Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live

"PUGILATO, SENTIDO LATO", MAIS DOS [VERSOS ALEXANDRINOS] EM ROCK'N'ROLL

$
0
0


NOSSO ROCK!






[ poema + show + vídeo + música
+ objeto + performance + porrada]


"Os [versos alexandrinos] configuram um profícuo encontro entre dois artistas múltiplos, uma conspícua viagem pelas veredas mútuas da música e da poesia (e vice-verso!), repletas de visualidade!" (Prof. Antenor Fronte, filólogo e semiólogo da Unifandro)








dois poetas-atletas frente a frente! um embate épico!

no corner direito: [tecnopoética], de Alexandre Dacosta!
116 páginas de objetos dramáticos e grafismos de ímpeto;
no corner esquerdo: CASA DAS MÁQUINAS, de Alexandre Guarnieri!
183 páginas de máquinas, muita graxa e aparelhos high-tech!
dois pesos-pesados!
dois monstros!
num triatlon!
num decatlon!
num ÁTOMO! (hã?)

levantamento de letras!
nado metafórico!
ciclismo de rimas!
pugilato aliterativo!
a poesia finalmente elevada à categoria olímpica!






O menino - Cinthia Kriemler

$
0
0
Ilustração: Florian Schmidt

São os olhos dele que não me deixam dormir. Os olhos opacos, estáticos, engessados, pousados na ausência. Eles não pedem, esses olhos. Não se movem em buscas. Sabem que seja nos arredores, seja na distancia do longe, o que há é o nada. Não, não é. Antes fosse o nada. Esse vazio que não acalenta, mas que também não dói. O que cerca esses olhos vazios é o tudo. O inalcançável e esfuziante colorido do tudo. Que não lhe pertence.
Ele apenas desistiu. Sabe que os vidros das vitrines foram feitos para promover o apartheid do pão. Ele sabe — aprendeu nas aulas de cotidiano — que lugar de menino pobre e preto é no sinal dos cruzamentos, nos montes de lixo, nos becos do morro, no papelão das caixas desmembradas em camas, na porta dos cafés pedindo um trocado e ganhando deboche. E limpa com cuspe o sangue do dedo que machucou na véspera. E cheira cola pra matar a fome que nem é de véspera. E não volta para o barraco pobre onde vive com a mãe porque lá agora tem um homem que faz a sua mãe de pasto, e que faz os filhos da sua mãe de pasto.
Ele não quer olhar mais nada. Não quer ver o que não pode ter. Nem quer ver o que incomoda. Como a piedade nos olhos da mulher que lhe trouxe comida. Foi ontem? Ou anteontem? Ela passou as mãos nos cabelossujos e emaranhados dele e sorriu e perguntou o nome dele e sorriu de novo. Depois lhe deu a marmita embrulhada num saco de plástico branco. E ele não aguentou. Sentiu o corpo esquentando, tremendo, se preparando para um abraço que não existiria. Mas existiu. Existiu, sim. E aí ela foi embora. Tinha mesmo que ir. Todos vão.
Por isso ele não quer mais ver. Não ia suportar outro sorriso. Não para depois ter que olhar novamente para a feiura das calçadas cheias de escarros. Ter que olhar para a garrafa de cola, para os pés descalços, para o dedo sujo de sangue que ele vai limpar mais uma vez com a saliva grossa. Ele não quer mais ver o sol que é amarelo como o dos desenhos dos meninos que ele viu no mural do pátio da escola. Viu pela grade. E achou bonito. E quis ter lápis de cor de ponta afiada para desenhar um sol para si mesmo. Para guardar no bolso do short surrado e iluminar o escuro do medo.
Ele não quer mais ver o que é bonito. Nem o céu cheio de estrelas, nem as nuvens gordas e brancas, nem os desenhos dos meninos, nem o sorriso da moça que acarinha os seus cabelos. Ver é sofrimento. Desejo de mais. E ele não quer; não pode.
São os olhos dele que me socam os sentidos. Até ontem, opacos, apáticos, tão cheios de renúncia. Hoje, dois buracos fundos de onde escorre o sangue ainda vivo que ele limpa com saliva. Dizem que furou com um lápis de cor. Para desenhar um sol por dentro.


Cinthia Kriemler é contista, cronista e poeta. Carioca, mora em Brasília desde 1969. Graduada em Relações Públicas e Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasília – UnB. Analista Legislativo da Câmara dos Deputados. Membro da Academia de Letras do Brasil – ALB/DF, da Rede de Escritoras Brasileiras – REBRA e do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal – Sindescritores. É autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (Editora Patuá, 2015); Sob os escombros (Editora Patuá, 2014) — selecionado por Edital de Chamamento para ser lançado na II Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada em Brasília; Do todo que me cerca (Editora Patuá, 2012); Para enfim me deitar na minha alma (projeto aprovado pelo FAC-DF em 2009 e lançado em 2010). E-books pela Amazon.com.br (Brasil): Contações (2015); Atos e omissões (2013); e Para enfim me deitar na minha alma (2013). Participa de diversas antologias de contos, minicontos e poemas. É colunista da Revista Samizdat, da Revista Biografia e do Portal Vânia Diniz. Tem textos publicados 

Mantém o blog Palavras abraçadashttp://palavrasabracadas.blogspot.com

Carlos Felipe Moisés: 3 poemas de Disjecta Membra + Convite para lançamento de Dádiva Devolvida

$
0
0


Um Tango

Não tenha pressa
                               fique
                                             mais um pouco
limpe
             os cotovelos
                                      : deve ser
o farelo
                  a cinza do agarro
                                                      (vá
saber!)
                  Feche os olhos
                                                ou não ouça
mais uma vez :
                              tengo ganas
                                                          de llorar
en esta tarde gris
                                Viu?
                                             Você já não sabe
o que é chorar (
                               nem parece
                                                       que era só
um tango)    
                        Que tal
                                           recomeçar?


****    **** 


Lua Gotejante

Uma lua gotejante esculpe
círculos cada vez mais próximos
mais distantes
na superfície rugosa
do espelho d’água.
O coração range
as gotas se adensam
os círculos se desfazem.

O pássaro minúsculo passeia
entre as ondas
à procura da aurora
e mergulha no olho do espelho
rumorejante.
Saber ele sabia
mas esqueceu
: o que sobrevém
ao crepúsculo?

Onde foram parar
as nuvens de outrora?


****    ****


Retrato

É só um retrato
          claro
instantâneo
em que o retratado
me retrata
para sempre.

A expressão
é de riachos
rumorejando longe.

Inútil completar
o meio sorriso
(terá pensado
o retratado) :
basta aguardar
que o retrato
           se cumpra.

Os avós o pai a mãe
o filho :
             todos
viraram retrato.

Agora sou capaz
de distinguir
o rumor de cada riacho.





Por encanto - Paulo Eduardo Gonçalves

$
0
0
Ilustração: Ruth Santis Cortis


Por encanto

Toca-me entre dois pulsos
enquanto ainda respiro
que a carne é matéria fugaz
e se desfaz no infinito.

Dá-me enquanto inda há tempo
pra olhos e toques de mãos
para voar contra o vento
e correr sem direção.

Isso-me enquanto aquilo
mata-me enquanto estou vivo.



Louva-dia

E vai fugir
desligar na minha cara
e dormir sem dizer nada
deixar tudo pra amanhã.

Quando vai rir
aparecer alegremente
me contando a sua vida
e aventuras sexuais.

E eu que não tenho ciúmes
vou apertá-la em meu peito
e perguntar meio sem jeito
um ou dois detalhes mais.

Pois quem sabe o que me resta
é ser tal tipo de amigo,
que a maior picardia,
não ruborize-lhe a tez.

Pra conservá-la comigo
noite-a-noite, dia-a-dia
aguardando paciente
certa hora, lugar e vez.



Manias

E trabalhou
e se afogou,
em delírios temporários
prescritos de antemão.

E se esforçou
e se esqueceu,
de dar ouvidos às vozes
que cria escutar então.

Deitado de ponta cabeça
no sopé da própria cama,
sentiu-se um breve momento
antes de adormecer.


Ilustração: Ruth Sant Cortis


A mulher aranha

Amo suas pernas varicosas,
as primeiras pernas que vi,
as primeiras que percorri,
mapeando veias estanques.

Emoção fluida represada.

Amo seu ventre flácido,
contêiner elástico,
absorvendo.
Distender contínuo,
digerir eterno.

Fome insana,
sede de vida.

Amo suas nádegas,
casca de laranja a muito desbagaçada,
chupada,
usada,
e jogada fora.

Amo seus seios estriados,
riscos de teias de aranha,
marcas do íntimo na pele.

Traços das tramas que tece.

Amo enfim esse corpo,
perfeito reflexo da alma possessiva,
revelador da mente da aranha,
que espreita,
e num momento de distração,
capturou-me jovem,
e me suga,
me suga,
e me suga...



Gemas

Que as gemas
dos meus ovos
São que te engordam
o zóio.



Voo pelo espaço espesso

Voo pelo espaço espesso
rumo a meu destino errado.
Voo,
e não vôo sozinho.
Voo em você mergulhado.

Voo em vozes,
voo em urros,
nas ondas que os urros fazem.

Voo e venho e vôo e volto,
até tudo se acabar
pois já dizia o ditado:
"Se voou tem que pousar."

E amenizo minhas dores
voando,
pois é mais fácil
dar asas às ilusões
em embalos de impulso tátil.



Paulo Eduardo Gonçalves, 37 anos, paranaense de Ponta Grossa. Pequenas premiações e participações em antologias locais. Ativo na internet desde 2002, com um livro de poesias auto-publicado e um e-book que chegou a estar entre quatro mais baixados da Amazon Brasil na categoria poesia geral.
  

3 POEMAS DE NATHAN MATOS

$
0
0





[ponto]

o mundo
é
apenas uma distância
  





 para Orides Fontela

a cada minuto
a pedra se insere
em si mesma se perde
enquanto a terra
absorve-a
em plena alba
  






se fosse a culpa
de viver
que me mantivesse
em pé
eu já seria uma base
engessada de 
mentiras




Imagens: arte de Rook Floro



*   *   *




Nathan Matosé editor, responsável pela criação do portal Literário LiteraturaBr. Um dos fundadores da Editora Substânsia. É um dos editores da Editora Moinhos. Já realizou projetos literários como a Revista Substânsia e o Fortaleza XXI. Em breve, lançará seu primeiro livro de poemas. 








POEMA DE FÁTIMA TELES

$
0
0








EXONERAÇÃO DO AMOR


Foi saindo de mim
De forma lenta e suave
Por entre as veias
Do meu ventre coronário
Sinto o desejo perdendo-se
Está sendo carregado
Pelos ventos brandos
Que te levarão
De encontro aos teus rios
Que desaguarão
Em outros mares
Em muitos mares

Segue...

Busca nas águas que eleges, elegeste
A tua felicidade


Segue...






Imagem: Amandine Van Ray


*   *   *



Maria de Fátima Araújo Teles é escritora e poeta. Nasceu em Brejo Santo, Estado do Ceará, Município banhado pela Chapada do Araripe. É Assistente Social, Pedagoga e Historiadora, com Especializações em Direitos Humanos e Psicopedagogia Institucional. É autora do livro ALUMBRAMENTO, que teve seu lançamento na FLIPA, Feira Literária do Pará, no ano de 2015. Membro da Academia de Letras do Brasil, Estado do Ceará.






PUGLIESI SOBRE WEINTRAUB + 6 POEMAS DE "TREME AINDA"

$
0
0







Por um leitor impotente:
ao redor do novo livro de poemas de Fábio Weintraub


por Lucas Bento Pugliesi

I – Uma comunidadezinha

Pádua Fernandes em entrevista a Tarso de Melo comentou aspectos interessantes no que tange às condições de autoidentificação e circulação da poesia contemporânea. Em tom despretensioso, observa o delicado papel ocupado pelas mídias sociais na “hiperexposição de uma performance do ‘eu’”, de modo a dar vazão ao desejo recôndito do poeta em se tornar mercadoria:

Dessa forma, vemos, confirmando o exame de Sérgio Alcides, uma pletora de páginas para divulgação de livros e coisas análogas que se esgotam em si mesmas, isto é, tratam apenas de si, mônadas pretensamente autossuficientes, não formando nem mesmo comunidades de leitores porque, na verdade, mantêm-se alheias à literatura, campo que não é composto de uma só voz… Dessa forma, esses poetas veem frustrado seu sonho último, que é o de converter-se em mercadoria, além do menos, fungível. (2015)

            Quase como se as redes sociais reforçassem os vetores de uma já conhecida retórica do escambo de influência que atravessaria – mesmo antes da internet – resenhas, orelhas de livros e convites para lançamentos refinados regados a vinho e salgadinhos – não esqueçamos a crise.
Apesar de afastamentos – e creio que o próprio Pádua ficaria muito insatisfeito com o que direi –, seu pensamento se coaduna ao que afirma Iumna Simon (1999) há alguns anos acerca da “retradicionalização frívola” da poesia, isto é, da referência de letra que não a ultrapassa em direção ao real, dessa literatura não mimética que mobiliza somente o acervo da cultura como espécie de inventário, de certo modo também códex de “páginas pretensamente autossuficientes”.
            Sem me alongar no reexame das poéticas visitadas por Simon, como as de Carlito Azevedo, Eucanãa Ferraz e Cláudia Roquette-Pinto, penso que talvez seja produtivo pensar – em épocas de crise– nos possíveis significados que se manifestam nessa parcela da poesia contemporânea. Como Pádua bem diz, esse conjunto de práticas autocentradas mostra-se incapaz mesmo de produzir a comunidade de leitores que, desde o simpósio grego, é condição de possibilidade da poesia no ocidente. Algo bem expresso na seção “Os Aliados Substanciais de Sublunar (AZEVEDO, 2001, p.49-50) que, já pelo título, parece buscar uma aproximação a esse outro essencial que o atravessa por inteiro. No poema “Do livro das viagens”, o encontro entre Liliana Ponce e “a garçonete com cara de flautista da Sinfônica de São Petesburgo” só se faz possível dentro do âmbito da hipótese, de modo que a comunhão entre pares realiza-se somente pela via do devaneio (e a relação entre sonho e desejo é aqui evidente). Liliana Ponce retorna a seu local de origem e o encontro não ocorre; a comunidade fictícia não se dá no aqui e agora da oralidade, mas por via da letra, da referência literária, possível unicamente através da ficcionalização, dado o fracasso – ainda de letra – do real. Como se a comunidade e seu impossível constituíssem o nervo da seção do livro citado. No fecho, o encontro existe meramente na decodificação das referências levada a cabo pelo leitor culto projetado. Ao enunciado, colam-se a dúvida e a incerteza acerca de um leitor dessa poesia em âmbito contemporâneo.
            Mas, a despeito do discurso catastrofista de alguns acadêmicos e poetas, a questão não parece se direcionar tanto para uma comunidade de leitores ausentes, de fato. Contesta a hipótese, a figuração entre best sellers recentes de nomes como Paulo Leminski e Matilde Campilho. Ainda assim, como mostra Pádua, do ponto de vista dos lamuriantes, a “barbárie” permanece, afinal não se lê o que deveria, sempre é preciso ler outrem, sendo o outrem uma repetição (e aqui sem muita diferença) do mesmo arquétipo de eu. Como se essa cultura livresca (e, agora, cibernética) fosse incapaz de responder a algo diferente de si. A resposta parece se coadunar à ficção do poema de Carlito. Curiosamente, os paladinos do livro não leem.
            Entretanto, por mais estranha que pareça tal formulação, a sentença não é exatamente contraditória dentro do âmbito da comunidade. Pensemos a comunidade enquanto extensão de uma relação de philia, ou seja, enquanto contínuo de resposta entre pares. Faz-se condição mesma de existência que, para enunciar, responda-se a algo; a implicação nesse imperativo da resposta parece advir do outro ou, em outras palavras, da anterioridade assimétrica (DERRIDA, 1993) que mobiliza o eu antes que esse possa reivindicar uma posição de autonomia. Nesse ato, como nos mostrou Derrida, estão contidos tanto uma potencialidade quanto uma atualização, tendo em vista que no momento em que alguém enuncia algo, o enunciatário já inicia o processo de resposta pelo próprio ato empírico de prestar atenção, ao qual se agregará, em virtualidade, uma resposta factual (idem, p. 363-4).
            Desse modo, essa pré-comunidade, isto é, esse rastro de comunidade no qual alguém responde a algo para outro alguém, contém em si o marco embrionário de formação da philia que é, justamente, essa “escuta” de teor compulsório.  Derrida nos fala ainda de dois tipos de philia: 1) o “amigo” que escuta, participante do mecanismo já descrito, é “outro de nós mesmos” (p. 381); 2) o “amigo” que, ao escutar, vem interromper a dinâmica narcisista do enunciar do eu para o eu tornando-se, deste modo, um terceiro, espécie de testemunha que valida e possibilita que o discurso não recaia no vazio (idem, ibidem). A partir da análise de ambas, conclui Derrida que a oposição, na verdade, esconde uma complementação. Ambas são regidas pelo imperativo de resposta que tentamos descrever, espécie de “lei” primária do discurso: “Essa lei não me comanda a reconhecer a alteridade transcendente do outro que, só pode se manter heterogênea e singular, justamente, ao resistir à generalidade inerente à própria lei?” (idem, p.381-2)[1].
            Tem-se, desse modo, aporia dessa alteridade que permanece inacessível, dados os métodos (a lei) que orientam (em sentido estrito) a relação de philia. O caminho tomado por Derrida nos leva a pensar que a busca por esse outro resolve-se, inescapavelmente, no encontro com o mesmo. A comunidade idealizada atualiza-se, enfim, no regime ególatra das “curtidas” de Facebook. Através dos meandros performativos do “Eu” que se autopromove e da ilusória recepção de outros “Eu”s. que irresponsavelmente endossam essa promoção, cria-se um descompasso entre a harmonia estabelecida dos pequenos grupos virtuais e o ermo que é o fora, espaço do dissenso. Ao ampliarem a noção do privado, as redes sociais esticaram o simpósio a murais nunca dantes navegados, processo que, ao incidir sobre uma rejuvenescida poética do mesmo, conduz-nos novamente ao falso “Nós” que só existe enquanto reiteração de um mesmo “eu” ficcionalizado. O inventário de referências das tradições descrito por Iumna expande ainda a dinâmica: as figuras canonizadas como que garantem pela letra (quase “título de posse”) uma filiação que, em impulso, resguardaria do esquecimento o poema que as invoca; em época de uma produção múltipla e valores sempre relativos, multiplica-se também a necessidade de resguardar; afinal não há pista alguma do que perdurará, aspecto muito bem ilustrado pela rotina da selfie que eterniza todo e qualquer momento capturado a esmo[2]. Nesse sentido, essa poética da selfie é só outra decorrência do falologocentrismo cujo mais novo emblema é o belo dedão azul apontado para cima.

II – Treme ainda

            Se como observado por Simon (e balizado, mas não contestado, por Pádua) a referência ao nome (esse outro a quem e perante o qual se responde, essa lei - nomos) é dos procedimentos mais corriqueiros na retórica da virada do XX para XXI; e se tal procedimento pode, de fato, ser interpretado como a busca pela philia, por uma comunidade idealizada que se encerra na poética do mesmo, conforme esboçado anteriormente; então, nesse contexto, Treme aindaé um livro peculiar.
            As montagens imagéticas configuram retratos rebaixados do isolamento; a reflexividade lírica recua em direção, talvez, de um Drummond da Rosa do povo, na medida em que dialoga com algumas questões concernentes à problemática do leitor. Aqui, entretanto, conforma-se somente a busca pela abertura – o fechamento já está dado. A paródia da Flor e a náusea, “Hibisco” não chega nem mesmo a exaltar a qualidade mínima da flor que não é mais flor, é claro, mas um quase dejeto “que as pombas não bicam/e a chuva não apodrece”. A voz não mais aponta àquela flor em meio ao tráfego, não mais conclama uma comunidade a se erguer ao redor do monumento mínimo. A flor aqui não é flor e nem dejeto, não é nada digno de nota, mas ainda assim, constitui matéria do poema. Também não é rosa, jasmim, lírio, cravo funéreo, é hibisco – bom pra emagrecer. Também não nasce: “Na rua...”, o locativo que abre o poema traz um painel inalterável ao qual só cabe a descrição; distante também do flâneur que ao caminhar pelo espaço transforma-o pelo percurso do olhar. Apenas na rua, estática, desprezada, aspecto que, curiosamente, é acompanhado pelos ritmos do poema:

confusão de vermelhos
raiados de branco
qual paz ou gordura
fechando o canal (2015, p. 19)

            Excetuando-se um verso na primeira estrofe (o último) e outro desta segunda (o primeiro) há um jogo sutil com as redondilhas maiores e menores em cada seção, desestabilizado por versos que se comprimem e se alongam; a redondilha, forma mais popular da tradição que fulgurou nas cantigas, nos pastiches do XIX e hoje, em alguma duração no cordel, retorna aqui para atribuir poeticidade ao extremo do abjeto que nada mobiliza. Mas a estrutura não se mantém e a última estrofe volta à irregularidade. A lógica rítmica acompanha o ritmo da flor que é quase algo, quase remonta uma tradição, mas não chega a isso. A comunidade almejada na Flor e a náusea não se forma; em outro poema, conta-nos Weintraub de um “arremedo de manhã/sem galos” (idem, p. 32).
            Hibisco forma par com outra paródia “Assento”, agora dos “Amantes submarinos” de Murilo Mendes. Reitera-se aqui certa obsessão do livro pelo sumariamente desprezível, os restos, aquilo que deve ser eliminado e, por alguma razão, não foi, de modo a ser plasmado na forma de poema. Nos versos em questão, as criaturas submarinas de Murilo são feitas de fezes e papel higiênico; e a borboleta “azul” não adeja, não pleiteia mais a potencialidade de ascese, o barro está “contra qualquer hipótese/de asa ou metamorfose”; o único destino desse ecossistema é a descarga, que também não vem; mais uma vez a estagnação contra a mobilidade do locus amoenuscriado por Murilo no qual se faz possível um encontro. O “tu” esquiva-se: é fascinante, em termos estilísticos, o quão ausente é este “tu” no livro. Se aprendemos que a lírica é domínio do “eu”, este só existe quando se dirige a um “tu”, mais uma vez, a testemunha que impede que se percam, no abismo, as palavras; o mecanismo essencial do discurso. Os poemas de Weintraub surgem, em contraponto, como fragmentos de discursos, como estilhaços, cacos emudecidos entregues a ninguém; a forma como que cristaliza um não poético. Quando surge um “você”, no poema homônimo, este está substantivado, deslocado da posição de receptáculo para objeto do discurso. À ausência do tu se soma a ausência de índices, se comparecem aqui Drummond, Murilo e, de relance, João Cabral, voltam como outra coisa, em termos de responsividade, mas não uma responsividade automática evocada pela transposição para o ambiente poético do “nome”. Os nomes faltam, ficam as coisas, ou quase isso.
            Curioso o procedimento da referência sem aspas, da alusão que perpassa, espécie de falar em língua diversa, com voz diversa. Nos tempos da problematização intensa sobre o lugar de fala, Weintraub não tem pudores (para o bem e para o mal) em lançar mão da performance, de outrar-se, em encarnar a voz da alteridade. Uma plêiade de poemas do livro se engendra nesse átimo em que a fala efêmera de alguma personagem é capturada no quebrar dos versos. Como a fala do socorrista, em “Emergências”, que evoca em inventário de tecnicidades, algo de uma meritocracia do próprio socorro, a retratar a iminência da morte que ainda exige vontade – “as emergências são muitas/os recursos, escassos/fatal o desperdício/a vítima precisa querer” (idem p.28); ou como a admoestação do cobrador de ônibus em “Catraca”; a narrativa da relação da esposa com o marido doente que beira o abuso em “Pensão”; o elogio da menopausa extraído da boca desventurada de uma senhora em “Plenitude”. Quando quem fala pelo poema não é o outro, o poema fala sobre essa alteridade, mas muito de perto, quase de dentro do corpo, mais do que fluxo de consciência, fluxo de fluídos.
            Dos ca(u)sos mais trágicos trazidos por essa voz está o da confeiteira que virou o óleo quente sobre o corpo, conforme se lê no par “Obrando” e “Toda pele”. O relato que adentra o grotesco – “foram tirar a roupa/veio junto toda a pele” (idem, p. 69); “na UTI já retiram/toda a pele estragada/é funda a lesão, expôs o nervo” (p.68) – como que traz um desfecho “remediado”, quase como não desfecho, as posições iniciais se mantêm ante ao horror:

a família não processa:
ás custas da falecida                                   
não quer sair da penúria
Em outro momento:
ninguém tem culpa
o patrão é bom
e os irmãos por ela oram

deus está obrando

            Não temos acesso à interioridade da mulher despelada, nem mesmo a seu nome. A história nos é contada de um lugar incômodo: como no restante dos poemas anteriormente citados, deparamo-nos com um átimo do cotidiano – grotesco, mas exatamente por isso, talvez mais verossímil –, recorte no qual os interlocutores já estão dados, ainda que ausentes. Discursos que se endereçam a outro público, que não nós que lemos, mas àquele originário do contexto enunciativo recriado. Dessa forma, os poemas surgem como fragmentode um cotidiano plasmado no qual não podemos interferir. Meras testemunhas de um quadro que não nos pertence – alteridadecompletamente inacessível. Nem a imagem objetiva de um lado, nem o verso meditativo de outro. Discursos trôpegos deslocados de sua enunciação original para a catalogação em livro. Para uma comunidade leitora acostumada à identificação e à posse, esse corpodespossuído do outro que se enuncia surge como um entrave. Novamente, não estamos mais diante daquele “eu” que observa da janela confortável por um lado ou do arquétipo do caminhante solitário, por outro. O poeta como que recorta essas figuras num álbum, cada poema é uma nova colagem que deve ser contemplada em seu horror de modo a produzir a aporia da angústia.
            É o pavor dessas imagens inacessíveis que fazem tremer. Não há diagnóstico possível, análise, síntese ou superação. A matéria representada resguarda distância incomum com o leitor, insisto, espécie de figura excessiva, inadequada, como se testemunhasse algo que não devesse, que não foi a ele endereçado. Treme ainda suscita a impotência perante a imagem que, sempre opaca, resiste.
             O campo semântico da impotência, ainda mais se pensado no sentido sexual, arrasta-nos para as redondezas das figuras inclinadas que se multiplicam por todo o livro. A inclinação se mostra no doce liquefeito que escorre da dentadura decrépita de “Pudim”; no desamparo da mão que busca apoio sob o viaduto em “Alavanca”; no sêmen de “Delével” que sob a ação da gravidade penetra o lençol, as molas do colchão, o pinho da cama; no movimento dos olhos que se abaixam em direção à prótese “cuja troca em vão posterga” (p. 40 – “A marcha do progresso); o reflexo (ou o próprio rosto) que se dissipa no rodamoinho de “Ralo”.
            Este olhar que se volta ao baixo do corpo (social e fisiológico, cujos limites se esvaem) como que se torna ignorante do céu que, no conjunto do livro, não passa de um elemento vestigial. Aparece em totalidade apenas em um poema, “O céu que nos protege”, no qual é vislumbrado, por uma velha recurvada, como mero reflexo nas poças de água suja que se acumulam na rua mal pavimentada. Outro céu está “Em um grão de arroz”, desta vez, um céu limitado por um complemento: “céu da boca”, um céu interior. Há o céu de “Orgulho” – “o céu não caí do céu” – que emula, a partir da fala popular, um céu imemorial e inatingível. Em “Caroço”, sabe-se cabalmente que “o céu terminou”.
            Nunca se configura céu inteiro para se contemplar: em “Embaixada”, ao modo de uma verdadeira distopia digna de Orwell (em especial em sua recriação no filme Brazil de 85, cujos painéis publicitários na autoestrada impedem que o motorista possa enxergar além), o céu sobre o corpo que treme no meio-fio está bloqueado pelos outdoors– “doe sangue, doe órgãos/mantenha a cidade limpa” (p. 30) –, a invasão da linguagem publicitária, simples, rápida, tão esterilizada quanto a mensagem que porta, apenas realça, por contraste, a sujeira do chão e daquele corpo. Como uma tampa, o outdoor recobre o céu, mais do que isso, barra a vista. Mas em Drummond e Baudelaire se têm notícia do céu, aqui a cena finda no outdoor, o céu está totalmente inacessível. A linguagem publicitária, os transeuntes insensíveis, o meio-fio, o corpo convulso, tudo jaz em contínuo. Nenhuma luz recai do alto. Não há transcendência. Ainda pior, não há exterioridade qualquer à cena narrada – e essa proposição interpretativa se pode estender ao restante do livro.
            Ora, mas é justamente à exterioridade que pertence o espaço do leitor que, de fora, constitui a comunidade com o enunciador, de modo a atribuir sentidos ao enunciado. Como tentei apontar, o texto desconstrói essa relação tão essencial de philia nos mostrando quadros inacessíveis que se fecham hermeticamente, não pela linguagem – transparente ao máximo –, mas pela enunciação. Essas cenas mantém sua íntima relação de rastro com o cotidiano que evocam; as personagens se dirigem a interlocutores ocultos, mas presentes, sem os quais o diálogo original não poderia se dar. Em momento algum, no fechar das cortinas, confundimo-nos com esses interlocutores. Sente-se a tensão dessa superfície que não nos interpela e nos cala. O silêncio das linhas ausentes das respostas que gerariam os versos de “Quietinho” – “fica quietinho, fica/não posso andar/nem ver tevê/nem responder a você/que é a coisa mais linda/não escreve agora/depois você escreve/quero fazer xixi” (p. 15) – de modo algum se confunde com nosso silêncio perante o texto. A cumplicidade fiduciária está rompida, a comunidade não é possível, ao cabo, o poeta nos entrega sua própria imagem planificada, exterior e inacessível que endossa o retrato da mudez:

não sei se respondi à sua pergunta
de todo modo agradeço
o aplauso dos que não me ouviram (p. 18)

            Recuperando o mote de encerramento de tantos seminários esvaziados, somos mais uma vez confrontados por esse discurso que se dirige a outrem. Desse modo, ao romper na forma do livro, numa clivagem dolorosa, com as próprias condições de possibilidade da anterioridade assimétrica que geraria tal resposta – assim ou assado – do leitor, Weintraub desafia a poética do mesmo, da autoindulgência, da autopromoção, de modo a radicalizar o projeto de uma poética do outro, cujos sinais sobrevêm do interior da clausura das imagens que nos rechaçam. Na era desencarnada da poética da selfie é revigorante encontrar uma poesia que treme ainda.


Agradeço especialmente a Pacelli Dias que participou inteiramente das reflexões que culminariam no presente ensaio.




REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Carlito. “Aliados substanciais” In Sublunar. 2ª Ed, 7 Letras, 2001, p. 59-60.
DERRIDA, Jacques. The politics of friendship. Translated by Gabriel Motzkin and Michale Syrotinsky with Thomas Keenan. The Johns Hopkins University Press: American Imago, vol 50, n 3.  1993, p. 353-391.
FERNANDES, Pádua. Sobre poesia ainda: Pádua Fernandes. In: Contra tanto silêncio 14 de julho de 2015. Disponível em: https://tarsodemelo.wordpress.com/2015/07/14/sobre-poesia-ainda-padua-fernandes/ Acessado em 20/04/2016 às 03:17
PÉCORA, Alcir. A musa falida: A perda da centralidade da literatura na cultura globalizada. Revista Sibila, Ano 15. 06 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://sibila.com.br/critica/a-musa-falida/12349 Acessado em: 20/04/2016 às 02:55
SIMON, Iumna. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. Novos Estudos, CEBRAP, número 55, 1999, p. 27-36.
WEINTRAUB, Fábio. Treme ainda. 1ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2015.
   


[1]Versão livre para o português do texto “The politics of friendship”, referência completa ao final.
[2]Sobre isso, ver o impecável texto de Alcir Pécora, “Musa falida” (2016) in Sibila, Revista de Poesia e Crítica Literária, disponível em http://sibila.com.br/critica/a-musa-falida/12349.      



*   *   *


SELETA DE POEMAS
DO LIVRO "TREME AINDA",
DE FABIO WEINTRAUB


hibisco


na rua a flor amassada
parece um naco de carne
que os cachorros desprezam

confusão de vermelhos
raiados de branco
qual paz ou gordura
fechando o canal

um naco de carne
impróprio a vaso ou canteiro
despojo que as pombas não bicam
e a chuva não apodrece





assento


afogada na resina
do assento sanitário
sobre o dejeto flutuante
(castanho peixe
entre algas de papel higiênico)
a borboleta azul não adeja
conquanto encubra a visão
do barro que se despede
(lama de nossa lama
nós mesmos sem sopro)
contra qualquer hipótese
de asa ou metamorfose





emergências


caso esteja consciente
a vítima precisa querer o socorro
precisa querer o resgate

precisa querer a tala
o colar cervical
o monitoramento dos sinais
do segundo coração

a vítima precisa decidir
se agoniza ou desencarna
já na reta de chegada
no pódio da despedida

por isso vou logo avisando:
as emergências são muitas
os recursos, escassos
fatal o desperdício

a vítima precisa querer 





obrando

para celita alves pereira dos reis


fritava sonhos na padaria
meio tonta, adormecida

sobre o fogão, vertigem:
o tacho virou de borco
o óleo esfriou no corpo

na utijá retiram
toda a pele estragada
é funda a lesão, expôs o nervo

ninguém tem culpa
o patrão é bom
e os irmãos por ela oram

deus está obrando





alavanca


sob o viaduto
bolsa aberta
saia furada
e as sandálias
que arrasta à procura
de um ponto de apoio

mãos estendidas em busca
de algo para se escorar
solidez que a alavanque
acima dos anos e da vertigem

hipótese de balão
neste arremedo de manhã
sem galos





o céu que nos protege


tira o penhoar e vem arrastar
os pés fora do quarto
parou de chover há pouco
o céu é sujo nas poças

a vizinha de andador
te aguarda no meio da quadra

com bico de papagaio
eternamente curvada
ela só sabe do céu
por caridade das poças

amanhã não caminharemos
fará frio ou calor
e fecharão a calçada
(da varanda contígua
alguém terá se atirado)

mas hoje é nosso o passeio
seguimos no arrasta-pés
lentos, desincorporados

entre estilhaços de céu






LEIA MAIS POEMAS
DE FABIO WEINTRAUB

 >>>>>AQUI <<<<<



*   *   *





Lucas Pugliesié mestrando em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP, pesquisando com afinco as relações entre poesia e comunidade, com particular interesse na produção brasileira.













Fábio por Pádua Fernandes, 2010.


Fabio Weintraub é poeta e editor, doutorando em Letras pela USP. Entre outros títulos, publicou Sistema de erros (1996), Novo endereço, Baque (2007) e Treme ainda (2015). Por Novo endereço obteve o Prêmio Especial Casa de Las Américas em 2003. Saiba mais sobre este autor aqui (wiki)aqui (germina)aqui (entrevista na germina) e aqui (antonio miranda).









                                    

POEMA DE MARIEL REIS

$
0
0





Um dos pés para dentro;
Ele não repara.
Pisa na própria sombra.
Segue em queda,
No alçapão dos passos.


..................Queda





*    *    *




Mariel Reis (Rio de Janeiro, 1976) é originário do limítrofe bairro carioca da Pavuna (vizinho à baixada fluminense), graduou-se em letras pela UERJ e integrou os conselhos editoriais das Revistas Confraria do Vento e Paralelos. Seus livros lançados são "Linha de recuo e outras estórias" (2005), "John Fante trabalha no Esquimó" (2008), "Cosmorama" (Poesia, 2009) e "Vida cachorra" (2011), este último com prefácio de João Anzanello Carrascoza e quarta capa de Paulo Lins.  Em 2012 lançou "A arte de afinar o silêncio" (leia aqui uma resenha); E-mail. 


GUARNIERI + GRINGOCARIOCA = 4 POEMAS DA "CASA DAS MÁQUINAS" [EM VERSÃO BILÍNGUE]

$
0
0





4 POEMAS DO LIVRO "CASA DAS MÁQUINAS" (2011)
PASSADOS PARA O INGLÊS
POR MARCO ALEXANDRE DE OLIVEIRA,
O GRINGOCARIOCA






switch

the central operation of this writing
guided from general gears, from the complex
control center (in the core, the code)
to the simple accessories of the chassis (from the hard
cover to the pages of some grammage);
clear here, a machinic grammar, box
of words whose concrete engineering fixes some
syntax, or other, reclusive, hidden,
below the physical typography of poems threaded
either to frames of pig iron, or to plates
of stainless steel; take the book within sight,
(reading is a gas), take it since,
in hand, such a device, book (the mystery is
in the brain of neurons, set to a password)
nobody knows, still, for certain, if, at the torque
of the key in the ignition, it will start or not.

  
                                                    
interruptor

o funcionamento central desta escrita
guiada desde engrenagens gerais, do complexo
centro decisório (no miolo, o código)
aos simples acessórios do chassi (da capa
dura às páginas d'alguma gramatura);
clara aqui, uma gramática da máquina, caixa
de palavras cuja engenharia concreta fixe alguma
sintaxe, ou outra, esta reclusa, oculta
sob a tipografia física de poemas rosqueados
ora a esquadrias de ferro sujo, ora a chapas
de aço inox; tome o livro ao alcance do olhar,
(a leitura é o combustível), tome-o pois,
à mão, o tal dispositivo, livro (é no cérebro
de neurônios o mistério, à senha), que
ninguém sabe, ainda, ao certo, ao torque
da chave na ignição, se ligará ou não.





1/one lightbulb

old is the light of the electric bulb: there’s a
threadof spiraled ellipses, vacuumsealed
under a thin glass campanula, whose radiance 
struggles to decipher the shadow, from the borders
of the gloomy living room to the corners and folds
of the nocturnal chamber. the electric lightbulb
is a complete candle, striating a constant
crepitation like a certain irregular star, which
is yellow; at one end of the oval
capsule (like a fig under the skin or
any other oblong segment lit from
within) there’s an aluminum screw attached
to the socket, almost the same as the single short
stem of a fruit.switched on, the seemingly burning
flame scintillates, seeps through the
unitary crystal of such a delicate dome;
however when the power is off (or disconnected),
it hides, dark under the fragile mask, its flame
sleeps, and disappears: almost f o s s i l i z e s.



1/uma lâmpada


é velha a luz da lâmpada elétrica: há um
filete d’elipses espiraladas, lacrado a vácuo
sob tão fina campânula de vidro, cujo relume
luta pela decifração da sombra, das bordas
do amplo salão nublado aos recônditos e dobras
do cômodo noturno. é uma vela repleta
a lâmpada elétrica, estriando um crepitar
constante de certa estrela irregular, que
é amarela; numa extremidade da cápsula
ovalada (como um figo sob a casca ou
qualquer outro gomo oblongo aceso desde
dentro) há uma rosca d’alumínio acoplada
ao bocal, quase igual ao caule curto duma
fruta, único. ao ligá-la, cintila, vaza a
flama que aparenta a queima através do
cristal unitário da cúpula tão delicada;
entretanto quando é nula (ou cancelada)
a conexão à rede de força, se esconde,
escura sob a máscara frágil, sua chama
dorme, some: quase se f o s s i l i z a.






2/two hard drives


double biconvex dragées,
silver, very cold, hard pastilles
inadvertently unattached
in full spin(discs), from a rattling
drum of liquid hydrogen;
were one of the sides flat
such exact fragmentswould seem
likeautomatic discharges, to which
must be added the fact however that
this apparatus is not a catapult

and it would never pose a risk to operate it
backwards, the notably fatigued mechanism
being of integralprotocolas
since the day of the incident it has been
impossible to derive the cause, perchance
determine the impact of such a lack,
of these two little jewels of logic;
whether it be the critical mismatch inside
a machinic labyrinth, or a factory
defect, whether sudden, human
error, or abusive use: the final
point in the course of physical wear.

   
  
2/dois discos rígidos


duplas drágeas biconvexas, de
prata, muito frias, pastilhas rígidas
inadvertidamente desprendidas
em pleno giro (discos), de um estrondoso
tambor de hidrogênio líquido;
tivessem um dos lados achatado
dir-se-iam disparos automáticos
estilhaços tão exatos, aos quais
soma-se entretanto o fato não ser
nenhuma catapulta este aparato

e jamais se suporia arriscado operá-lo
ao contrário, de íntegro protocolo
é o mecanismo notadamente fatigado
pois desde o dia do incidente não se
pôde apontar a causa, quiçá precisar
se fatal o resultado de tal falta,
destas duas pequenas jóias da lógica;
se o desencontro crítico no interior
de um labirinto maquínico, ou defeito
de fabricação, se erro humano,
abrupto, ou uso abusivo: o ponto
final no decurso do desgaste físico.
 





three gears

123

three gears wear out with the
work of engaging each others'
areas; like a leprosy,
when the gearing gags, the shortage
of oil enchases them in the case; three
gears wear out in the contact
with each others'teeth.

123

three gears disengage the
contract between their bearing s : they
bear off; like a lock,
in the contacts where they
engage, they are subtracted to the various other
parts of the clear machinery; rare each
one of its pieces, the casing not so original.

123

three gears wear out until
they stop engaging each others'
areas: they are unlocked, disengaged,
if they are a disaster, it is so that inert
they encounter not that of the classical machine but
this other, counter-clockwise work, alibi
for nothing: mere celibate habit.


  
três engrenagens

123

três engrenagens se desgastam no
trabalho de engatarem suas áreas: umas
às outras; como uma lepra entre elas,
quando o engate engasga, a escassez
de óleo as engasta no encaixe; três
engrenagens se desgastam no contato
entre seus engates: uns contra os outros.

123

três engrenagens se desengatam do
contrato entre seus encaixe s : se
desencontram; como uma trava entre
elas, nos contatos em que engatam seus
encaixes, subtraem-se às várias outras
partes da clara maquinaria; rara cada
uma das peças, a caixa nada original.

123

três engrenagens se desgastam até que
parem de engatar suas áreas, umas
às outras: se desencaixam, se desengatam,
se são desastre, é para que inertes
encontrem não o da máquina clássica mas
este outro trabalho, anti-horário, álibi
para nada: mero hábito celibatário.





LEIA O "CASA DAS MÁQUINAS"

[PDF ONLINE VIA ISSUU]



*   *   *


ALGUMAS IMPRESSÕES



"Li o seu livro com muito interesse. Creio que é o livro mais próximo da lição cabralina que li nos últimos anos. É, mesmo, uma espécie de exacerbação do procedimento. A temática é outra, é certo. A fixação na máquina e nas suas partes, que é o foco, é interessante e nova. Mas o procedimento da descrição "a-poética", no sentido da recusa ao lirismo [...] me pareceu algo como levar às últimas consequências as postulações que se podem extrair dos poemas metapoéticos de Cabral. Não tenho dúvida de que se trata de algo muito diferenciado na poesia contemporânea. Não é o meu caminho [...], mas isso não impede que reconheça as qualidades principais do livro, que para mim são o rigor da ordenação e a consistência dos procedimentos." (Paulo Franchetti, poeta e professor da UNICAMP);

*

"Meu caro Alexandre: confesso-lhe que, apesar da leitura aturada, não consegui metabolizar nem o sentido nem o funcionamento de suas "máquinas", muito embora o poema seja em si também uma máquina. Louvo-lhe, todavia, a experiência com a linguagem e outros recursos (aliterações, paronomásias, símiles etc.) próprios da expressão poética. Alguns de meus mais caros amigos (Mauro Gama e Álvaro Mendes, os quais já prefaciei) figuram em seu livro, e talvez o tenham entendido de forma distinta. Na verdade, pareceu-me que essas "máquinas" estão mais a serviço delas próprias do que da poesia, pelo menos como a entendo. E entenda: sou apenas um leitor, com as limitações naturais de qualquer leitor. Abraço afetuoso do seu Ivan Junqueira." (Ivan Junqueira (1934-2014), imortal da Academia Brasileira de Letras, foi um jornalista, poeta e crítico literário brasileiro [por carta, dez/2011])

*

"Tenho estado a ler os teus poemas [...]. Agradam-me bastante. Alguns deles fazem-me pensar um pouco num grande poeta francês de que gosto muito, Francis Ponge. Tal como ele (não diminuindo a tua originalidade) consegues tirar uma grande intensidade poética, a partir de uma linguagem descritiva, exacta, quase técnica–cientifica", dos objectos e das coisas. Para além disso agrada-me o ritmo rápido e encadeado, e o uso recorrente, bem-sucedido, da aliteração ( alguns exemplos: "se fatal o resultado de tal falta"; "quando o engate engasga, a escassez"; "pedra à perda"; "alpendre prenda. nem essa pedra") o que dá uma bela musicalidade e grande originalidade aos poemas. [...] Podemos dizer que a poesia de Guarnieri é uma poesia do objecto. Por meio de uma descrição exacta, linguagem objectiva, quase cientifica, dos objectos, [...] leva-nos a descobrir intensidade poética em lugares que nos parecem, ao primeiro olhar, despidos de poesia. O poema é neste caso uma identidade própria, uma construção, um corpo de palavras que ocupam um espaço e um lugar, o poema é um ser tão real como uma árvore, um rio ou uma pedra. Ele não imita, mas antes revela-nos uma realidade de que, à primeira vista, não nos apercebemos. Para além da linguagem precisa (por vezes podemos pensar em Francis Ponge, Williams Carlos Williams, ou João Cabral de Melo Neto) esta poesia destaca-se igualmente por meio do seu ritmo rápido, encadeado e onde predomina a aliteração, o que lhe dá uma grande expressividade musical." (Luís Costa, poeta)

*

"Caro Professor Alexandre Guarnieri, li o seu CASA DAS MÁQUINAS e senti um impacto muito grande, como há muito tempo não sentia: "impacto"é uma palavra pobre, que só diz uma pequena parte da surpreza e do prazer duma verdadeira descoberta - a dum verdadeiro poeta. Tenho já uma idade avançada para - pensava eu, erradamente - essas novas descobertas, no plano da poesia, da forma poética e da sua música, da maneira de usar as palavras como peças duma maquinaria (verbal e sonora), de tal modo que cada poema é um "mecanismo", um bloco de peças que "funciona", vivo à maneira duma pequena máquina, com seu chiados, guinchos, tiquetaques. Isso COM PALAVRAS, escolhidas pela sua valência própria, "engrenadas" umas às (nas) outras, dando a nítida - e assustadora - sensação de mecanismos em cego funcionamento, independente do fator humano, descartável ou aleatório. Lindo!" (Frei Bruno Palma, tradutor, dentre outros, das obra dos poetas Saint-John Perse e François Cheng, filósofo e teólogo dominicano)

*

"Rapaz, grande libroooo. fueda. o meu preferido: mineração. mas tudo foda. ouvi o ranger da máquina. arrojo da porra. [...] joão cabral ficaria orgulhoso [...]" (Xico Sá, jornalista e escritor)



*    *    *




Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online AQUI (via ISSUU).  Seu mais recente livro é Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014 [livro ganhador do 57o Jabuti]).













Da América do Norte ao Sul, o gringocarioca é uma figura anônima, híbrida e ilusivisionária, alter-ego de Marco Alexandre de Oliveira, escritor, tradutor, e professor radica(liza)do na metrópole pre-pós-moderna do Rio de Janeiro, ex-capital do Brasil. Email.

Conheça outros poemas do autor aqui (site) e aqui (blog).

5 poemas de Danielle Magalhães

$
0
0


com olhos arregalados e o corpo
voltado para frente ele não encara o horizonte
futuro de expectativas humanas o homem inventa
o dia do juízo por temor de enfrentá-lo o temor
o impele à ilusão de que ele ainda esteja
por vir quando o que se encontra é sempre
o homem se encontra já sempre no dia
do juízo todo dia final é já não esperar
pela salvação é já não ser soterrado
pela frustração da impossibilidade de
uma saída não há nenhum caminho
o que chamamos de caminho
a nossa hesitação o corpo vacila
a nossa concepção de tempo nos faz chamar
o juízo com o nome de último
em realidade se trata de um estado de sítio um juízo
sobre a própria linguagem quando não há mais
nenhum objetivo em jogo uma decisão quando a linguagem
nada comunica não há fim não há
no final uma sentença no tempo do fim tudo se direciona a
uma finalidade o fim dos tempos a espera
sempre igual enfadonha repetição a velha procissão martela
nos ouvidos a expectativa o futuro a redenção para além
do tempo e para além da vida e
assim morremos todos no hoje sem saber que hoje sempre
com olhos arregalados o último poema
com o corpo voltado para frente
ele encara todos
são o último poema o último
dia o poema o último é escrito
todos os dias



*
uma dimensão totalmente nova
de forma coordenada disseram a quem
a poesia lança a voz há uma interrogação
aqui um abismo na fratura há uma infinidade
na outra face da linguagem no mutismo 
de uma língua sem palavras o vazio há
quem diz dar vida ao vazio como quem dá forma
ao vazio para ser possível sobreviver mas
um vazio exposto ao qual não se dá contorno não se sabe como
o lápis não sustenta apenas um gesto assustadiço
de quem não consegue de quem já não pode de quem não
é de uma dimensão totalmente nova as agressões
em série disseram foi de uma forma coordenada cerca de mil os fogos
cruzavam o céu frio de colônia anunciando este novo ano quando uma onda
de agressões avançou contra os corpos de mulheres propagando uma nova dimensão em
toda nova dimensão há um morar sem palavras
na língua apenas um acenar da impossibilidade
de falar da impossibilidade eu gostaria
de ter começado com o mundo inteiro
que vai ao meu encontro no momento em que uma vida clandestina pulsa
dentro de mim no momento em que formas e cores invadem
o teto do quarto conforme o vento suga a cortina um caminho
inventado que se move em baixa rotação o amor nesses tempos como uma forma de
resistência o começo de tudo uma dimensão sempre mínima posição periférica nas coordenadas do mundo transitam os corpos que escorrem no dia a dia em todas as direções os corpos vão
sob o sol na areia no hemisfério sul todos os outros sob o sol
estendido na areia como tudo que cai 
e fica no chão o corpo do jadson morto na areia abre uma dimensão nós
que já produzimos tantas pausas em domingos ensolarados agora
não há entrave não há nada no meio do caminho a vida escorre
em deslocamento todas as vozes tateando um encontro qualquer um aceno um grito 


Ilustraçãa: Lenny Conil


há um abismo entre o que eu queria falar e
o meu modo de quebrar o silêncio
há uma ânsia de desistir
de falar desisto de procurar sua voz onde
está seu pensamento quando você está
a menos de um palmo de distância um abismo
minha voz e o que treme aqui quantas quebras
há nas suas mãos quantas línguas partidas quantas terras
arrasadas eu vou catando as sobras
dos seus desastres por aí por quanto tempo a vida
eu me pergunto por quanto tempo a vida é viver tentando
em busca à espera quem foi que te fez assim por que
eu sinto todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive
a resistência dos seus membros a postos
se virando sozinhos pela cidade enquanto
todas as suas vísceras foram deixadas em casa
onde você esqueceu de falar
não há nenhuma voz que te lança
no mundo você não está em nenhum lugar por onde você pisa
você continua em casa nenhuma voz te lança
no mundo você com seu mapa sempre sabe
por onde ir suas pernas nunca estão perdidas
sempre sabem como voltar não há resto nenhum
seu pelo mundo há todas as minhas partes entre
o que eu queria falar e o meu modo de quebrar há
um abismo em que caí tentando
procurar suas partes e não acho
acho que desisto morrerei
em casa escutando o silêncio



*
mas eu sempre espero
eu que quase nunca falo
que já ouvi de tantas bocas a minha mão trêmula os dedos procurando nós
de um jeito inconsciente como se o corpo quisesse
se livrar como se o corpo quisesse desistir escapar sair por onde ainda não
havia começado sair pelo primeiro buraco por onde você acha
que vai estourar por onde a pulsação do sangue chega antes de você
dando o sinal de que você já não está mais ali por inteiro ou 
é nesse momento que você está aí por inteiro todo o seu corpo
os seus músculos o seu batimento a sua pulsação a sua respiração
num esforço sobre-humano eu falo é como se eu quisesse me livrar sempre
tenho uma fábrica de desespero debaixo da língua por isso falo
tão pouco eu que sempre espero palavras



*
depois do fim do poema poderia ser o momento
em que finalmente sua voz entraria um sentido 
se articulando a formação de um abraço ainda não
totalmente encaixado a iminência de um abraço uma massa
de som precipitando o momento por onde
começaria entrando de qualquer jeito depois do fim
a possibilidade da palavra mas e se a palavra jamais for dita
a possibilidade da palavra nunca dita  como se
nunca tivesse começado como se começasse
por uma exigência por onde tudo se dispersa
enfim dizer e depois de dizer depois do fim poderia ser o momento 
eu tento escutar só há o vazio eu tento escutar o que poderia
estar se precipitando na sua boca as palavras nunca chegam porém
só há cansaço não há mais nada
a esperar rodopiar no vazio entre
paredes ocas quantas pessoas neste momento quem
não diz fala comigo um som qualquer 
como quem late como quem berra como quem mia até
desistir depois do fim o que se precipita no seu corpo por onde lateja
a fisgada aguda nos membros que parte
se desequilibra insustentável por onde você
não diz no fim jamais se termina apenas se abandona
é preciso dizer assim como quem desiste 
começar é um exercício de desistência
não há mais nada depois por onde você não diz vamos
como quem desiste



Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. Tem graduação em História (UFF), mestrado em Teoria Literária (UFRJ) e atualmente cursa o doutorado (Teoria Literária/UFRJ), dedicando-se ao estudo sobre poesia brasileira contemporânea. Publicou recentemente o livro de poemas Quando o céu cair (megamíni/7Letras; 2016). Edita, com Maíra Ferreira, a revista Oceânica (http://revistaoceanica.blogspot.com.br/). 

4 poemas de Luiz Walter Furtado

$
0
0
Ilustração: Alex Stefanescu





Primeiras vivências


Só a primeira garfada
acha vestígios da fome
Outras apenas repetem
um movimento sem nome

Só a primeira lufada
do vento me encontra insone
Outras apenas arejam
e alimentam meu sono

Só a primeira estiagem
resseca, mata, consome
Outras apenas dissecam
o que já é abandono

O novo sempre desperta
sobressaltos ou magia
Os instrumentos que cortam
fios intensos do dia.



Ave Maria


O barco
desliza no rio
Apenas, de meu,
o trajeto

Nas margens,
encontros estranhos
Apenas, de minha,
a memória

O tempo
prolonga a viagem
Apenas, de meu,
o alento

Imensa,
no fim da jornada,

a última hora.



Minotauro


Não devia ter escrito do que sinto
Nem deixado atrás de mim
este fio que, a esmo,
vai tecendo o seu próprio labirinto
Se soubesse que eu mesmo
era a fera a ser caçada

Se as linhas nada dizem do que sou
e eu... nem sei aonde vou.



A janela


A velha janela
que o tempo esvazia
em pós de cupins

Da velha janela
meus medos me espiam
por trás de camadas retintas.


Poemas de "Revelações", inédito.




Luiz Walter Furtado Sousa nasceu em 28 de janeiro de 1957. Médico pediatra na cidade de Ouro Preto, começou a escrever poesias há cerca de dois anos e não parou mais.Tem poemas publicados no número 12 do Caderno-revista 7faces e dois livros prontos aguardando publicação. Seu primeiro livro "Revelações" ainda está inédito.

SÉRIE MALDITOS: Francisco Gomes

$
0
0
Galinha degolada


NUMA ATMOSFERA FANTÁSTICA
(para Quiroga)


Numa atmosfera fantástica
– tarde fria
feito natureza-morta retratada,
a póstuma família suicida
observa
 – olhos atentos,
mudos,
congelados,
a galinha degolada no terreiro
que esperneia
sem bater as asas.
Horácio Quiroga
(após a agonizante cena do galináceo)
interroga:
“Perséfone, o que significa tal maldade?”
(seria um presságio? Um aviso? Um fato?)
Perséfone responde:
“Horácio, não há maldade.
A vida é a tua arte-sorte:
o câncer,
o cianureto,
o amor,
a loucura,
a morte.”


Exílio regressado para o lado de dentro


ENSAIO SOBRE O INEVITÁVEL ISOLAMENTO
(para David Ribeiro e Fernando Naporano)


Ao som de Astor Piazzolla,
meu ser se isola
com o espectro de Anne Sexton.

Divido com o mundo a desolação de Nick Drake,
o ardor dos lábios incendiados
num beijo de despedida.

Sei da fragilidade humana:
a necessidade involuntária de outro corpo,
de espaços,
de recíprocos.

Sei, sim, da fragilidade humana...
Por isso, contrario.
Permaneço ausência,
silêncio,
solidão.


Olhos perecíveis


 PORQUE OS FARÓIS TAMBÉM PERECEM
(para Dylan Thomas e Bruno Baker)


Ter o riso ornamental
diante da arte taciturna
(impetuoso mar delirante ante as cinzas do cadáver ancestral)...

Sentir a carne ainda ligada ao osso
– a pele: pomposo invólucro –
para tornar perverso o toque púrpura
no corpo.

Os olhos de peixe (como sem pálpebras)
arregalados,
contínuo susto,
pupilam os montes as curvas as tumbas
as lápides:

uns rezam
outros jazem.

Gélido refúgio ou ilusão do perene
                                                       , o envelhecer
                                                                              das tardes.



Testamento

TESTAMENTO
(para Isidore Ducasse e Evaldo Guimarães)


Os crânios amontoados no canto
esquerdo do olho;
clarão sobre os despojos
– desbotadas pétalas lacunares...

O que foi dito está dito.
Fica gravado:
tatuagem Inca,
nódoa no vento,
testamento vivo aos futuros mortos
dos que aqui
passados serão.

Os crânios...
Iluminação à Georges De La Tour
holofoteando o mofado canto (paredes manchadas)
– baú de couro
de lembranças
de pretéritos
de ossadas...


A flor


A FLOR QUE FITO
(para Tristan Corbiére)


A flor que fito
distante
no fátuo eflúvio do horizonte – fovismo,
sinestesia provocante-canto-de-sereia,
é abismo:
ilusão desnorteadora do tangível.

A flor que fito
errante
fincada na ferida a fogo a ferro
(lágrimas de sangue e um berro)
, pela pétala de brutalidade instigante,
torna-se
num sopro paradoxal
singular suave bela...
Tão bela essa flor mutante!

A flor que fito
descomunal
habita a visceral entranha:
tamanha é a força instintiva primal
fricção carne-carne
afago que arranha
fluido corporal.

A flor que fito
embevecida
também fede também cheira;
não é Amor
nem flor amarela.

A flor que fito
– nudez-mais-que-merecida –
não é Vênus de Milo;
só o sonho revela.


Poemas e ilustrações de Francisco Gomes.





Francisco Gomes, outrora Cleyson Gomes, (cor)rompeu a existência em 1982 no arcaico município de Campo Maior (PI), mas fixou raízes na provinciana Teresina (PI), onde habita desde os sete anos de idade. Iniciou as faculdades de História e Letras/português, abandonou ambas. Publicou os livros Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC - 2011), Aos Ossos do Ofício o Ócio (Penalux - 2014) e Face a Face ao Combate de Dentro (Kazuá - 2016).Tem poemas publicados em revistas, coletâneas nacionais, jornais, blogs, sites, muros etc. Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis. Adora fígado acebolado.





3 poemas e 1 desenho de Bruna Mitrano

$
0
0





.
na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
'morte ao rei!'
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre.
[o sino da igreja abandonada toca
todo dia na hora errada]

*

rasgava a camisa com os dentes
a raiva desnudada de pavor
e se deixava à beira -
como adestrar a mão convulsa?
o mijo morno entre as cobertas era como peitos grandes pietá
aninhava-se no turbilhão do que era
reconhecia
seu corpo
erguendo à boca a própria armadilha
e lembrava das frutas que nasceram podres
as que nasceriam pra sempre. 

*

o garoto corre de chinelo,
depósito de ânsias apreendidas ou
ainda a convulsão de quem nada tem.
olhos graves verde-mangue
na cara preta salpicada de farelo de biscoito.
o garoto tão pequeno já sabe andar de ônibus -
livrai-nos do mal, mãe, dá conta santificada de seus filhos
e o bebê carrega sobre a barriga redonda como se nunca tivesse saído -
sozinho:
um homem construiu sua casa com as próprias mãos.
demoliram a casa e ergueram um muro. 

*

"ANIMAL ADULTO", POEMA DE ROBERTO DUTRA JR.

$
0
0








de tudo tens que me cativa, animal adulto.
sois fronteira de impulso, brevidade e arguto
passo da relva açucarada para a fechada mata da cidade.

de tudo me tens, animal adulto,
funda palavras com seus gestos e o novo se assemelha
a um furor de olhos em centelha. eu te desejo e assim sua magia.

minha sombra transmutada rompe o voo dos arranha-céus.
vais na frente, sempre no alto, animal adulto. seus pés
apenas tocam o futuro, minhas mãos agora encontram o muro.

animal adulto, já sabes quem tu és.
fome consumida de reflexo, pensei meu nome e descobri seu eco.
sonhos contados, sonhos revelados, garras no seu corpo alado.

de tudo tens que me cativa, animal adulto.
ainda que a deriva assombre, rompe o muro, temos pressa.
poema e água eu levo, sou seu e assim meus absurdos.



Imagem: Ceslovas Cesnakevicius



*    *    *



Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.





Um poema de Micheliny Verunschk - tradução/inglês Ricardo Escudeiro

$
0
0
Ilustração: Running Buffet, Maria Rubinke, 2011




I
mataram uma menina
ali na rua
uma mulher foi uma mulher
mataram uma mulher
mais uma
uma puta era uma puta
teve o que mereceu
se era puta gostou
gozou
morreu

II
mamãe mamãe
um homem me bateu
seu soco de 300 quilos
sua pedra tacape seu punho
a 100 quilômetros por hora
não mamãe
nem doeu


III
deu no jornal
que a louca
sou eu


***


1
they killed a young girl
there in the street
a woman was a woman
they killed a woman
another more
a whore was a whore
nothing more than she deserved
if was a whore she enjoyed
and came
and died

2
mommy mommy
a man hit me
his 700 pounds of punch
his stone club his fist
65 miles per hour
no mommy
it didn’t hurt

3
stamped on the news
that is the woman
the crazy one


Fotos: Micheliny: arquivo pessoal da autora.
           Ricardo: Ana Elisa Ribeiro




Micheliny Verunschké autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Publica em 2014  Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), romance vencedor do Prêmio São Paulo 2015. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.








Ricardo Escudeiroé autor dos livros de poemas rachar átomos e depois (Editora Patuá, 2016) e tempo espaço re tratos (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, desenvolve projeto de mestrado com interesse em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.



3 poemas de Lucas Alvim

$
0
0
Ilustração: Brandon



Pinturas da cidade

O dia se fecha às luzes apavoradas
O concreto das faces dança no gelo
Tropas e embarcações fantasmas
A guerra de álcool e sexo,
Gritos, redemoinhos e postes no caos
Neons misteriosos de bruxarias eternas
Tudo se redescobre na brisa fria
Putas cultas e mulheres tão tolas
Os carros engolem as ruas
Com seu plástico metálico, pneu de asfalto
Os palhaços se aglomeram
As visões se atropelam
Tolos em volta do fulgor dos copos
E da falsa promessa terna
Somente interessa seu líquido escuro
Ofuscado por um simples levantar
E a cabeça procura...
Horizontes de todos os lados
Os perfumes liberam as peles: o cheiro
O ar tão colorido e palpável
O cachaceiro, o cachorro, os círculos tribais
Segredos da visão ébria
Desenhos mortais e moribundos
Perdidos na enchente de ar antigo
As figuras conversam comigo
Nobres e fugazes,
Contam histórias enterradas
Almas quebradas, livres para irem
Para um lugar onde nunca estive
Enquanto escoro meu estúpido corpo
Mas aceno e ergo sorrisos,
Feliz por partirem
A eterna seiva de vida
A todos nessa jornada,
De uma noite jorrada
Nos canais da cidade.
Esfrio os ossos e abro as pupilas
Estou bem no meio do caminho
Soa a ponte no corredor
Das pinturas da cidade.




Hermético

Em minhas pradarias
não praias
desceu a espuma láctea
do cheiro melancólico de um mar,
agora distante e subterrâneo.
O seu metal dura
dura mais que qualquer uva
mais que seu trilho
mais que sua ferrugem
mais que seu calor fosco
ombro de seu lombo
eco de sua ecologia
cristalizada.
É difícil rompê-lo
tento sujá-lo, para que não brilhe
em meus ossos desertores
transformando-me na terra
que me enterra
e me protege do nu frio
do céu vertical
de mil cavalos.
Basta me acostumar,
hirsuto e fastio,
me comprimindo
no comprimido
que juntou suas fendas internas
e removeu seu ar,
transpirando,
para tomar com um copo d'água,
antes de dormir.


Ilustração: Brandon


Noite

Deito,
no límpido lenço
passado pelo sol
que esconde
a maçã podre
do colchão de sua cinza.
Estou nas palmas enormes da noite
que se ergueram
e esqueceram a oração.
E elas seguram,
cabide de meus melhores panos,
o abacate verde de meu corpo
que jamais se envelhecera
com minha teimosia venenosa
com a cobertura do cromo de meu verniz
de chegar sempre mais jovem
no salão
do azul da noite
porque era lá
que me ouvia
com o palmo da terra
em minha orelha.
E me flertava,
apaixonado, por ela e dela.

Eu nunca quis me decepcionar.


Poemas de "Contorcionismo" (Editora Penalux, 2016).




Lucas Alvim, nascido em oito de abril de 1990 em Areado-MG, é um típico e pacato mineiro fã de Rock Progressivo que escreve poemas. Publicou Maço de Março em 2013, finalista no Prêmio Gloria de Sant’ana 2014, e em 2014 publicou Exergia, segundo lugar no Prêmio LiteraCidade jovem 2014 categoria poesia, ambos pela Editora LiteraCidade. Também possui participação em Antologias. E foi menção honrosa com o Livro das Evaporações no Prêmio LiteraCidade 2015, categoria poesia. Em 2016 lançou Contorcionismos pela Penalux.

Alpinismo - Maurício Cavaslheiro

$
0
0


DESERTO


S
O
L
                                                                            I
D
Ã
O




DESAMOR


a fila anda
aa fila and
da a fila an
nda a fila a
anda a fila
a anda a fil
la anda a fi
ila anda a f
fila anda a
a fila anda




SEDUÇÃO

Eu quero te dar um beijo
que
e
s
c
o
r
r
a
pelo queixo
até
te deixar
fora do eixo.




INSPIRA A AÇÃO

Poema
que não agride
não vale um verso.

Poema
que não agrada
é controverso.




CON JU(L)GAÇÃO

Quem me pretere
que seja
em pretérito perfeito
pois também
seu conjugar.



ALPINISMO



                                                                                     A
                                                                            AN  H
                                                                            T
                                                                  MO  N
                                                                  A
                                                         PO  D
                                                         O
ÀS VEZES É PRECISO             RO  T                                 
D                                              I
E                                      IN  G
S                                      T
C                             RA  A
E                             A
R                             P




INVEJA

Deus criou a relva
o homem, o asfalto

Deus criou as árvores
o homem, os edifícios

Deus construiu as aves
o homem, o avião

Deus criou mares, rios, lagos...
o homem, o esgoto

Deus criou a flor
o homem, a bomba

Deus criou a fidelidade
o homem, a libertinagem

Deus construiu o Amor
o homem, o avesso

Deus criou o Paraíso
o homem, o inferno.

Deus criou o homem
e o homem se imperfeiçoou .




OFICINA

desconserto
desconser
descon
des

to
serto
conserto



COLAGEM


ços. Não há nada que p
ermita o todo; por isso, de
sde que nascemos, d
escartamospeda

ços. No ir e vir, a cada p
asso, é preciso escolhe
r, do que foi provad
o, os melhores peda

ços. Nem sempre a op
ção é a mais se
nsata, mas é d
isso que somos feitos: peda




CASA DE BRINQUEDO


Sem dizer palavras,
sem tateios,
sem olhares desconcertantes,
ele a jogou na cama
e a usou
como boneca inflável.

Qualquer dia ela explodirá.




(DES) CULPA


Tem tanta gente que culpa
quem não tem culpa
como desculpa
pela culpa que tem.



 Ilustrações: Dariusz Klimczak




Maurício Cavalheiroé filho de Pindamonhangaba, cidade do Estado de São Paulo. Membro da Academia Pindamonhangabense de Letras é autor dos livros: Lágrimas de amor – poesia, O sapinho jogador de futebol– infantil, O estuprador de velhinhas & outros casos– contos, Histórias de uma índia puri – infanto-juvenil, O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte – cordel, Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda – cordel, entre outros. Possui blog: www.rastrosliterarios.blogspot.com

Pocket Requiem - Lacrimosa (por paulo guicheney)

$
0
0


Ela cai. Tenho medo. Minha condição primeira. Não é isso? Ela responde um sorriso no rosto: estou perdida.

Claro. Não poderia ser diferente. Temos signos diferentes. Sou de Touro. Você é de Touro. Não te parece a mesma coisa? Tenho um corpo que me abraça. Corpo morto nosso teu. Meu.

“Bebe-se porque Deus não existe”. Todos os dias bebo. E minha mãe, Marguerite, também tem o mar no nome. Bebe-se por vários motivos. Ou pelo menos eu bebo por vários motivos. E também tenho mulheres de todos os tipos por vários motivos. Bebo muito. E a cada lindo Dia-do-Nosso-Senhor-Jesus que passa bebo mais. Ainda.

Estou no inferno, A.

Bebe-se porque você olha seu celular e na caixa de mensagens descansa: “Sinto a sua falta. Sinto falta de poder dizer que te amo.” E você revira os olhos. E então: bebe. E se droga. E procura o analista e fala 2 horas seguidas. E toca piano. E compõe. E canta. E chora. E de repente percebe que não está assim tão longe de se tornar um cantor sertanejo.

Afinal, você é goiano. Warum nicht?

Vou escrever bêbado um email para o psicanalista francês, o chefe de todos. Vou pedir a ele que reescreva “O osso de uma análise”, que o transforme em “O osso de um piano”. Não. Eu mesmo vou reescrevê-lo. Vou escrever também um email para Deus. Bêbado. Vou pedir a ele que reescreva a Bíblia. Que faça da Bíblia. Livro de merda. Ainda mais. Um. Livro venenoso.

Destruo tudo o que existe, tudo o que há em mim, A. Não há a possibilidade de reescrever. Tudo o que se chama César. Uso um relógio no braço esquerdo. Foi um presente teu. Não entendo os ponteiros. Meu analista não está em Goiânia. Não há mais ninguém no mundo com quem eu consiga falar. Assim se afiguram as coisas. Duas caixas de Valium. Desaparecer lentamente.

Estou no inferno.

Lembro de minha mãe. Ela falava basco comigo quando eu era bebê. Te disse isso? Te contei que sabia basco até os quatro, cinco anos de idade? Te contei que meu pai chutou meu berço quando eu era ainda um recém nascido? Que meu pai me odiou desde o primeiro instante que me viu? Te contei que vou me mudar para o Japão?

Te contei que meu nome verdadeiro não é César, que isso é uma invenção do idiota que escreve este livro de merda? Te contei que posso aprender a matar? Te contei que estupraram uma garota na minha frente quando eu era criança e que eu não pude fazer nada porque teria sido despedaçado pelos três monstros que carrego isso como a coisa mais desgraçada de toda a minha vida que nunca vou poder fazer nada para resolver minha covardia que sou a pessoa mais fodida de todo nosso planeta cristão?

Você não sabe. Eu não quero mais respirar, A.

***

(Trecho de Homem trancado em quarto de hotel”)







5 poemas inéditos de Rubenio Marcelo

$
0
0



DE AZUL DEVE SER O SONHO DOS PARDAIS...


há um ardor
e uma dor
em cada pedra e em cada ruflar de asas...

há o mesmo reino
entre uma formiga e um morcego e uma gaivota
mas não há
a mesma melodia nos faróis
quando os mares ofertam às tardes os mesmos mistérios

antes de entender o sol
de azul deve ser o sonho dos pardais...

a poesia
é dor e sal
é dorsal...
leva ao dorso do infinito
o pulsar do girassol que estava em decúbito...

nenhuma sombra
assombra o silêncio das pedras aladas...



SAGA ALTIVA DAS FORMIGAS


Altaneiras formigas,
calmamente,
amanhecem cumprindo o dom da sina;
com destrezas, vão indo,
                  em disciplina,
tecendo os seus misteres,
                     sempre em frente... ... ...

respeitando os ditames da corrente,
elas não são escravas da rotina;
curtem seus feromônios,
[em surdina]
desfrutando os prazeres do presente.

são sempre intimoratas...
com elã,
trabalham... exercitam nobre afã
e depois se recolhem
                sem zumbidos... ... ...

E no meio da noite,
                nas colônias,
as formigas sorriem das insônias
dos temerários homens
corrompidos.


        
PONTE DO PONTO INVICTO


bola ao cesto...
o ano é bissexto
o bolo indigesto
o bule malposto
o belo  é incerto
a bula sem visto
e a bílis no resto

e neste contexto
de incenso e incesto
vêm rebus – rebotes
em motes sem rosto
cobrando o cabresto
[pretexto malquisto
imprevisto encosto]

mas num lance raro
 [sem tocar no aro
sem sestro e sem susto
e sem disparate]
remindo o remate:
O ponto!... e O grito
- crivo decisivo -
inexausto e justo.



                              


SONETO SONÂMBULO


À noite - enquanto eu durmo - o meu soneto
sorri de mim e sai em grã jornada...
Contempla a vastidão da madrugada
e vai errando os erros que eu cometo...
Ao som transcendental de um minueto,
segue altaneiro na fragosa escada...
Alcança o topo azul da caminhada
e vê pulsar ao longe um amuleto...
Ele - em fascínio - do mirante pula,
levita, e sonha, e sangra, e perambula,
mas sempre volta... Sim, ele não tarda!
Assim, sem nem tocar a campainha,
ele retorna e, bem de manhãzinha,
já está comigo... Ah meu anjo da guarda!

               

ΨNFINITEZA


beliscar no arrebol
a violina partitura
de sol...

ser voo
em descanso
lá em psi...

e
em ômega
      sair de si...


Ilustrações: Angela Brooker 





RUBENIO MARCELO é poeta, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (Cadeira 35). Autor de dez livros publicados e dois CDs, a sua obra mais recente é o livro de poemas ‘Veleiros da Essência’. Também revisor, palestrante e advogado, reside em Campo Grande/MS.

O purgatório segundo André de Leones - Resenha de Tadeu Sarmento

$
0
0



Não há como deixar de referir Abaixo do Paraíso à atualidade da nossa realidade política, uma vez que Cristiano, principal personagem do romance de André de Leones, é um tarefeiro que retorna à sua cidade com intenções de fugir de uma trama na qual se meteu e que, aos olhos do leitor, tem grandes chances de assumir graves proporções. O problema é que ele já havia saído de sua cidade uma vez, sem avisar, e voltar pode equivaler à necessidade de ter que lidar com os motivos de sua fuga anterior. Voltar é sempre para um passado que se quer esquecer.
E o que é um tarefeiro? É um fantasma encarregado de fazer, para os políticos, os pequenos serviços sujos da corrupção: entregar um pacote, voltar com uma pasta de documentos lacrada, levar alguém a algum lugar. Não sabemos muito sobre esse ofício porque o próprio Cristiano não sabe, ele é só a menor roldana da engrenagem e, se sabe pouco, é pelo fato de, caso seja pego, não levar muitos com ele, de modo que poderá ser abandonado e substituído sem maiores problemas, afinal de contas, sempre haverá alguém para substitui-lo, já que um serviço tão simples como esse pode ser feito por qualquer um.
Embora não expresse isso, Cristiano dá a entender que no fundo sabe que, se a casa cair, será apenas sobre sua cabeça. É como se intuísse que, no complexo sistema de corrupção que alimenta nossa democracia, o garoto de recados é o primeiro a ser isolado para responder sozinho pelos seus atos. Qualquer semelhança com certo senador é mera coincidência.
Talvez seja por intuir algo do tipo que Cristiano não se sinta em dívida com ninguém. Sua ética é a ética do desertor. A lealdade precisa ser uma via de mão dupla para que possa existir. Ser leal com alguém que irá abandoná-lo a qualquer momento para salvar a própria pele é de uma burrice próxima à santidade. Mais uma vez: qualquer semelhança com certo ex-Ministro da Casa Civil é mera coincidência. Estamos tratando de uma obra de ficção. Certo?
Cristiano é uma personagem complexa. Aparenta conformar-se ao mundo ao redor e a seu papel invisível no funcionamento desse mundo com uma apatia dosada, às vezes confundida com indiferença. Ele observa os fatos sem interpretá-los; seu esforço é apenas o de encaixá-los quando necessário e não para justificá-los ou justificar a si mesmo, mas para melhor enxergar saídas ou ganhos imediatos. Não é frieza, mas objetividade, a impressão de que qualquer esforço que faça pouco poderá mudar a ordem em que as coisas acontecerão. Leones trabalha com maestria essa perspectiva herdeira da tragédia grega, a de que, se você fugir do seu destino estará, na verdade, correndo para abraçá-lo. Então Cristiano não corre (pois sequer possui um rumo certo), não pergunta, não busca consolo, não se lamenta. Cristiano apenas se move, quem sabe por acreditar que um alvo em movimento é sempre mais difícil de acertar. Aliás, a ideia de um destino que, não importa o quanto fujamos, segue nossos passos “como um louco de navalha na mão” (como diz o poeta Arseni Tarkóvski), é reforçada pela frequência de referências bíblicas pinceladas ao longo do romance.
Alfred Hitchcock disse certa vez em uma entrevista que, para um filme de suspense, mais assustador que o barulho do disparo é a própria expectativa de ouvi-lo. Manejar bem essa tensão é atar e desatar os nós dessa espera com efeitos de estendê-la, ainda que passe a impressão de que a acelera. E Leones é um romancista seguro o suficiente para manter esse movimento nas rédeas, pois conduz o leitor dois passos para frente e três para trás não aos empurrões, mas como uma dança. É assim que atravessamos as 251 páginas de Abaixo do Paraíso:na expectativa de uma apoteose que pode muito bem não chegar. E essa é a grande jogada do livro. O fato é que a boa narrativa deve manter até o fim a tensão da esperança de que algo inesperado ocorra antes do final, de preferência, algo violento, heroico, apoteótico, engraçado ou catártico, que ligue os pontos e justifique nossa dedicação da leitura. Só que essa é sempre a saída mais fácil, embora construí-la seja difícil. É fácil no sentido da satisfação completa do leitor. Outra saída é manter essa mesma tensão e, ao final, “decepcionar”, com um traque de massa, o leitor que esperava uma explosão. Não um grande assassinato, mas uma vida comum consumida pela febre de uma infecção dentária. Não um grande amor realizado, mas o divórcio e suas contas a pagar. A vida comum, diária, de todos nós: sem expurgos, sem reviravoltas, sem grandes felicidades ou sofrimentos. A vida como uma bexiga de aniversário que, depois de estourada, percebe-se o quanto estava vazia.
É esse o desfecho que Leones reservou para nós em seu romance mais recente? Não conto. O que posso dizer é que a viagem vale muito a pena, sobretudo porque os diálogos (todos certeiros, alguns memoráveis) não servem apenas para dar verossimilhança ou ritmo à narrativa, mas sobretudo para sugerir, em paralelo, as nuances psicológicas das personagens. Leones não entrega nada inteiro para o leitor e esse jogo de frestas, fechaduras, biombos e encaixes é o que mantém a tensão do disparo hitchcockiano até o fim. Se o disparo haverá ou não é o que menos importa. Já viajaram de avião e, faltandopoucos minutos paraaterrissarem, o piloto, por um motivo qualquer, arremete o avião e não pousa? Pois é. O aeroporto de Guarulhos é onde temos mais chance de isso acontecer, devido ao grande trânsito de aeronaves. Viajem para Guarulhos. Levem o livro de Leones para ler durante o voo.
Em Ira e Tempo, o filósofo Peter Sloterdijk versa sobre a teoria do padre Tertuliano que, exortando os cristãos a não comparecerem aos espetáculos pagãos de Roma, oferece-lhes uma compensação: quando estiverem no Paraíso, além de gozarem da companhia de Cristo, sempre que olharem para baixo poderão assistir, protegidos por uma espécie de vidro, todo o sofrimento daqueles que não se converteram e agora imploram a clemência de Deus no Purgatório. É isso o que há Abaixo do Paraíso: o Purgatório. E é atrás desse vidro seguro que Leones coloca seu leitor. Só que o que Tertuliano não diz, Sloterdijk segue não dizendo e Leones faz questão de ocultar é que esse vidro é, na verdade, um espelho. Somos nós que estamos lá. Somos nós que estamos implorando clemência. É nossa aquela vida.


André de Leones é escritor. Nasceu em Goiânia, em 1980 e atualmente vive em São Paulo. É autor dos romances Abaixo do paraíso (Rocco, 2016), Terra de casas vazias (Rocco, 2013),  Dentes negros (Rocco, 2011),  Como desaparecer completamente (Rocco, 2010), Hoje está um dia morto(Record, 2006) e da coletânea de contos Paz na Terra entre os monstros (Record, 2008).





Tadeu Sarmento é escritor.
Viewing all 5548 articles
Browse latest View live