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Deuses e Mortais - Diego Callazans

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os deuses também são gente,
de idêntica flama interna,
mas a grandeza lhes prende
à idealidade da esfera,
até que Hermes, dizendo
que chato!”, se faz menino
e põe nos deuses defeitos;
ser imperfeito é divino.

.....................................................

que os deuses ajam não espere.
serem alheios nos serve.
um pouco de agrado é manta.
é renda, se mais, de aranha.
a indiferença é uma prenda.

.......................

os deuses não fazem nada ao acaso.
há planos a que não temos acesso,
qual cartas em caracteres opacos.
um iluminado quiçá desvende
parcos enunciados, tão dispersos
que na divina sua doutrina emende.




na mão não canta o mistério.
com o dito jamais se deita.

não há com o que se o ferre.
a carne o sabe, não o porta.

deixemos que passe alheio
o que mais dentro ressoa.

não vem da areia esse gesto
que diz ao vento: “disperse”.

pra deuses não nos fizeram.
a águia, se ousarmos, desce.

...........................

ser homem é profissão
de carga.
o pasto chama a mais
deleite.

melhor do que a razão
é a alegria!

Odisseu, desista.
alguns homens preferem
seguir porcos.

e por que não?
tantos já porcos são
no corpo errado.

sorriso é
pança cheia e cuca oca.
provar da lama
sem saber panela.




querer que eu seja
a calha
- ora Zeus valha! -
do que fui antes!
como, se antes
eu era outro?

o que conservo
(tão breve sou)
de minhas idas
versões?
me atualizo e
mais não me sei!

pagarei eu por
qualquer desplante
de um meu farsante
que, ora sido,
me nada deixa
senão coleira?


Ilustrações: Gian Lorenzo Bernini (1598/1680)



Diego Callazans nasceu em Ilhéus (ba) em 1982 e mora em Aracaju (se) desde criança. É autor de A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013), Blasfêmias(7 Letras, 2015) e Nódoa (7 Letras, 2015). Tem poemas publicados em diversas revistas literárias.


A CONTA GOTAS

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/Helena Figueiredo/


primeiro o pai
depois a avó, a mãe
o melro do telhado
o fiel amigo, que sempre o esperou

as flores do campo
o arado
a fonte que ele amou

já nada resta ao contador de histórias
e morre ao sol poente
no leito das memórias.

3 poemas de Willian Delarte

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DESPRODUTO

fadados a morrer de fome
poetas comem
sua própria poesia
sem mercado pra desproduto
atacado pra varejeiras
poetas ganham da madrugada
o que se perde em vários meses
mas o ódio, este sim, é parcelado
até cem vezes
todo e qualquer ócio
é pecado do capital
pecado também é nascer
sem fundo e sem garantia
não há seguro desassossego
a quem rouba o som da noite
pra sonhar a luz do dia
não há cota a desajustado
ainda não inventaram
bolsa melancolia
nem ticket vale-mundo:
nasceu pobre acima da terra
embaixo do sol
e respira, é pra se danar
vagabundo!



?

?para onde vão
os pés de amarildo
quando o olho da noite não o vê?

?cadê os lábios,
cadê o queixo de amarildo?

?o joanete, aquele bico
de papagaio, a pinta
que só ela reconheceria
na calada do dia
na boca
no fumo
no beco da madrugada?

?o que fazem
os dedos de amarildo?

?serão setas? ?buracos negros?
?desenharão sóis na areia?

?serão ossinhos
ou palitos de dentes
na fuça de um cão?

?onde deita a retina da mulher
quando encontra nos olhos dos filhos
só a ausência do marido?

?cadê deus que não a escuta?

?o que será do crânio,
o que terá no peito de amarildo?
?três balas? ?dois sonhos?

?um vão?



SANTA CECÍLIA

você vai passar de carro
e pelo ar condicionado
não chegará
um átomo de odor da rua.

mesmo que um indigente
e louco
e perebento
estique o lençol mofado
que lhe cobre o machucado

(na certeza delirante
de que presta um importante
serviço ausente),

e macule o vidro da frente
com sangue coagulado
e verdeadas secreções
de pus com água-ardente,

você não lhe dará o agrado
e sua mão ficará esticada
até o próximo sinal fechado.

ainda que você se sinta mal
e busque no fundo da alma
uma explicação catártica
para o fato social
que você jamais se responsabilizará

ou encontre uma resposta mística
cármica ou econômica
que lhe convença de que cada um
tem o que busca, paga o que deve,

uma mão estará alçada,
o lençol, embolorado,

e um velho estará morrendo
como criança que já vai nascendo
louca,
indigente,
remelenta,
no corredor da Santa Casa

sem qualquer misericórdia.


Poemas de "O Alien da Linha Azul" (Edições Incendiárias, 2016).




Willian Delarteé autor dos livros Sentimento do Fim do Mundo (poesia, 2011) e Cravos da Noite (contos, 2014), ambos pela Editora Patuá (SP) e O Alien da Linha Azul (Edições Incendiárias, 2016).Premiado no II e III Festival de Literatura da Faculdade de Letras (FFLCH) e finalista da 15ª edição do “Projeto Nascente”, todos da USP. Tem publicações em diversas revistas e antologias. Foi co-editor da revista Rebosteio Digital.

sol nasce para os vivos - Lennon Rosa

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três gatos espertos na esquina balão respostas

garganta maldita café preto c/ leite manhã paranaense
 mediano penso reflito pensamentos diabólicos distantes
 palavras escoltadas pelo louco do bairro chinês-alemão

 tossindo injúrias gírias bactérias imaginações pendências
 corredores do acaso enviados pela juventude psicológica
 linguagem é caótica por natureza humana discórdia mental

 quilômetros entre dois indivíduos de mundos diferentes
 regras próprias não se aplicam isso é sonho onírico besta
 intacto permaneço no caos capim brincando de palhaço

 12/04/2016




tranças masculinas rosa de abril riso

 reis não amam rainhas no submundo
 cigarros desagradáveis tragados
 murros errados em todas as vielas
 posições escória parlamentares patos
 queremos cervejas sem álcool c/ gelo
 houve um deus amador ocidental baço
 amei o dragão psicopata concorrente

 horário políticos escorregadio muro
 publicações campainha vinheta vintage
 vantagem fotografia físico paixões passos
 cobras verdes perambulam solitárias mato
 estrada de terra campanário litorâneo pito

 asas tigres do entardecer noturno chute
 músculos energias puxa vida assunto oco
 terminado charuto aceso cinzas azuis vasto
 tenho um caderno cheio de versos inferiores
 nunca amei alguém na vida como a arte-poesia

 dizem que amanhã choverá canivetes metálicos
 falam também que ossos são combustíveis naturais
 e dentes amarelos representam sabedoria viking
 o ontem não pertence aos vivos, nem o futuro furo
 queremos o mundo queremos as pessoas os prazeres
 ouça pare pesquise esqueça fundamentos fundidos

 cantando ragtime blues
 tocando violão velho
 cego-morto manda bem

 linha árvores infindo alcance possível vendar olhos não parar

 05/04/2016




sonhando onírico principio do prazer

 passos dados mente fora foragido cabeça
 desejos café blues demônios engasgando
 obvio deambulo lugares inóspitos germes
 soco situações vozes distanciamento resto
 gosto amargo de uma juventude estragada
 regras jogadas na privada lixo contemporâneo
 se estivéssemos mortos não haveria dúvidas

 números miseráveis medíocres podados
 intacto olho o caos mundial gargalhando
 sou o palhaço moderno maquiagem barata
 piadas negras conteúdo pesado cascatas
 persuadir o guarda para prender-me na solitária
 sangrando suando fedendo células mortas podres

 sequência cadência eloquência
 pasmo penso cumprimentos
 andando lento nos corredores

 quem me dera ser um deus pagão estranho
 criar novos humanos em segundos ligeiros
 ser conhecido e lembrado por gerações
 mas aqui estou; escrevendo poemas
 que não durarão dias na sociedade
 gárgulas voam pedras resolutas soltas
 no circuito inebriado chamado Cotidiano

 06/04/2016




sol nasce para os vivos

 o poema é barro preto oleoso
 entre estações aleatórias dos deuses
 ó natureza maldita de bocas fechadas!
penso existo feito cão diabólico tolice;
       quer um soco no estomago?
ou um olhar malicioso? 

não segure o pensamento
 sim para a naturalidade
 tudo acontece sem razão
 o caos é meu amor; e dor
 não temo a tempestade
 escolho a pura imaginação
 neste ringue abandonado
                           pelas pessoas

 pássaros cantando calor terrestre
 humanos vivos humanos mortos
 lembranças passado indiferença
 o Grande Dragão Vermelho acordou
 faminto por vontades individuais
 fogo denso floresta queimando
       desenho meu destino c/ sangue

 cabelos longos pretos
 esperam meu olhar
 e minha atenção
                           masculina

 amo aqueles espíritos do vento
 neste local esquisito isolado real

 10/04/2016      




sincero tatuo minha alma com tinta negra

porcarias virtudes dias andanças matança
 querência substância segunda-feira festas
 calor caótico bêbado babélico estrangeiro
 contemple o grande dragão medievo ancião
 fogo lançado em muros trincados urbanos
 garganta ruim sensações pior ainda dores
 crônico crônica trono trovadoresco trote
 pensante vou indo por aí gírias gestos gritos

 amo a solidão solitária sóbria amora atum
 gosto das circunstâncias inesperadas variadas
 pianos tocados por músicos em preto em branco
 arte ruim também é conhecida por bons samaritanos
 velharia músculos fracos fraqueza vencimento vento
 amores perdidos encontrados em becos quaisquer

 agudo musical água cristal caveira esqueleto esquema
 jumento pobreza política corrupção argumentos arcaico
 olhos cansados param de ler livros empoeirados mortos

 08/04/2016




significado veiculado nos fios elétricos

 entre solidões diversificadas peculiares
 babaca palhaço gargalhando piadas tolas

 simplifico minha imaginação com spleen
 eis que perambularei quilômetros daqui

 ratos gárgulas ditados sentidos semelhança
 restante período globalização complicados

 dogmas cheiram a suores exagerados
 línguas gosmas lesmas regrando poças

 31/03/2016




se a verdade fosse dita todos os dias  eu estaria frito

planos indecisos do esforçado criam o caos
garganta inflamação leviana dor gosto barulho
 dedos escolhem sons simbólicos barriga gordura
 linguagens esquecidas exploradas pelo Renascido
 corro feito atleta de esquina suor sal cachorros
 psicopatas também são filhos de Deus verdades

 concorde ou não com minha sentença de morte
 mas ainda acredito que tatuagens com nomes
 de filhos é algo horrível de se fazer ultimamente
 olhos cansados visam glórias futuras esperança
 faminto penso em comida odeio vegetarianos
 entretanto não me apedrejem contradigo-me

 mendigos são seres destinados a observar-nos
 passo por eles sem dar centavo algum sorrindo
 desculpe se não amo desconhecidos c/ carinho
 muitas vezes nem sei o que é amar; significados
 diga-se de passagem que ociosos pensam demais
 somente posso projetar e de modo algum viver

 12/04/2016  




Meu nome é Lenonn Henryque Pereira Rosa.Nasci em 17 de março de 1995 em Miraselva no Paraná, lugar este que moro atualmente. Estudo Letras Inglês na Unespar-Fecea de Apucarana. Tenho 21 anos.

Lançamento de "O Alien da Linha Azul" de William Delarte

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Terceiro livro de Willian Delarte, o segundo de poesia, O Alien da Linha Azul (Edições Incendiárias, 2016) é uma busca estética de alteridade. Poemas marginais engajados, uma voz pichada nos muros periféricos em blocos de palavras prontos a desabar diante dos olhos, a se recompor no leitor e construir dentro dele um eu maior, um nós lírico, esse Outro.


Patuscada - Livraria, bar & café , Rua Luís Murat, 40, 05436-050 São Paulo
a partir das 19 hs.



Lange

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daqui a cinco éons os bardos ainda estarão
falando de ambrosias poentes cu de moças
poucas damas dizem como eles se deliciam
de dar-lhas o rabo num arremedo contrariado
eu não espero até amanhã
como contabilizo dispenso juros
as janelas assustam porque te vês lá fora
empareda-te irreflexiva irrefreável e mente
o que não pode ser dito vai ser chicoteado
ninguém fala patriarchal male como jessica lange 








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recebo visitas aqui. até mais ver.


 

PUGILATO EM PONTA DE FACA: o ringue da poesia em Ricardo Escudeiro resenha de Donny Correia

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Ilustração: Leonardo MAthias


Ricardo Escudeiro (1984), poeta, vocalista e lutador de Muay Thai, levou seus versos para o ringue e subverteu o conceito de fazer poesia sobre si e os seus. Estamos num tempo de luta, de disputas, de guerra de egos e vaidades, e o poeta é aquele ser mais vaidoso e prepotente que se vê como representante da história de sua geração. É assim que temos de ler o Escudeiro em seu Rachar átomos e depois (Editora Patuá, 2016).
Devemos lê-lo com o mesmo sangue nos olhos com que creio que ele escreveu cada verso, a ira e a decepção de mãos grudadas em cada mirada que deu ao seu redor.
Este volume pode parecer um compêndio de meras lamentações cotidianas, mas logo de saída, o título da primeira parte do livro se desvela para o leitor como um questionamento não concluído, interrompido, que nos convida à reflexão merleau-pontyana sobre a ontologia da percepção estética: será que o olhar da imagem vê mais que o olho que a contempla. Assim, sem ponto de interrogação, golpe seco. E ainda confronta o leitor com o espelho invisível da imagem que nos vê enquanto a vemos. Onde está o choque estético? O que nos compele a entrar nesse ringue e erguer os punhos em luta? Esta é a questão que se abre a partir de então.
Reproduzo o segundo poema do livro

there will be blood

perfuratrizes

na possibilidade da espera seguimos
expandindo
nadas

Aqui, enquanto a broca segue mastigando bocados de terra rumo ao centro, que não se sabe qual, permanecemos inertes e inabalados, enquanto nosso ego se expande para lugar nenhum, sem sentido, sem rumo. Algo muito próprio de nossa geração e de nossos dias perdidos em questionamentos vagos e desprovidos de razão.
O poema seguinte, “Eye of the tiger”, que abre com uma citação de Muhammad Ali, “Float like a butterfly, sting like a bee”, traz para o universo da reflexão o cenário do pugilato que deve ser este ringue imenso, circunscrito no seio urbano do universo de Escudeiro. Assim,

o soco e o outro
vez ou outra abdicar da esquiva
ir de encontro
quebra o que é dente
jorra o que é sangue
dói o que é corpo

No poema, com jabs na ponta da luva, às vezes, diante do outro, seja lá o que o outro vos queira representar (afinal, a poesia precisa cristalizar acima de tudo o repertório do leitor, não apenas do poeta), Ricardo joga a toalha e se deixa atropelar pelo adversário. Dá-se ao suicídio para sentir no castigo físico sua própria corporeidade, como se os dentes que se quebram, o sangue que jorra, o corpo que dói, provassem que, obliterado, ainda está vivo e tem uma capa falível de carne para se atestar disso. O mesmo mal-estar que nos atrai, nos erotiza e nos faz fantasiar dias melhores, quando o que queremos, de fato, é o poço absoluto.
A prosódia de Ricardo Escudeiro é uma marca muito pessoal. Ainda buscando respostas de seu corpo em seu mundo no corpo e no mundo do outro, volta sua atenção ao pobre diabo comum, como se já não houvesse mais separação entre o “eu” e o “tu” nos estertores do mundano. Por isso,

é nóis

em toda padaria
esquina
ou calçada qualquer escondido no pretexto pra uma rima
tem um pobre
diabo que amassa
na chapa
o pão e o dia

próprios

um pouco do nosso
no de cada

Um poema experimental, em que os versos fraturados funcionam como a pausa para cada detalhe do observador. O que me agrada em poetas de minha geração é como alguns conseguem ironizar o preconceito da “rima” de maneira tão cínica e precisa, o que está ali, logo nos segundo e terceiro versos. Pode-se dizer que há uma auto-ironia por colocar-se como poeta, mas apresentar uma cena prosaica, do dia-a-dia, que pode não ter lá sua beleza explícita, mas está em nós, mesmo que não queiramos. E novamente o espelho da carne: um pouco do nosso / no de cada. Certeiro como um cruzado.
O domínio da teoria e da história do poema fica evidente na adaptação que Escudeiro faz de uma cantiga de amigo reproduzida na logopeia contemporânea. Cito um trecho:

ah mia senhor fremosa
aqui donde piso
por vontade tua

jamais por própria
clamaram estribilhos
soltos

É um alento ver, no meio dos átomos rachados de Ricardo Escudeiro, que há poetas que se preocupam em saber do passado da língua e da literatura, para trovarem seus versos à moda do antes, pensando o presente. Há uma tendência cancerosa que prega que não é preciso conhecer para fazer, pois que isso seria genuinamente original, transgressor. Balela. Creio que seja este o problema maior encrustado na péssima qualidade dos poetas que andam por aí, rodeados de carcarás, numa dinâmica de retro-bajulação que em nada contribui para o espólio imortal da poesia, que acham que estão escrevendo.
Voltando ao ringue, lá pelas tantas surge um poema que se coloca como erupção, “Steel dawn”. A influência da cultura pop, do legado deixado pelos filmes que vimos nos anos 1980.

desde pequeno encontro
mais terror
nos des tópicos pós apocalípticos
grunhidos em um mad max
do que nas afrontas à batina
de um exorcista

Todo lutador sabe que se é para ter medo, que seja do oponente à sua frente, não das fantasias descabidas de uma mente que pensa por si quando elucubra um combate que pode não existir, uma angústia sobrenatural que somente existe na cabeça da vítima. Medo mesmo, o poeta tem de um mundo que caminha a passos largos para seu fim, e que pode estar mais próximo do que se pensa. Medo mesmo é de ter de ver o horizonte árido, as pessoas deformadas, bestializadas, guerreando por água ou por gasolina. Matando seus irmãos para não morrerem. Isso não tem nada que ver com religião, demônios e rituais. Isso tem a ver conosco. Com o real, o palpável, que se desfaz.
Eu poderia dissecar cada poema, cada verso deste Rachar átomos e depois, mas creio que isto deva ser feito por algum crítico atento de uma futura geração, em busca de bom material para trabalhar.
Gostaria de concluir o breve percurso, que espero não ser o único ou último, evocando o conteúdo do poema que dá título ao livro, em que Ricardo Escudeiro perfaz um roteiro do corpo, do extracorpóreo e que lhe está em si.

ah esse
se faz mais que a carne e o tempo
in verso
poltergeist que nos tenta
dá pras gentes o que não
é de gente

contatamos com o plano etéreo

Antes, já havia o medo da distopia, porque ela está esfregando o falo em nossa face o tempo inteiro. O sobrenatural não tinha sentido. Mas, neste poema, vemos que o autor sente, sim, seus calafrios pelo que não pode ver. Não por medo, mas por uma urgência do desejo de encontrar uma resposta que não está no palpável. Quem sabe não seja o fenômeno sobrenatural advindo da estática da TV fora do ar o fio condutor de cada átomo rachado, cada partícula que nos compõe, seres falíveis e ridículos que procuramos na poesia uma resposta que não se realiza?
Ricardo Escudeiro acertou seu gancho certeiro e mais uns golpes de pernas, para calejar sua voz poética e para ferir a lírica de quem acha que poesia deve confortar.
Foi-se o tempo em que Hegel professava o bem-estar por meio da arte. Também foi-se o tempo em que Buñuel afirmava que arte deve chacoalhar o espectador e dar-lhe choques. Mas entre as duas teorias, o Ricardo escolheu a certa: sangue nos olhos, faca nos dentes, esquiva armada, gongo, e vários átomos do incômodo, do engulho, da dor cotidiana irremediável, mas necessária, rachados.




 
Donny Correia, poeta e cineasta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Letras – tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero). Realizou os curtas experimentais Anatomy of decayBraineraserTotem (selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil) e In carcere et vinculis. Publicou os livros de poesia O eco do espelho , BalletmancoCorpocárcere e Zero nas veias. Organizou, ainda, com Marcelo Tápia, o volume Cinematographos, antologia da crítica cinematográfica, com textos críticos escolhidos do poeta Guilherme de Almeida para sua coluna cinematográfica no jornal O Estado de S.Paulo, entre 1926 e 1942. É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.

4 poemas de Siomara Muñoz

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Ilustração: Arsniy


Confissão

Que jamais digam que não tentei
que não me perdi pelo caminho
que não tropecei e caí enquanto dormia.

Que não digam loucura transitória para dizer amor
sexo para paixão, fúria para ciúmes eesquecer a distancia.

Que não digam que aqui não se cunhou o fogo
o delito consumado, lençóis molhados,
enquanto surgem escabrosos a lucidez e o medo.

Que não digam que não bebi desta água
que não vivi nesta terra
que nesta cama os furacões não giraram e os espelhos voaram como cartas.

Que não se esqueçam do beijo
e não conjuguem o verbo amar
e que não digam beijo na exata dimensão da palavra.

Que não misturem cada sílaba ao seu acento
como um conto infindável
como o flutuar de leves asas.

Que em cada consoante cega diante do desejo das palavras
seja grave o ruído dos abraços

e leve os fonemas com sua luz difundida.

Que não digam que eu sempre estive equivocada
que não digam que meu corpo se agarrou às minhas costas
que não arranquei gemidos de sua boca
que não lutei contra seu peito
que não menti
que não engoli
uma a uma as suas palavras.

Que não digam que não provei de mil venenos
que não digam atroz para dizer ternura
e jamais digam tormenta e fogo
e ente fogo, beijos
e entre beijos, ciúmes.
Porque fui neve e serpente mulher e vento
e depois do vento arado
e depois da terra arada e sua semente.

Que nunca digam
que parti sem ter tentado
porque caí mil vezes
diante o profundo
transitar das palavras. 



Ele e eu

Éramos tão perfeitamente inalteráveis
tão inevitavelmente honestos um a um
tão humanamente inseparáveis
como se tivéssemos sido feitos do mesmo barro.

Éramos tão luminosamente estritos
que amávamos os mesmos gestos
os mesmos ícones
e a absoluta perfeição da pedra talhada.

Éramos tão paradoxalmente exatos
que gastávamos nossas línguas no decorrer das madrugadas
falando dos mesmos deuses e discursos
Copérnico, Fidel, a metafísica
e nos amávamos sem sinais
sem santos ou candelabros.

Éramos tão copiosamente jovens
que gozávamos dos mesmos desatinos
e no momento do encontro
o lugar exato das carícias
e o ponto G
daquilo que nasce diante do gozo do êxtase humano.

Sabíamos de tudo contra todos
e discutíamos de costas
como demônios dissidentes
firmando a postura necessária para vencer as guerras
sempre juntos
sempre um
sempre aliados pelos cotovelos
na cobertura do lar e suas marismas.

Éramos tão próximos e perfeitos
que abreviamos um detalhe...
o amor

nas mesmas diferenças.

Ilustração: Arseniy

 pierden el tiempo las que pretendan seducirme!”
Oliverio Girondo
Mulheres

Gosto das mulheres... e como!
as que gritam se espalham vociferam
as que se afogam em seu instinto
aquelas perspicazes penetrantes e profundas
as que riem e seguem a sorrir quando lhes arrancam até a alma
aquelas que subjugam
que me subjugam.

Gosto das mulheres profundas
as terríveis, catastróficas
a que me mostrou o amor na cama de sua histeria
e me ensinou a amar o amor de indecisões.

A que pariu nostalgias em cada parto incessante 
e me deu seis espadas como companheiras.

Gosto das mulheres
as que perseguem, que me perseguem e se indignam
as que chamam
as que choram
as que trepam sem descanso
que recolhem
que seduzem
que se elevam
as que partem e repartem com seu aroma os sinais
e me beijam
e me espremem
e se calam
e me calam  com um beijo.

Gosto das mulheres cibernéticas
sem sorrisos comportados
sem vozes de mel ou adoçante
sem cílios de gatinha ou silicone.

Gosto das mulheres
não de arroz, açucena ou chocolate
gosto das neuróticas menopáusicas cinéticas
que me adoçam e envenenam
que me odeiam e acariciam
que abrem pra mim suas asinhas matinais
ou me cravam na noite mais tremenda
o seu punhal
de amapola
e de cerejeira.


A casa vazia

Não
convides
ninguém para que venha a nossa casa
pois repararão
nas portas, paredes, escadas
e janelas, olharão as larvas
pelos cantos, os ferrolhos enferrujados, as lâmpadas
cegas, arruinadas. Não traga ninguém
para a nossa casa pois sentirão apenas
angústia de tua mesa,
de tua cama, da manta,
dos móveis, rirão
de pena pelas xícaras, fingirão
saudade
do meu nome
e também rirão de nossa rede.

Não traga ninguém para nossa casa
pois te escreverão canções,
entusiasmarão a tua alma
sussurrarão travessuras nos teus ouvidos
semearão uma flor em tua janela.

Por isso não deves, eu te peço,
trazer mais gente à nossa casa
pois ficarão rosados
verdes, vermelhos ou azulados
ao descobrir paredes tortas
as plantas secas.

Desejarão varrer os cantos
desejarão abrir nossas persianas
e encontrarão chão firme entre meus livros
as desculpas perversas que buscavam.

Não traga mais ninguém para nossa casa,
assim descobrirão nossos absurdos
te levarão para outras praias distantes
te contarão histórias de naufrágios
destruirão os rastros desta casa.


Tradução: Clarissa Macedo e Edson Oliveira.

  

“Si no saben volar

Siomara España Muñoz : (Equador, 1976). Poeta e Catedrática em Língua e Literatura / Licenciada em Literatura e Espanhol pela Universidade de Guayaquil. Poeta, narradora e Crítica de Arte e Literatura. Editora Cultural do periódico “El Emigrante”(O Imigrante) . Primeiro Prêmio de poesia, JuegosFlorales (Jogos Florais), Casa de Cultura Ambato, 2012. Primeiro Prêmio de “Poesia Universitária” Universidade de Guayaquil, 2008. Finalista do concurso de contos “Jorge Luis Borges”, Argentina, 2008. Publicou os livros de poemas: Concupiscencia(Concupiscência), Alivio Demente(Alívio Demente), De Cara al fuego(De Cara com o fogo), El Regreso de Lolita(O Regresso de Lolita), Construcción de los sombreros encarnados / Música para una muerte inversa(Construção dos chapéus encarnados / Música para uma morte inversa), Contraluz(Contraluz), Jardines en el aire(Jardins no ar). Sua obra foi objeto de importantes estudos e traduções, como o PoetryWales - New PoetryFromLatinAmerica, 4 poetas latino-americanos/(Wendy Guarra, Andrés Neuman, SiomaraEspaña y Jorge Fondebrider ) estudio y traduccionesdel poeta gales Richard Gwyn. - Great River Review, Number 57. Minnesota EUA. Participou de inúmeras Antologias Poéticas no Equador, Peru, México, Bolívia, Chile, Argentina, Cuba, Espanha, EUA. Consta em várias Edições Cartoneras na América Latina. Participou de diversos Encontros Literários, Feiras de Livro, com recitais e conferências tanto em seu país como no México, Peru, Colômbia, Estados Unidos, Brasil, Cuba. Parte de sua obra está traduzida para o inglês e francês.



Lançamento da 1ª Coleção Marianas em Curitiba

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A coleção Marianas Edições - Editora_BolsaNacional do Livro - é um projeto de publicação literária do Coletivo Marianas.

Dez integrantes iniciam a primeira coleção: Andréia Carvalho Gavita, Elieder Corrêa da Silva, Marcia Wojcichoski Pra­do, Mari Quarentei, Maria Lorenci, Mayra Corrêa E Castro, Priscila Prado, Samantha Beduschi Santana, Zoe de Camaris e Vera Albuquerque.

           O coletivo Marianas, criado em Curitiba,conta atualmente com a participação de 80 mulheres, tendo iniciado atividades em maio de 2015, com o objetivo de promover e difundir a literatura e a arte produzida por mulheres.  O nome do coletivo refere-se à Mariana Coelho, educadora, poeta e uma das pioneiras do feminismo no Brasil.

           Participando do processo de afirmação e legitimação da mulher na cultura, o coletivo tem realizado  diversos eventos literários no formato de saraus, recitais e exposições artísticas. E agora une-se para a publicação de livros escritos por mulheres, somando o trabalho de escritoras, editoras, ilustradoras, revisoras, diagramadora e fotografas.



Títulos  da 1ª coleção

Editora Bolsa Nacional do Livro
Selo – Edições Marianas


papel leopHardo - Andréia Carvalho Gavita

Metáfora  - Márcia Maria Wojcichoski Prado

Por acaso: simplesmente - Elieder Corrêa da Silva

Playlist para poemas selvagens - Maria Lorenci

Correm Rios... - Mari Quarentei

Mãe de filhos - Mayra Corrêa e Castro

Alas, pétalas e labaredas - Priscila Prado

Autopoiesis - Samantha Beduschi Santana

Poikilóthron - Zoe de Camaris

SozinhesVera Albuquerque


Para conhecer o coletivo acesse:

www.coletivomarianas.com 

facebook.com/coletivomarianas


Lançamento: sábado , 15/19 hs
Palacete Wolf, Rua do Rosário 7, Curitiba.


5 poemas de Tatiana Aline Santana

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Roda gigante/Roda delirante

No giro dos sentidos
na busca de prazer
Uma vez que a roda
começa a girar

só para no ultimo orgasmo



Se mente

produzi tantos versos
e colhi verdades
das quais
nunca reguei


*
Amor de primavera
se deixa florir
em todas estações


ressaca de poesia
se cura com doses
de prosa



crianças descalças
pisando no chão bruto
da nossa ignorância



Tatiana Aline Santana nasceu no inverno de 1994, no interior do Paraná. É poeta e contista com participações em diversas antologias. Autora do livro SER – haicais (Ed. Kazuá). Suas produções literárias também pode ser encontradas em https://www.facebook.com/amaremudar 




Traços - Ricardo Lindenberg

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Ilustração: Anna Volobueva


Suas lagrimas desfazem a tinta da caneta, a poeira sobre o papel, palavras passadas, elas volteavam desde à mesa. O sal se junta à brisa lá fora. Nas garrafas as velas não mais iluminam, breve decoração de um passado desconhecido. Ali estava você. Estes traços... aqueles traços, antigos traços.

O vagão envelhecido fede. O trajeto até Moscou agora é passado, a ultima parada; uma pequena cidade na fronteira. O odor do metal queimado, sempre o mesmo.... odor.....metal.... queimado. Você esfrega seus dedos enrugados contra a sua pele doce, promiscuidade epidérmica. Os reflexos no vidro testemunham: seus cabelos agora tornam-se brancos, quebradiços, envelhecidos. Estão longos, mas brancos, grisalhos, cansados, empoeirados, como os trilhos desta estação feia, fétida, abafada.

Os traços negros sobre a pele branca e doce. Você procura apaga-los com seus dedos finos, secos, longos. Ela dizia querer ama-lo. O amor é uma tentativa, um risco, uma decisão racional. Você pressiona ainda mais forte, um tom roseado aparece entre os desenhos, você percebe que a tintura sobre seus cabelos esta cada dia mais fraca. Os dedos fortes insistem em pressionar a pele, o rosa é agora vermelho, amanhã, roxo. Ela dizia querer ama-lo. Elas não costumam saber o que dizem. Os cabelos brancos entre os negros do nascimento. As freadas bruscas, tradição local, impõem o ritmo siderúrgico deste país ao leste, demasiadamente ao leste... Cada vez mais ao leste, apesar destas “revoluções”. Ela gostaria de ama-lo. Você busca acreditar ao tocar insistentemente nos fios brancos, conta-os, eles se multiplicam a cada dia.


Seus lábios, a saliva que escorre entre seus seios, as marcas constantes. Constante também é o toque, por toda sua pele, as marcas destas insistentes aproximações. O cansaço da matéria prima sobre a nitidez dos pensamentos, a razão se deixa embalar, o trem já partiu faz tempo. Ela repete, sob a influência dos espíritos etílicos, querer ama-lo. Os seus dizeres se perdem em meio ao trajeto, os cabelos brancos, os dedos fatigados e os traços fiéis sobre todas estas superfícies compartilhadas, divididas, transpiradas – seu odor de besta selvagem – permanecem. Do amor, ela não devia dizer nada.



Ricardo Lindenberg nasceu em São Paulo no ano de 1985. Bacharel e Mestre em Filosofia e Letras Clássicas pela Universidade de Paris, mora atualmente em Kiev (Ucrânia) onde ensina filosofia no Liceu Frances de Kiev. Atua igualmente como professor de língua portuguesa na Universidade Nacional de Kiev (Taras Shevchenko). Tendo morado em diferentes países, Estados-Unidos, França e Ucrânia, tem um grande interesse pelas línguas e pela possibilidade de fazer com que as culturas dialoguem. 

4 poemas de Marcos Samuel Costa

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Ilustração: Fabricio Ribeiro


A gula

Frente ao espelho, ante ele, dentes amarelos à mostra,
veias rubras ao rosto – como um jambo podre,
trago a vida e a morte, poemas ditos em voz alta
como formigas que atravessam o açúcar – mergulho sombrio
sobre o gosto do infame pecado da gula, algumas falam entre si
“neste verão não faltará à doçura”, e assim dizia também “não me
faltaram os poemas”,
vestia-me de outros pecados, cansado de minhas roupas sujas.

Minha respiração é uma invasão de grilos, voz é um atacar de cabas
enfurecidas, emito de dentro de mim poemas, nunca são escritos
no papel, aves miúdas com pitiu de peixe,
escrito enquanto vegetava mais uma vida inoportuna e dizimada,
meus capins crescem sobre o dorso do osso que forma minha língua
 – neste quintal de tempo, sombra das árvores que envolvem minha mente. 



Todos nós

A arquitetura encontrada na cozinha de minha casa
lembra um pouco o movimento do corpo de um caramujo
lenha da mata próxima, fogão de barro, tirado do igarapé que corta
a coluna principal de nosso sustento, mesa de pernas tortas
sem brilho, sem mármore, sem a tinta que colori a profundidade
que é a alma de minha mãe, teias de aranha nas paredes e teto,
telhas de um passado tão distante, vindas de uma Abaete que desconheço.

Sentados todos as vésperas dos ventos mórbidos, meu pai vinha com suas
redes de pesca envolvida mutuamente em seus olhos – peixes mergulhavam por todo o piso da casa, era hora de cortar os temperos – chicória que recendia
toda carne branca do peixe,
minha mãe tardava em suas palavras, eram poucas, impressão azulada,
olhos miúdos – catam do leme do barco musgo para rebocar as lacunas abertas,
sempre, o sempre era nossa matemática, nossa língua, identidade apresentada
as questões oficiais, podiam ouvir de todos nós – aquela mamãe, sim aquela ladainha, sim que falava da mulher que virará panela.






Galhos de jambeiro

Os galhos dos jambeiros invadem minha casa – manto florido, o rosado
das lagrimas, não quero ir muito ao seu pé, suas raízes crepitam o dilacerável
dos olhos, são pontos de luz vindo de passados antes presentes
a divisão do pão sobre a mesa farta de cotovelos que furavam suas almas,
mãos que percorre a gordura sobre a mesma mesa, deixado pela carne sebenta
das entrelinhas – campi e céu, já cozinhavam a madeira cheirando a seiva,
não podia deitar-se sobre a noite, ela ainda não era solida como hoje – um soco
que rasga minha pele, expondo meu fraco sangue, olhos esses galhos, tomam
lugar que antes era de minha mãe, suas folhas querem reproduzir a voz dela

sustendo de tudo é como galhos de jambeiro, podre, fraco, pau que nunca vira
madeira, não adianta sobre eles sustentar-se, tombam-se telhas de barro,
quebram-se os copos de vidros, linha ilusória na cozinha, no fogo que
espera a lenha, chama que apaga tudo
é tudo agonia
                     agonia
                                agonia
                                              agonia
mãos que arrastam os cabelos, olhos que não fecham-se, palavras que nunca
saem da boca.



Janela

Como um punhado de barro seco te abro, vejo já a infância carregada no teu dorso,
a escuridão cresce diante dos meus olhos – já é final tarde
papai entra pela porta da cozinha com uma juntada de peixes da maré – terçadinho, cachorrinho do padre, tamatá
corro ao quintal, pego o limão que dará de sua acidez a aridez ao peixe quando já doce na minha boca matará os profundos lamentos abissais que cantam ladainhas dentro de mim, todos caminham para suas portas e eu a janela, quero ver pássaros e mortos indo para seus galhos de sombra onde passaram a noite
carregando em seus peitos frutas que antes nasciam em suas asas,
te abro, preciso que ver, abro porque por te fechas, me abro.

Falaram-me a árvore donde nasce o barro do início de tudo, que suas cores
são como sorte de tataíras em plano pouso no pulso, vi nela meus irmão
feitos de barros, caras amarela-branca-argila-escura
escuridão é o acidente dos meus passos, poetas aprendem a acidentar-se
logo que nascem, faca ao colo do útero – poemas inscritos juntos a formação

barrosa, abro a janela, quero ver – bichos e mortos pássaros e vivos. 



Marcos Samuel Costa da Conceição nasceu com o rio praticamente debaixo dos braços, é filho, neto e bisneto de pescadores, cresceu ouvindo muitas estórias e mitos. Aprendeu a amar as dimensões dos rios, mas acima de tudo aprendeu a fala dos rios – o silêncio –, seus primeiros poemas sugiram tão natural como os sonhos e dos medos da vida. Viveu durante 20 anos em Ponta de Pedras uma pequena cidade do Estado do Pará, e atualmente mora em Belém. Autor de Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), e Titulado amor (editora Literacidade, 2014), Uma semana de poesia (Editora Penalux)e em coautoria Interpoética (Big Times editora 2015).


LIAN TAI LANÇA LIVRO NO RJ (12/05) + POEMA

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Sobe e vê os campos de arroz:
Vê que a verdade verdeja ainda cedo
E quem no grão enxerga o depois
Sabe da vida o segredo.

Crê que a semente promete já sendo
E que alimento abunda da terra
Vê que só erra quem tira e não parte
E a mão que semeia já segue sabendo.

Sê quem não foge ao solo sagrado
Se é do agrado do tempo a colheita 
Aceita o que a vida ofertar e o que incide
Mas o que puder tu divide.

Foge mas lembra as regras do jogo
Faz cada morte passada um presente
Traz tuas marcas forjadas a fogo
Mas olha pra frente.

Vê as mulheres com cestos de palha
Lê os seus textos que o vento espalha
Gera teus frutos em terrenos amplos
Aprende e sê como os campos.



Eu sei que às vezes parece vão 
Mas seremos dois se me deres a mão 
Lembra que o grão já pertence ao depois:
Sobe e vê os campos de arroz.



Fotos: Lian Tai



RELEASE DO LIVRO “CRÔNICAS DE VARANASI”

É inverno na Índia, quando Lian Tai desembarca em Varanasi, com o objetivo de entrevistar viajantes para sua pesquisa de doutorado. Porém é sua a viagem que acompanharemos neste livro, através de seus relatos diários, ao longo de três meses, que incluem uma viagem de dez dias ao Nepal. Varanasi é uma das cidades vivas mais antigas do mundo e é considerada a cidade mais sagrada entre os hinduístas. Estar ali é fazer uma viagem no tempo, caminhar por becos estreitos, repletos de animais, presenciar as diversas cerimônias religiosas que se realizam diariamente ao longo do Ganges e entrar em contato com um povo interessantíssimo.







Crônicas de Varanasi é composto pelos textos que a autora escreveu diariamente, de forma fluida, ao longo de sua estadia na cidade, no ano de 2015. Lian mostra seu olhar e compartilha suas caminhadas pelos labirintos desse importante centro de peregrinação religiosa, os rituais no rio sagrado, as cremações ao ar livre, os encontros e desencontros e seu processo de auto-conhecimento, que se desenrola dia após dia, aos nossos olhos. Através de suas crônicas, somos transportados para a cidade de Shiva, entre pessoas e bichos que se misturam em meio a um tempo perdido em outro século. Lá, acompanhamos o poder de transformação que um povo e uma cidade têm para quem verdadeiramente se dispõe a penetrá-los. 





*    *    *



Lian Tai é atriz, escritora e atualmente termina seu doutorado em Comunicação Social na Universidade Federal Fluminense. Filha de chineses, nascida em Goiânia e vivendo no Rio De Janeiro, a autora divide seu tempo entre os estudos, a carreira de atriz, as palavras e, claro, as viagens. Apaixonada por culturas e paisagens diferentes, busca o auto-conhecimento pelo encontro com o outro. Também mantém o blog “Bolhinhas da Lian” e é colunista do site de viagens “De mala e mochila”. 




3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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Palmeira dos Índios:

o nome era muito mais bonito do que a cidade. cidade
pobre, empoeirada, poeirenta. três amigos, mochila
nas costas, descobrindo aquilo tudo. 1977. calor. pessoas
solícitas, sorrisos banguelas. restaurante de prato-feito. a
mesa: a mais nojenta de todas de todos os tempos.
parecia preta, mas não: eram moscas sobre ela, milhares,
milhares de moscas. eu comi aquela comida, nós comemos.
com nojo e com fome. eu era garoto. ainda não sabia que
aquela era a cidade de graciliano ramos. 1977. alagoas.
palmeira dos índios. que nome bonito.


de novo, outono

chegou o outono, finalmente. este o
primeiro domingo, a tarde ensolarada
e fria. vontade de ler, e de escrever
como os chineses. como Li Po, me imagino
bebendo à noite, na companhia, apenas,
da minha sombra e da lua cheia. das
quais me despedirei quando, embriagado,
cair no sono; mas não sem antes prometer
reencontrá-las, mais tarde, na via láctea.
domingo frio e ensolarado de outono:
melancolia e beleza,
regozijo e tristeza.


Sexta-feira


um marcador de livros que é um mosaico de pequenas imagens de capas de livros.
uma noite de sexta-feira. é
uma noite de fim de verão e faz calor.
uma noite de sexta-feira em são paulo.
uma seleção dos poemas de montanha de meng hao-jan.
uma casa vazia. um copo de cerveja.
um cachorro dormindo no chão.
quadros na parede para os quais ninguém
olha. solidão.



Imagem: Instalação de Damien Hirst
("Vamos comer fora hoje" (1990-91), 2011,
Academia Real de Artes, Londres)


*    *    *





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento. 





LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA "EMERGENTE - NOVOS POETAS LUSÓFONOS", EM LISBOA (07/05)

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NOVOS POETAS LUSÓFONOS EM ANTOLOGIA

O lançamento do primeiro número da antologia “Emergente – Novos Poetas Lusófonos” será no dia 7 de Maio, pelas 16h, na Livraria Ferin, em Lisboa. Idealizada pelo escritor Samuel Pimenta e publicada pela editora Livros de Ontem, a Emergente é uma iniciativa de promoção à publicação de novos autores de poesia escrita em português.

A apresentação será feita pelo júri que seleccionou os textos, composto por Samuel Pimenta, João Batista, editor da Livros de Ontem, e Ana Paula Tavares, escritora angolana que, nos últimos anos, tem integrado, também, o júri que atribui o Prémio José Saramago.

Da selecção do júri, foram escolhidos 12 autores: Alexandre Brea Rodríguez, da Galiza; Ana Cunha, Ariana Rupp, David Erlich, Diogo Godinho, Eduarda Barata, Iago Vendrell, João Paulo Coelho e Margarida Gordon, de Portugal; Rodrigo Domit e Vanessa C. Rodrigues, do Brasil; e Kussu Kappo, de Angola.


No dia do lançamento, será anunciada, também, a convocatória para o segundo número da “Emergente – Novos Poetas Lusófonos”.

CONHEÇA POEMAS E AUTORES AQUI



4 POEMAS DE RODRIGO BRITO

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O poema para ser lido ao som de Joy Division
foi escrito ao luar na presença de uma dama
foi desenhado nas curvas do desejo
não para sentir os rastros
apenas para sonhar aqueles olhos

Os últimos versos tocam as onze canções
de As Quatro Estações
uma tempestade de sensações surgem na tela
explosões cósmicas desconhecidas
todos os dias para esquecer a monotonia
para evitar a seriedade do cotidiano

O céu não é o objetivo
os relógios aparecem escondidos

dissolvem as luzes e acolhem o noturno


*   *   *


Desliguei todas as vozes
apaguei todas as luzes
A escuridão é a outra parte de mim

O silêncio

fumará as dores







Vi um velho homem na narrativa da cidade
suas labaredas mediam as histórias
Ônibus passam sobre os mortos
ruas que desfazem esperanças
Defuntos nos cheiros
 nos cheiros
quem me dera rasgar minha alma
e desenhar um barco com as folhas cortadas.


*   *   *


Sonhei que escrevia um poema
e nos versos desenhava o arrebol
dentro de mim cresciam castelos
dentro de mim nasciam árvores
na ponta do meu corpo brotavam confusões
ao norte eram apenas os segredos
de uma noite ilusória.

Imaginei Macário a declamar os meus delírios
em cada descompasso que minhas lágrimas
ofereciam ao Anjo de Sodoma

Desenharei algum dia a cena que me alucina
e será a grande obra do acaso.

Os sonhos não receberão aplausos
não receberão um beijo
não receberão um abraço





*   *   *




Rodrigo Brito nasceu em 20 de fevereiro de 1989 em Cuiabá, Mato Grosso. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, está terminando de cursar o mestrado em Estudos de Linguagem (PPGEL-UFMT). Autor de Solstício ao Luar (2013) e VISÕES (2015), possui colaborações em jornais e antologias. Email.

5 poemas de Simone Teodoro

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Balada para Vita Sackville-West

I
Sigo
pela calçada suja
da madrugada

Tão confortável
como se fosse um rapaz

Calças largas
camuflam
as coxas

Mãos nos bolsos
Cabelos curtos

Tão confortável
como se fosse um rapaz

Homem nenhum
tem ganas
de devorar-me

Levo uns rabiscos
no meu embornal

Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?

Piso a calçada mijada
-Segura-
Como se fosse um rapaz

II
No poema
que iniciei há quatros séculos
uma tristeza puta
cuidadosamente
alfinetada

Há quatro séculos
expurgando versos de abismos
Há quatro séculos
chorando a princesa russa
que desliza
para sempre
numa pista de gelo

Há quatro séculos
cultivo um carvalho
dentro do meu embornal

Mas
oh
e se desconfiam
que tenho boceta
no lugar de um pau?



Dafne

Por um tempo
habitei no cerne de uma
estranha palavra

Do meu ventre se ergueu
imponente Sequoia Gigante

Avançou
expandindo os espaços entre
os ossos
rumo aos pulmões
e garganta

Explosão de ramagens nos cabelos

Flores breves
Esboços de vento e pólen

Ao redor
cada despencar de fruto
ocultando podridão

Me tornei alta
e plena de antiguidades

A cortiça
matéria morta que me reveste
o tronco
é o que retém em mim
a umidade

Tanta vida se agitando
por dentro
que definha
na superfície da casca




Ilustração:  Laura Camila

Blue

Um blue
que me abrisse
inteira como
a língua dela
quando ela me come

Um blue
que me ardesse a ferida

Um blue que fosse janela de vidro
sonhando tempestade

Um blue
que nunca me acalentasse

Um blue
nos arredores daqui
que me atraísse
que me enganasse

Um blue
que
de amor
lentamente
me matasse




O deserto vermelho

Em minha solidão
mora um mar
de água transparente
e uma praia carmim

Como num filme
de Antonioni

Chego ao mesmo
tempo que o Sol
Parto quando a luz escapa
por uma fenda
no céu

Em minha solidão
moram coelhos selvagens

E um dia
de longe
vi um veleiro fantasma
desses que singram
os mares daqui
e os mares dos mundos
do lado de lá

Como num filme
de Antonioni
em minha solidão
as pedras cantam
como se fossem de carne
e doessem



Litania para quando descarrilarem os astros

Eu te supunha
asa
hélice
um retalhar de quedas

Eu te sonhava
rito e rio
e te queria ajustada
a meu dia de chuva
e a minha saudade de árvores

Por equinócios e solstícios vários
te gozei
em poro e pelo

mas eu era a puta
eu era a puta
e você tinha
a pedra
e a estaca

Por equinócios e solstícios vários
nos esfaqueamos
com furor igual
ao de quando o desejo
nos delirava

por equinócios e solstícios vários


Até que o sal
do mar da mágoa
vestiu de ardência
nossas carnes rasgadas



Poemas de "Movimento em falso" (Editora Patuá).





Simone Teodoro é poeta e mestra em Literatura Brasileira, pela UFMG. É autora dos livros Distraídas astronautas (Patuá, 2014) e Movimento em Falso (Patuá, 2016). Lê poesia compulsivamente.

3 POEMAS DE MAURÍCIO CAVALHEIRO

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NÓS

Tem dias
que desatamos
o nó
da gravata

e continuamos sufocados
pelo
na garganta


*

ESGOTO

Dependendo do que fazes
as fezes
cheiram melhor.


*


ENCENAÇÃO

Depois
da merda feita
não há papel
que higienize

o ato.



*    *    *




Maurício Cavalheiro é filho de Pindamonhangaba, cidade do Estado de São Paulo. Membro da Academia Pindamonhangabense de Letras é autor dos livros: “Lágrimas de amor” – poesia, “O sapinho jogador de futebol” – infantil, “O estuprador de velhinhas & outros casos” – contos, “Histórias de uma índia puri” – infanto-juvenil, “O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte” – cordel, “Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda” – cordel, entre outros. Possui blog

Três contos de José Antônio Cavalcanti

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Dara Scully



Três contos (textos de um livro que não)

1.
Ela esqueceu um livro de receitas tailandesas em cima da mesa. Gentil e preocupado, foi avisá-la, pulando os degraus para chegar ao térreo antes do elevador, mas algo fugiu ao sabor das páginas. Doeu descobrir que o dentista atendia em duas poltronas no interior da sala 3 do Estação Net Botafogo.

2.
Ao abrir a porta do veículo, o motorista assustou-se. Sua ex, linda e elegante como nunca, subiu no ônibus com o homem que fora o amor da vida dele. Não conseguiu dar o troco. As mãos e o mundo tremeram. O casal fingiu que não estava nem aí. Notas e moedas caídas no chão. Dois mortos, dez feridos. 
    
3.

A paisagem sórdida infiltrava-se nas janelas e nas veias de Horácio. Seu vício vazava solidão nas esquinas, no jogo clandestino dos clientes. O inchaço no olho minimizado com receitas de vizinhos. Maldizia a paixão musculosa. Rosto danificado, preço abaixo da tabela.







José Antônio Cavalcanti - poeta, contista, ensaísta, ex-professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.  Autor dos livros Anarquipélago (Ibis Libris, 2013), Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst (Annablume, 2014 e Fora de forma & outros contos (Ibis Libris, 2015)). Mantém os blogs Poemas da página que falta e Poemargens. 

3 POEMAS DE WANDA MONTEIRO

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Minha cabeça é um cais em delírio
aceso no olho do sol
e no olho da lua
ancoradouro de vozes, cantos e voos
é  apenas  o centro de um corpo líquido
cujo horizonte não é fio mas contorno
e tudo é margem á espera de chegadas
e partidas

o mundo move-se dentro dela
ilha de espantos
onde tudo acorda e dorme num relógio sem horas
pássaros caem em queda livre para nadar
peixes roubam suas asas para voar
e uma pedra desabrocha na flor da água...

é quando o poema rompe a fina película
de uma atônita realidade
para voar sobre edifícios e pessoas

jogando sobre eles suas plumas de sonhos.



*



Esquinas


Nunca viro esquinas sem antes sentir-me estancada pelo vórtice deitado de seus descaminhos. Elas sempre investem suas pontas contra meu peito, empurrando-me para o vão das ruas. Como se me forçassem ao mimetismo de um reles cordeiro em busca do cheiro de seu rebanho.    Recuso o vão das ruas.
Acabo cravando as mãos no cimento frio e pontiagudo de sua divisa para encontrar – talvez - reminiscências ancestrais sepultadas pela turba de falsas civilidades.
Nada vejo.
Silenciosa, essa cegueira me faz dobrar as esquinas.
Sigo passos de assombros e sofreguidão plantados em pedras.
Pouso meus ouvidos sobre o cimento - para ouvir os ecos de um chão desnudado de cinza.
De um chão que  não sentiu sede nem fome.
De um chão molhado que engolia passos se alimentando de afetos.
Acabo ouvindo um uníssono canto que me leva à várzea de outrora.
Lá - costuro os caminhos cruzados. Componho uma terra povoada por pessoas sem pressa, conversando com magos e bruxas, modelando - na areia do tempo - seus mitos e deuses.
Nessa terra tudo se move e flui sem tempo ou relevo.
Nela, o espaço está contido no tempo e todo o tempo é senão o espaço mapeado por seus ecos.
Passado, presente e futuro são paralelos olhando-se no sumidouro de seus espelhos.
São linhas criptografadas na contínua invenção da vida. 
Espectros de memória aflorada em espasmos.
Os ecos desenham frames colados um a um.
A música reverbera faces, corpos, paisagens.
Tudo se divide e se funde no ritmo martelado de uma nostalgia que acorda ao frenético som buzinas e ranger de pneus.
A esquina é outra.  
Tudo volta a ser impalpável, etéreo, e carregado de impossibilidades.



*



UMA TERRA CHAMADA PROMESSA

I

Carrego no peito e na memória
o ocre do chão e do barro molhado
moldado por mil pés
a cruzada de mãos em foice
singrando um latifúndio ausente de piedade
um chão cão
amálgama sob um véu de chuvas
chuvas  que lavaram angustias 
um quase tudo de crueldade

Uma terra úmida de histórias
um algo sobre-humano de corpos ausentes de sujeitos
faces sem nome ou sobrenome
uma história povoada de impossibilidades.
impossibilidades de quase gente caminhando a esmo

Senda estrada
serpente de martírio
que carrega  mil terços de prantos
mil terços de gemidos
um chão de dor
a sombra da dor que não quer deixar o chão


II

Guardo!
uma terra
estrada nauta assombrada pelo fogo e pelo poder da  marca em brasa
uma nau sem quilhas
sem velas
sem mar
uma nau de chão

Passageiros do destino de morrer   
de desmorrer a cada dia  no ventre da mata
morrer no arrancar de cada raiz
desmorrer no plantio de cada semente

 A lida de sangrar a terra e ser sangrado por ela
o massacre da estima de plantar e não colher
o partir e o repartir a tristeza de não ter  morada
de ser presa da ganga impura

Passageiros do destino de ser coió  à  força
sob o poder empunhado por pistolas
sob o olho da pólvora mirando toda lavra
sob o sol
sob a chuva
e à sombra única das nuvens


III

Um cordel de viventes isentos de toda maldade
extirpados de liberdade
expurgados do desejo de desejar
a sorte em chagas nas mãos
as mãos vazias de futuro
mãos que já não tem forças para apelar

Os apelos cravados em  pés
olhos de súplica
mas apelar pra quem?
se essas mãos
se esses pés
 se esses olhos são reféns
na ilha da ilha da soberba
cercados e  ameaçados pelo grito de quem prende e escraviza

Um tropel de dor à flor da carne de mil vidas
a sofreguidão de promessas não cumpridas
mil promessas de vida soterradas por desejos desfeitos
mil desejos desfeitos nessa estrada turba
cava e cova de mil virtudes
mil virtudes caminhando sem caminhar

Um caminho e um descaminho
testemunha de um Círio infindo
no sempre de partilha pelo pão e pelo sangue
o pão e o sangue de um deus que nunca nasceu
um chão deflorado de paz
deflorado de fé

Uma fé sem deus
uma quase fé
a fé de rebanho de toda gente
vindos do quase nada
cobertos de toda espera
vazios de sonhos

De onde vêm?
Para onde vão?

Sempre passando
                      Sempre passando


IV


Uma passagem marcada de memórias
no rastro das botas
as  folhas mortas pisadas  sob o mesmo suor
molhadas de infortúnio

Um chão de infortúnio
de muitas memórias
poucas palavras e silêncio
um silêncio que chora e vinga outro 
um outro chão chorado  por tanta prece
sonhado por tanta promessa

Um chão de promessa
uma terra de promessa
uma promessa
            uma promessa




*    *    *




Wanda Monteiro, escritora e poeta, é uma amazônida, nascida às margens do Rio Amazonas no coração da Amazônia, em Alenquer no Estado do Pará, Brasil, reside há mais de 20 anos no Estado do Rio de Janeiro mas só sente-se em casa quando pisa no leito de seu rio. Advogada e mãe de três filhos, nunca se afastou de sua vocação. Além de escrever, exerceu a atividade de revisora e de produtora editorial durante muitos anos. Participou de vários projetos editoriais de pesquisa histórica realizados no Estado do Pará e sempre publicou seus textos literários em revistas literárias, blogs e sites. Nos últimos anos, a escritora tem se dedicado exclusivamente à literatura, com várias obras literárias ainda não publicadas, participa, como colaboradora, de vários movimentos culturais de incentivo à leitura ,em várias regiões do Brasil. Publicou dezenas de seus textos poéticos na Antologia Poesia do Brasil do Proyecto Sur, participando  dos volumes IX, XI, XIII, XV. lançados no Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul. Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Editora Amazônia, 2009, Poesia; Anverso, Editora Amazônia, 2011, Poesia; Duas Mulheres Entardecendo, Editora Tempo, 2011, Romance (escrito em parceria com a escritora Maria Helena Latini); Aquatempo – Sementes líricas, Editora Literacidade, 2016, Poesia.


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