oslaços da fita (Penalux), Possui um conto na coletânea Descontos de fadas (Alink editora). Colabora com as páginas Letras inacabadas e Letras et cetera. Tem textos publicados nas páginas Musa rara, Cronópios, Jornal O Relevo, Meleca-chiclete.

6 poemas de Ricardo Rojas Ayrala - tradução de Claudia Barral

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Imagem; Pedro Luis Raota



NUBE CUATRO
LA NUBE DEL ÁCRATA

Falso ropaje del aire,
tan primorosamente ajado,
que corrobora, claro, cierta desnudez
de reyes, de mercachifles, de Papas,
de enamorados, de patrones y de príncipes,
mientras marchan, alegremente,
barranca abajo en su caída.
Detrás no hay nada.
  
(De Las nubes,
Ed. Descierto, Argentina, 2015)



NUVEM QUATRO
A NUVEM DO ÁCRATA

Falsa roupagem do ar,
tão primorosamente desgastada,
que corrobora, claro, certa nudez
de reis, de mercadores, de Papas,
de namorados, de patrões e de príncipes,
enquanto marcham, alegremente,
ribanceira abaixo em sua queda.
Atrás não há nada.


***



NUBE TREINTA Y NUEVE
  
Apologéticas, dos nubes solitarias,
delicadas, no desatan toda la tormenta.
Intraducibles, quizá, zumbonas,
como un vaso proletario de asaí.
Dos besos suyos, amor mío, tampoco
son todo todo el paraíso.

(De Argumentos para disuadir a una jauría y otros usos civiles,
Ed.Descierto, Argentina, 2013)



NUVEM TRINTA E NOVE

Apologéticas, duas nuvens solitárias,
delicadas, não deságuam toda a tormenta.
Intraduzíveis, quiçá zombeteiras,
como um vaso proletário de açaí.
Dois beijos seus, meu amor, tampouco
são todo todo o paraíso.


***



Último argumento de cualquier
Eurípides para disuadir a una jauría

“Padre del manso alivio, acude leve.”
Antón Arrufat

Si acaso supieran, ustedes,
nobles asesinos,
que siempre luché a favor de la razón,
la belleza y la piedad.
Si apenas pudieran vislumbrar el sentido
de la palabra justicia.
Quizá.

¿Qué gobierna vuestro juicio?
¿La venganza? ¿La ira?
¿Una cantidad exacta de monedas fenicias?
¿Alguna violenta sinrazón?
¿El hambre, apenas?

Si no tuvieran tanta sed de sangre,
en este caso,
la de un pobre y resignado literato...
Como a cualquier insensible asesino de Nubia
esos ardores les ciegan el entendimiento,
si es que a él tienen acceso, ustedes,
de algún modo.

Pero yo no les niego mi carne
por cobardía... No.
No puedan malinterpretarme.
¿Quién, cinco segundos antes de morir,
no aguarda al deus ex machina,
que lo salve de atravesar estos abismos?

Sólo necesito algo de tiempo,
un poco de tiempo. Sin duda.
Unos instantes más,
al menos, ahora.
¿Quién no los necesita?
No es clemencia
lo que solicito a vuestra avidez,
nobles asesinos.
Horrores más grandes que estos
me esperan, intuyo,
en la quietud de la eternidad.

Porque únicamente los justos,
ya muertos,
son los que duermen felices
estos olvidos.

Dulces dentelladas.
Temibles tarascones.
Oh, sangre mía.
Oh, bárbaros.

(De Argumentos para disuadir a una jauría y otros usos civiles,
Ed.Descierto, Argentina, 2013)



Último argumento de qualquer
Eurípedes para dissuadir uma matilha

“Pai do manso alívio, acode leve.”
Antón Arrufat


Se acaso soubessem vocês,
nobres assassinos,
que sempre lutei a favor da razão,
da beleza e da piedade.
Se ao menos pudessem vislumbrar o sentido
da palavra justiça.
Quiçá.

Quem governa o vosso juízo?
A vingança? A ira?
Uma quantidade exata de moedas fenícias?
Alguma violenta desrazão?
A fome, apenas?

Se não tivessem tanta sede de sangue,
neste caso,
o de um pobre e resignado literato...
Como a qualquer insensível assassino de Núbia
esses ardores lhe cegam o entendimento,
se é que têm acesso a ele, vocês,
de algum modo.

Mas eu não lhes nego minha carne
por covardia... Não.
Não me entendam mal.
Quem, cinco segundos antes de morrer,
não aguarda o deus ex machina
que o salve de atravessar esses abismos?

Só necessito de algum tempo
de um pouco de tempo. Sem dúvida.
Uns instantes mais,
ao menos, agora.
Quem não necessita?
Não é clemência
o que solicito a vossa avidez,
nobres assassinos.
Horrores maiores que estes
me esperam, intuo,
na quietude da eternidade.

Porque unicamente os justos,
já mortos,
são os que dormem felizes,
estes esquecidos.

Doces dentadas.
Temíveis mordidas.
Oh, sangue meu.
Oh, bárbaros.



Ilustração: Pedro Luis Raota


Canta un cisne de Valdivia

“Y esa cabeza que se dobla para escuchar
un murmullo en la Eternidad...”
Vicente Huidobro

Soy el último.


¿Qué otro privilegio
es más tonto
que éste?

Todos los míos han muerto
de hambre,
o no se qué,
en el frío espejo
de este río contaminado.

No puedo sostener
mi cabeza
fuera del agua.

Sólo la aurora
nos extrañará
de algún modo.



Canta um cisne de Valdivia.

“E essa cabeça que se dobra para escutar
um murmúrio na eternidade.”
Vicente Huidobro

Sou o último.

Que outro privilégio
é mais tolo
do que este?

Todos os meus estão mortos
de fome,
ou não sei o que,
no frio espelho
deste rio contaminado.

Não posso sustentar
minha cabeça
fora da água.

Só a aurora
sentirá a nossa falta
de algum modo.


***



El muro, pobrecito, uno
  
«Oh, el pájaro de tu corazón,
niña, en el país extraño.»
Juan L. Ortiz
  
Muros de las casas pobres sin sauces llorones, sin pan y sin
trabajo. Vacíos. Nulos. Puro temblor. Meros presentimientos
al carecer de casi todo. Hasta de los cartílagos y de la carne.
Hasta del tuétano. Hasta del vendaje para embalsamarnos.
Estacadas vencidas. «Graffitis» sin terminar. Signos mudos.
Negror. «Spleen». Tanta ausencia en cada uno de sus átomos.
En su «mol» proletario. Fríos como cuchillos «sicarios»
olvidados desde ayer en el peor abandono. Fríos como sobres
amarillentos de cartas de amor jamás escritos, amor mío,
jamás leídos, con pasión, jamás olvidados con pena y con dolor,
hasta ahora. Fríos, fríos, fríos, amor mío, como estrellas muertas
en lo alto, que nadie ya mira. En estos criminales «ni no tener».
¡El cuerpo reseco del muro, amor mío, pobrecito!

Qué desdicha inmóvil, remota, como sordos mareos sucesivos
e intermisos desde «Bahamas» a «Baltimore», casi impalpable
en cada uno de sus saltos a las primeras lágrimas, casi
indecible en sus «abismarse», en sus collares, en la sucesión
intermitente de sus «escherichia coli». En sus impuestos
infinitos. En sus miserias que infectan cualquier lugar. Todos.


Muros: torpes tragedias del cemento, la arena muerta y la
cuchara mal paga. Sin subsidios de desempleo, Sin seguros.
Sin descanso. ¡La siente hasta el gran burgués! La consiente.
La apaña. La cizaña. Puede sentirla, aún… Como si pudiera
sentir, como si pudiera poder, y tan lejos de él…

Ajena a su sonora insistencia insípida, impía, apátrida,
ácida, a su «torpor», a la cerrazón nula de su cinismo y de
toda la tontera de su avidez. ¡Acallen a sus perros!

El muro, fervoroso en su «goleo», en su metro, en sus
siniestras estadísticas, en su «tendencia», en su caída
libre, en su cochambre, en su carcaza de la raza, en su
talón de Aquiles, en su encorsetado, en estos abandonos,
en el brillo de sus mebrillos.


¡El cuerpo reseco del muro, amor mío,
pobrecito!

(De un sauzal para Kikí de Cundinamarca,
Ed Ponciano Arriaga, México, 2013)



O muro, pobrezinho, um
  
“Oh, o pássaro de teu coração,
menina, em um país estranho.”
Juan L. Ortiz

Muros de casas pobres sem salgueiros chorões, sem pão e sem
trabalho. Vazios. Nulos. Puro tremor. Meros pressentimentos
a carecerde quase tudo. Até das cartilagens e da carne.
Até do tutano. Até da bandagem para embalsamar.
Paliçadasvencidas. “Graffitis” porterminar. Signos mudos.
Negritude. “Spleen”. Tanta ausência em cada um de seus átomos.
Em seu “mol” proletário. Frios como punhaissicários
esquecidas desde ontem em seu pior abandono. Frios como envelopes
amarelados de cartas de amor jamais escritas, meu amor,
jamais lidas, com paixão, jamais esquecidas com pena e dor,
até agora. Frios, frios, frios, meu amor, como estrelas mortas
no alto, que já ninguém vê. Nestes criminosos “nem não ter”.
O corpo ressecado do muro, meu amor, pobrezinho.

Que desgraça imóvel, remota, como surdas tonturas sucessivas
e intermitentes desde “Bahamas” a “Baltimore”, quase impalpáveis
em cada um de seus saltos às primeiras lágrimas, quase
indizível em seus “abismar-se”, em suas coleiras, na sucessão
intermitente de suas “escherichia coli”. Em seus impostos
infinitos. Em suas misérias que infectam qualquer lugar. Todos.

Muros: Torpes tragédias do cimento, a areia morta e a
colher mal paga. Sem subsídios de desemprego. Sem seguros.
Sem descanso. O sente até o grande burgués! O consente.
O apanha. O aborrece. Pode sentir-lo, até… Como se pudesse sentir, como se pudesse poder, e tão longe deles…

Alheia à sua sonora insistência insípida, ímpia, apátrida,
ácida, a seu “torpor”, à cerração nula de seu cinismo e de
toda a tonteira de sua avidez. Calem seus cachorros!


O muro, fervoroso em seu “gol”, em seu metro,
em suas sinistras estatísticas, em sua tendência, em sua queda livre, em sua imundície, na carcaça de sua raça,
em seu calcanhar de Aquiles, em seu espartilho, nestes abandonos,
no brilho de seus marmeleiros.

O corpo ressecado do muro, meu amor,
pobrezinho!


***



Luces y sombras

Lejos, ajeno,
San Miguel o San Rafael,
acomoda con exquisita clase su corona de luz,
alborotando a tantos querubines,
que juegan a los dulces misterios.

Abajo, unos cuántos kilómetros abajo,
en la bulliciosa iglesia de Liniers,
postrados ante el ícono,
los fieles dudan,
arrobados,

que si ése oro 18
fuése sólo nimbo...


(La lengua de Calibán,
Ed Fondo de Cultura Económica, México, 2011)


Luzes e sombras

Distante, alheio,
São Miguel ou São Rafael
acomoda com distinta classe sua coroa de luz,
alvoroçando os muitos querubins,
que jogam os doces mistérios.

Abaixo, uns quatro quilômetros abaixo,
na buliçosa igreja de Liniers,
prostrados ante o ícone,
os fiéis duvidam
encantados,

que se esse ouro 18
fosse só auréola... 


Ricardo Rojas Ayrala é um escritor argentino. Desenvolve uma intensa tarefa de gestão cultural há mais de vinte anos, desempenha o papel de Secretário de Cultura de uma Organização Fraternal de Trabalhadores, é subsecretário do Sindicato de Escritoras e escritores da Argentina (O Sea), organiza com Marta Miranda o Vapoesía Argentina, um encontro internacional de poesia e integração é diretor do site de cultura dos trabalhadores www.lapurpuradetiro.com.ar entre outras atividades culturais. Seus livros foram publicados na Argentina, México e Itália, Sua obra literaria editada se compõem de onze livros, sete de poesía e quatro de narrativa. Entre outros reconhecimentos por seu trabalho literário, obteve o terceiro Prêmio Municipal de Literatura da Cidade de Buenos Aires. Em 2014, foi finalista da V Edição do Prêmio Internacional de Poesia Valera Mora. 




Claudia Barral (Salvador, 1978) é escritora e psicanalista. Atua em diversos campos da produção literária como dramaturga,roteirista e poetisa.Suas peças de teatro contam com montagens no Brasil e em países como Alemanha,Itália,Portugal e Peru, com destaque para O Cego e o Louco (Versão roteirizada para a TV Cultura em 2007), Cordel do Amor sem Fim (Prêmio Funarte 2004) e Hotel Jasmim (Prêmio Feminina Dramaturgia Heleny Guariba, 2014). Publicações em poesia incluem poemas selecionados pela Revista Poesia Sempre (Rio de Janeiro, FBN,2008) e os livros O Coração da Baleia (Ed. P55, 2011) e Primavera em Vão (Ed. Penalux, 2015). Outras publicações incluem O Cego e o Louco e outros textos (Ed. Cidade da Bahia,1998) e Cordel do Amor sem Fim (Ed.Funarte,2003).

Dois Poemas de Caio Cardoso Tardelli

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A NOSSA HISTÓRIA


Em uma tarde, entre os arvoredos
De um parque solitário e mudo,
Eu te vi, um dia...
E como, embora clamassem os medos
E a tristeza de tudo,
Parecia-me que, naquele dia,
Havia se revelado, para mim, a alegria.

Que bastava viver para ser feliz...
Que bastava amar para viver...

Em uma noite, entre as canções
De uma lua que chorava,
Vi a tua sombra escurecendo o giz
Da estrela que nos guiava...
Partiste, naquela noite, em leveza...
E, partindo, havia se revelado, para mim, a tristeza.

E que bastava ser feliz para sofrer
E necessário chorar para ser feliz...

Em uma manhã, entre as auroras
Que uma eternidade pareciam refletir,
Lembrei de ti (e como me invade
Essa tristeza do tombar das horas)...
Vinhas sem que pudesses partir....
Havia se revelado para mim, então, a saudade...

E que bastava lembrar para ser feliz...
E que bastava lembrar para chorar...

--

SEMENTE

Pelos sinos que cantam,
Pelos céus que não sonham,
A minha alma é semente
Peregrina.

Pelos sóis que acalantam,
Aos olhos que não sonham,
A minha alma é semente
Peregrina.

Nas ânsias que aquebrantam
Os mundos que não sonham,
A minha alma é semente
Peregrina.

Peregrina dos que cantam
Os que já não mais sonham...
Dos amores, dos caminhos
Sem chegada... dos sozinhos...

A minha alma é semente
Peregrina.


(George Inness - Afterglow)

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