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5 poemas de Ricardo Silvestrin

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Ilustração: Aini Tolonen


DANÇA

Sim, existe a dança:
o corpo solto avança
e recua leve nos passos
matemáticos, um, dois, um,
como se fosse mais fácil
viver num tempo menor,
brincadeira de criança
que sabe de cor o roteiro
e ri na hora marcada.

Fora da dança, o infinito
nos convida, nos seduz
com passos improváveis,
mas temos dois olhos,
apenas duas pernas,
e, sobretudo, duas mãos
onde só cabe um punhado
de estrelas.



CONTAGEM REGRESSIVA

Você já tem todo este tesouro
e ainda quer mais.
Se o mundo findasse hoje,
estava de bom tamanho.
Ouro fundido por séculos,
o sol feito à mão,
erguido a cada dia.

Você já tem toda a riqueza
e reclama que falta um pedaço
na fatia que você mesmo comeu.

Você queria que o gozo
durasse pra sempre,
que o corpo seguisse rijo
e acha que sai perdendo
quando troca cada dia da juventude
por outro novo da velhice.

Você tem toda a razão,
você agora queria ser deus,
mas não dá mais tempo.



METRO

Se o poeta conta sílabas,
o caos todo se ordena,
o dinheiro não acaba,
ou tudo é alheio, vento, vário,
e o poeta perde a conta,
perde o prazo, paga juros?

Se o coitado conta sílabas,
a incerteza se conforma,
as respostas andam em fila,
inconsciente se decifra
no meio da rua, dia claro?

Pois assim parecia ser
quando o poeta, quando o mundo
eram um número pequeno,
fácil de contar nos dedos.


lustração: Aini Tolonen

OVO

É fácil vender armas
a quem vive em guerra,
a um cérebro preguiçoso
vender a nova novela,

viciar um beija-flor
com água e açúcar,
a você e a mim mesmo
com a eterna desculpa.

É fácil ser o herói
que nunca entra na luta,
obrigar mais um filósofo
a ter que beber cicuta,

por em pé o ovo óbvio
a uma plateia obtusa.



O VELHO ILUSIONISTA

O velho ilusionista na tarde de madeira
e pouca luz.

E como está distraído,
quase sem existir por inteiro,
vamos entrar na sua aura de fumaça.

Atrás do pano surrado da sua alma,
baralhos marcados, cartuchos com panos coloridos,
nada disso se encontra.

Apenas um silêncio.
Silêncio não:
se escutar bem,

apenas imagens, pontos, linhas,
se virar tem barba,
se virar tem cabelo.

E um suspiro profundo,
cansado
por repetir os mesmos truques.

Mas, antes que pergunte
se quer largar tudo,
uma explosão de espoleta o projeta.

Para onde?


Poemas de "Typographo" (Editora Patuá, 2016).


Ricardo Silvestrin (Porto Alegre, 1963) estreou na poesia em 1985, com Viagem dos olhos, ano em que se formou em Letras pela UFRGS. Depois vieram Bashô um santo em mimQuase euPalavra mágica (prêmio Açorianos de Literatura), ex,Peri,mentalO menos vendido (prêmio Açorianos de Literatura), Advogado do diabo, Metal (finalista Portugal Telecom e prêmio Brasília), Adversos e, agora, Typographo (Patuá, 2016). Na prosa, Play (contos) e O videogame do rei (romance), ambos pela editora Record. Na poesia para crianças, destacam-se Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (prêmio Açorianos de Literatura) e É tudo invenção, que integra a biblioteca básica do estudante brasileiro da FNLIJ. Foi editado no Uruguai, com o infantil Los seres Trock, e nos Estados Unidos, na Antologia Mundial de Haicai, Frogpond. É músico e integra a banda os poETs. Site: www.ricardosilvestrin.com.br

Dois Poemas de Caio Cardoso Tardelli

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OPALAS

Como o luar que inunda, sem ruído,
O silencioso segredo das mágoas,
Relembrando o tempo ido,
E a passar por nós como as águas
Que caem do céu findando-se, enfim,
Parece o teu olhar trazer, assim,
A dúbia luz de quem um tristonho
Caminho percorreu sem um risonho
Leito de serenidade para se ancorar...
No teu olhar há o pesar profundo
De quem possui todo o mundo
Sem pertencer a nenhum lugar!...

--

Cedo ou tarde, seremos um, enfim,
Como o poente, quando no céu, arde
Junto ao mar, junto à terra, ao jardim,
Unidos num encanto, sem alarde...

Cedo ou tarde, não saberemos o fim
Ou o início de nós mesmos, se tarde
Será a ventura ou cedo o rubim
Colhido do mesmo céu que nos arde...

E nosso amor, o sonho, a glória, tudo,
Unir-se-ão como num outono mudo,
Num lento beijo universal sem fim...

E então nos amaremos sem alarde,
Pela tristeza divinal de uma tarde
Que também, certa vez, amou assim...


"A MÁQUINA DO IMUNDO" (OU) "O CU DO MUNDO" - VOLUME TRÊS

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( * )


  O CU E A BUNDA NA POESIA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA


(*) VOLUME TRÊS (*)


LEIA AQUI    O "VOLUME UM"

LEIA AQUI  O "VOLUME DOIS"



SELETA DE POEMAS



ANDRÉ FERRAZ


A hóstia e o sol

                                                                       Dedicado a Armando de Freitas Filho

Com meus trinta e três anos
Vejo seu rosto envelhecido numa revista,
Não sei o que é bom ou mau.

Minha preta me invade com os dedos.
E a carne se comprime, estremecendo;
Enquanto as tias da catequese me esperam
Nas missas dominicais.

Nesse momento eu sei
Que meus livros na estante,
Tratando da sua poesia,
Me fazem iluminar um raio
Através do seu olho enrugado
Atrás dos óculos.
Que construíram um moto-contínuo:
Entre a luz e a lâmpada,
A hóstia e o sol,
O pão e a manteiga,
O dedo e o cu.



Santo

Para qual finalidade o cristianismo
Me repele o corpo,
Se foi dele que fui gerado.
Eu também andei sobre as águas
Dentro do ventre de minha mãe.

E porque não haveria santidade
Quando beijo a água que brota
Da vulva de minha mulher,
Se ela me sacia a sede e aplaca a fome.

O rosário que oro de frente ao cu
Com os dedos,
São tão santos quanto o anjo
Que através do espírito santo
Fecundou Maria.

Glória, Glória Maria
Minha mãe, amando-se
Com meu pai.

Eu provo por todo o seu corpo
O cheiro forte do amido
Nos seus lábios.






ALBERTO LINS CALDAS


ao nosso rei




● de quão baixo nos vem o poder ●
● se o cu aparece em sua pequenez ●
● fazendo invertido o q mal nos diz ●

● cagando as terras tão cultivadas ●
● q nenhuma flora suporta e degenera ●
● q toda fauna morre logo sufocada ●

● bastam as ondas de merda nos o mar ●
● q não se revolta nem se alucina ●
● se mordendo sem se saciar ●

● o q o mar deseja sendo de merda ●
● é um cu bem maior q esse dagora ●
● q o poder so precisa dum cu imenso ●

● mesmo q seja assim de ratazana ●
● desejando mais mais e todo queijo ●
● se cagando desde o bom momento ●

● pois assim sabemos ser o poder ●
● sabemos todos o poder do pobre cu ●
● das ratazanas q pelo queijo vendem ●

● a mãe matam o pai comem os filhos ●
● tudo isso é tão baixo q fica a mostra ●
● o pobre cu seus trombos e cobiças ●

● cagando a vida tão cultivada ●
● q nenhuma ideia suporta e degenera ●
● q todo brilho fenece logo sufocado ●

● nem porisso falta festa falta feijão ●
● q um cu assim pleno e conquistado ●
● alegra ate quem não tem cu e vende ●

● o cu a varejo vende no seco vende ●
● no molhado q um cu desses assim ●
● é pra se vender não pra se lutar ●

● eis o nosso belo rei tão bem vestido ●
● mas basta ele se voltar e vemos ●
● tão miudo o cu da ratazana ●

● o mesmo cu q todos agora imitam ●
● pois mais uma vez a corte não vive ●

● sem um cu desses ralo e real ●






PEDRO TOSTES




Helênico


    nádegas expostas
 entreabertas iluminam
          uma penugem em volta
           do centro do mundo
   brilha ofuscando
             o olho
       que pisca enquanto
         o visco
        da língua
      se arrasta
         em seu
         entorno
        tremores
       confrontam
     o desejo
   e a volúpia lânguida
               do palato
     por entre as pregas
        causando furor
     do cóccix à nuca
   leve e arisca
   lambuza
         a roda que
   se desenrosca
          e expande
     feliz enquanto
 me afogo
 e desabo
    no buraco
      imundo
   teu mundo


*


Hard Porn


         penetro
 cada elemento possível
         :
dedo, mão, coxas entre
                       laçadas, boca, língua,
cheiro
      ; você,
                    gulosa, sorve
e abduz em sua boca
                    o favo
do mel a te temperar
                     com uma alegria
infantil e uma
    fúria
         indecente enquanto se
             posta de quatro e
pede "bate!"
             ; as ancas latifundiárias
se expandindo em minha
                 frente
                        enquanto me enfio
e domino todo colo
              do teu útero e
                          cutuco o fundo
                  da sua carne
       com minha vara
em riste
                    ; as cinturas
seguindo o pancadão
                    , frenéticas
, enquanto ardem
          no lombo e avermelham
               as marcas da mão
- na cara, na cara!
                        ; ela é cada palavrão,
                               nome impróprio,
                         armageddon, despiste
                      de deus, próprio inferno
; arde
           menos a pele
que a alma
      se entregando
por qualquer desejo
      , adoradora fálica
               , famélica
                           ; se revira
, ergue o torso sobre a cama
cavaleira que só
                 , nas pradarias
   da sua própria pele umedecida
                            pela
                       cachoeira
                    de vertigens
 
;  ninfa
       , o calor dos seus
 domínios saqueados
         por hordas
, em chama os vales
                   , florestas
   , você
       entregue ao próprio
     fogo
                    ; "o anel que tu me destes
                     tinha prega e se rasgou
                    . foi chorar o seu cuzinho
                        : a vaselina acabou"
      ; encaro
             o
        buraco
             o
            co
       e fundo
            do
 teu cu aberto
            lo
            go
      relembro
      a lua, o
         astro
   nauta lento
      fincando
             o
        mastro
            no
          solo
     iluminado

                  ; as britadeiras na rua
                  são mais lentas que meu
                        sadismo sodomita,
             estocada,
  estocada,
                     estocadas as energias,
         epicentro do
teu gozo,
           terremotam
                      o corpo que liquefaz-se
e, antes da morte
                   anunciada
   , recebe no rosto o jorro
              do chafariz em lava
 e lava a cara suja
                     da porra
                     do amor.






JORGE ELIAS NETO



Compondo o sitio arqueológico

A vastidão 
é uma pedra
redonda e fria. 
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte ? gelo
intransponível.
Daí esse tatear – essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.

E, no silêncio,
no cu
desse branco profundo,
aguarda,
e se expande,
e fulgura,

o jardim das epifanias.






FERNANDO RAMOS



LA PETITE MORT

Se orgasmo é a pequena morte
a morte é o grande orgasmo.

Então
por que
se render
à frigidez
da religião
ou à rigidez
da ciência?

Se nossos corpos pedem
apenas sua essência?

De tanto temer a morte
crentes temem o sexo
quando quem tem fome
é epiderme, não perespírito.

Quem trepa
não reza
e quem reza
o que roga
em sua prece
se não pulsão
de quem respira
goza e padece?

A fé nada mais é
que a impotência
do corpo
desenterrando
a falsa potência
da alma.

E a criação
mutilação
do gozo
pelo êxtase
da estese.

Todo poema
todo versículo
mera carência
da pequena
grande morte
que a todos
carece –
ascese.

Cada pecado tem pena
e foi mesmo uma pena
quando o prazer de Adão
trombou com a maçã
no olho do cu de Eva
que disse provocante:
morda minha maçã
do amor 
que eu te dou
um pomo de Adão -
serás mais homem então.

Foi só descobrir o cu
que o Pai virou um cuzão
logo o primeiro varão
sacou o furo na Sua
Criação.

Enquanto houver cu
haverá outra saída
para a civilização.

Hosana nas alturas!
Tirésias no chão!




ANDRÉ LUIZ PINTO

[diagramação: Alexandre Guarnieri]





HENRIQUE PAKKATTO



Olho vivo


Põe o olho no meio do teu tu

Antes que quem te mira o cu

Te ponha o dedo


               e te fure o olho.






GABRIEL RESENDE SANTOS


(à guisa de um ombumbumdsman
para esta culetânea [o editor agradece!])


mais um homem falando de cu


Para o Barbudo, que foi conhecer o outro lado da vida e nunca mais quis saber deste de cá

macho heterossexual cisgênero 
ambidestro
genial apesar do cheiro de axe com classic
do bafo de ânus de gambá 
                                      (e deste não falamos)
que entra em antologia
e molda massas finas e caras
diz olha essa olha aquela 
a expressão em leve avidez
visando as fotos das fêmeas na web
olhar ostensivo
desassossegado
nas saias nos cantos das ruas
daí homem invariável homem
pá um surto subversivo
textos caudalosos
sobre a premência da rola
e a sublimação do cu 
                                    (embora a homogeneidade dos cantos
                                    sugira que apenas mulheres têm cu)
noite inteira nos buscadores
aos sinônimos de cu cacete boceta 
depois a superdosagem de empatia
                                               (contrastes salvam reputação)
o cantar manso do macho duro agressivo pesado 
porém bom
eu sou o pássaro azul eu sou o menino lobo
eu sou a esfinge o cão cicatrizado teu cu blábláblá
as imagens no google rolam desimpedidas
olhar tudo bem gosta da minha arte do meu 
trabalho da minha aula sabe eu tenho 
prêmios eu tenho dotes
quadros empregos livros
minha rola inflável
pode ser usada como caneta 
para tratados de lógica
mesmo cercando o cu
a rola imperturbável 
é o verdadeiro empirismo 
o dialógico a comunicação
eu e você e cus e a rola de exceção 
                                          (a minha)
há um imenso objeto fálico no topo da tua cabeça
como assim desvirtuando
meu cu não vem ao caso não agora

olha esse que eu achei no google




[ ATENÇÃO, CUZÕES!

NO VOLUME QUATRO,

SÓ AUTORAS!

AGUARDEM!!!!! ]



Ilustrações: Namio Harukawa (Japão)




A Harpista - Ricardo Primo Portugal

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Ilustrsação: Tania Brassesco



A harpista

(II)

Meus olhos enlaçam tuas mãos
enquanto entoas à harpa
as notas de antigos cânticos  

De teus dedos longos rios
lagos replenos de carpas
rebrotam em harpejos vítreos

Ascendem claras nascentes
desde milênios repartem-se
aos ecos de cada tempo

que palpita à partitura
Ainda a música se engasta
na corrente que perdura

dos anseios que se estendem  
desde as falas que te guardam
mesmo antes que nasceste  

Rente o sonho que persiste
segue ao espelho desta água
como a escrita prende a sílaba

Gerações e dinastias
rios que desembocam ao mar
só por ti existiriam


(III)

a água do mar
em seu incessante ímpeto    
a água do rio
que se renova ao caminho     

a água que te embala ao sono
e seu noturno barco
entre aromas de flores
sonho de Iemanjá

e por dentro dela
vindo o sorriso
da Guangyin seus brilhos
de raios de sois antigos,  

renascidos ao silêncio
iluminado das primeiras
manhãs puríssimas                       
em praias desertas
de claras areias

e também paisagens lunares          
a refletir-se por lagos
serenos e profundos
esplêndidos translúcidos         

e cheios de peixes que recolhem
benfazejos e ocultos  
para nichos suntuosos       

tudo e todos falam por ti
pelo amor de teus dedos
que sustentam o fardo
suavíssimo e frágil
destes secretos degredos 

e te levam para longe
por veredas intangíveis       
sem sentidos sem destino

que a alta noite em seus recônditos           
às tempestades revoltas
madre obscura te abrigue
e traga sempre em retorno   


(IV)

Feito para a água
de recorrentes leitos,
o instrumento harpa,
em seu som escorreito.

E bem assim esta, a chinesa
e mais antiga, que abarca
em cordas, madeiras, cravos,
fluidos de cursos que despejam.

Também para o amor,
turbulenta fonte, mulher
e sombra, vária e policroma,
multifária madrepérola.

E a ti, que, fêmea, és desta água
que represam fendas abissais,
e me alojas, fausta, generosa,        
vaso de meus humores.

Possa eu ser instrumento
à água que amolda ao caminho
da amada forma, e dela aprenda
abraçar-te inteira, feminino.


Os poemas que integram uma das séries de textos que compõem o livro “A Face de Muitos Rostos” (Editora Patuá,2015).




Ricardo Primo Portugal, 53 anos, nasceu em Porto Alegre/RS e formou-se em Letras pela UFRGS. Escritor e diplomata, viveu na China (Pequim, Xangai e Cantão), na Coreia do Norte (Pyongyang), no Equador (Quito) e, hoje, na Bélgica (Bruxelas). Publicou:A Face de Muitos Rostos (Patuá, 2015); Antologia da Poesia Chinesa – Dinastia Tang (Unesp, 2013, com TanXiao, Prêmio Jabuti 2014, categoria tradução, 2o lugar); Dois outonos - haicais (Edições Castelinho, coleção Estante Instante, 2012); Zero a sem– haicais (7Letras, 2011); Poesia completa de YuXuanji (Unesp, 2011, com TanXiao, finalista, 54º Prêmio Jabuti, categoria tradução); DePassagens (Ameop, 2004); As aventuras do Barão do Rio Branco – obra de apresentação da carreira diplomática para crianças (Divulg-MRE/FUNAG, 2002); A Cidade Iluminada– poesia para crianças (Paulinas, 1998); Arte do risco (SMCPA, 1992); Antena Tensa (Coolírica, 1988). Coorganização, supervisão da tradução: Antologia poética de Mário Quintana(EDIPUC/RS – Consulado-Geral do Brasil, Xangai, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido ao chinês. Também tem participações em antologias e em sítios de internet dedicados a poesia e literatura (Musa Rara, Escamandro, Cronopios, Modo de Usar, Tuda, Germina, Zunai, Sibila, entre outros). 

2 poemas de Tania Amares

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Ilustração: Frederick Goodall


O Corpo

essa fragilidade
arena do choque
revela

não somos deuses
mas bichos

Submissos aos caprichos
do Tempo



No Itororó

veio o medo e soprou forte
três vezes
noite gelou
gato miou

meu coração contou
bem baixinho
uma história

era uma vez uma menina
ninguém queria
o medo veio
e quis


Tania Amares psicóloga, contadora de histórias. Escreve contos epoemas no blog https://purapalavra.wordpress.com/. Organizadora da coletânea de poemas para crianças em quatro volumes com a participação de grandes poetas do cenário atual da poesia “Uni Duni Tê, um poema pra você” em ebook disponível no site https://issuu.com/tania.amares e dos livros de poemas Melancolia, Mergulho, Mandrágora (coletânea), Traços, Coisias (I e II poemas para crianças) e dos Cadernos “Encontros no Escuro”, diálogos poéticos entre poetas da atualidade. Todos disponíveis para leitura online no site ISSUU (acima) em formato ebook.

Eles - Homero Gomes

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Ilustração: Milie Zéphyra



Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!”
(Augusto dos Anjos, O Martírio do Artista)


Eram pequenos e faziam cócegas na língua. Não tinham gosto, mas eu sentia ânsia ao engolir aqueles vermes. Estavam na boca, narinas, garganta e começavam a sair pelas orelhas.
Meu ventre estufava. Sentia um líquido visguento escorrer pelas nádegas. Meus movimentos eram fracos e lentos, sentia meus membros amortecidos. Meu rosto estava mole e insensível.
Eu fedia.
A escuridão era absoluta. Estava abafado e eu respirava com dificuldade. Estava deitado. As paredes eram estofadas e o teto coberto por um tecido rendado. Sentia cheiro de flor murcha.


Não tenho mais voz dentro deste caixão.




Homero Gomes nasceu em Curitiba, em 1978. Publicou Sísifo Desatento (contos) – finalista do Prêmio Sesc de Literatura, edição 2007 – em 2014 e Solidão de Caronte (poesia) – Prêmio Poetizar o Mundo – em 2013. Foi colaborador de Rascunho, Cronópios, Vaia, Cult, Germina Literatura, Palpitar, Ficções, Escritoras Suicidas, Samizdat e Mallarmargens. Foi colunista nos portais Página Cultural – com ensaios, críticas e crônicas –, Mundo Mundano e também foi um dos correspondentes do Musa Rara: literatura e adjacências.facebook.com/sisifodesatento

Lançamento de BASTARDO de Victor Prado

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Bastardo, segundo o dicionário Aurélio, é quem nasceu fora do matrimônio; degenerado da espécie a que pertence. Expulso para o exterior, o bastardo é um forasteiro, um andarilho. É também um fora da lei, um outsider, um sem-lugar. Desse modo, a bastardia sugere um desvio, fissura a possibilidade de algo novo, impensado. A bastardia sugere contaminações, hibridações, narrativas rizomáticas que não se fixam num centro, numa verdade. A bastardia sugere, por fim, uma traição, denuncia a ordem e os poderes estabelecidos, as significações dominantes, as forças que querem nos paralisar. É desse lugar mestiço, contaminado que parte Victor Prado, é esse lugar que lhe serve de passagem e solo para sua poesia.
Não será por acaso que o primeiro capítulo do livro se chama Voçoroca, é o poeta frinchando linhas de fuga, gastando os sistemas e as estruturas rígidas do mundo e da linguagem. Voçoroca é um corte vital que comunica interior e exterior, e permite que o dentro não adoeça em solilóquios egocêntricos e o fora seja um lugar aberto ao outro, aos encontros:

Vários pensamentos e
ideias
que borbulham numa panela
exposta aos quatro ventos
sustentada por uma
moldura
corroída pela vertigem
que essa vida
causa a todos que
se dirigem à descoberta
e se deixam abrir
para si mesmos
Uma porta aberta
entre o dentro e o fora

Porque não há experiência[poética] sem exposição, sem transposição de fronteiras e criação de espaços vazios que intensifica e diversifica a caminhada. Quem se sente pleno não pode ver nem experimentar o limite. Por isso, o bastardo, ser incompleto, móvel, é um experimentador. Nômade, sai sem destino, entregue às forças matéricas do caminho, os “ventos em espirais”, o ”rio enxuto”, o “mudo arame”, “estrelas” e “cadeira bambas”.
Passeioé o segundo capítulo do livro, esse “lugar de não-sei-onde”, passeio benjaminiano: tremulante, circunstancial,frágil, experimental:

todos viram à esquina
onde homens jorram-se

beleza liquida
liquidez de cegos

A liquidez do caminho impede a sedimentação de um centro, libera um fluxo desejante, ou seja, prefere os vazamentos da água à unidade firmada nas margens de um poder. Dessa maneira, o poeta produz um suplemento de potência, que alarga e desconforma sua visão, o Caleidoscópio, terceiro e último capítulo do livro:

               Espaços se formam entre as
frases,
entre as palavras.
vácuos.

O desejo, conforme Deleuze, é revolucionário porque sempre quer mais conexões, o desejo é múltiplo e multiplicante, é, nesse sentido, caleidoscópico, um espaço móvel e movente, desterritorializante. Nenhuma instituição, nenhum sistema, nenhuma língua, nenhuma verdade se fundará neste lugar movediço.
Por isso, ler Victor Prado não é conduzir sua escrita a um centro original e explicativo, ao contrário, Victor Prado a explode em pedaços para se lançar em um caminho de destino incerto. É um bastardo que vagueia pela linguagem voçorocando seus espaços para nos revelar um mundo multifacetado, fragmentado, dinâmico e colorido.

Meu corpo foi além de mim
e dilatei o infinito;



Carla Carbatti



Conheça alguns poemas do livro:



José
para meu avôhai

Os dias só existem através
da fumaça que sai do escapamento
do VW 88 que carrega uma
mudança pela Padre Anchieta;

Lembro de estar nos ombros
do meu avô em frente a um pasto:

eu olhava
e ainda olho
e nada me encantou mais do que esse olhar.

Essa era uma outra vida
– que ainda me
causa espasmos
na memória.



Abraço ao Terror

Alors non jenevousferaipascecadeau de voushaïr. Vousl’avezbiencherchépourtant mais répondre à lahaine par lacolèreceseraitcéder à lamêmeignorancequi a fait de vousce que vousêtes.” Antoine Leiris


Pararemos os extremistas
com lições de moral
e novelas globais?

Pararemos os extremistas
com os cintos de nossos pais,
com os doces de nossas avós,
com os abraços de nossas mães
e com as rezas incessantes de nossas tias?

Arrancaremos as lágrimas
dos olhos extremistas
ao mostrarmos as fotos de nossos bebês?

Nossos bebês sorridentes;
Então:
nossos bebês sorridentes
com suas roupinhas de gala
a dormir um sono infinito.

E esses tais extremistas
nos mostrarão suas mãos sujas
com cinco dedos cada
e caberá a nós apertá-las?

Pararemos os extremistas
no auge de nossas vidas
com depoimentos acalorados
de superações incríveis?

Os pararemos com as resoluções
de boteco acompanhadas de amendoim
e com os risos às 8 da noite em frente à TV?

Encontraremos os tais
na Rua do Comércio
no feriado de Corpus Christi
e os abraçaremos sem dó.

Num dia de chuva
interromperemos os extremistas
e nossos medos serão os pingos a cair
e meu medo será vossos olhos
e vossos medos serão minhas mãos.

Abraçaremos a vós até que explodam
vossos coletes de C4 e polinizem o ar
com nossas entranhas e com sorte
façam crescer novos abraços em outras terras.




Durante
para Carla Carbatti

Nos intermináveis meandros
de oceanos fatídicos
repousam ideias perenes

As épocas rangem
nos teus dentes amarelados

Nossas construções abrangem outros dias
e tudo isso
tudo isso
recebe de nós efêmeras saudações

Nossos travesseiros abrigam certas árvores
e ainda maiores são os brejos
para onde correm suas raízes

Somos díspares
e sorrimos o fim do mundo.




Victor Prado, 20, reside em Franca/SP. Já publicou dois livretos digitais ,Mamute(2014) e Onde Eu Poderia Estar(2016). Tem poemas publicados pela Mallarmargens, Diversos Afins, Enfermaria 6, Jornal RelevO, entre outras revistas e sites literários. Bastardo (124 pgs) é seu primeiro livro e será lançado no dia 10 de Junho pela Editora Urutau. 



"ENTRE-O-CARVÃO-ACESO", POR LUIS SERGUILHA

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Entre-o-CARVÃO-ACESO


Recuperar os POETAS denegados adentro da memória colectiva-do-acontecimento-futuração em espiral( geologias incestuosas e impessoais)____conflito caológico reflectido no espelho da Antiga-Alexandria( afectologia atlética da catástrofe)____: entesaduras duráveis das dobras dos olhares dianteiros escapam às tradições do rosto que procura desesperadamente, vingativamente uma explicação, uma origem: o balanceamento do riso absorve os decursos das mudanças das arenas ausentes das paixões mortificadas, afligidas e os  os instintos das sombras da ulceração monocrómica desviam-se dos movimentos imanentes por meio das alimárias, das bestas prenhes de remorsos, de penitências ( nada sobrevém adiantadamente): o entre-distante das percepções-sensações escava a animalidade de corpos inominados e os paradoxos intersticiais catapultam resistências às penas, às expilações, aos vetos da vida sobre contexturas obscurecidas do corpo que nada constrói, nada cria, nada experimenta, nada faz___morre, trucidando____( sentir dissemelhantemente o que a reaparição nos arremessa, sim, o mundo está aí e acontece metamorficamente sem tolhimento, sem paralisias, agindo sendo actuado pelo poema-animal, eliminador de crenças, de confrarias, de reverências, sim, um animal-político sem expectação, sem tefe-tefe porque não se deixa manobrar, governar, coarctar) : são revoltas das vozes do pensamento das geografias inóspitas que ressoam na propagação das excriptas porque necessitam ser trespassadas por sensações desarvoradas, sem pontos de saída, sem pontos de chegada, sem tipógrafos, sem coordenadas____necessitam de defrontar a atracção do estranho, a profanidade dos lobos-solitários entre cadáveres sonoros, úlceras disruptivas, sim, se voltarem para trás do gigantesco CARVÃO-ACESO por meio das variações intensas do entre-dois do infinito que os transformam totalmente para se abrirem ao mundo_____serem afectados no instante que é já-em-si um emaranhado de escritas-itinerantes-sanguíneas entre as vistas do afastamento-adjacente, o estendal do tempo intensíssimo da existência e o boomerangue da liberdade demoníaca____: ultrapassar zonas cavernosas, assimilar arquipélagos vacilantes, impregnar-se no ressurgimento das coalescências sedimentares, problematizando o saber de uma língua apaixonada e sem gramática, captadora das forças cósmicas, de contemplações da antiguidade-futurível, de hinos insculpidos concomitantemente no real e no in-executável como se reconciliassem os deslizamentos da vida da morte, os assopros filmofânicos do pensamento com o metabolismo das lacunas dos agoras-indeterminantes, com os puzzles das rotas-babélicas dos povos feiticeiros, com os artistas de Grotte Chauvet, com as tatuagens das das memórias-ontológicas rés ao risco interrogador do caos criativo( estilhaçamentos sazonados pela extrusão hemática da palavra que se arruina dentro de si própria, cauterizando a imobilidade verdadeira da boca__sim__abocanhar quem refuta a vida, extrair os estilhaçamentos do mundo para incorporar as simultaneidades temporais em cada ocasião atravessadora de possibilidades  vivificantes, bosquejadas pelos rastros das visões móbiles! Não é o mundo que deve mudar, é o corpo que se transmuta, transforma, sem medo, sem repulsa, sem serventia___o mundo está aí e acontece metamorficamente___sim___CRIAR ausculta o avanço, o deslocasmento da re-existência, nos metafenómenos dionisíacos-apolíneos) : memórias translatórias actualizam permanentemente as golpeaduras dos recomeços clandestinos da metalurgia linguística, a complexidade infinita dos olhares estrangeiros, os intervalos das meias-luzes do pensamento diante das visões mais profundas do inesperado____tudo é arrastado para a área raiada dos silêncios das escrileituras em planos de contágios infinitos( circularidades  da intrepidez contaminada pelas celsitudes da profanação-araneiforme, da heresia fúngica e da sagração dos acasos-tremulantes num arvoamento suspensivo): os ricochetes das repetições intraduzíveis, os transes das sacralizações instauradas violentamente em corpos ininteligíveis, afastam o pensamento da razão através das  multiplicidades existenciais,  das renascenças transgeográficas que descentram os respiradouros-vertebrais do balbuciar-humano, as incisões das antecâmeras das línguas náuticas, das ventosas fabulatórias que habitam em des-aparecimento, povoam as signaturas-marsupiais rés à estrangulação das vozes im-possibilitadas de-dizer: são ritmos compositivos de fagocitoses quase-sígnicas, são cirandas fraudulentas e intempestivamente interactivas-pulveriformes, causando ruínas-criativas nas re-ligaduras não avaliáveis do finito da natureza infinita: estridulação polissémica e efracção heteronómica na incomensurabilidade dos espaços visíveis-vividos onde os tempos assimetricamente se desdobram escarificados para instaurarem os fluxos orbitais dos princípios das dubiedades, do não-nascido vibrátil que existe dentro e fora do poema-em-desleitura, reabrindo os arremessamentos da palavra-constituída-de-crítica-jazzística e valvulada perante o pavor das subducções do nada________outra palavra anfibiana faz da tentativa varacional do herático a enunciação das artérias panteístas e as  mandalas excitadoras dos pensamentos-em-hibridização, fragmentam glossolalias-genomáticas, tentando profanar a voltagem do sagrado des-agregador de olhares centrífugos-entremeados pela celularidade das medusas rasgadoras do empírico, do percepcionado: sílabas-biogénicas esquivam-se das obscurezas ecoantes por meio da abaladura interminável de outras sombras transversalizadas pelas microagitações dos espalhamentos das longitudes-latitudes( incubação turbilhonante dos papos alvéolares)___sim__tudo nos transporta para a in-transitabilidade da língua com os jogos assintácticos da infância polifónica cheia de luxações verticais, de despojos das gravidezes inominadas e de expressões escorregadias, encruzadas inexoravelmente pelo passado absoluto que se diz heterogenia do presente: aqui, o discernimento e a impercepção não se circunscrevem, porque tentam encarnar a correnteza giratória do desassossego criativo, problematizando as transducções das vocalidades ( encadeamentos de irrupções de lances destruidores de idiomas e uma língua reemerge nos arrugamentos dos micromovimentos lisos entre as acções fabuladoras dos ouvidos do mundo__tudo__se constrói através da excepção das energias não mensuráveis, dos traços-intermezzos das forças insubordinadas___enzimas gongóricas): a voz rapinada, infestada pelos piroclastos-multímodos, intersecciona-se, transmuta-se nos livros piramidais dos mortos emancipadores da vida e uma voz desdobrada, jogada na recolha mágica dos vestígios opacos do corpo, atravessa os papiros metamórficos dentro dum vai-vém de línguas alienígenas_____outra voz-coexistente trespassa as abstracções retraçadas pelos écrans distorcidos dos véus incorporadores de desescritas que coreografam a presença das expressões-ágeis-incarbonizadas antes das possibilidades existenciais do poema( os instantes do corpo religam-se permanentemente à fulguração antropofágica do mundo): uma voz perplexa do poeta-renegado decompõe-se na escrita do corpo-em-crise-galopante, ressurgindo, regerminando na expansão da intangibilidade, observada semiologicamente pelo processo das epifanias indiscerníveis, das fabulações infinitas, das cissuras itinerantes-sedutoras, das margens convulsivas-sincopadas que precisam da proliferação do silêncio cataclísmico para dizer no mesmo-gesto-inumanamente-humano a in-esgotabilidade da espera de alguém que capta as devastações resplandecentes do mundo-vazante-informe com outro rumor do coro das armadilhas fugidiças que transpõem limiares adentro da natureza, transfronteirando e arremessando o mundo indefinidamente:são resistências repetidas pelo imperceptível do perceptível, são alfabetos nómadas, criando refracções das palavras nas bateduras amnióticas: profuso deserto-náutico heraclitiano capta o vivível em des-aparição, em linfas anárquicas, em povoações-diagonais porque tudo é uma irradiação de ex-crituras infinitas que fazem ziguezaguear o inumano-do-humano  nos circuitos das forças heterogéneas, na imersão dos mapas insondáveis, nas linhas movediças dos diagramas para misturar as mortes dos deuses no nomadismo da experimentação criativa, nos sentidos paradoxais das falas iniciáticas que geram a improvisata dos relâmpagos das gesticulações das excriptas até à indiscernibilidade de todas as ressonâncias das raias demoníacas, da orfandade-do-transver-de-Ésquilo: conexões diluidoras do objecto-sujeito perante o enigma da duração e a palavra em putrefacção fisiológica se abandona na própria voz da cueldade-simulacral, falhando, revelando, distorcendo, ocultando-revelando as rupturas hemorrágicas do mundo entre as qualidades intensivas das colmeias que abocanham hipotálamos a-gramaticais, arrastadores de multidões-inexistentes, de enciclopédias sem metas nem chegamentos __ ANIMAL que vem e vive do excesso do mundo, do improvisado: animalidade-humana, fortalecida pela permanente revolta vibradora do magnetismo feronomático-cataclismático, implodindo  intensões, ab-rogando, cinzelando ritmos matéricos com os encadeamentos do movimento das vivas sensações,  tornando a vida criativa, sim, sentir a vida dos signos que nos levam para os macaréus da diferença, excriptando o poema fora das linguagens fossilizadas: esboçar deserticamente, nauticamente o mundo perante as forças puras, os traçados dinâmicos da  repetição que acontece antes das palavras, dos acenos, sim, linhas-pororoca-de-acontecimentos, são pulverizações do absurdo que se estiliza no silêncio da realidade e nos olhares-dos-jogadores das ressonâncias existênciais, são hiperbórea de contrapontos-hiperbóreos entre os ritornelos desbravadores das perfícies-profundas surfadas pelos pensamentos-geógrafos destruidores de cavernas neuróticas, das verticalidades afuniladoras, porque o poema matérico-espiritual, tenta sempre escapar à estrutura da recognição por meio dos acasos-instantes tocadores de vida, sim, presentificar o verbo no tempo das coexistèncias, desligado de deuses-déspotas e de antropomorfismos, o verbo do perspectivismo dionisíaco-nómada  do mundo que antecipa o inexistente, baralhando sensações com as assintaxias, combatendo a periodização logocêntrica com a hapticidade dos anfiteatros afectivos-animistas, quebradores de consciências: tudo actua num processamento ininterrupto, gerando novos idiomas incapturáveis nas várias correntes de vida adentro dos vertedores do desconhecido e da inesgotabilidade do real: fugir da razão-representativa e o poema se abre às forças descolonizadoras do mundo, fazendo natureza espasmodicamente, efectivando as encruzilhadas-afectivas-proliferantes que rasgam margens com as simbioses dos vitrais das vontades inalcançáveis, com a hibridização dançante__sim__ confrontar selvajaria e espiritualização entre os graúlhos mandibulares da tradição, as rasuras dos sobreestetismos e a matéria escorregadia do presente afectado pelo jogo plagiotrópico das coreografias futuríveis: a inexequível voz está sempre à tona com variações infinitesimais)________os óvulos glandulares do pensamento criptogâmico, os feixes dos micromovimentos das coexistências esgueiram-se para o espaço mais interior do corpo, um corpo mudamente-acústico a procurar o acaso policromático( tudo se dissolve no magnetismo intenso da vida, mesmo sentindo que o desconhecido faz parte do silêncio tensionado pela auscultação dos hieróglifos de ossificações polifónicas_____ defluxões inervadas  do corpo, cinzelam sisifianamente os  escombros da linguagem humana-inumana-animalizante( monadologia ecológica)____assim___o transleitor colocar-se-á no prazer estético do silêncio do mundo, nas dobras dos orifícios dos obstáculos incessantes, das línguas-por-vir entre a gagueira do mundo e o estado livre das singularidades que inflectem pensamentos móveis nas veemências dos encontros das superfícies das desescritas(o poema afirma-se nas interferências dos andarilhos que defrontam a gravidade-trapaceante ): o ruído das sílabas em contraste cosmogónico cria convergências das errâncias por detrás dos rigores in-alcançáveis que nos arremessam para as sonoridades da cegueira-visível, para as contradições reconstruidas na ética-estética dos afectos( homeostasia fractalizadora):microplanos das arquiescrituras são esboçados nos embates infinitos de forças convulsíveis, subversivas e ameaçadoras, porque tudo se des-incorpora no deserto-resvaladio da linguagem entre a insânia do in-acabado, a vastidão do inapreensível e o erro de Ulisses sob vozes refractantes e desabadas pelas intercadências anamórficas sem alvos( o grito re-enceta o desvelamento da visão, o ritmo intervisual da pulverescência geológica, a visualidade lúdica da confabulação entre intensidades variáveis e radiações termosalinas: são  caixas acústicas que se religam ao caos, às dobras transformadas do corpo para serem absorvidas pelas inesperadas focalidades cósmicas-catalíticas( participação extravasante das encorpaduras afectivas, o crime da palavra torna-se na ofegância criptografada uma zoofonia-gestáltica , o mergulhador-poeta retraduz-se nas simultaneidades a-sígnicas do alto-mar e a violência ondulatória recolhe sempre a in-visibilidade avançada da palavra, a ressurreição da palavra reflectida no vegetal-mineral do abismo-surfante ): esta caça do pensamento dos interfaces da i-emersão melismática, amostra as alucinantes sombras dos verbos intransitivos que lançam as marcas das falas nas epistemologias-gésticas estranhamente colapsadas pelos prestidigitadores translatícios: são-já o rumor da fascinação abismática, a catástrofe criativa, os resvaladios noéticos, as abaladuras inverbalizadas que interrompem o poema inundado por percursos geodésicos e fracturado pelo desmantelamento da memória do mundo, pela in-inteligibilidade das golfadas do mundo: as certezas desaparecem entre as palavras despedaçadas e despedaçantes que não sabem das suas subducções, das anfrutuosidades no corpo em desejo permanente____sim___ os rumores-mercuriais da estranheza de uma miríade de gestemas, as fracturas cartográficas destruidoras de dominações-olhantes e as soberanias entrelaçadas na anti-memória de uma fala-parturiente, predizem as conexões do indizível que nos leva para a magicatura doutras  vocalidades transversais, para o risco das vizinhanças do ouvidor e inventor de novos itinerários sem metas, nem chegadas, nem sentenças( nada é fixado e tudo acontece na ofuscação das bordas, dos limites que desprotegem o discernimento no confronto da espontaneidade da ablepsia na claridade-ciclópica, recuperando as emergências das azulejarias do poema entre as entropias fundentes, as avalanches do corpo contaminado pela “razão-ardente” dos eclipses do mundo  )______as forças do corpo-olhante, dissipam-se, ressurgem, dissolvem-se, recomeçam nas matizes do in-acabado, nas sensações vertiginosas, nas variantes telescópicas, nos feixes multiformes-astríferos, nos alvoroços atmosféricos que escapam à compreensibilidade-balizadora, reproduzindo o que foi  zurzido nas travessias da des-aparição, no enfrentamento do grito-cancional antiquíssimo para se transferir novamente, reiteradamente, intuitivamente para  ALFABETOS-outros-do-ACASO em ritmicidades-ecoantes do vivente, do vivificador de um presente-trapezista_________ formas desfiguradas, destruidas pelos rastros do passado colectivo-em-futuração-criptografada: expressões autofagiam-se para se deslembrarem, regerminarem  fora dos batedouros-escamados-do-euismo e da granulagem bolorenta do poder______sim______a vida é risco, é pensamento, é invenção, é negação teleológica e das causas finais____ o culto da morte é e será  inimiga do criativo-afectivo__sim__ é inimiga da ética, dos acontecimentos estéticos( o homem não possui livre arbítrio, ele vive nas e das intensidades em devir e jamais viverá assujeitando-se a uma moralidade nutrida por deuses definhados: combater a morte sem idealismos, sem utopias, sem antropomorfizar a realidade, sem filosofias da finitude, sem filosofias flageladas, agonizadas, mas atravessadas pela incomensurável germinação háptica-dinâmicas que recria, experimenta imanentemente o mundo, fora das “interpretoses” e das classificações dicotómicas, dualísticas tão sugadas pelos desígnios providenciais___sim___defrontar a morte, afastando do corpo a crendeirice, os instintos supersticiosos, o pânico, os afectos tristes, as identidades-déspotas reguladoras do mundo rebaixador da vida  ____ voluteamos na loucura, no delírio, na paixão, no  real: estas correntezas fazem parte inumanamente do poema entre o caos acentrado, o labirinto acentrado e a pré-vida do acontecimento em devir como um ritornelo paradoxal com implosões ritmáveis antes da palavra que povoa, valoriza, fortalece o tempo-puro-inconsciente: o poema espiritualizado fragmentariamente, cruelmente pelo real irrepresentável, inesgotável, evitando que o corpo-palavra seja avassalado, amansado, esquadrinhado adentro duma cremalheira de poder antropocêntrico, pelas essências das lógicas divinas e por uma natureza utilitarista que lhe provocará a impotência, transformando-o num asilo circunscrito de julgamentos do certo e do errado: o corpo questiona a expectação da própria resposta por meio de um olhar-grito para assimilar o seu espaço mais interior que despontará  nas superfícies em desdobramento porque se nutre do desejo do caos multiplicador do caos, devorando, perfurando, percepções_____é esse o poema escavador, lenhador, escalador de forças cósmicas, é esse o corpo que busca o silêncio-acústico ao atravessar os desertos de transmutações contínuas, esse corpo cartográfico, coreográfico que risca o caos com com o intenso fulgor, com a tensão dos olhares  já-fora de si mesmos onde os traços imperceptivelmente perceptivos acontecem nas forças vivas inobjectiváveis, intermitentes, interrogativas( formas aformais absorvidas e dilatadas simultaneamente pelos magnetismos do mundo onde o obscuro se faz silêncio nos recomeços imprevisíveis do texto-corpo, levando-nos para o transbordamento, a disseminação das sensações em movimentos ritmados, sem repouso, dançar incessantemente com as correntezas impactantes, transformadoras dos palcos-hápticos que nos faz religar a-nós-próprios-e-ao-mundo____o poema desobstrói, DESENTULHA os poros afectivamente, imanentemente, criativamente, porque seu pensamento é resistência que busca  transpor trincheiras, revolvendo viáveis saídas, traçando novas bordas imprevisíveis e fazendo das indiscernibilidades e das indecifrabilidades o excesso das capacidades sensório-motoras: é este o corpo movimento nas forças positivas da invenção, é este o instante que procria o instante imanentemente e faz da vida um processo do caos-cósmico-osmótico por meio das singularidades impessoais onde um signo a-sígnico escava o pensamento para afectar tremendamente a vastidão profusa da perspectivaa, tradutora da realidade inabordável: o poema se inscreve transversalmente no intervalo, nos interstícios dos ecossistemas percebidos pelos biomas  já-desejados, assim, as velocidades-longitudes a-sígnicas se tornam compulsivamente avassaladoras, problematizadando o criativo: é este o processo CONTAGIANTE  do poema insculpido nos ritornelos das capturas estranhas da transformação do tempo de matérias diferentes, de algoritmos matéricos conectados com os crivos caológicos, transvertendo a palavra numa linha ininterrupta de forças de intensidades variáveis, de forças abstractas ( o leitor agindo e pensando sem profecias, nem previsões, nem entropias pontilhadas da termodinâmica)___sim___o terror vive da aproximação das palavras obsessivamente localizáveis e ao absconder-se na hemolinfa térmica suga as cirandas-de-mutações-difónicas com os lances infinitos dos ofícios-mecanicistas adentro dos intervalos verberantes de quem procura planos simétricos( sentidos sem objecções): experimentação do pânico do esquecimento em direcção ao delírio das rotas, ao transitório dos eixos da exuberância do quase-desvendamento das hidras-sígnicas que continuam a misturar vagamundos por meio da opticidade dos conceitos para abrirem às profundas ressonâncias das fracturas do mundo, à anterioridade devoradora da paisagem-caos da ex-crita: o poeta se abandona-afirmando o arrancos da clandestinidade e se expira ao acolher o reconhecimento entre os estandartes da entropia cronológica, porque não esculpiu as velocidades-lentas das permutações esfíngicas-mágicas da palavra( a voz-animal-do-poema fundida epifanicamente na perfulgência rasgadora dos subterrâneos,  atravessando uma presença corporificada  no ritmo da ausência-boomerangue, da visiva da imprevisibilidade que vem descontinuamente do fora que é o dentro trepidante do enigma-multívago: são partituras inobjectiváveis mundificadas no in-visível que copula violentamente as palavras mutiladoras-construtoras do real, volteado por superfícies dançantes de todas as artes e de todas as ciências entre angulações e dobraduras phaneroscópicas ( o olhar do poeta-denegado se transforma nas fundações topológicas da aparição alógica in-cicatrizável, dos resvaladouros góticos): retraçar os corpos com as recomposições do inacessível, com o sangramento da epiderme epifânica, com o saber do não saber  dentro da impermanência dos alvos dos mapas do mundo que jamais nos darão a visibilidade-total entre abecedários hiperestésicos_____ sombras musicais da visageidade amostram-se e recolhem-se para infinitizarem os jogos de auscultações-semiografadas e de buscas das metamorfoses experimentadoras das estéticas do bulício do mundo, dos ditirambos prometeicos que nos transvertem numa voz de muitas vozes de mundos em permanente multidimensionalidade; forças entrelaçadas sem repouso, sem identificação nas durabilidades das heterotopias___são biopotências contínuas com estilhaçamentos na estrangereidade das bibalvias-sintácticas___sim___a in-corporificação vascular dos inesperados urdem os mineralóides da voz-animal-quase-antevistas entre os lances dos avessos dos leitores transcodificantes): tudo é ultrapassado pelo enigma irresolúvel, pela reinvenção ininterrupta do poema, pelo coração sinestésico dos ourives-assígnicos em germinalidade metamórfica____sim___absorver a ruptura dos rumos silabários re-encontrados no silêncio des-costurado do mundo e desviar-nos intensamente da centelha messiânica que se diz floresta-de-expectações, tentando nos colocar nas massas ressentidas dos sarcófagos-conscientes. O poema foca-se no mosaico da caminhada cinemacromática, nos desdobramentos verbais-não-verbais que emergem e desaparecem diferentemente, ressuscitando obliquidades, flutuações, maleabilidades, atritos, estrias, imbricações, ritmos ondulatórios, translocalizações entre as forças dos atravessamentos petrológicos, os de-nodamentos das agramaticalidades e a procrastinação das vozes do transe( experimento  das fracções anatomistas do poema, construindo, esboroando orbitantemente ambulações, tecelagens, polispermias, estridulações meteóricas por meio de excertos ecoesféricos)____sair do sedentarismo-analógico, das sequências perceptíveis e enfrentar os golpes polirrítmicos da vida com a insacrificabilidade do olho-no-olho, da câmera-da-câmera misturadora de matérias gravitacionais entre os espaços de mutualidades convulsadas, religadas, exsolvidas  e  as diacronias das fendas livres( arrancar e apreender os intercessores que abrem a matéria do mundo) ____a imprecisão, a precariedade, os rastros das linhas infindas, a contemplação-escorregadia das vagaturas da língua caotiza-nos na adivinhação polinervada das multidões, no cinetismo geográfico em variação incessante, catapultadando novas artes de vida, novas dobras onomatopaicas, feitas pelos longínquos das vizindades e pelas miscigenações sensoriais que retransformam o poeta numa garatuja-animalizante ( síncopes espaciológicas na cavalgadura do ininteligível sem avisar): aqui, as cicatrizes da palavra retornam às lacunas escultóricas das esferologias movediças, aos flagícios fulgurantes das tentativas laudânicas, aos rigores das traçaduras gangrenadas da misteriosidade,  levando o poeta-renegado para as voltagens dos transplantes do mundo, para o ecossistema da solidão-cosmogónica adentro do trapacear de uma estranheza quase imperceptível que jamais lhe dará alguma resposta, porque seu corpo-varacional-pan-semiótico sentirá o desmoronamento do já-dito entre as laçadas-musicais-inumanas e a inacessibilidade das urdiduras dos astros:dizem: composições órficas das palavras____o mundo vaza sem datas, destruindo concatenações historicizantes, projectando desgastes permutatórios, enervamentos transfronteiriços que tentam des-fazer a densidade do fora com o dentro das feridas polimórficas do poema que se dinamiza nos cruzamentos anárquicos, nas clarabóias traçadoras de sismologias, nas contaminações cartográficas da matéria cinzeladora de partículas navegacionáveis: tentar desensombrar a visão por meio dos calculadores matemáticos, das oscilações-desequilibradas das línguas estrangeiras que povoam as distâncias batimétricas das adjacências brownianas-picturais, das volteaduras das paleografias infiltradas nos acontecimentos-curandeiros, repletos de vitrais ilimitados: aqui-agora, a palavra navega antes da sua implosão, carregada de cesuras inabordáveis, de infinitudes ritmáveis, lançando o poeta para os recomeços do silêncio do á-bê-cê do deserto heteronímico ( re-composição da sombra do visível,  habitar as fragmentações coexistentes nos sensóriuns assignificantes do mundo): o poeta-renegado revivifica-se no suicídio insondado da palavra-de-gritos-esgotados-recuados porque busca a seringação das alavancas cancionais-meteóricas de um possível desabamento vitalizante entre as ubiquidades mágicas-do-real e os contrastes em acoplagens vertiginosas, criadoras de defluxos babelescos-rupturantes e de variâncias labirínticas( vozes-turbilhonares dos desejos em transdução-crítica): não esperar o retorno, nem os espólios das coordenadas sinérgicas e acompanhar as mergulhadoras cetáceas-noctâmbulas com gestualidades friccionadas pela intersecção a-sígnica adentro da assemelhação-dissemelhante do mundo_______  re-posicionamentos quase-animalizantes na polimorfia das manchas cíbridas, dos dicionários vivos,  dos baraços astrológicos e das áreas cambiantes da uterodisseia: vejam, o jogo indiscernível das tatuagens do mundo! A luz lança-se orficamente excessiva no matagal das incertezas do corpo___sim___a palavra des-aparece para reproduzir, reverberar o mundo através do silêncio! Acontecer na fala escusada que quase-repousa na materialidade colossal-e-em-fenda, acontecer nas imbricações navegacionáveis do desejo-mundo(a palavra inútil-lacunar com olhares retorcidos) acontecer na entrepausa embaralhadora de alvos tranfronteiriços que nos levam permanentemente à solidão absoluta-criativa, ao não-necessário, à substância acronológica e ao sentido dos sentidos a-lógicos: acontecer no ostracismo-regenerador, nas expressões renascentes-rítmicas que tentam evitar o suicídio do poema sobre a cosmogonia de EPICURO; acontecer na imanência heterogénea entre imagens inúteis e a crítica à frivolidade das linguagens que demarcam outras linguagens potencializadoras de determinações e assujeitamentos:  dionisiacamente despedaçar a armação aprisionante, incorporar os outros de nós mesmos que são os outros fora-de-nós-mesmos para quebrantar historicidades idiologizantes_____ excrever entre deuses desarvorados, dobraduras vibratórias, atravessamentos hiperdimensionais, descentramentos morfológicos e fragmentações do alto-mar  porque a língua assombra, apavora, sombreia, esparva, acobarda, acanha, intimida, atemoriza  babelicamente___assim___o transleitor caminhará para aquilo que não sabe, para o desconhecimento, para o alofilo como um eco impossível no DESERTO da TEXTURA que jamais concordará consigo mesma adentro das imprevisibilidades resistentes, sinérgicas, geométricas, intervisuais, estético-científicas,  tácteis, articuláveis, espirituais, cinemacromáticas, onomatopaicas, polisssémicas___acontecer na fala iniciante, no atraso-antecipado, na dúvida indiscernível, nos  intervalos indecifráveis que ampliam as im-possibilidades, os traços do in-acabamento, a tensão das ressonâncias verbais corporificadoras  do silêncio ulcerado-levitante, do pensamento ondulatório que entoa peugadas limítrofes pongeanamente___traçar e retraçar as transgeografias com as velocidades das singularizações das forças in-visíveis que transbordam os entrecortes copulares do inominável  com as antropogéneses do despovoado( interferências das linhas astrológicas, das agramaticalidades, dos crivos insondáveis da semiótica): refazer tudo no estranhamento do lapso, nos espaços móbiles do irrepresentável, nos intervalos transumantes do despenhadeiro, nas encruzilhadas da desestabilização-justaposição das cartografias e sobretudo no falhanço plurivalente do conhecimento: transformar a palavra-inamanipulável em constelações sincopadas,  em circularidades dinâmicas perante as desterritorializações das fábulas-in-fábulas-hipertextuais-cambiantes: no recomeço das errâncias tudo parece contaminado paradoxalmente, há uma tensão murmurante nos miuçalhos da língua e dos derrames da hololíngua que se desdobra e estremece entre as falas incontroláveis, as maviosidades do tição incendiário-oscilador dos ecos arteriais________as vozes ondulantes  perdem o exórdio nas lipotimias dos meios das suas enxertaduras tremendamente sedutoras porque projectam os subterfúgios das falas indeterminantes sem pertença, sem função, sem serventia( talhaduras vaticinantes esbulham mitologias e tudo se desfaz numa repulsão ulcerada)___sim___são reinícios das obscuridades das vozes-ecoantes  que reinventam outras ruminações-minotáuricas-estriadas-e-em-atrito que jamais serão uma esfera de origens porque os rodeios perfunctórios das palavras amotinam-se na criptonímia-cerebral, reinstaurando  efracturas assignificantes, forças que geram forças de um pensamento inobjectivável_____sim____o poema acontece em si num encadeamento de forças caleidoscópicas e se entrega à incerteza, às confluências de epifenómenos ondulatórios, insaturáveis, instáveis______ o poema se arremessa contra a correnteza inesperada dos desvios das volubilidades da retradução de uma memória-sem-memória: uma teia de invocações e de intermitências inscreve a sua própria vida no transe emaranhado de excritas e excriptas do corpo transhistórico_____o corpo feito na contaminação doutros corpos cinéticos, infográficos, videográficos, multiformes, noosféricos, multifacetados, deslizantes, rasurados, interactivos, permutativos que vivem tumultuosamente adentro do poema-alvéolar sempre numa descontinuidade de excrescências e de emergências: estes estremecimentos compulsivos e cegos de uma língua que não suporta o manuseamento, mas deseja a desfiguração, a estranheza, a torsão e uma transleitura do futurível que presentemente jamais advirá, fazendo do poema uma caminhada-sarilhada de desaparições, extinções, renascenças e reacendimentos, uma abastança-desértica, uma irrigação de transmutações ininterruptas___sim___o poeta com novas topografias desertoras, escorregadias e ilimitáveis, com novos mapas incompletos, com todas as transitoriedades e com  a inesgotabilidade do sentido alógico-irrepresentável-e-incorporificador-das-palavras-em-transfúgio, escarifica-se, tatua-se nas trilhas-sem-onomásticas: imensuráveis línguas inconclusas, deformadas, fendem violentamente a unidade, desatendendo solvências, objecções, binarismos para recomeçar nos cânticos da natureza,  nas melodias caológicas, no erro arrebatado_____a disposição das diferentes formas de vida atravessa o poeta adentro da dita “literatura” que nunca lhe leva para lado nenhum, não tem contrapartidas, vive simultaneamente na profunda instabilidade, na hibridização compositiva, na miscigenação zoomórfica, nas des-instalações, nas performances, nas redes telemáticas-cibridas, nas transleituras espaciológicas, nas cosmologias da jubilação-trágica: ele sente o poema e vive com o poema nas multi-focagens da perplexidade nómada, nas órficas-vozes escaladoras de antagonismos intersticiais_____louca interrupção das concavidades inapreensíveis que suportam os lapsos matéricos, os ritmos friccionados da caoticidade porque necessita, demanda, solicita uma estética de vida-alucinada-anargânica sem salvadores-proféticos de um futuro-migrador________gerar vozes dissemelhantes, desabaladamente criadoras de estimulações infindáveis do real !

do livro Khamsin-Morteratsch (2011) ed.Arte Livros SÃO PAULO

*    *    *




LUIS SERGUILHA______Poeta, ensaísta. Participou em encontros internacionais de arte e literatura. A excepcionalidade estética, a multiplicidade-intensidade dos seus processos criativos, têm chamado a atenção de acadêmicos, críticos, poetas, pensadores, ensaístas, artistas, escritores da Língua Portuguesa e da Língua Hispânica.   Possui textos publicados em diversas revistas de literatura e arte. Criador da estética do LAHARSISMO e responsável por uma colecção de poesia contemporânea brasileira na prestigiada Editora Cosmorama( Coimbra-Portugal). Pesquisador da Poesia Brasileira Actual. Foi um dos Curadores do Encontro Internacional de Literatura e Arte: Portuguesia__________ É Curador do RAIAS-POÉTICAS: Afluentes IBERO-AFRO-AMERICANOS de ARTE e PENSAMENTO.





FLÁVIO MORGADO = LANÇAMENTO + 4 POEMAS

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nu
frente à Raissa


amar humores é amar.

insistir: mãos dadas a este presente;
aceitar, nossa condição.

não perder desconhecido. cultivar o susto.

aos olhos, apenas vê-los. não esperar vozes
- e mesmo o olhar, se bem os lê,
são poemas ditos para si mesmo:
podemos escrevê-los ao nosso segredo.

como decifrar a nossa sorte a partir do erro.

na bruta vontade de amar e narrar
o outro
- esta temporária instância que lhe sou.

não ser medo. cultivar o escuro.

acender as luzes da certeza
                                           e ser seu tato.
(atentar-se ao rastro e seu infinito)

e empreender-se a esta
outra forma da solidão.



a presença é sempre uma promessa,
e o outro é sempre o seu perjúrio.



nos resta então do amor seu rumor
de abraço, de dúvida, de matéria.

quase não se sabe ao que se ama

                                                             - a nudez é sempre inédita.



arte abstrata


ao lhe ver pintar
                              me perco

atento fico
                            ao que bo
                                          rra


a paleta
sobre a mesa
                            mistura
                            as cores
do ainda não feito

                             e me é um quadro:
o seu, o da feitura
               da fatura da tinta, que erra
verde. 

se muito,
delega o excesso
                          sobre a tela
imprevista

cintila o delírio
da cor calada
do resto, do rastro
                                   do quadro ao contrário

- imagine o chão de Pollock...


em que tudo sobra
e não está     só
(des)vimos a forma
redimir o olho:



a paleta é o quadro.

- e a voz da cor
                            se enuncia no que ainda

                             é sonho.


vivo


a cidade, a tela, o aterro, a terra

não mensuro de que é feita
                                                 toda sua matéria

               de solidão acompanhada.

comungamos
                          ativo
                          atual
                          e vivo
esta areia que agora me piso
                                             e assusto

- o nada é fremente.

                                                                 (que era eu antes?)

revelados pelo poema,
ainda éramos todos:


                                         vacilos entre instantes.


sobre conchas


a voz ainda está no eco?


(o oco diz o círculo)

a concha canta o mar
pela areia



- e o canto é um silêncio

que se guarda por fora.




*    *    *




Flávio Morgado nasceu em 1989 no Rio de Janeiro. Autor de "um caderno de capa verde" (7Letras,2012), estes poemas fazem parte de seu segundo livro, "uma nesga de sol a mais".


"SONHO", POEMA DE ANA FARRAH

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estou sempre em festas decadentes gente plástica de risos travados eu entro no carro de alguém com outros alguéns nada nobres um pânico antigo volta a desafiar minha compostura e na janela me aparece aquele lobo os caninos de marfim a rosnar e babar na minha orelha ele sussurra me diz de avisos sem articular palavra tímpanos adentro insinua obscenidades e mensagens em bloco eu entendo tudo úmida de pavor e vontades me vejo acossada entre um pilar marmóreo e paredes de espelho o lobo a girar a maçaneta da porta entra corre abocanha os babados do vestido bordô com rendas que se rasgam até o palco onde está um cara que não reconheço tocando um acordeom de 1970 desafinado ele hipnotizado nem pisca e de repente o lobo sou eu.




*    *    *



Ana Farrah é gaúcha, da leva de 81. Ano do galo. Mora em Floripa. Uma vez mandou poemas pra editora da TRIBO. Publicaram dois. Garimpeira do Pinterest. Mexe bem no Picture manager do Office. Gosta de inventar que é astróloga, taróloga, que vê o futuro. É leitora voraz de bulas de remédio. Percorreu quatro cursos universitários, até virar Esteticista, na quinta chance do universo. Faz poesia no banho. E atende à domicílio. Cobra bem. Lê e escreve entre uma massagem e outra.

5 poemas de Germano Xavier

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O VELHO LOBO DO MAR

"Mas o que pode valer a vida, 
se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?"
(Milan Kundera, em A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER)


algumas vezes me encostei ao mar
e por medo do desconhecido, do vão devorador
escondido nas fendas ondulantes das marés,
construí em mim o som dos medos reais.

parte em consciência, soube ocultar
a fera indestrutível das águas nas espumas.
parte em truques, abortei roteiros inglórios
de bravura à direção das imprudências.

fato é que as histórias em que navego
minhas máximas campanhas de homem
foram sempre trilhas lançadas aos atiçamentos
e às estreias da alma.

tudo se resume, pois,
até aqui (e só assim me pus a salvo),
a uma vitoriosa carreira de impermanências.



UM RIO CORRER


um rio correr
pode entre escuras pedras
esconder insustentáveis tristezas d'alma
como se sobre as águas um grande saponáceo
levasse embora particulares encardidos?

um rio correr
num engendrar se estende à dionisíaca música
concebida como êxtase em pleno quadro
de nos restar apenas a grande e ligeira vez
dos mais abertos silêncios?

um rio correr
qual romance sem quem nem ninguém
opera clausuras em divórcio irreparável
por cada uma reação perdida
na irresistível confusão dos sentidos?

um rio correr
convencido de que é dentro que se vive
em nós a ondulante catástrofe da beleza
abrigará em ondas lentas toda declaração
de que passamos depressa e de que ficamos
a aplaudir angústias ao fim da linha?



BR 104

"Violência é ele ficar assustado porque a gente é
 negro ou porque a gente chega assim nervoso a
 ponto de bala cuspindo gritando que ele passe a
 carteira e passe o relógio enquanto as bocas buzinam
 desesperadas."

(Marcelino Freire, em Contos Negreiros)


é hollywood?
é bollywood?
é perseguição e sem dublê.
reta larga pela frente, o destino.
mas qual o destino da manhã?

qual o destino do medo?
esperança tem destino?

acelerador no topo, a mão rodada.
cabo enrolado. vulto no retrovisor. 
uma perna toca a minha 
perna. 

calor humano, frio metal.

cano curto. gelidez larga. no pescoço.
acostamento, freio, mente em transe.

desço. o motor apaga.
penso em tanta coisa.
não penso nada.

revista. olhos perdidos. 
cadê o fogo do motor?
cadê o fogo da vida?

a BR não desliga.

o frio é traidor. a porra que não liga.
a merda de estar sozinho.
a merda de estar ali.
a merda.

LIGA A MOTO, PORRA! LIGA A MOTO!
TEM ALARME? TEM SEGREDO?
LIGA A PORRA DA MOTO, CARÁI!
PASSA A MOCHILA! CELULAR, PORRA!
QUER MORRER, PORRA? QUER MORRER?
VAZA, VAZA! CORRE PRO MATO, CARÁI!

seixos saltados. capim no calçado.
a respiração é um tormento.
o blusão cor do chão.

elesvrummmmmm

eu caminho. acostado.
sem caminho. atordoado. 
eu penso 
em tanta coisa. 

eu caminho. 
eu, caminho.



A ESTREITA GUARDA DAS NOÇÕES

para José Barbosa


não captam o tempo da alma
nem desenvolvem técnica alguma,
e como /im/precisam
da vocação para o interesse,
da vocação para o mergulho
a ter como profissão o sonho?

em quereres, de então,
braços eternos de oceanos,
lâminas cegas de espumas,
para em poder, e em vão,
andar em atiros de partida
na leitura aflita dos dilemas.

fios de vida aplicados ao mistério
domam a invisível onda dos acabamentos,
a memorizar, incansavelmente,
a estreita guarda das noções.




NOSSO TEMPO
para Arturo Bandini, que sou eu


romper.
deixar que cheguem as primaveras.
e mesmo não acontecido, é vida.
foi vida.

intervir. e conhecer para romper.
conhecer para intervir.
e conhecer para fazer.
contribuir.

//o erro é também um manifesto//
a poesia está nos atos.
a poesia está nos fatos.

a poesia não está
para ser uma qualquer.

a dama sem princípios
está no mundo.
e no mundo estamos
para viver.

este é tempo de sentido,
tempo de homens sentidos.


Ilustrações: PhotoartBK



Germano Xavieré mestrando em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE. Especialista em Ensino da Língua Portuguesa. Possui graduação em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco – UPE. É professor, editor do Jornal de Literatura O EQUADOR DAS COISAS e escritor. Blog O EQUADOR DAS COISAS.

5 poemas de Karin Krogh

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Ilustração: Martha Bevacqua



Ela era Artemísia.
Leitor de Nabokov
o pai deu-lhe o nome.
Flor rica em pólen
protetora dos partos
deu cria cedo
um botão por ano
nacidos em pedra
todos sabor de absinto
assim como Artemísia
degustados por seu pai



Poema de único dono

O suor dedilha minhas costas.
Pequenas patas de besouro.
bil na escalada
dos alpes de minhas nádegas,
ele retorna
e encontra suas mãos
sujas de tinta óleo.
Na inércia dopós-êxtase
seus cabelos de nanquim
formam caminhos
no travesseiro florido.
Sigo com os olhos
cada um deles
até encontrar
a paleta de cores
Seu corpo


Infante


Aconteceu bem antes da Luciferase, quando o vagalume acendia a bunda e iluminava a infância;
aconteceu bem antes do arranjo A,C,T,G em dupla hélice, quando eu havia puxado os olhos do meu pai;
aconteceu bem antes do Rivotril, quando o coração acelerado era paixão escancarada;
aconteceu bem antes da bateria de Lithium, quando eu corria pelas ladeiras de Diamantina;
aconteceu bem antes do Protex, quando lavava as feridas com água e sal;
aconteceu bem antes do Prozac, quando permitia sentir a mornura das lágrimas.


Ilustração: Julie de Waroquier


Posso sentir o peso
da cadeira
ela arrebenta
e deixa lascas
Minha coluna se dobra
ato involuntário
os músculos se contraem
sustentam o próximo golpe
A cadeira perde as pernas
os hematomas são rojos
o encosto é arma
incha, sangra
meu corpo no chão
os hematomas são roxos
o corpo quente
sangue que inflama
o sol toca parte do meu
calcanhar
sobe até as
coxas
roxas
hora em hora
agarro os pés
da mesa
puxo meu corpo
até sentir a proteção
do mármore
por cima
do meu corpo roxo
Agora é esperar
a lua
maldita
até o fim das cadeiras
até o fim.



A arte do sufocamento


Tomei posse do seu pescoço. Colar de palmos. Gargantilha de dedos. Hipertrofia dos meus bíceps na sua carne.  Rios e seus afluentes enchem de vermelho a sua esclerótica.  Agora é só minha luz na sua pupila. Atravessa o cristalino em impulsos eletroquímicos.  Somente minha imagem navega até suas células cerebrais. Nesta fração de segundo, sinto o tremor que me negou durante o gozo. Rigor mortis.



Karin Kroghnasceu em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, em 1972, mas depois foi pulando de galho em galho, Diamantina-MG, São Luis-MA, Ribeirão Preto-SP e agora São Paulo. É formada em Farmácia pela Universidade Federal do Maranhão, com mestrado e doutorado em Biologia Molecular pela Universidade de São Paulo. Apaixonada por livros, literatura e suas duas filhas, tornou-se contadora de histórias e publicou o livro infantil Dondila e Jurema( Giostri editora) em 2014. Seu primeiro livro de poemas Insídia será lançado pela Editora Patuá.

Alencar - Marcela Dantés

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Ilustração: Alessandro


Morreu o pai. Num fim de tarde ordinário, sem qualquer aviso prévio ou drama, como já deviam esperar. Não era um homem dado às sutilezas, resolvia como dava, tinha pressa de seguir. Era uma vida cheia, não sobrava muito tempo para os detalhes e não seria diferente no fim. Caiu, pesado e pontiagudo, no chão do escritório, sem desconfiar daquele cala a boca da morte. O menino nunca esperou muito de nada, sempre soube que na vida daquele pai não eram prioridade, mas um plano alternativo meio esquisito, um desvio de rota, ainda que muito cheio de amor. Não eram os oficiais e nem tinham a pretensão de ser, o sentimento sincero lhes bastava e a vida seguia na calma de quem se sabia suficiente.    
Se escondiam do mundo, numa casa comprada por ele, em nome dela, sem muito luxo, mas cheia de dignidade. Se escondiam há anos, mas nunca dele. Desde quando ainda nem achava que podia entender, a mãe fizera questão de lhe contar a verdade, dizia que o filho tinha o direito de saber dos caminhos tortos que o faziam existir e sempre, todas as vezes que repetia essa história, dizia que nem por isso era menos amado. Talvez, fosse até mais. Era o resultado de uma paixão avassaladora, que já durava sete, dez, doze anos para provar que ela não mentia. Se amavam muito, os pais. E o amavam, também. Mas o pai tinha aquela outra família, a primeira, a oficial, a que todo mundo conhecia. E que ele amava também, maldito coração grande. Ele sabia que o homem tentava, e quase sempre conseguia, só o melhor pra todo mundo. Homem incrível. Mas por força das circunstâncias, tinha que andar quieto por aí, e não podia exibir o pai que a vida lhe dera. O mais divertido, o mais inteligente, o mais forte de todos. Ele obedecia, aprendeu cedo a ser discreto, a guardar toda aquela admiração num buraco oco e preto e bem fundo dentro do estômago. Mas hoje o pai lhe morrera e ninguém podia dizer que ele não iria enterrá-lo. Iriam juntos, ele e a mãe, de cabeça erguida, porque também eram família. A outra família, os dois sabiam e só os dois, talvez uma ou outra vizinha mais atenta, que elas sempre existem, mas no que dependesse da língua daqueles três, era um segredo de túmulo.
- Meu pai, mãe. Ele ia querer a gente ali, você sabe. A gente vai rápido, fica atrás, mas por favor, não me deixa aqui. Não é justo. 
Ele falava sem parar, chorava também, um fio de suor descendo constante pela testa, mas não fazia calor. A mãe assentia em silêncio, só por não ter forças para argumentar, ou coragem para contrariar um menino cujo pai, que sempre fora metade, já não voltaria. Ele queria chegar rápido, uma urgência de se despedir como se o adeus colocasse um fim naquela dor, que só quem já perdeu alguém saberia que é só o começo. Mas tudo era novo para o menino. Se arrumou depressa, das muitas roupas, só uma era adequada, a camisa em botão, a mesma que usara na sua formatura no colégio. E uma calça de linho bem nova, a mãe havia prometido fazer a barra na semana que entrava, mas entrou no cemitério arrastando. O pano no chão, a mãe pela mão. 
No fundo,  sabia que não deviam ir, eram os outros, a família que veio depois, sem que ninguém tivesse ido embora antes. Já existia uma família, também feliz (exceto por hoje) e que não podia imaginar que dividia com eles um marido, um pai, um homem da casa que era cheio de amor, só afeto e cuidados. Ele nunca quis saber como ele era com o irmão, meio irmão mais velho, filho legítimo, batizado e registrado. Desde que não lhe faltasse um abraço quente quando viesse dormir em casa, desde que nos seus dias, ele estivesse inteiro ali. E ele sempre estava, exceto quando morria. Morreu hoje. 
Seria um adeus rápido. Não fazia parte do plano ser visto e, menos ainda, ser igual ao irmão. Diferente do pai, muito, só um ar que lembrava a herança genética inegável, aquela coisa que se diz na rua, é o filho do Alencar, mas ninguém sabe o porquê. Mas idênticos entre si. Dois filhos do Alencar, sem se saber os motivos. Uma multidão chorava a ausência de um homem querido. Tanta gente ali para oferecer apoio à mulher, ao filho, à mãe catatônica. Um homem bom. Tanta gente que viu um menino miúdo e choroso de calças compridas demais encostado ao fundo do velório, tão igual ao outro, miúdo que nem, choroso também, parado ao lado do caixão, as mãos nas mãos mortas do morto. O silêncio tomou conta do cemitério, mas não do jeito certo. Um desconforto pesado e incolor, só os muito ingênuos não acompanharam. 
Cada mãe com seu filho na mão, um duelo de lágrimas, quem sentia a maior dor? Alencar, por certo, que nunca desejou isso para ninguém. Se soubesse, não teria morrido. Mas morreu hoje. 



Marcela Dantés nasceu em Belo Horizonte, em 1986. É formada em Comunicação Social pela UFMG e atuou por cinco anos como redatora publicitária, até descobrir  que prefere as palavras na literatura. Já alimentou e assassinou alguns blogs e cultiva em segredo uma pasta digital gorda de contos e outros rabiscos. Sobre Pessoas Normais  é seu primeiro livro.

Livro 'Associação Robert Walser para Sósias Anônimos' faz jogo divertido de duplos e impostores. Resenha de André de Leones

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É em um universo surreal, de humor delirante, que o pernambucano Tadeu Sarmento insere seu romance de estreia, um primor de imaginação.



    Uma boa maneira de apresentar o humor delirante de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos é pela história (provavelmente falsa, e o livro está cheio de mentiras dentro de mentiras) de um personagem, o mentor da associação que dá título ao romance: Hussein é assim chamado porque teria sido um dos vários dublês do filho mais velho de Saddam, Udai. Certo dia, o ditador iraquiano ordena ao filho que vá a Basra “levantar o moral das tropas”. Lá, Udai sofre um atentado e perde um dos braços. Consequentemente, os dublês são coagidos a arrancar o membro respectivo, “obrigados a fazer esse sacrifício para se adequarem à nova condição do duplo”. Feitas as amputações, descobre-se que Udai estava na verdade em um cassino na Suíça, e que a pessoa que sofreu o atentado era um dos sósias.

    Passagens como essa pipocam nas páginas do livro, muito bem costurado pelo pernambucano Tadeu Sarmento em duas tramas que correm paralelas: a primeira diz respeito à tal associação e é narrada em primeira pessoa por um sósia de Robert Walser; a segunda (que pode muito bem ser um livro dentro do livro) se passa no começo dos anos 1960, em uma cidadezinha no interior do Paraguai chamada Nueva Königsberg, onde os moradores (nazistas foragidos com o patrocínio da Igreja Católica e sob a proteção do ditador Alfredo Stroessner) são sósias de Immanuel Kant, adotando, inclusive, os hábitos do célebre filósofo prussiano. A forma como as tramas são finalmente ligadas é um primor de imaginação, com o romance se debruçando sobre si mesmo e se revelando um labirinto de espelhos no qual a própria estrutura da fabulação reflete o jogo de duplos e impostores estabelecido desde o começo.

    Sarmento também devassa a fixação contemporânea pelas celebridades. Em princípio, os membros da associação estariam ali “para reaprender a ser” eles mesmos, “isto é: ninguém”, almejando a “tranquilidade fria do anonimato”, cuja liberdade “quebra em pedaços a aura de promessas que, às vezes, se forma em torno das pessoas”. No entanto, tal projeto é pervertido, e o mentor deles diz a certa altura: “Porque nós somos tudo aquilo que todos gostariam de ser: somos outra pessoa, cada um de nós, e isso que nós somos é o ápice de toda cultura moderna”. Não por acaso, no momento em que essa mudança de paradigma se torna patente, é que um crime tem lugar às portas da associação. E o crime ainda encerra uma tremenda – e hilariante – inversão de papéis.

    Para terminar, ressalte-se que Associação Robert Walser para Sósias Anônimos foi justamente agraciado com o Prêmio Pernambuco de Literatura. Aguardemos outra “comédia triste sobre literatura e desaparecimento”, como o autor tão bem definiu esse seu romance de estreia.

***

André de Leones é autor do romance Terra de casas vazias (Rocco), entre outros.

Associação Robert Walser para Sósias Anônimos concorre no Prêmio São Paulo de Literatura 2016.

Associação Robert Walser para Sósias Anônimos
Autor: Tadeu Sarmento
Editora: Cepe (226 páginas, R$ 25,00)

Também em e-book para kindle: R$ 9,50

ROSA RAMOS LANÇA LIVRO [RJ, 13/06]


"NEON [...]", POEMA DE ALEXANDRE GUARNIERI

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neon [...]


Mas a luz não tem dois lados,
Ao contrário de uma palavra, qualquer uma,
Que poderá ser utilizada na pornografia ou
No supermercado. A luz
É grossa no centro e não existe lateralmente.

                                              Gonçalo M. Tavares



quem poderia supor a estranheza de um gás aceso,
que, para exercer seu fascínio, e revelar o mais
concêntrico dos segredos, houve quem conseguisse
confiná-lo à vácuo, em estreitas serpentinas
de vidro fino, só obtidas de um sopro controlado
sobre um fogaréu típico de maçarico, todas formas
moles, antes que lhes derretesse o sólido molde, e
para flagrar-lhe o lume gasoso sob o fulgor do
argônio tido como inofensivo, bastasse atravessá-lo
ainda, com ímpeto e magnetismo, a mínima fagulha
física ou única chispa, lá, uma faísca fixada
à indissoluta nuvem da sua coluna vertebral?

de súbito há luz habitando um tubo (ou no casulo)
onde é insone o neônio! eis o rito contraditório
de tão espessa cintilação, só contida às expensas
da mais fina vitrina, dos parênteses da tripa vítrea,
colorida, cujo conteúdo é clarão contínuo e vivo,
câmara de tortura abrigando o animal luminescente,
escorregadia enguia elétrica nadando na obscuridade
de um aquário profundo, entretanto curto, enquanto
há como causar-lhe sem escrúpulos (para renová-lo:
fogo-fátuo) a quase asfixia com vapor de mercúrio.

caso lhe emprestem alguma figura, curvas de letras
ou grafias inteiriças são acrescentadas à brancura
dessa queimadura iluminada pela própria cicatriz;
muito embora fria, sua luz pisca, vacila pela via,
ofusca vistas (letreiros zunindo o burburinho de
um séquito de insetos), a ferida cujo jorro de
radiação halógena quase machuca o olho, o chafariz
de fótons como se oriundo do couro cabeludo d’alguma
medusa abraçada a uma bobina de tesla (bruxa ou
fada) numa estranha fábula sobre a eletrocussão.













POEMA ORIGINALMENTE PUBLICADO EM
CASA DAS MÁQUINAS (EDITORA DA PALAVRA, 2011)

LEIA MAIS SOBRE O LIVRO




Imagens: arte de Chris Bracey


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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU).  Seu mais recente livro é Corpo de Festim [livro ganhador do 57o Jabuti].



Ponto Cego - Willian Delarte

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Ilustração: Pia Ray




Um pouco antes de existir, dei a louca de matar meus irmãos, alucinado por uma bolinha linda que brilhava no horizonte. Uns, empurrei pra fora do sêmen, outros, foi rasteira, mata-leão, qualquer trapaçagem que dispunha. Era um mundo pré-moral, onde só existia o amor e um fio cego de luz. Hoje me pergunto se não teria sido melhor ler as placas, "cuidado, vida loka na pista", "curva perigosa ao centro", "não entre se beber". Não, não fui o fodão entre milhões, no máximo, o mais sacana. Talvez, por isso, sigo chutando placas, canelando o mundo à sua procura. É pequena, quase não cabe no abismo, sabe? Mas êta, ave.Ô bolinha mais linda.





Willian Delarte é autor dos livros Sentimento do Fim do Mundo (poesia, 2011) e Cravos da Noite (contos, 2014), ambos pela Editora Patuá (SP) e O Alien da Linha Azul (Edições Incendiárias, 2016). Premiado no II e III Festival de Literatura da Faculdade de Letras (FFLCH) e finalista da 15ª edição do “Projeto Nascente”, todos da USP. Tem publicações em diversas revistas e antologias. Foi co-editor da revista Rebosteio Digital.

3 poemas de Greta Benitez

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Netuno

Pérolas embaraçadas
em um sono milenar.
No sonho
o mar
trazendo os homens de uniforme em navios lúbricos
e as tempestades noturnas.
Escotilhas.
Por dentro
marinheiros
por fora uma sombra de sol
nos travesseiros.
  

*
A viuvez
A sordidez
O escárnio
O escambo
A poltrona, a infâmia
A professora de matemática
Todas as listas telefônicas do mundo
O helicóptero, o hospital, a catedral
A velhice
Nada
Neste momento
É maior 
Do que o amor implacável que me acomete agora.

  

*
Nada retenho
De nada padeço
Apenas saí
Não tenho endereço
Eu sou o trânsito em si



Greta Benitez nasceu em Curitiba. Lançou Rosas Embutidas (Edição do Autor, 1999), Café Expresso Blackbird (Landy, 2006) e Canção Antiqüe (Patuá, 2013). Foi publicada em revistas como “Oroboro”, “Et Cetera”, “Continuum” (Itaú Cultural), “Brasileiros” e DiVersos (Portugal). Também está em edições eletrônicas como “Zunái”, “Germina” e “Mallarmargens”. Participa de diversas antologias, como Todo Começo é Involuntário- A poesia brasileira no início do século 21 (Lumme, 2010), organizada por Claudio Daniel, “Fantasma Civil” (Medusa, 2013), organizada por Ricardo Corona e 101 Poetas Paranaenses- antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI, (Selo Biblioteca Paraná, 2014), organizada por Ademir Demarchi. e Ministrou cursos na Fundação Cultural de Curitiba e SP Escola de Teatro. Atualmente trabalha como publicitária.

FATIGADOS - JANDIRA ZANCHI

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sonetos se despedem de seus soníferos sonhos
amarfanhado é o dia dessa lua cetim crepom dos teu olhos

altos ao léu lançados, fartos e fadigados, se curvam
esses cânticos crespos das cinzas cruas
escorridas e sem som,  salmouras de água doce

aos céus, lume/lusíada lanço um dardo... estilhaço..
me volta um cenário de pompa e virtude
venâncios venezianos nas sombras  quase tintas da noite
vasculham palcos e arrombam sedutoras falas de cetins e e rosas

adormeço, ainda, no leito da lua
em sua fatigada face quase crua
alheia ao sol e despida de rendas
(aquela por onde infantes e fardos
se debatem entrecruzados nas anáguas malhas
dessas memórias/ matizes meretrizes
de tuas parcas e falidas falas)

feroz é o valente acorde do vento
e sua ventania calma de ardis
e artimanhas arteiras fontes de

cruz e calor.


JANDIRA ZANCHI

5 POEMAS DE ITALO DIBLASI

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Argonauta


 Sonhei com uma cidade submersa
que desconhecia luz e era habitada
por estranhas criaturas fluorescentes
que sentiam fome e amor,
mas sobretudo fome, e adornavam
as almas com cantos de guerra e
silêncios rompidos à chibata
mas havia alma e isso bastava
porque na superfície nós não tínhamos
nem isso, e o sonho desdobrava-se
num turbilhão de imagens em
que eu via o amor ser inventado
e escurecer e as trevas eram tudo
e eu dormia e desesperadamente
sabia que ninguém viria coroar
minha agonia porque acordávamos
todos os dias e quem quer que
quisesse viver teria de saber
que aqui não se sonha, não,
não se sonha sem custo
e o meu custo, tão doce e terrível,
era a loucura daquela cidade
que já desaparecia outra vez
e a insuportável luz volvia
com a realidade e tudo
o que se podia fazer era secar
os olhos e observar o sol dormir
atrás do mundo




Um manifesto, nem isso


Hoje é o aniversário da execução
de García Lorca e se alguma coisa
mudou desde então, foi pra pior

eu estou na Central do Brasil
esperando que alguém me ligue
com uma notícia boa

não tenho vontade de voltar para casa
não tenho vontade de ir trabalhar
não tenho vontade de quase nada
e espero me apaixonar nos próximos minutos
há qualquer coisa de perverso em tudo isso
penso em Antônio Conselheiro
e em seu cadáver profanado
a santidade do mundo
é sempre mais perigosa
que qualquer diabo
uma vez o eremita me sorriu
em uma carta de tarô e desde então
tenho colecionado abandonos
ocorre-me que talvez estejamos
vivendo o apocalipse
ocorre-me que talvez sejamos
todos o anti-cristo
tenho profetizado o fim dos tempos
com uma vontade aguda
de que o mundo dê merda
e quando isso acontece
é quando estou mais feliz, eu me digo,
basta desse teatro - vamos ver
até onde eles estão dispostos
a levar isso aqui
e eles estão dispostos a levar
a coisa bem longe
desde que não tenham que fazer
acontecer com as próprias mãos
quando eu era pequeno a minha avó
matou um porco com as próprias mãos
a mesma avó que me limpava o rabo
e que agora não existe mais
admiro o silêncio forçado dos santos
o perigo mortal de um pulmão que respira
e agora essas crises de riso
que me acometem como o chorar
mas eu sou mais forte que isso
eu lhes digo
eu estou estudando a tristeza
eu sempre fui bom de estudar
eu sempre fui bom em ser triste
há dias em que sinto certo nojo
de ser homem
gostaria que todos menstruassem
para variar
às vezes recordo as pessoas
que amei e me pergunto se elas
estão mais felizes que isso
preciso logo colocar uma filha no mundo.

 Ao navio que partiu sem mim


Eros manda avisar
que não habita parlamento

Que o amor não é
uma social-democracia

Que onde dois são dois
a discórdia faz ninho

Que o livre-arbítrio
é a desculpa da apatia

Que o tirano e o escravo
são gêmeos siameses

Que o indivíduo é um aborto
iluminista

Que a Vontade se alimenta
de sangue

Que o mártir é publicitário

Que a sorte é uma navalha

Que a saudade é um labirinto


  
Oração a Quetzalcóatl
  

Eu queria ser o duplo de um Jaguar
   pra findar de vez o mundo
      outorgando-lhe a premissa
daqueles velhos calendários de pedra
              que diziam-nos da vida
            os ciclos
    e dos homens, a saudade
os nossos velhos calendários de pedra
      que resistem à sorte
para além de nossas vagas gerações
  e fazer deles morada
      de meu novo corpo-oráculo
   um oráculo de estômago e entranhas
proclamando a palidez dos dias
              em que tu
   observavas o inferno à distância
         enquanto eu me arrastava
                agrilhoado
      carregando-o nos calcanhares
           (o Inferno)
adormecido pela cáustica vingança
      das paredes bem pintadas
                        do cárcere
       em que nascemos
            tu, presa do corpo &
     eu, presa do tempo
para sempre solidificados num suspiro
              de pequena-morte

  

Melancolinear

  
Tenho os dentes
amarelados
e sempre que posso
mantenho-os todos
na boca fechada
sorrindo sem eles
estilo contido
e me envaideço
de minha proeza
porque não sorrir
nunca matou

ninguém




*    *    *



Italo Diblasi nasceu no Rio de Janeiro em 1988. Os poemas estão no livro “o limite da navalha” (garupa, 2016, no prelo).














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