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LEONELLA: excitações de um tigre de papel

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“Esta é uma história de amor? É uma das leituras que se faz. Não como um drama romântico, mas desenredando fio a fio tecido os sentidos através da dicção atemporal da escritora. O tempo é uma possibilidade erótica ao leitor.
O tempo desfaz a ausência e resgata a origem desse erotismo. São ex-citações que a autora de forma laboriosa nos lega. Nada aqui é obsceno. Não haveria, nesta moldura, a linguagem erótica/exótica do conflito entre imaginário e o indelével? Um “tigre de papel” se desliga de tudo e passa a atormentar a todos. É assim que desconstruímos esse poema/prosa/livro de uma tessitura dinâmica, delicada e de silêncios soltos. A poeta está só. Ouve seus ruídos. Interroga as palavras. E é desta forma que cria um cenário que penetra o leitor deixando-lhe cicatrizes. “Tulipanes Negros”é um poema de difícil acesso – não por ter sido escrito em língua espanhola – pois é trama que atordoa qualquer um que se propõe a interp(r)e(ne)t(r)á-lo. É um labirinto-jardim-pântano, onde olhos em fúria nos veem como presas – leonella, sus tulipanes, em jardín de flores em ojos castaños y tigres de papel– . A “proesia” de Adriana Zapparoli possui cor, aroma, sonoridade, estética, prazer, memória, enigma e imagens. Tem estilo único, inconfundível e arrebata qualquer alma.“  





Tulipanes Negros

Colección de Poesia Latinoamericana
EL OMBLIGO DEL ORIGEN,  em língua Castelhana, 20 páginas.
Santiago de Chile/ dezembro de 2015

Capa: Ilustração de Sarah Bauer










Luiz Gustavo Pires, é natural de Porto Alegre, 53 anos de idade, cursou Direito na Universidade de Caxias do Sul. Poeta há mais de 30 anos, foi vencedor do 1º. Prêmio Mauá de Literatura - Poesia / Porto Alegre / 1988, com Quadrantal. Participou das antologias “Poesia do Brasil”, em 2012, 2013, 2014 e 2015 - Proyeto Cultural Sur/Brasil. Participou da antologia “29 de Abril – o verso da violência” / 2015 - Patuá. Possui publicações em diversos blogs, sites e revistas especializadas, como Zunái e Mallarmagens.





"IMA(R)GEM 8", POEMA DE MÁRCIO LEITÃO

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Claustro
Multifacetado
Que arquiteta
E dilacera
Muros aéreos,
Transparentes
No vento,
Espinhos
Na mente.

Precipício
Quieto
Onde
Se ocultam
As quedas
E se escancaram
O sangue
Do que há
Por dizer.

Encontros
Espelhados
Mãos sem dedos
Que se torcem
Infestando
O corpo
E todo o resto.


Céu
Em que se habita
E se visita
À noite
Paladar
Movediço
Pasto
Impreciso
Que
Ora apaga
Ora incendeia.



*     *     *



LEIA A SÉRIE "IMA(R)GENS"
AQUIAQUIAQUIAQUI E AQUI.





Márcio Leitão é professor de Linguística, pesquisador em Psicolinguística (UFPB); tenta entender os processos mentais relacionados à linguagem. Poeta e escritor de livros infantis, escreve pra poder imaginar como é ter liberdade, respirar sem amarras. Escreve também pra se divertir com as palavras e com o que pode construir com elas. Publica todo sábado na zona da palavra.

Alforrias - Rita Santana

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Ilustrsção: Gustavo Martins



A Escriba

A estrela entregou-se ao negrume das nuvens
E sucumbiu ao despenhadeiro da Finitude.
Antes, cuspiu o seu grito de fogo
Sobre o plúmbeo das águas,
Sobre a baía do espaço todo azul.

Enquanto a escrivã das coisas vãs,
Sem contê-las - as estrelas -
Tremia diante do leme sem controle.
E via içarem suas velas acesas
Sobre montanhas de cinzas azuis.

A escriba crivada de falas
Perece do silêncio das Constelações

E da hedionda mudez dos Astros.



Abismação

Cá estou na Abismação de cada instante.
Arcada ao Par, sem tê-lo.
Arrastada no levante dos meus ancestrais.
Quilombola tecendo
O algodão doce
Das dúvidas
Dos dias.

Tear do tempo
A fiar o ócio dos meus ossos crus.
Alambique de saudades,
Pileque de tristezas.
Enquanto tu, moleque dos meus desmazelos,
Labutas na plantação de mandioca
E eu fio
A alforria dos meus cometimentos.



Agrestidade
                                                           
Tornei-me bruta
Após travar batalhas de tentares.
O tear do tempo cumpriu-se dentro do universo
E eu apenas cedi ao fim.
Almocei nua no último banquete
E acendi velas à mesa.

Arrumei minhas tralhas e deixei-as!
Alheias aos venenos da aorta,
Alheias aos anéis do abandono.

Deixei o feérico, o cupim, a cumplicidade das rotas.
Fiquei à deriva de mim mesma.
Feita toda inteira de atordoamentos
E mutilâncias.

Arrebatada de almas.
Pouco morta.



Deserto

Ausências cercam meu território desértico
E eu afugento galinhas imaginárias
Para parecer menos bamba na fotografia
Das civilizações esquecidas.
Ainda ontem estive mulher e foi bom.
Hoje, sou dada a versos e continuo a ser mulher.
Mas como dói.

Dói o silêncio inócuo dos suplementos
E o ostracismo estético dos Colossos de sal.

Quero a desmemória do efêmero,
Do fácil, e do tangível.



Eco e Narciso

Estávamos diante um do outro
Em botânico silêncio.
Era o lugar das águas.
Era o espelho das eras.

As portas frias e os dedos
Diziam a rotina das perseguições.

Nada nascia no estatuto das horas,
Apenas Eco e Narciso
Forjavam o absurdo do encontro
Em meio às valentias de Valentim.






RitaSantana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.

Notas sobre Varsóvia - Jediel Gonçalves

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Warszawa– inverno 2010

Ilustração: Pak Slotvski


Desenho diagonais na paisagem glacial;
O céu continua branco e frio.

Atrás da porta encontra-se o dia blindado
uma linha invisível que religa o sopro da criança que fui
aos batimentos das asas da gralha cinzenta enfurecida na espuma.

Em um solilóquio arpejam magentas luzes
Lobo uivando ao longe,
longo lamento congelado no frio.

A vida baloiça nas grades e nas folhagens dos álbuns de fotografia.

Entre as malhas da sombra ficaram filetes de carne;
Entre os dentes, as garfadas;
Entre os mexilhões, óvulos vazios.

Algumas malas permanecem ainda vazias,
À espera de que alguém coloque dentro delas ossos, pedras e dentes.

Mas fazer o quê?
No balanço da erva, as coisas acabam tomando formas exatas do mesmo jeito!

A noite disse sim; e eu coloquei mais lenha na lareira.

“Varsóvia não é mais a mesma desde que parti.” – disse-me a voz.
(Como se pode partir de um lugar em que nunca se esteve antes?)

Estive n’outras vidas, n’outras bandas, n’outros cumes... com o vento.
Um pouco do horizonte que ficou aqui comigo
está até agora atrás dos meus ombros, na cor dos meus cabelos,
nos meus traços polacos.

Em Varsóvia fiquei
Chamei isso de“o grande recomeço”. Mas não foi.
Muitas migalhas à mesa. Muitas cinzas nos ares.
Ainda ouço os insetos padecendo dentro das garrafas nas quais eu mesmo os prendi.
Eram espremidos um a um como piolhos nos dedos
como sardinhas dentro da lata.
Depois eram regurgitados em valas comuns.
Gritavam. Fumegavam.
Era o que tornava os meus dias cinzentos...

Em Varsóvia,
a mesma música tem os mesmos silêncios: Chopin ao alento.
Eos meus poemas ainda flamejam.






Jediel Gonçalves é poeta e crítico literário erradicado na França, mestre em Literatura Francesa, membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos e pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX, na Universidade Aix-Marseille. Realiza atualmente Doutorado em estudos intersemióticos sobre a recepção da pintura na obra literária do escritor francês Marcel Proust. Também escreve ensaios e resenhas críticas para revistas de literatura na França, entre elas La Cause Littéraire.

1 desenho e 3 poemas de Bruna Mitrano

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[giz de cera sobre papel, 2013]


*
quando ela fechou as pernas
a cigarra estourou de gritar
vinha de dentro
um silêncio que não se quisesse ver
um cabelo bruto
uma coisa boa macassá
quero me enfiar nele
naquele silêncio  
um abutre se olha pro outro enquanto come, é sobrevivência, não é competição.

* 
gestação infinita
o filho podre a filha cerca viva
meu útero arregaçado expelindo medo em sangue
porque é meu horror que gero –
sei me ferir.

*
choque
uns passos
segundo plano
acho que vi um milagre!
acho que vi!
as mãos estavam vazias
quando o homem louco
aos berros no meio da rua
esclareceu
o último gole
a raiva ainda alinhada
é difícil, ele disse,
morrer.































5 poemas inéditos de Leandro Rodrigues

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Ilustração: Shaina/deviantART



O SUICIDA

Uma tarde
Um silêncio
Nenhum disparo
Nenhum estampido
Apenas um verso.




SÃO PAULO I


Com cheiro de tétano
             e chumbo
os cadáveres estão expostos
             na noite
São Paulo faz as estatísticas
             de seus mortos
88% negros, 10% pardos,
2% brancos


100% pobres.




PRIMAVERA
                                                    

Sangrar como a tarde
em remorso
      e suas convulsões
- Já não encontramos mais
nenhuma veia!

Em tudo o cheiro forte
de formol.

É tarde entre flores.

Setembro se aproxima.

Um ou outro pássaro pousa
nas pilastras térreas do necrotério.




1930

  
Entre becos e bondes
A expressionista sombra disforme
Do homem pouco
    que se debruça no parapeito
    do sombrio edifício Paramount

transeuntes se nivelam no asfalto
vidraças sujas de poeira amanhecem
enclausuradas mulheres folheiam dispersas
       tristes revistas


...................................................................



Um novo governo se anuncia.



........................................................................


no subúrbio mais distante
  cabras pastam no lodo.




SÃO PAULO VII

Cinzas horas que se movem
Nos lentos relógios
       do centro
os prédios são ponteiros
as sombras demarcam segundos

A fuligem extrema – extensa
pinta a tarde a óleo.
Alguns esboços se perdem imprecisos
nos resíduos que escorrem
em canos despidos dejetos
des  pe  já  dos
                       no  pôr-do-sol

O medo é feito de um céu
                                     aberto
onde nenhuma lua
                             se posiciona

As tintas vazadas são frias
e distorcem quadriláteros descascados/ aflitos

concretudes diagonais e pontiagudas
revestidas armas apontadas para o silêncio.






Leandro Rodrigues, nasceu em 06/01/1976 em Osasco -SP, onde reside com a esposa Lúcia A. Lins e o filho João Gabriel. Formado em Letras - Pós-Graduado em Literatura Contemporânea, é Professor de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa. Aprendizagem Cinza, lançado em abril de 2016 pela Editora Patuá, é seu livro de estreia. Também é autor do blog poético nauseaconcreta.blogspot.com.br,  e um dos autores da Revista Zona Da Palavra. Possui alguns poemas em diversos sites e revistas literárias como:  Zunái, Germina, Mallamargens, Cult, Antônio Miranda Portal de Poesia Iberoamericana, Musa Rara, Portal Vermelho, Cronópios, Banquete Poético, SérieAlfa (com traduções do poeta catalão Joan Navarro), Revista Alagunas, Diversos e Afins, O Novelo etc. 

2 POEMAS DE REINALDO RAMOS

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Voz

O som da vida nasce do ventre da morte
a vida real, é muda
até hoje nada me disse a vida
todo poema que faço ou leio é uma conversa com a morte
Meu temor é quando a morte se cala
e o Pinóquio em seu colo
pensa mesmo ser dono
das coisas que diz.



Para a a Mui Leal e Heroica cidade

de São Sebastião do Rio de Janeiro,

Sede da XXXI Olimpíada Paleolítica da Era Moderna


Um morro que não existe mais guardando uma cidade-fantasma intoxicada
de vigilantes e de soldados, cruzados da ordem
A ordem dos ricos dos donos da praia
O sol esculpe ravinas no rosto dos guardas e o mar sagrado lhes salga
os corações erodidos o castelo desmancha na água todos os dias
e os cruzados do nada se agarram freneticamente a bolinhos de areia
tentando em vão remontar o castelo desfeito (a areia indomável lhes desce
farda adentro e penetra livremente todas as fendas de seus corpos de guerra)
A cidade de areia que foi morro e foi pedra é hoje monumento de sal
e de nada é farsa montada que nem mais o bretão se apraz em mirar
A cidade mentira anoitece no trem nos ônibus nas ruas nas costas do Cristo
Há muito sangue a ser limpo há muito entulho a ser removido é preciso
causar ao forasteiro a melhor impressão possível
A cidade mentira resplandece na orla no vidro espelhado do espigão da Barra
nas lentes dos óculos da moça do posto nove no vidro escuro do blindado luxuoso
parado no trânsito da Avenida Lúcio Costa
Mal sabem esses que nos venderam como espetáculo para um mundo decrépito
que não teremos mais nada a servir nem sequer o clichê requentado da alegria e da beleza
A recompensa do pobre? o direito ao silêncio
Entre o vento e a onda cedo ou tarde a cidade irá embora como embora foi um dia seu castelo
A cidade bajuladora dos forasteiros e dos venturosos
que assassina seus filhos ainda franzinos é a mesma que soterra sua história
Portugal, que viu no mar melancolia fez dele sua narrativa épica o Rio, desde o batismo,
se engana no mar nele se afoga, e agoniza, como o samba, sem morrer (ainda)
Cidade salobra por temer se tornar estátua de sal anda pra trás e não olha pra dentro
Cidade amnésia de bantustões para brancos na terra arrasada deserto de pertencimento e memória
filha bastarda e estúpida da marcha civilizatória desenhada em papel moeda
Cidade-negócio do progresso daninho que nos mata a todos seja na pirotecnia do réveillon
seja na fancaria de teus vídeos comerciais
A ambição porca dos teus usurários e cafetões escava junto às tuas centenas de canteiros
a calha rasa do teu jazigo recoberto de flores de polietileno
Teu amanhã é seu rosto de misse mumificada deformado por mil Pitanguys
no exílio do oitavo andar de seu duplex na avenida atlântica
Que saiba Jean-Baptiste Debret quando te retratou tal qual Basil Hallward à Dorian Gray
te fazendo serva da própria imagem
Que saiba, esse falso Rio, nascido engano
Que saibam os índios que tombaram na sua defesa e saibam os despejados do Príncipe Regente
Que saibam os negros da pequena África e saibam as pedras do morro do castelo
(que forram o hoje o chão do aterro)
Que saibam os escombros de cada casa da Vila Autódromo
e cada uma das centenárias famílias de pescadores da lagoa de Jacarepaguá
Que saibam os filhos órfãos do Cabeça de Porco, da Favela do Esqueleto,
do Morro do Pinto, do Morro do Pasmado, de Maria Angú, do Metrô-Mangueira
Que saibam as velhas casas e vilas do subúrbio que somem dia após dia, invisibilizadas, silenciadas:
Não vai longe o tempo em que todo esse Rio será só um areal sem fim.



Foto: Silvia Izquierdo/AP

*   *   *



Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública estadual. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis. Participou da coletânea do projeto “Realengo – Poetas pedem paz”, publicada na revista “Germina” e teve textos publicados no blog “Plástico Bolha” e no caderno “Megazine” do jornal “O Globo”. Também tem publicações nas revistas literárias "Um Conto", TriploV" (Portugal) e "O Bule". Em 2011 publicou seu primeiro livro de poesia, "Livro de Mentira". Blog.

3 poemas de Marven J Franklin

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Ilustração: Gilad Benari



SUBÚRBIOS GRIS

minha confecção poética
é para me libertar das amarras
dos conceitos burgueses
e alforriar
avantesma enevoada/corpo ríspido/perversos sentimentos
dos grilhões que nos aboca

minha confecção poética
é do mundo e para o mundo
para os que sofrem
de solidão
e frio nas esquinas
mal iluminadas dos subúrbios gris

(...) deixo claro.
que minha confecção poética
não é para agradar as academias
nem estar de acordo com as normas preestabelecidas
pelos arrogantes poetas de consulado

minha confecção poética vem do povo
dos olhares que me fitam e que entristecem
querubins e gente sã

minha confecção poética
é lâmina a cortar as grades maciças que protegem os condomínios
vergonhosos muros que divisam
as camadas sociais

minha confecção poética
é aborrecível
parte integrante de uma revolta social
punho a acertar o bucho da tirania



VILA ESMERALDA

vila esmeralda de meus pesares
de caçadas instáveis e desconjuntadas
abrigara-me as estuações e os desenganos.
quantas vezes meu rosto terrificado se contraiu contra a grade fria do alpendre a querer alçar voo rumo ao sem fim?

vila esmeralda dos segredos inconvenientes
dos natais débeis e de luzes descoloridamente mortas
advindo do fingimento usual de uma gente ambígua.
quantas ocasiões meus passos viajavam incautos a distancia curta que me levasse ao suicídio?

vila esmeralda das tardes mornas
e vozes abafadas em minha memória de elefante tombado em cemitérios aleatórios quando fixava o concreto forte em busca de girassóis.
por onde anda o velho osmar com fardas e pijamas a fazer sua ronda diária em caça de sua própria desventura?

vila esmeralda de minhas lucubrações
dos alvoroços e matizes alcoólicos a fazer surrealismo na chuva fina
em madrugadas deprimidas e vazias.
por quanto tempo tu ainda vais demorar em meus temores?

seu domingos com o olhar de mortas vigilengas... em que estrela habitas?




JANELA PRIVILEGIADA DE MINHA INFÂNCIA

quando eu era pequeno
as casas eram acanhadas e as janelas
traziam as cores delicadas parecidas com as lonas de circo
que vez ou outra visitava a cidade
os dias passavam trôpegos e vagarosos
ansiosos por expirar com fim da tarde.

quando eu era pequeno
meu pai me narrava as histórias de
dom quixote e eu fazia cara feia quando ele gracejava de sua demência
enquanto eu padecia pela desesperação
de meu super-homem medieval

quando eu era pequeno
o aguaceiro caia gostoso
e estourava suas gotas translúcidas
na vidraça da janela que dava para o horto de roseiras
tão bem cuidadas pela minha mãe

quando eu era pequeno
minha professora maria célia
percebia que enquanto ela discorria
sobre algarismos romanos
meus olhos erravam
espairecidos quase que a pelejar com dragões
imaginários que me salivavam fogo
de sobre o telhado lodoso do educandário

e hoje... bem maior!
onde estão:
os envelhecidos circos com suas lindas bailarinas de perna de pau?
o meu encanecido pai e o exemplar precioso de dom quixote?
as rosas tão rubras e veludíneas do canteiro de minha mãe?
minha querida mestra maria célia?
onde foram?
será que viraram pedra-portuguesa no quintal de minhas reminiscências?




Meu nome é Marven J Franklin, paraense de nascimento, mas resido em Oiapoque-AP, extremo norte do Amapá, fronteira com a Guiana Francesa. Sou professor da Rede Pública Municipal, desenvolvendo minhas atividades na Secretaria Municipal de Educação de Oiapoque (SEMED). Sou formado em Educação Física pela Universidade de Brasília (UNB)  e pós-graduado em Educação Física Escolar pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro. Já publiquei no Overmundo e Recanto das letras e em meu recente blog pessoal além de redes sociais!


Assombros - Eduardo Sabino

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Ilustração: Amanda/deviantART


            O medo era o combustível de tudo. O medo rompia a lógica serena e entediante da vida. Os meninos pegavam a lanterna na festa e corriam para o cômodo escuro. Nem sempre a deixavam entrar. Por ser dois anos mais nova que eles. Por ser a única menina de uma geração de homens. Ana esmurrava a porta e implorava um lugar no breu. Pela insistência, conseguia.
            Os meninos sentavam-se em círculo e revezavam a lanterna. Quem a detinha, contava uma história de terror. Histórias passadas de geração em geração em Nova Lima. Damas de branco, suicidas do córrego, mulas sem cabeça, óvnis e alienígenas cabeçudos vistos no topo do bairro.
            Mesmo sabendo que talvez não conseguisse dormir mais tarde, Ana gostava de ouvir os casos. Gostava da sensação do arrepio na nuca, do corpo em alerta, de saber que o mundo também era feito de coisas estranhas e misteriosas.
***
            Ana e João dividiam o interesse por extraterrestres. Saíam de fininho no meio das festas e iam para a sala de visitas. Assistiam a uma série de alienígenas na Rede Bandeirantes. Na abertura, uma criança de cabelos lisos, filmada de costas, aparentemente normal, de repente virava o rosto e mostrava suas feições de extraterrestre: testa grande, pele esverdeada, olhos negros imensos, boca fina e miúda, nariz rente à pele e deformado. Nenhum episódio era tão memorável quanto a virada de rosto do alien.
***
            Ana gostava de ficar na varanda da avó em noites de céu estrelado. Observava os aviões levantando voo atrás da serra e procurava as três marias e o cruzeiro do sul, as constelações mais fáceis de achar. Seu maior desejo era ver um objeto suspeito, uma luz de brilho e movimentação irregulares, comprovar a existência dos discos voadores. No seu nono aniversário, Ana notou um objeto estranho balançando acima do muro. Mostrou aos meninos e todos correram pra dentro de casa. No quarto do segundo andar, ajoelharam-se na cama e colaram os rostos na janela. Ana olhou pela fresta da persiana e deu a notícia ruim: uma tira de plástico grudada na fiação elétrica.
***
            A avó de Ana ouviu o chamado em um domingo chuvoso. Alguém de voz aguda dizendo ô de casa e batendo palmas.
            Olhou no buraco da fechadura e viu a imagem de uma moça belíssima. Vestido branco, maquiagem forte, um sorriso meigo. Como estava descabelada, e não podia se apresentar assim à visitante, a avó de Ana correu à penteadeira e ajeitou os cabelos.
            Quando abriu a porta, não havia ninguém. Duas vizinhas jogando conversa fora na janela de suas casas. A avó de Ana perguntou-as sobre a moça de vestido. Estavam ali há mais ou menos quarenta minutos e não tinham visto moça nenhuma. 
            As histórias correram. Vieram, pela boca dos antigos do bairro, os fundamentos históricos da aparição. No século anterior, uma noiva teria tentado atravessar a ponte do Bananal a cavalo.  Fugia de um casamento arranjado para um médico com o dobro de sua idade. Talvez conseguisse fugir, sabe-se lá pra onde, se o animal não tivesse prendido uma ferradura num vão entre as madeiras da ponte. A noiva caiu do cavalo e quebrou o pescoço.
            Desde a visão da avó de Ana, as pessoas evitavam andar sozinhas pela banqueta e temiam encontrar a noiva. Quanto a Ana, a história havia a comovido de uma maneira diferente. Ela vigiava a rua da janela, escondida, e recebia as visitas no portão. Uma parte de si queria ver o espírito da noiva. Por vezes, imaginou o encontro. Diria à moça que sentia muito pelo acidente e que acenderia uma vela pedindo a deus que a levasse para o céu. Mas eram sonhos fabulados ao longo do dia. De noite, Ana temia criaturas sobrenaturais de toda ordem, inclusive a noiva de branco, e entrava embaixo da coberta no menor sinal de ruídos não identificados.
***
            João e Ana batiam a idade. Também o interesse por games e histórias, embora João apelasse quando perdia no Super Nintendo e dormisse de luz acesa quando a turma extrapolava na sessão terror. Extrapolar na sessão terror significava chegar aos temas proibidos no quarto escuro, os demônios: histórias que culminavam sempre em luz acesa e debandada e que vinham na mente, num replay constante, na hora de dormir.
            Certa feita, João contou a Ana a história da luz verde. Estavam na varanda, sozinhos. A luz verde era uma luz que se deslocava à noite pelo bairro, como se fosse a mira de uma arma, e que teria perseguido alguns fiéis em vigília na cruz da Boa Vista. Reza a lenda que, se for pego pela luz, o indivíduo será teletransportado ou abduzido.
            Ana se lembra de ter achado a história boba. Mais boba do que a história dos homenzinhos que teriam perseguido seu tio Antônio na represa. Seria até engraçada não fosse a luz verde projetada no rosto de João assim que ele concluiu o relato.
            Ana e João correram gritando para dentro do quarto e se esconderam debaixo da cama. Nenhum adulto em casa, todos na casa de um vizinho onde acontecia um comício de um vereador.  Tremendo debaixo da cama, os meninos viram a luz se movimentando nas paredes lentamente. Ana pressionou a mão de João, fechou os olhos, disparou três pais-nossos e duas ave-marias, e tapou a boca do primo quando ele começou a chorar. Nenhum dos dois se lembra do que aconteceu em seguida. É provável que tenham desmaiado.

***
            Brincar na rua, no bairro de casa, mantinha Ana, seu irmão mais novo, Gabriel, e a melhor amiga, Paula, entretidos por longas horas. Jogavam sempre queimada e vôlei. Andavam de bicicleta e patins. Como sua avó, Ana morava em um bairro um pouco mais afastado do centro de Nova Lima. Ainda menos movimentado: sem comércio e reserva florestal. Uma de suas alegrias era subir ao cume da Arlindo Vieira, a rua mais íngreme do bairro Cariocas, e descer o morro de patins, em trajetória reta, indo no limite de velocidade das rodinhas e sentindo o vento elevar seus cabelos.
            Descia como bala e, às vezes, tinha a sorte do cachorro Zezinho, o pinscher da vizinha, estar solto. O bicho descia no seu encalço, mostrando as presas como um alien, e dava tudo de si para alcançá-la. O peito de Ana batia forte, como se alguém brincasse de bolimbolacho lá dentro, mas ao final, quando Zezinho se cansava, tudo o que Ana sentia era entusiasmo, e continuava a subir e descer a rua para atiçar o cachorro.
***
            Dois anos mais velha que Ana, Paula tomou uma decisão quando completou quinze anos. Fez aniversário e recebeu o comunicado dos pais de que havia se tornado mocinha. Numa tarde de céu azul e muito calor, Ana tocou a campainha na casa de Paula, chamando-a para brincar. Paula surgiu na janela e anunciou que, dali pra frente, não brincaria mais na rua. Não era mais criança.
            Ana e Gabriel desceram o morro sozinhos e não conseguiram se divertir muito naquela tarde. Ana achou tudo muito estranho, esse ato de acordar um dia e não ser mais criança, e ficou pensando quando seria a sua vez, ou se aquela menina, agindo de forma suspeita, era de fato a sua amiga. Lembrou e achou graça, apesar de tudo, da série americana em que os extraterrestres tomam a forma de vírus, entram nos cérebros das pessoas e assumem o controle. Será que Paula havia se tornado um deles?
***
            Ana subia o beco do Rego Grande e notou passos às suas costas. Voltava da escola em uma quarta-feira de educação física, suada e com os músculos latejando. Olhou de ombros e viu um homem de meia idade, barba volumosa e sorriso afável. Fez um cumprimento com a cabeça, disse boa-tarde, e o homem respondeu, dizendo que a tarde tinha acabado de ficar melhor. Ana virou o rosto e continuou a subir a viela. Então o homem começou a dizer coisas estranhas. Ana apertou os passos e o homem também acelerou os dele. Falava que a levaria pra cama. Que a lamberia dos pés à cabeça. Que nunca tinha visto uma bunda tão linda. Ana subiu a escadaria no fim do beco correndo e irrompeu na banqueta, onde havia mais estudantes voltando para casa.
            Ainda ouviu as risadas e o assobio do sujeito lá embaixo e soube na hora que nunca mais atravessaria aquele beco. Embora o homem já estivesse longe, Ana correu o restante do percurso. Chegou em casa tremendo, sem entender direito o que havia vivido, um assombro que nada tinha a ver com o que sentia quando ouvia uma história de terror ou fugia do cachorro Zezinho.




Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima-MG, onde vive atualmente. Estreou na literatura com o livro Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Novo Século, 2009). O conto “Assombros” integra o seu segundo livro de contos, Naufrágio entre amigos (Editora Patuá, 2016), do qual também faz parte o conto “Sombras”, vencedor do concurso Brasil em Prosa 2015.

Lançamento em São Paulo de "Sonetos de amor em branco e preto" de Manoel Herzog

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A Editora Patuá e o Patuscada - Livraria, Bar e Café convidam a todos para o lançamento do livro Sonetos de amor em branco e preto, poemas de Manoel Herzog. O livro conta com o apoio do PriAC - Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

O evento será realizado no dia 24 de junho (sexta-feira) a partir das 19h no Patuscada - Livraria, Bar e Café - Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena - São Paulo - SP.



Conheça 2 poemas do livro:


RANCOROSO, MA NON TROPPO


Do nosso amor restou belo monturo:
Garrafa pet, pneu velho, entulho,
Os urubus, pombos do amor, num arrulho
Dançam sobre esta cama, e o barro escuro

Que viraram os sonetos e os "eu juro".
Nosso fubá está cheio de gorgulho,
Pra merda alguma serve o teu orgulho,
Me vejo só na cama, e de pau duro.

Ressentimento, mal-estar, ciúme,
Engulho, lembranças de grandes fodas,
Punheta fria, gozo frio, negrume,
E a depressão que aos versos incomoda.

Meses de fronha suada e barba hirsuta –
Volta pra mim, sua filha-duma-puta!



SONETO DA IMPOSSIBILIDADE


Não posso dar o amor que você pede,
Contudo, é todo seu o amor que eu posso.
Pra natureza fraca não há remédio,
Sou delicado, espano se me esforço.


Deixar morrer amor bom feito o nosso
Sei, pode parecer cruel e, adrede,
For eu forçar, acabo tendo um troço.
Minha energia, a seiva do meu pé de


Laranja-lima, amor, tudo isso eu dava,
E dava mais que tudo, se eu pudesse.
Mas eu não posso, e pouco, eu sei, não serve.


Então se fica assim, você no estresse
E eu vivo – morto o amor também findava –

Que dar cabo da vida não se deve.





Autor dos livros Sonetos D’amor em branco e preto (Poesia, 2016 - Prêmio ProAC 2015); O evangelista (Romance - Patuá, 2015), A comédia de Alissia Bloom (Poesia - Patuá, 2014) e Companhia Brasileira de Alquimia (Romance - Patuá, 2013), Manoel Herzog nasceu em Santos a 24 de setembro de 1964. Em 1987, estreou com a publicação do livro de poemas Brincadeira Surrealista. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com o romance Amazônia, do Prêmio Sesc 2009. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Em janeiro de 2012 publicou o romance Os Bichos, pela Editora Realejo. O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi premiado pelo FACULT. Também escreve quinzenalmente uma crônica literária na coluna Cais das Letras, no site Cinezen: http://cinezencultural.com.br/site/



3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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viver

“I don’t want to die, me! I want to stop
alive for ever, if only to see the ships pass.”
G. B. Edwards, The Book of Ebenezer Le Page

nem que seja só para me sentar na
areia da praia e olhar, lá longe, os
navios passarem. e sentir, ao meu
lado, a respiração de uma garota
de cabelos castanhos (supondo o
brilho dos olhos dela olhando o mar).
viver nem que seja só para, quando a
noite cair e trouxer com ela o frio,
olhar a lenha queimando no fogo. e
ora a garota de cabelos castanhos, ora
eu, vez por outra ajeitar a lenha
e alimentar o fogo. enquanto falamos
dos navios que, de dia, passaram
diante dos nossos olhos.


o dia

Depois de Driving Montana, de Richard Hugo

o dia é uma garota de vestido estampado
de algodão florido laranja e branco, que te ama,
ou que poderia amá-lo. que tem olhos bem abertos,
castanhos, cabelos castanhos. o dia é de sol e o céu está
tão aberto. é uma música ruim tocando ao fundo.
é a vontade de fazer uma besteira e se casar
com aquela garota. o dia é amar o castanho dos cabelos
dela, é amar o vestido de algodão florido laranja e branco.
e as sandálias havaianas que ela calça. o dia é tanta
e tão pouca coisa. o dia, e amanhã.


de como eu serei lembrado

depois de “how you know me”, de Franz Wright

no sétimo dia do mês de maio, do
meu quinquagésimo quarto ano de vida,
logo cedo, o sol ainda meio escondido
em meio à bruma da manhã, eu tive uma
visão. garanto a você que foi forte e marcante,
mas não consigo descrevê-la. não posso. eis o que farei:
acenderei uma vela – mesmo não sendo religioso –
para meu pai e para alguns outros parentes
e amigos que já se foram, e rezarei.


ah, as estradas sinuosas, aquelas noites, a
brasília branca, apagar os faróis para viajar
sob a luz da lua, bob marley cantando
no toca-fitas, johny walker (rótulo vermelho) no
gargalo, passado de mão em mão.



*    *    *






André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento.



 

Pedro vai à Terra - Fernando Paiva

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Ilustração: Jeff/deviantART


Sofro do que chamam de terrismo psicossomático: tenho saudade da Terra sem nunca ter pisado lá.

Minha avó materna era o meu elo com o planeta azul, a última terráquea que restava na família. Chamavam-na de eterna. Depois do 150º  aniversário parou de comemorar a data. Estava cansada de converter a idade para anos terrestres.

Desde que minha avó faleceu, estou obcecado pela ideia de conhecer a Terra. Preciso entender de onde vim, por que estou aqui, para onde vou. O resto do universo me parece pequeno, porque irrelevante. A Terra, por outro lado, é infinita em minha ignorância.

Decidi comprar um chacri toi. Vou mandá-lo para onde minha avó morou antes da diáspora espacial, o Rio de Janeiro. Tenho a latitude e a longitude exatas da sua casa, num bairro que chamavam de Laranjeiras. Quero encontrar algo, um grampo de cabelo, uma escova de dentes, um telefone celular, qualquer vestígio da presença dela na Terra que possa ser meu também, por extensão.

Comprei um modelo antigo de chacri toi que estava em promoção. Vou chamá-lo de Pedro, em homenagem ao meu avô, que não cheguei a conhecer. Gosto de nomes antigos dos tempos da Terra.

Transformei meu quarto em um pequeno centro de controle com conexão interestelar de baixa latência. Empurrei a cama para junto do armário e tirei a poltrona. É preciso abrir espaço para me movimentar livremente enquanto controlo Pedro.

Descobri que um amigo conhece um amigo que conhece um cara que faz transporte clandestino para a Terra, ou, mais especificamente, para onde um dia foi o Brasil. A nave desce durante a temporada de raios. É arriscado, mas dá para pagar. Reservei uma passagem de ida para Pedro.

No ombro direito de Pedro colo a bandeira lusófona. No esquerdo, por precaução, o símbolo da neutralidade universal. É uma forma de evitar confrontos com membros de gangues que vagam pela Terra.

A viagem foi tranquila. Havia uns quarenta chacri tois pelo menos. Todos imigrantes ilegais, sem autorização para viajar à Terra. As motivações são diversas, desde mineração clandestina até coleta de cogumelos alucinógenos, cada vez mais valiosos no espaço. A passeio, creio que apenas Pedro. Depois do pouso, nos dispersamos: cada um numa direção, torcendo para não ser atingido por um raio na cabeça.

No caminho vemos várias escavações arqueológicas. A maioria abandonada pela metade, outras a pleno vapor. Virou moda voltar à Terra em busca do passado.
Chegando ao nosso destino, a primeira coisa a fazer é instalar um para-raios, item de primeira necessidade. Em seguida, ligo a câmera esférica de vídeo e inicio uma gravação. Quero registrar esse momento. Mas a verdade é que não há muita coisa a ser vista. A natureza cobriu tudo.

– Foi aqui que minha avó morou na Terra. Talvez eu devesse sentir alguma emoção, mas não sinto nada. Será que Pedro sente algo?

No segundo dia de escavação recebemos a visita inesperada de uma chacri toi retrô com o símbolo do amor universal pelos entes vivos e presumidamente vivos ornamentando seu ombro esquerdo e a bandeira lusófona no direito. Ela pergunta o que faço ali.

– Estamos em uma missão arqueológica.
– Estamos?
– Eu e Pedro.
– Quem é você? Quem é Pedro?
– Este chacri toi é Pedro. Eu sou eu.
– Prazer, esta chacri toi é Madalena. Eu sou eu também.

É uma questão de segurança não revelar quem está no comando de um chacri toi, ainda mais tendo chegado clandestinamente à Terra. Para desanuviar o clima, eu cito minha variação de John Donne pós-diáspora:

– Nenhum chacri toi é uma ilha isolada.

Madalena ri. Meu coração bate mais forte. O processador de Pedro esquenta.
Madalena se junta a nós nas escavações. Ela não conheceu minha avó, nem sequer me conhece, no máximo acabou de conhecer Pedro, e mesmo assim cava com o ímpeto de quem procura um amor enterrado.

Não sei quem está mais cansado, Pedro, Madalena ou eu, trancado no meu quarto sem comer nem beber direito desde que aquela viagem começou. Depois de uma semana cavando não encontramos nada de relevante que pudesse ser atribuído à minha avó. Decreto a missão encerrada. É frustrante, reconheço. Não existe nada que me vincule ao passado terrestre da humanidade. Começo a duvidar da história que me contam, da vida, deste universo, deste tempo, de Pedro, de Madalena, de mim mesmo.

Esta era uma viagem para que eu me conhecesse melhor e agora me conheço menos ainda. Aliás, me sinto mais como Pedro do que como eu mesmo.

– Crise de identidade humano-chacri-toiniana – diagnostica Madalena.
– Eu também sofro disso.

Pedro e Madalena se abraçam, tão fortemente quanto dois chacri tois poderiam se abraçar. E eu me sinto no corpo metálico de Pedro, captando, de alguma forma, o calor de Madalena. Sinto que ela me entende. Ou talvez me ame, como ama a tudo e a todos, vivos ou presumidamente vivos. Por alguns segundos, enquanto dura o abraço, eu sou Pedro, uma máquina, e sou também eterno. E concluo que definitivamente não somos uma ilha.

Madalena propõe que sigamos viagem juntos. Ela quer conhecer o Norte do antigo Brasil. Quer conhecer o que restou da Amazônia. Pedro aceita o convite.


E assim iniciamos uma longa viagem, sob uma chuva de raios, eu-Pedro e alguém-Madalena, à procura de novos amores, da cura para o terrismo psicossomático, ou apenas aguardando o tempo passar e nossas baterias acabarem... para eu voltar a ser quem sempre fui ou achei que fosse nesta vida fora da Terra. 


Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016), lançado esta semana.



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade(7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.

3 minicontos de Paulo Eduaro Gonçalves

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Ilustração: Alzbeta



Lei da selva

               Em vez de formarem uma rede adolescente de amizade e apoio mútuo, constituíram-se enquanto matilha. Território a proteger e hierarquia a seguir. Nenhuma misericórdia. Aquele que caísse, seria massacrado pelos próprios companheiros. “Se você morrer, esse tênis é meu.”
               Apesar de nunca ter feito parte de seus quadros como membro efetivo, minha condição de tabu permitiu-me documentar seus atos e motivações, sua fúria destrutiva respaldada pela necessidade de sobrevivência. Um trabalho quase científico, uma opção pela mais perigosa e gloriosa das missões.
               Eles perambulavam; dia e noite; pelas ruas, avenidas e carreiros. A urbe, em toda sua caleidoscópica extensão, era sua selva, tundra e savana. Magérrimos de não comer, engalfinhavam-se em entreveros com hienas e chacais das adjacências, quando não estavam a pular muros atrás de ração abundante, ou de cadelas no cio.
               Eram o trabalho dos cães de guarda e o ódio dos proprietários, que esperando um capa preta para preservar a linhagem, viam nascer, do ventre das cachorras em que investiram tanto tempo e dinheiro, um dingo.
               Pois era a sua raça, alcunha e distinção: Dingos. Cães domésticos abandonados em ambiente hostil, que após sucessivas gerações, acabaram por retornar a um estado de selvageria.



Panacéia

Oferece-se a cada um a medida exata daquilo que consegue apreender. Aos viciados as drogas, aos apaixonados o amor, aos sensatos os ceticismos, aos sofredores a dor.
Em duas ou três linhas, o mar de sensações no qual afogar as vilanias da existência.



Panacéia II

Preso no quarto escuro, junto a uma sucessão infindável de considerações e lembranças desagradáveis.
Talvez seja apenas a noite, madura demais para desejos tão infantis. Talvez seja algo mais perigoso, e o vazio em meu interior seja um pálido reflexo do infinito vácuo exterior, uivando e gemendo sua pressa em consumir-me junto a tudo o mais.
É uma noite moderna, e há tempos o neon e o cabeamento por fibra ótica varreram da realidade as ameaças das sombras correndo pelas paredes nuas. No entanto, a despeito do que assegurem mil diferentes religiões, ciências ou psicologias, não posso deixar de preocupar-me com aquilo que sinto.

Dor, fome, medo, fúria. Deus queira o telefone ligue o motoboy que me traga com urgência duas caixas de alívio imediato, antes que meu peito exploda e reverbere com o vento, doses do mais puro e refinado sentimento.





Paulo Eduardo Gonçalves, 37 anos, paranaense de Ponta Grossa. Pequenas premiações e participações em antologias locais. Ativo na internet desde 2002, com um livro de poesias auto-publicado e um e-book que chegou a estar entre quatro mais baixados da Amazon Brasil na categoria poesia geral.

Último Beijo - Homero Gomes

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Ilustração: Czyzowska Young


Às mães que são mães, não meras estatísticas.


Vitória tinha os seios fartos, mas depois dos dezesseis os escondia em camisetas sem decote devido às estrias.
Ela gostava de se olhar no espelho, aproveitar as peças novas que comprava nas lojas populares.
Mas Vitória não gostava de seu corpo. Suas coxas eram desproporcionais, dizia ela – bunda demais.
Nada nela era equilibrado. Harmonioso. Isso resultou, talvez, em seu temperamento.
Quando explodia, ficava sozinha na sala de tevê.
Seus lábios eram grossos, mas não fazia uso deles, pois se considerava estragada. Estava velha, era pobre e não tinha uma pinta sobre os lábios como a Marilyn.
Algumas vezes, saía à noite para procurar um homem.
Se vestia comportadamente, mas desejando peças fáceis de tirar.
Raramente encontrava um par. Alguns homens investiam; seus olhos atraíam interessados, mas ela se esquivava.
Essa ambiguidade de sentimentos foi a causadora de seu único pecado.
Amou durante nove meses o ser que se desenvolvia dentro de si.
Quando viu o menino fora dela não o reconheceu. Não era mais mãe. Apenas um saco vazio com leite pingando e manchando o sutiã, mas sem a beleza da juventude.

Quem ele chamava com aquele choro todo?

Ele só queria pedir um último beijo.



Homero Gomes nasceu em Curitiba, em 1978. Publicou Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição 2007 – em 2014 e Solidão de Caronte (poesia) – Prêmio Poetizar o Mundo – em 2013. Foi colaborador de Rascunho, Cronópios, Vaia, Cult, Germina Literatura, Palpitar, Ficções, Escritoras Suicidas, Samizdat e Mallarmargens. Foi colunista nos portais Página Cultural – com ensaios, críticas e crônicas –, Mundo Mundano e também foi um dos correspondentes do Musa Rara: literatura e adjacências.facebook.com/sisifodesatento


POEMA DE JORGE ELIAS NETO

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Compreende, João?


Me compete a rasura,
um trecho qualquer de insanidade

Não arrisco menos que a loucura
no arrebol aceso do meu traço

Prumo é sanha, não desperdício,
meço o engasgo e o gargalo

Se não há crença ou desespero,
sobra a lasca, largo a plaina

Quebro o terço, me desfaço,
deixo a febre do avesso

Ser guia do erro, dos passos,
o toque humano, o rastilho,

A trama, o corte, a fissura,
o espanto e seu nó de poeira,

Minha verdade Severina
na preamar do cansaço.


Vitória, 17 de junho de 2016



*    *    *





Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. BlogEmail.


LEIA TEXTOS DO AUTOR


2 minicontos de Marcos Samuel Costa

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Ilustração: Johann



Faca no coração

Não havia ninguém na rua, e não tinha porque ter, madrugada alta, horas quase findas,molhadas de nostalgias, perfídia de ilusões, gole seco de ar. Em alguns momentos parecia que as árvores queriam começar um dialogo – falar de homens e mulheres, drogas e palavras ocultas, segredos, crimes – mas Pedro não queria ouvir.

Trazia na mão uma faca, uma rota de fuga desse mundo cruel, liberdade, podia ouvir seu coração gritar liiibeerdadeeeee. Longe de sua casa há algum tempo. Queria a morada da liberdade, ser livre. As horas corriam depressa, puxadas por cavalos negros, seus olhos estavam fechando-se aos poucos. É agora, a faca próxima ao coração, respiração ofegante, mão tremula...

 – Pedro, já é 6: 30 da manhã, levanta, vai pra escola.
 – Tá mãe.





Carteiros e ruas

As ruas de Belém são como a sombra da alma humana, sempre cheias, chuvosas, melancólicas, sombrinhas que se abrem à tarde, carros que percorrem toda via, ocupam tudo, sujeira em todos os lados. Seria possível esticar um elástico em seu aspecto mais sombrio e com o tempo vê-lo puir, destruir a estrutura solida e concisa, andá-las sem olhar para o finito, vista comprometida com o infinito – mesmo que seja pura ilusão. Esticar até o peito dos mortos que dormem no Soledade, nas mãos estendidas na porta dos bancos, mas sua tangencia é céu chuvoso. O gramado dos olhos das aves que sobrevoam a cidade, também entra no coração da população que circulam vias impuras. Carteiros carregam o amor e o ódio em suas cartas, presentes vindos de longe e cobrança de dividas antigas – como a da manga caída a esmo e seu amado que mudará para o sul.

Juliano torou-se carteiro há pouco tempo – coisa de vinte ou mais anos apenas, conhece todas as ruas, alamedas, vilas e cursos – mar que nunca cansa de encher a cidade de bichos curiosos e famintos de verdade. Em suas mãos trazia uma carta vinda do velho mundo, destinava-se a casa 442, entregou e partiu para seu itinerário de sombras e infinito. 

 – Chegou para você Maria
 – Obrigado
 – É de um velho amor. 




Marcos Samuel Costa da Conceição nasceu com o rio praticamente debaixo dos braços, é filho, neto e bisneto de pescadores, cresceu ouvindo muitas estórias e mitos. Aprendeu a amar as dimensões dos rios, mas acima de tudo aprendeu a fala dos rios – o silêncio –, seus primeiros poemas sugiram tão natural como os sonhos e os medos da vida. Viveu durante 20 anos em Ponta de Pedras uma pequena cidade do Estado do Pará, e atualmente mora em Belém. Estuda música desde os 9 anos de idade, até hoje, aprendeu tocar flauta doce e transversal, tocou durante quase 5 anos na Banda sinfônica Antônio Malato, mas atualmente não estar tocando em lugar algum, apenas em casa e raramente para amigos, com o intuito apenas de acalmar a alma. Extremamente apaixonado por plantar (cultivar), manteve por muitos anos um pequeno jardim em sua casa no interior. Hoje vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. Acadêmico do curso de Serviço Social (FMN-Belém). Membro correspondente da Academia de letras do Sul e Sudeste Paraense e da ASPELPP-DJ. Autor dos livros: Pés no chão e sonhos no ar (edição do autor, 2012), Convites para amar(editora Literacidade, 2013), Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), e Titulado amor (editora Literacidade, 2014), e um em co-autoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia(Editora Penalux 2016). Participou de mais de 20 antologias literá­rias e da Revista de arte e poesia Mallamargens.

FALÁCIA - JANDIRA ZANCHI

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Ilustração: Lea Henning



longa longitude dessa noite fria

lesta/iletrada em róseas nuances de flor
e labirinto
         lastimado e vago cais
sem porto ou poente ou porosa
e colorida mente metrificada de muitos e muitas
multi multadas manuseadas
- sim, pois foram manipuladas –
derrapagens diluídas em pistas quase...
quase videntes e sem vida
viciadas violáceas varadas
na parva serpente (serpentina) amuada
amolecida - duo- de cânticos e moléstias

há quem creia a vida (essa vivente e nonsense temporária espada)
como o timo tonificado da única armada e amante morada

ainda que tarde leio a crista do azul violáceo
que desperta – entre dentes – sua fúria falácia de sal
e salmoura salutar saliência salubre... vital
é a sina da seiva (semente/saciada) fome de infinito...
e paz...



JANDIRA  ZANCHI

"Guaccaluz" de Daniel Lopes

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Foto: Tommy Ingberg






Para Márcia Barbieri, porque só me reconheço no meu nome, 
quando tua boca o diz e para minha mãe, porque viu meu sofrimento
 e sofreu tanto quanto eu até que eu descobrisse meu nome.



1 – O Monstro
O pior de estar preso no labirinto
É encontrar a saída inúmeras vezes
E não querer sair
Por medo de olhar nos olhos do monstro
E admitir que não sou Teseu
Mas o Minotauro
GUACCALUZ!

2 – Descrição do Limiar

A única hora em que estamos despertos
É pouco antes de dormir
Guaccaluz!
Há o círculo vermelho e o azul e os dois são o mesmo
A dualidade deste Um é a energia na qual fundo e superfície são o mesmo
Guaccaluz!
O Espírito é real e não pode estar longe do natural
Mas a Natureza sem o Espírito é um cadáver.
Não há pecado em Guaccaluz
Porque mesmo a busca é festiva
As entidades zombeteiras habitam mais a Guaccaluz vermelha
As espirituais, mais a Guaccaluz azul
E, no entanto, uma não pode ser sem a outra
O ouro é a armadilha de Guaccaluz
Porque o Mestre-Discípulo repetiu o sopro:
Meu reino não é deste mundo e o reino de Deus está em cada um de nós
Para a Igreja Católica, Guaccaluz é a Eucaristia
Para Lao-Tsé, o TAO
Cada cultura dá um nome
Eu fui incumbido de dizer Guaccaluz!
Os profetas de Guaccaluz enfrentam o Minotauro,
Devorador de criancinhas
E o vencem
O único crime contra Guaccaluz é ceder ao Minotauro
E os profetas são os mais constrangidos a cometer tal crime
Aqueles que podem tocar os círculos
Têm do lado esquerdo do peito um pouco de Guaccaluz
Mas devem manter-se puros, sob o risco de desmoronar
Quando encontram o Tesouro
Os Profetas-Guaccaluz devem reparti-lo com os homens
E repetir Guaccaluz até cansar.
Mesmo quando os ouvidos estiverem podres
E pensarem em desisitir, repetir Guaccaluz outra vez.
Os varredores-noturnos são Profetas-Guaccaluz
O profeta Gentileza é Guaccaluz
Inri Cristo, um farsante
Friedrich Nietzsche confundiu Guaccaluz com vontade de potência
E Carl Gustav Jung confundiu Nietzsche com um Profeta-Guaccaluz
O mito é  Guaccaluz
O amor é a lei, meus amigos
E a eternidade, uma Festa
O que mais o ser humano poderia almejar?

 
Foto: Tommy Ingberg




3 – O caminho

Passamos toda a vida aprendendo
Lendo,
Procurando,
Escrevendo,
Para um dia, quem sabe, poder dizer nosso nome eterno
Feito mendigos que juntam
Entulhos de palácios
Restos de castelos
E no fim constroem um barraco com o que foi ruína
Mas, o barraco, bem pode ser mais belo
Que os tijolos sagrados que lhe deram vida:
GUACCALUZ!

Foto: Tommy Ingberg


4 – Ao outro

Quem se salva, salva-se pelo mito
E pode matar o Jaguadarte!
O pior que pode acontecer a um homem é perder sua alma
GUACCALUZ!
GUACCALUZ é zombeteiro
Brincalhão
Um menino
É contra todo espírito de gravidade!
Um Deus que, se não dança, ao menos conta piada
GUACCALUZ!
Se o dia foi feito para o trabalho
A noite foi feita para o sonho
E um não pode ser sem o outro
GUACCALUZ!
Por isso, é preciso passar pela doença
Pois a própria doença produz a cura
A lâmina da espada é feita do sangue do Dragão
GUACCALUZ!
E se as dualidades são sempre unas,
Por que Deus estaria separado do Homem e o homem de Deus?
O nome desse Dragão é modernidade
E o nome que eu me dei é o mesmo com que Deus Se Me mostrou:
GUACCALUZ!
E se você quer escrever, aprenda tudo sobre as palavras e depois esqueça as palavras.
Se quer cantar, aprenda tudo sobre o canto e depois cante, apenas
Se quer pintar, aprenda tudo sobre traços, cores, pinturas, perspectivas e depois apague
Um chinês disse que o sábio aponta a Lua, mas o tolo olha para o dedo
E GUACCALUZ completaria:
- E ainda reclama da cutícula!
Não seja um tolo, não se perca na máscara
A alma é o rosto mais precioso!
Se você quer, pode recriar o mundo
Mas, primeiro, tem de adoecer
Perder-se no labirinto
Tornar-se o monstro e trocar de rosto
Correr o risco de morrer sem ter sido
Encontrar o tesouro
Trabalhar de dia e sonhar de noite
Aprender uma piada nova de vez em quando
Cortar a cabeça do dragão
Então poderá ofertar à Morte uma taça cheia de vida
E a lagarta terá se transformado em borboleta
Diante do túmulo tua boca vai sussurrar: GUACCALUZ!
Mas já não será esta a palavra
E sim outra feita só para ti
O nome como Deus se inscreve no teu coração
E sequer precisarás lembrar que um dia existiu GUACCALUZ!









 
Daniel Lopes publicou a coletânea de contos Pianista Boxeador (Confraria do Vento), o romance Fruta (Terracota - 2013) e A delicadeza dos hipopótamos (Terracota -2014). Daniel edita o blogue Pianista Boxeador.
Contatos: danielopes26@yahoo.com.br



Máscaras e Ideologias - Regina Celi Mendes Pereira

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M.M. Bakthin (1895-1975)


O que é a verdade? Relativizando o conceito, diríamos que não existe uma verdade única, tanto sob o prisma filosófico quanto científico - não entrarei aqui no plano religioso -, a compreensão do que é verdadeiro é construída com base na nossa percepção, envolta em valores e crenças, portanto, variáveis e idiossincráticas. Paradoxalmente, talvez esteja aí, nesse truísmo, a própria categorização do relativismo do conceito. O contraditório é um princípio da convivência democrática e, sobretudo no contexto acadêmico, esse princípio precisa ser reconhecido e exercido, sob pena de naufragarmos no fundamentalismo cego, incompatível com a noção de ciência e a construção de conhecimento.


Introduzo esta resenha com tais obviedades para chamar a atenção para um certo valor de verdade que tem pautado estudos e reflexões nas ciências humanas no país, mais especificamente na Linguística, área em que me insiro. Não tratarei aqui de generalizações, mas de casos específicos, embora não únicos, referentes à publicação de dois livros aqui no Brasil que trazem à tona perturbadoras verdades, inverdades e mitos que foram sendo construídos ao longo do tempo sobre o legado Bakhtiniano. 


O primeiro, Bakhtine démasqué: histoire d’um menteur, d’une escorquerie et d’um delire colectif, publicado por Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota, em 2011, em Genebra, e no ano seguinte, traduzido no Brasil como Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. O livro divulga os resultados de uma criteriosa pesquisa documental bibliográfica, associada a um estudo hermenêutico e comparativo das obras de Valentin Volochinov, Mikhail Bakhtin e Pável N. Medviédev. Em linhas bem gerais, pois é impossível tratar aqui em detalhes de tudo o que é discutido em um livro de 509 páginas nesta crônica-resenha despretensiosa, os autores defendem a tese de que não pode ser creditada a Bakhtin a autoria de Marxismo e Filosofia da LinguagemFreudismoDiscurso na Vida e Discurso na Poesia e O Método Formal nos Estudos Literários, cujos autores seriam, respectivamente, Valentin Volochinov, dos três primeiros, e Medviédev, do último. Segundo Bronckart e Bota, essa campanha começou a ser construída em 1961, quando dois jovens cientistas russos descobriram que Bakhtin, o autor de Rabelais e Dostoievsky, estava vivo e lançaram-se a editar e a reeditar essas obras e a também, simultaneamente, construir o mito que foi fortalecido com a publicação no ocidente de Marxismo e Filosofia da Linguagem (publicado originalmente em Leningrado e assinado por Volochinov, em 1929), pelas mãos de Roman Jakobson na década de 1970. Misteriosamente, nessa nova edição, foi acrescentado o nome de Bakhtin como autor principal e o nome de Volochinov passou a constar tão somente dentro de um suspeito e insidioso parênteses. Dessa data em diante e, principalmente, no decorrer dos anos de 1980-1990, uma campanha falaciosa passa a ser divulgada nos Estados Unidos e na França, devido ao empenho de Clark e Holquist (1984), consolidando-se definitivamente no ocidente.

Até aí, nenhum problema, trata-se de uma tese, segundo meu ponto de vista, exemplarmente documentada e fundamentada, mas ainda assim, plena de possibilidades de ser rebatida e contradita, quando igualmente sustentada em argumentos e evidências.  O que me leva a recuperar essa questão, decorridos quatro anos da publicação do livro aqui no Brasil? O que se viu no contexto acadêmico foi uma completa indiferença à obra por quase totalidade dos bakhtinianos, não só dos mais ortodoxos, contrariando o princípio da responsividade enunciativa, conceito tão marcante na teoria do próprio Bakhtin. O exercício do contra-argumento acadêmico responsável cedeu lugar ao silenciamento e, em menor proporção, à crítica emocional e depreciativa da obra, algo tão comum na nossa cotidianidade, mas inaceitável na esfera acadêmica. Outro aspecto igualmente importante e que tem sido sistematicamente ignorado diz respeito ao reconhecimento de que, na verdade, não foram Bronckart e Bota os pioneiros em questionar a autoria dessas obras. Louis-Jean Calvet, por exemplo, em 1975, já defendia a mesma tese, ou seja, algo já anunciado há 35 anos antes da publicação da obra dos genebrinos não poderia configurar, obviamente, um fato “novo”, mas só confirma o apego a certas verdades e não a outras. A autoria de Volochinov era plenamente reconhecida, como se pode ver no seguinte trecho, “O que mais espanta aqui é que Volochinov, além da sua vontade de ancorar o fato linguístico na prática social, formula ao mesmo tempo uma crítica da linguística estrutural que ainda não existia (estamos em 1929)[...](CALVET, 1975, p.76)”.
O argumento contrário aos autores que mais circulou entre os “discípulos” de Bakhtin questionava a legitimidade das investigações por não terem sido analisados os originais russos. De tão improcedente que é, chega a ser cômica tal argumentação. Como explicar, então, todo esse doutrinamento e apropriação dos conceitos bakhtinianos por seus seguidores, aqui no Brasil, desde a década de oitenta do século passado até os dias atuais,  fundamentados unicamente na tradução brasileira e, mais esporadicamente, na tradução francesa? Seguindo esse mesmo raciocínio, tudo o que foi dito e escrito até agora seria igualmente desautorizado. Como teríamos ganhado todos, bakhtinianos e não-bakhtinianos, se no lugar das mágoas e ressentimentos individuais, postumamente assumidos por seguidores de Bakhtin, tivéssemos assistido a um debate teórico e não passional. Na Europa, foram publicadas várias resenhas sobre o livro, se favoráveis ou desfavoráveis, não importa, exerceram seu papel de contraditório, de que ali no Desmascarado, havia muito mais a “desmascarar” além de uma autoria.

Outra crítica feita a Bronckart e Bota questionava os termos ofensivos atribuídos a Bakhtin no título do livro, mas, diante da recorrente indiferença a tantas evidências históricas e bibliográficas, havia sim a necessidade de um “barulho” mais alto, usando adjetivos que incomodassem os ouvidos. No entanto, mais uma vez, seguindo um raciocínio de manutenção de um status quo, os termos “mentiroso, fraude e delírio coletivo” em vez de serem tratados como convite à discussão e ao dissenso, foram rechaçados como agressões, como atos de menor valor.




Longe de ser considerada uma exceção, fruto, talvez, da forte “adjetivação” do título do livro, percebe-se uma reação semelhante em relação ao segundo livro intitulado Volochinov e a Filosofia da Linguagem, publicado pela Parábola em 2015 e traduzido por Marcos Bagno. Este livro corresponde ao prefácio da nova tradução de Marxismo e Filosofia do russo para o francês, feita por Patrick Sériot e Ilna Tylkowsky, publicada em 2010.  
Se as críticas de Bronckart e Bota incomodaram os bakhtinianos, o livro de Sériot, certamente, vai além. O autor, definitivamente, atribui a autoria de Marxismo e Filosofia da Linguagem a Volochinov e situa Bakhtin e Volochinov no quadro intelectual da época, revendo e esclarecendo conceitos os quais, segundo o autor, foram abraçados no ocidente de forma intempestiva e precipitada, alijando esses autores de um contexto histórico e teórico, a priori, explicativos de suas epistemologias. O que se viu, portanto, foi o estabelecimento de “diálogos” inexistentes desses autores com Ducrot, Benveniste e Kristeva. Assim, Sériot faz uma releitura com base no panorama soviético da época e advoga que as noções de discurso, sujeito e ideologia foram ressignificadas no ocidente e tematizadas em uma dimensão bem maior do que fora original e essencialmente lançada pelos teóricos soviéticos.

A respeito do discurso, Sériot (2015, p.14) esclarece que “[...] a ideia mesma de discurso não tem nenhuma existência na Rússia. Seria dificílimo encontrar tal palavra na imensa hexegese bakhtiniana [...]”. Em relação à noção de sujeito, ele é ainda mais contundente ao afirmar que o sujeito evocado por Bakhtin e Volochinov são, na verdade, “[...] locutores (indivíduos falantes e não enunciadores constituídos como sujeitos pelo processo de enunciação” (op. Cit., p.15). Por fim, ele desfere o último golpe, a respeito da concepção de ideologia, quando assegura que (op. Cit., p.16):

Não se encontrará ideia alguma de alienação em Bakhtin, Volochinov e Medvedev, muito pelo contrário: para eles é preciso estar conforme a seu ‘grupo social’, o qual nada tem que ver com uma posição numa conjuntura sócio-histórica, mas se define pelo fato de que as pessoas se compreendem porque têm uma vivência em comum. A ideologia, em Volochinov, por exemplo, é o conjunto dos produtos culturais, dos quais faz parte a ciência: são todas as ideias que ‘as pessoas’ têm na cabeça, conjunto sempre manifesto e transparente na consciência, já que para ele o inconsciente não existe (cf. Volochinov, 1927).   

Sériot introduz elementos novos e desconcertantes à discussão - se, porventura, vier a ocorrer -, uma vez que, em reação à publicação de Bronckart e Bota, o que se viu e ouviu em grande intensidade foi a defesa de que o quadro teórico e os conceitos atribuídos a Bakhtin não se alteram, não se abalam. Estabeleceu-se, então, uma concordância tácita de fazer referência a um círculo de Bakhtin que, segundo Bronckart; Bota (2012) e Sériot (2015), na verdade, nunca existiu nos termos defendidos por seus seguidores. Assim, perpetuando-se um “círculo”, sobretudo vicioso, passa-se a defender que a verdadeira autoria é questão menor, a qual, incoerentemente, só se agiganta quando discutida em rodas de discurso acadêmico que defendem apaixonada e eticamente a punição dos plagiadores nas universidades.

O que Sériot polemiza vai muito além da autoria e toca em aspectos essenciais do que seria representativo da epistemologia do “círculo”. Trata-se, portanto, de um ponto de vista, da defesa de uma nova concepção de verdade e que merece ser lida, discutida e rebatida, assim como o livro Bakhtin Desmascarado, dentro do que se espera ocorrer no âmbito das discussões acadêmicas. O apego a um único valor de “verdade” pode se impor em relação aos demais? Até quando predominará um mesmo paradigma (cf. Khun, 2001), sem que sejam ouvidas vozes dissonantes que nos façam avançar, nem que seja no sentido de reafirmar o status quo das leituras sobre o “círculo” soviético e de tudo o mais relacionado às obras e aos autores?

Caso permaneça o silenciamento, bastante significativo, por sinal, teremos mais uma evidência de que o que está e sempre esteve subjacente nada mais é senão um jogo de manipulação e de imposição de uma “verdade”, uma ideologia dominante motivada por interesses os mais diversos, os quais não temos como abordar em sua plenitude nos limites deste texto. 


Por fim, o contraditório, nesse caso, assume um contorno o mais paradoxal possível, revelando toda a contradição com a qual convivemos ontem, agora e sempre. O legado dos livros proporcionou, ao menos para mim, uma constatação: finalmente, caem as máscaras, mas permanecem as ideologias, não as do “círculo”, não as do acordo coletivo, mas as alienantes.




Referências

BRONCKART, Jean-Paul; BOTA, Daniel. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. São Paulo: Parábola, 2012.
________________. Bakhtine Démasque: hitoire d´un mentieur, d’une escroquerie et d’um délire collectif. Geneve: Droz, 2011.
CALVET, Louis-Jean. Saussure: Pró e Contra – para uma linguística social. São Paulo: Cultrix, 1975.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SÉRIOT, Patrick. Volocinov e a filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2015.







Regina Celi Mendes Pereira é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2005) e docente permanente no PROLING/UFPB. É bolsista de produtividade em pesquisa 2 do CNPq, líder do GELIT, coordenadora do ATA, membro do grupo Análise da linguagem, trabalho e suas relações (ALTER) da Universidade de São Paulo (USP), editora da Revista Prolíngua e coordenadora da sub-sede da Cátedra UNESCO em Leitura e Escritura.

Ice Cold Drinks - Julia Raiz

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mulher-novelo

sou pantera fermentada
cresci por cima dos parques das cidades
mijei em prédios de trinta andares como se fosse um canalha que bebesse na rua
maturei mundo em sete saltos
bebi de nove quedas
acabei com metade dos moinhos numa cochilada
fiz chover de três a quatro vezes ao dia e não sinto
eu choro
eu choro
eu choro
talvez eu sangre mais
a terra é o único lugar
da minha cabeça onde não existe oco
se você enfia a mão na cumbuca
na caixa do mágico
se você enfia a mão no sapato
na tesoura
se você enfia a mão no escuro
dentro de você
é um caminho sem volta



 *
Onde ela vê bonito em ser resto de estrela eu vejo
Caminho de volta os dentes de jacaré que refletem branco
No vidro nuncanuncanuncanuncanuncanuncanuncanunca
Vão me deixar em paz
Porque se eu volto vaga-lume ele volta o preto do besouro
Se eu volto cuíca ele volta ondas cerebrais
Nos experimentos do Dr. Südhof eu me sinto incrivelmente motivado
O suicídio já não é mais uma opção viável, Bianca
Eu estou agora mesmo olhando pro gramado do vizinho
Um mini disco voador pavoneia sua pane elétrica
Como se a gente ainda estivesse num filme dos anos 80
Chamarei as autoridades responsáveis?
Repensarei o Lamarckismo? Eles me assistiram
Todos esses anos durante o banho eu sabia
Que os donos do universo são lâmpadas com mal contato



A gente vive gata
Exprimida contra a parede o instinto é um
Deus um airbag que estoura na sua cara
Quando você mais precisa o bucho
Expande contrai expande
Dilata sentada com um par de mãos dois pés desalmofadados
Temíamos que ela cruzasse as pernas para ler o matutino
Como fazem os chefes de família antes de dar à luz
A poesia é toda um reproduzir do
Parir das gatas seus quadris parideiros
Convulsão um tocar primeiro o inanimado
Negar quanto puder
Afago



Ice Cold Drinks

Essa é a história de Ezequiel
No lobby do hotel Dreams
Do versículo vinte às nenhuma
Ezequiel puxa seu truque pelas orelhas              
The zero is on the run
Mas terá que performar milagres se quiser sobreviver
Um homem com jaqueta de poliéster rabisca o futuro dos anos 2000
Enquanto outro divide o carteado entre os profetas transeuntes
No mineral deus dorme
No vegetal sonha
O animal desperta
Reptilianos olhos-laser anunciam a batalha
Ezequiel decide por uma abordagem inédita
A figura resiste e assopra anéis de ouro flutuantes
Que Ezequiel estoura como bolhas de sabão
La Llorona Maldita ataca novamente
No corpo de uma ex-vizinha
De uma prostituta
De uma irmã amorosa
Da mãe Mary
No sofá uma família pousa para a fotografia
Todos com profundos cortes no pescoço



Julia Raiz é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora de Produção Textual. Em parceria com Clarissa Comin, criou o blog de escrita Totem & Pagu, projeto que já rendeu sarau, exposição e oficina. Tem textos publicados no jornal curitibano RelevO e nas revistas Mallarmargens e Zunái. Também participa de projetos de incentivo à escrita e leitura, como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.
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